Qual é a importância da leitura e da escrita para os povos indígenas?

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coleção "Linguagem e Letramento em Foco" compõe-se de 10 livros, distribuídos entre seis

diferentes áreas. Esses 10 volumes foram especialmente desenvolvidos para os cursos do Cefiel – Centro de Formação de Professores do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), apoiado pela Rede

O índio, a leitura e a escrita O que está em jogo?

Nacional de Formação Continuada de Professores (SEB / MEC).

As áreas e os títulos da coleção: Linguagem e educação infantil A criança na linguagem ■

Linguagem nas séries iniciais Meus alunos não gostam de ler... Preciso “ensinar” o letramento? ■

Língua portuguesa Aprender a escrever (re)escrevendo Multilingüismo O trabalho do cérebro e da linguagem ■

Formação do professor indígena Línguas indígenas precisam de escritores? O índio, a leitura e a escrita ■

Letramento digital Letramento e tecnologia ■

Ensino de línguas estrangeiras LEs no Brasil: histórias e histórias. ■

Marilda do Couto Cavalcanti Terezinha de Jesus M. Maher

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Linguagem e letramento e m fo c o Formação do professor indígena

O índio, a leitura e a escrita O que está em jogo?

Marilda do Couto Cavalcanti Ph.D. pela Universidade de Lancaster Professora de Lingüística Aplicada no IEL/UNICAMP Consultora da Comissão Pró-Índio do Acre

Terezinha de Jesus M. Maher Doutora em Lingüística pela UNICAMP Professora de Lingüística Aplicada no IEL/UNICAMP Consultora da Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena/SECAD/MEC e da Comissão Pró-Índio do Acre

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© Cefiel/IEL/Unicamp, 2005-2010 É proibida a reprodução desta obra sem a prévia autorização dos detentores dos direitos.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO Presidente: LUIS INÁCIO LULA DA SILVA Ministro da Educação: TARSO GENRO Secretário de Educação Básica: FRANCISCO DAS CHAGAS FERNANDES Diretora do Departamento de Políticas da Educação Infantil e Ensino Fundamental: JEANETE BEAUCHAMP Coordenadora Geral de Política de Formação: LYDIA BECHARA

Cefiel - Centro de Formação de Professores do Instituto de Estudos da Linguagem* Reitor da Unicamp: Prof. Dr. José Tadeu Jorge Coordenação do Cefiel: Angela B. Kleiman Coordenação da coleção: Angela B. Kleiman Coordenação editorial da coleção: REVER - Produção Editorial Projeto gráfico, edição de arte e diagramação: A+ comunicação Revisão: REVER - Produção Editorial; Elisabeth B. Frizzo Ilustrações: Fábio Sgroi Pesquisa iconográfica: Vera Lucia da Silva Barrionuevo * O Cefiel integra a Rede Nacional de Centros de Formação Continuada do Ministério da Educação.

Impresso em setembro de 2005.

Todos os esforços foram realizados para obter autorização para utilização de algumas imagens aqui reproduzidas. Caso o detentor dos direitos se sinta prejudicado, favor notificar formalmente a coordenação editorial.

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Sumário Introdução / 5 A escrita e sua (relativa) importância / 7 Alfabetizar e letrar? Como assim? / 14 Ensinar a ler e a escrever, sim... Mas em que língua? / 19 - Escolas monolíngües / 23 - Escolas bilíngües / 24 - Escolas multilíngües / 24 Ler e escrever... O quê? Como? Com que propósito? / 29 Só para deixar mais claro, o letramento entra onde mesmo? / 33 Previlegiando a leitura, sem deixar a escrita / 36 Retomando a escrita como conseqüência do trabalho com a leitura / 37 Material didático: uma empreitada necessária / 39 E os agentes de alfabetização e de letramento? / 41 Bibliografia / 50

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Introdução

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ualquer pessoa que tenha a intenção de atuar na área da Educação Escolar Indígena, que se prepare: esse é um terreno povoado por muitos desafios e por dilemas e incertezas constantes. Antes de tudo é preciso distinguir Educação Escolar Indígena da Educação Indígena propriamente dita. Esta se refere aos processos tradicionais de socialização da criança e do jovem no interior do universo cultural de cada povo indígena, enquanto a primeira se refere ao processo de escolarização dessas crianças e desses jovens, de modo a instrumentalizá-los para as situações de contato com o mundo dos brancos.

