Qual o status o Pacto de São José da Costa Rica possui no direito brasileiro?

Qual o status o Pacto de São José da Costa Rica possui no direito brasileiro?

23 de Dezembro de 2013

O bloco de constitucionalidade e a garantia do duplo grau de jurisdição

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, os países aliados concluíram que o direito interno não era suficiente para evitar atrocidades como as praticadas pela Alemanha nazista. Surgiu a necessidade da elaboração de regras supranacionais com o fim de garantir a aplicação dos direitos humanos básicos. Com a criação da Organização das Nações Unidas os Estados membros se comprometeram a promover o respeito universal e efetivo dos direitos humanos. Em 10 de dezembro de 1948, a ONU proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, embora não fosse um documento com obrigatoriedade legal, serviu de ponto de partida para dois tratados sobre direitos humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 16/12/1966 e a Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica, assinado em 22/11/1969. Essas duas convenções internacionais tinham como objetivo garantir ao cidadão os direitos básicos contra a atuação estatal, contendo garantias naturais e processuais, que devem ser respeitadas em âmbito interno por todos os países parte.

Surge, neste ponto, uma indagação de grande relevância: qual o status de um tratado internacional sobre direitos humanos no âmbito interno de cada país parte? No direito comparado, encontramos vários exemplos de países cuja constituição atribui aos tratados internacionais status de normas constitucionais, o que formaria o chamado bloque de constitucionalidad ou bloco de constitucionalidade, expressão criada pelo Direito Constitucional francês em 1971, posteriormente adotada na Constituição espanhola de 1978, segundo a corte constitucional desse país.

O bloco de constitucionalidade é formado pela constituição e pelos tratados internacionais envolvendo direitos humanos, ratificados pelo país, que servem de parâmetro para o controle das demais normas internas. Na América do Sul, países como a Argentina, no artigo 75, n. 22, a Colômbia no artigo 93, e o Equador, no artigo 424, em seus textos constitucionais atribuem caráter de norma constitucional aos referidos tratados, formando o bloco de constitucionalidade. A constituição agrega ao seu texto todas as garantias dos tratados internacionais sobre direitos humanos, e como tal, serve de parâmetro para o controle das normas infraconstitucionais, o que se denomina controle de convencionalidade. Segundo Osvaldo A. Gozaíni “el control de convencionalidad refiere a la obigación judicial que tienen los órganos jurisdiccionales internos de aplicar el pacto de derechos humanos”.(1)Esse conjunto de normas deve ser interpretado de forma harmônica, com base no princípio pro homine, que sempre privilegia a disposição mais favorável à tutela dos direitos humanos do cidadão.

No caso específico do Brasil, o Supremo Tribunal Federal, historicamente, não tem conferido aos tratados internacionais o status devido, de norma constitucional, e sim de norma supralegal. Precedentes HC 87.585, HC 88.240, HC 92.566 e HC 94.523(2). Já em sede doutrinária, com base no artigo 5º, § 2º, da Constituição da República Federativa do Brasil, se reconhece, por exemplo, ao pacto de San José da Costa Rica status de norma constitucional.

Essa é a posição de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes: “(...) os dispositivos da Convenção Americana colocam-se no mesmo nível das regras constitucionais, por força do disposto no art. 5º, §2º, CF. Entendemos, também, que a edição da emenda Constitucional n. 45, de 2004, introduzindo o §3º, ao art. 5º, não altera a questão aqui discutida”.(3)

No mesmo sentido, Aury Lopes Jr. afirma que “os direitos e garantias previstos na CADH passaram a integrar o rol dos direitos fundamentais, a teor do art. 5º, §2º, da Constituição, sendo, portanto, autoaplicáveis (art. 5º, §1º, da CF)”.(4)

Na realidade, de acordo com as regras internacionais, os tratados deveriam até se sobrepor a qualquer regra interna. Isso porque a Convenção de Viena sobre a aplicação dos tratados internacionais, ratificada pelo Brasil em 25/9/2009 e internalizada através do decreto nº 7030/2009, no artigo 27, estabelece que “Direito Interno e Observância de Tratados – Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado.”Já o Pacto de San José da Costa Rica, ratificado em 7/9/1992 e internalizado pelo decreto nº 678 de 6/11/1992, no artigo 29, fixa que: “Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de: a) permitir a qualquer dos Estados Partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista; b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados; c) excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo; e d) excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza.”