A sensação que se tem é de que tudo, até mesmo os procedimentos ou os materiais pedagógicos mais simples e aparentemente inócuos (uma cartilha, um exercício em quadro-de-giz...), podem trazer em si uma carga de perigo em potencial. Há sempre o risco de que o uso de certos procedimentos ou materiais possa fazer com que nos tornemos — ainda que muitas vezes sem querer — patrocinadores de um modelo de educação que, longe de contribuir para liberar os povos indígenas da tutela do branco, impeça esses povos de traçarem os caminhos para a

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autodeterminação, ou, então, de, no fundo, em nada ajudarem os povos indígenas a criar instrure-se ao direito das comumentos eficientes de diálogo e de enfrentamennidades indígenas de decidirem o seu próprio desto com a sociedade envolvente. tino, inclusive no que diz Além de ter em mente, o tempo todo, os comrespeito aos projetos poplexos objetivos politicopedagógicos que querem liticopedagógicos de suas escolas. Historicamente, atingir, os profissionais dessa área também preesse direito foi quase semcisam estar atentos para o fato de que cada pre negado aos índios, pois experiência escolar indígena está inserida em os brancos se viam (e, em muitos casos, ainda se um mundo cultural específico e é resultado de vêem) com a prerrogativa uma história de contato particular. Por isso, todo de determinar o que é mecuidado ao tentar fazer generalizações é pouco. lhor para eles. Um programa de ensino pode, por exemplo, se revelar muito bom em uma escola Tikuna, mas ser totalmente inadequado para uma escola Yawalapiti. Um material didático inútil para os Waiãpi pode servir, de forma produtiva, aos objetivos de uma escola Pataxó e assim por diante. Mas, se as especificidades na área da Educação Escolar Indígena são muitas, há, com certeza, um denominador comum: a educação formal para o índio sempre contempla a aquisição da palavra escrita. Ensinar o aluno indígena a ler e a escrever é, sem sombra de dúvida, uma preocupação sempre presente no campo educacional. Neste volume da coleção “Linguagem e Letramento em Foco”, nossa intenção é promover reflexões sobre algumas das questões básicas que estão envolvidas nessa complexa tarefa. Esperamos que essas reflexões possam ser úteis para aqueles que pretendem atuar em cursos de formação de professores indígenas. Autodeterminação. Refe-

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A escrita e sua (relativa) importância

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ara começarmos a discutir as questões que nos interessam, pedimos a você, leitor, que reflita um pouco sobre a pergunta que faremos a seguir. Para reflexão Qual é a importância da escrita no mundo atual?

É bastante fácil concluir que não é pouca a importância atribuída à escrita nas sociedades contemporâneas, já que, no nosso dia-a-dia, de uma maneira ou de outra, lidamos com uma grande variedade de textos escritos: bilhetes, recibos, mapas, bulas, manuais de instrução, receitas, e-mails, jornais e revistas, listas telefônicas, contratos etc. Sem dúvida alguma, a invenção da escrita afetou consideravelmente o modo de vida daqueles que dela fazem uso: as relações sociais, as negociações financeiras, as atividades de lazer dos cidadãos de sociedades letradas, como a sociedade brasileira, por

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exemplo, raramente aparecem, hoje, desassociadas por completo da escrita. Ora, após terem entrado em contato com a sociedade que as dominou — e que passa uma imagem de tão marcadamente letrada — as populações indígenas rapidamente perceberam a necessidade de também dominarem a escrita para poder minimizar a situação de desvantagem em que foram historicamente colocadas. É importante entender que a necessidade da escrita não surge no interior das aldeias espontaneamente: ela — assim como a escola — é uma conseqüência do contato (quase sempre dramático e conflituoso) com a sociedade envolvente. Até então, os povos indígenas vinham estabelecendo suas relações sociais, suas negociações e suas atividades de lazer de modo amplamente satisfatório sem a escrita. Mas a presença do branco alterou profundamente o modus vivendi indígena, além de modificar, para pior, o entorno das aldeias. Hoje, quando os recursos naturais se tornam cada vez mais escassos, o índio precisa ir às compras (e, conseqüentemente, lidar com dinheiro, cheques, notas fiscais, recibos, vales...) sem correr o risco de ser lesado. Quando os remédios da mata já não conseguem curar todas as doenças, o índio precisa transportar seus doentes para hospitais nos centros urbanos (e utilizar-se de passagens, tabelas de horários, receitas...) para que esses não morram. Quando as normas que regulam suas atividades não são exclusivamente aquelas instituídas nas esferas de poder de sua própria comunidade, o índio precisa conhecer e entender o funcionamento de toda uma gama de legislações e documentações (certidões, carteira de trabalho, ofícios...) para fazer valer os seus direitos. “Nós queremos aprender a fazer conta, queremos aprender a tirar nossos saldos, não queremos mais ser explorados pelos patrões nos seringais. Queremos ler os nossos talões de mercadorias para saber o valor de nossa produção de borracha.”