Finalmente, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela ONU na sessão de 16/12/1966, vigente no Brasil desde 24/4/1992 conforme o decreto nº 592 de 6/7/1992, no artigo 2º, contém a regra de que “Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar e garantir a todos os indivíduos que se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma.”

Nesse sentido, no Brasil, nenhum juiz poderia invocar uma regra de direito interno, mesmo que uma norma constitucional, para afastar uma garantia fixada no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos ou no Pacto de San José da Costa Rica. Ou seja, essas convenções internacionais prevalecem sobre qualquer regra de direito interno, até mesmo a Constituição. Essa é a interpretação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão criado pelo Pacto de San José da Costa Rica para assegurar a aplicação desses direitos inerentes ao homem, cuja competência foi aceita pelo Brasil no dia 12/10/1998. Nesse sentido foi a decisão da Corte no caso Gelman VS. Uruguay, julgado em 24/2/2010. 

A questão pode ser analisada considerando-se uma garantia específica, como o duplo grau de jurisdição, que traz “o direito fundamental de o prejudicado pela decisão poder submeter o caso penal a outro órgão jurisdicional, hierarquicamente superior na estrutura da administração da justiça”.(5)O Pacto internacional de Direitos Civis e Políticos no artigo 14, n. 5, garante que “toda pessoa declarada culpada por um delito terá direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei”.Com uma regra semelhante, mas não tão específica, o Pacto de San José da Costa Rica, no artigo 8, n. 2, “h” assegura: “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior”.

Diante desses dispositivos, surgem questões de grande relevância, envolvendo a garantia do duplo grau.Uma delas foi levantada por André Nicolitt: “pensemos na hipótese de o acusado ser absolvido pelo juiz de primeiro grau. O Ministério Público recorre. O tribunal condena o acusado. Tendo em vista que os Tribunais Superiores não possuem competência recursal para reexaminar questões de fato, a condenação se tornaria irrecorrível[...]Para nós, o Ministério Público só poderá recorrer para argüir nulidade ou para modificar a aplicação da pena”.(6)

O fundamento apresentado pelo respeitado doutrinador é justamente o artigo 14, n. 5, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.

Outra questão que poderia surgir diz respeito à conformidade dessa garantia com o denominado foro por prerrogativa de função, por exemplo, no caso do artigo 96, III, da Constituição Federal, que fixa a competência originária dos Tribunais de Justiça para processar e julgar juízes de direito e membros do Ministério Público quando praticam crimes comuns. Nessa hipótese, a garantia estabelecida nas duas convenções internacionais sobre direitos humanos é descumprida em razão de disposições internas. Como solucionar essa questão?

Sendo notório que, no direito brasileiro, atualmente, poucos cogitam a possibilidade de uma disposição da Constituição Federal ser afastada por uma norma internacional, diante do que dispõe a Convenção de Viena sobre a aplicação dos tratados internacionais, ratificada pelo Brasil em 25/9/2009, o Pacto de San José da Costa Rica, no artigo 29 e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, no artigo 2º, todos anteriores à Constituição de 1988, fica evidente que a República Federativa do Brasil se obrigou a assegurar a aplicação da garantia de recorrer da decisão condenatória. No caso de um juiz de direito ou membro do Ministério Público ser condenado, tem de ser assegurada a ele uma via recursal que possibilite a discussão de questões de fato, da prova produzida, para evitar uma condenação em juízo único, já que os recursos especial e extraordinário só admitem a análise de questões de direito.

Também o cidadão que for absolvido em primeiro grau e condenado pelo tribunal de justiça ou TRF tem o direto de recorrer dessa decisão, com a análise da matéria de fato. A Corte Interamericana de Direito Humanos, no caso Mohamed VS. Argentina julgado em 23 de novembro de 2012, reconheceu a responsabilidade da Argentina por violação aos direitos humanos e determinou que fosse assegurado ao Sr. Oscar Alberto Mohamed o direito de recorrer da decisão condenatória prolatada por tribunal, em julgamento de recurso contra a sentença que o absolveu.

No caso do Brasil, nos dois exemplos mencionados, é possível compatibilizar os dois tratados com a constituição, respeitando o bloco de constitucionalidade, de uma maneira muito simples. A República Federativa do Brasil estaria assegurando o duplo grau de jurisdição, nos casos de um acórdão condenatório ou de uma decisão condenatória em julgamento de ação penal originária nos tribunais de justiça ou TRFs, ao fixar que, no eventual recurso especial, a matéria de fato também fosse analisada. Se no recurso especial fosse possível a discussão de matéria de fato e de direito, a garantia do duplo grau estaria assegurada. Trata-se de medida simples, que exige apenas a adequação de nossa jurisprudência ao bloco de constitucionalidade com o temperamento do enunciado número 7 da súmula do Superior Tribunal de Justiça, para esses casos específicos. Não há nenhum dispositivo legal que impeça essa análise de questões de fato, só o entendimento pretoriano.

Por último, poderia surgir um questionamento sobre o tema, considerando o caso das pessoas que devem ser julgadas originariamente no Supremo Tribunal Federal, artigo 102, I, “b” e “c” da Constituição Federal. Como compatibilizar a garantia do duplo grau com o denominado foro por prerrogativa de função? Uma solução para essa questão seria alterar o Regimento Interno para que o julgamento das ações penais originárias seja realizado por uma das turmas, com a posterior previsão de um recurso, com a análise de matéria fática, para o plenário.

A República Federativa do Brasil tem que assegurar a possibilidade de os réus recorrerem da decisão condenatória, em qualquer caso, seja qual for o recurso, para evitar uma condenação perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Dessa forma, essa relevante garantia poderia ser aplicada com a interpretação do nosso ordenamento jurídico, tendo por base o bloco de constitucionalidade.

Referências bibliográficas

GOZAÍNI, Osvaldo A. Proceso y Constitucíon. Buenos Aires: Ediar, 2013.

GRINOVER, Ada Pellegrini e outros. Recursos no processo penal, 5. ed. São Paulo: RT, 2008.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional, 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

Notas

(1) Gozaíni, Osvaldo A. Proceso y Constitucíon. Buenos Aires: Ediar, 2013, p. 244.

(2) “O Pacto de San José da Costa Rica, passando a ter como fundamento de validade o § 2.º do art. 5.º da CF/88, prevalece como norma supralegal em nossa ordem jurídica interna e, assim, proíbe a prisão civil por dívida. Não é norma constitucional – à falta do rito exigido pelo § 3.º do art. 5.º –, mas a sua hierarquia intermediária de norma supralegal autoriza afastar regra ordinária brasileira que possibilite a prisão civil por dívida.”

(3) Grinover, Ada Pellegrini et al. Recursos no processo penal, 5. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 22.

(4) Lopes Jr., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p.1168.

(5) Idem, ibidem, p.1167.

(6) Nicolitt, André. Manual de processo penal, 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevir, 2012. p.43.

Marcos Thompson Bandeira
Professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.
Professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Candido Mendes.
Advogado Criminalista.

Qual é o status que o Pacto de San José da Costa Rica possui no Brasil?

dos Estados Americanos), no qual fora ratificado em 22 de novembro de 1969 em San José, na Costa Rica.... Por ser anterior a emenda de 2004, o pacto de San josé possui status de norma supralegal (abaixo da constituição e acima das demais leis), segundo o STF.

Qual o status da Convenção Americana sobre Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro?

Assim, a Convenção Americana de Direitos Humanos, por ter sido recepcionada antes da Emenda Constitucional n.º 45/04, possui atualmente caráter supralegal, servindo, portanto, de referência para o controle de convencionalidade das demais normas infraconstitucionais.

Porque o Pacto de São José da Costa Rica é considerado supralegal?

Devido, ao Pacto de São José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil, em que proíbe expressamente a prisão civil por dívidas, verifica-se a primeira divergência entre o supracitado tratado e a Constituição brasileira.

O que era permitido no Brasil e com o Pacto de San José da Costa Rica passou a ser questionado e mudou as decisões do Supremo Tribunal Federal?

É que este Pacto, firmado em 1969 e ratificado pelo Brasil em 1992, previa o direito à vida desde o momento da concepção, mas por outro lado a Lei nº 11.105/05, chamada Lei de Biossegurança, passou a autorizar a pesquisa e a terapia com embriões humanos, inclusive o seu descarte.