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Joaquim Maná Kaxinawá. A Gazeta do Acre, 21 nov. 1982, apud MONTE, N. L. Escolas da Floresta — Entre o passado oral e o presente letrado. Rio de Janeiro: Multiletra, 1996.

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Assim, para o índio, a importância de se tornar leitor/escritor deriva, sobretudo, do fato de que a escrita pode constituir um instrumento de defesa potencialmente importante no pós-contato. Seria essa também a nossa motivação quando nos propomos a ensiná-lo a ler e a escrever? Para que possamos continuar tecendo nossas considerações, propomos uma reflexão sobre o que segue. Para reflexão Como são vistas as sociedades de tradição oral quando comparadas às sociedades letradas? Que valor social têm os analfabetos nesses dois tipos de sociedade? Por quê?

A ampla difusão da escrita pelo mundo provocou a criação de crenças que marginalizam a palavra oral. Nesse processo, instalou-se, por exemplo, a crença de que, quando falamos, nem sempre somos claros, precisos, objetivos. A oralidade, com suas pausas, improvisos e hesitações, seria o lugar do impreciso, e, por isso mesmo, o lugar preferido dos equívocos. Se quiséssemos garantir eficiência na comunicação melhor seria recorrermos às letras, já que — acredita-se — na escrita não há mal-entendidos. É evidente que essa crença não corresponde à verdade. Quem nos lê certamente já deve ter deparado com inúmeros textos escritos que são confusos, ininteligíveis, ou já deve ter conhecido várias pessoas que se expressam com muito mais clareza e precisão oralmente do que por escrito. É bom também nos lembrarmos de uma outra crença, igualmente infundada, mas bastante difundida: a de que a palavra, quando colocada no papel, passa a ter, automaticamente, valor de verdade. Promessas feitas oralmente podem até não ser cumpri-

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das, mas com acordos escritos, não. Alguém já experimentou pedir dinheiro ao gerente de um banco para comprar uma casa e tentar que o empréstimo fosse concedido com base no seguinte argumento: “Não há necessidade de assinar nenhum contrato. Eu dou a minha palavra de que pagarei todas as prestações direitinho”? É impensável que isso possa acontecer porque, hoje, o que é dito oralmente inspira muito menos confiança e tem menos garantia do que o que é grafado no papel. A verdade é que a sociedade brasileira vem Sociedade grafocêntrise tornando, cada vez mais, uma sociedade ca. Sociedade cujos memgrafocêntrica, uma sociedade na qual se acredibros tomam a escrita cota que a escrita seja melhor, mais confiável e sumo referência primeira em suas relações pessoais e perior à oralidade. Desse modo, a capacidade de institucionais. Embora o ler e escrever representaria um avanço sobre “a Brasil esteja se tornando pobreza” e “as limitações” da oralidade. E é jusum país cada vez mais grafocêntrico, a vida de grantamente por esse motivo que muitos, em nosso de parcela dos brasileiros, país, acreditam que povos de tradição oral e pesprincipalmente daqueles soas analfabetas sejam, necessariamente, mais que habitam regiões dis“atrasados”, mais “primitivos” em comparação tantes dos grandes centros urbanos, é regida pela com povos e pessoas que fazem uso da escrita. oralidade.

A extrema valorização atribuída à escrita, sua “sacramentalização” ao longo da história, explica por que muitos acreditam que a função mais importante da escola indígena, hoje, é tirar os povos indígenas da condição de ágrafos (leia-se: da condição de “inferiores”, de “povos sem cultura”) de modo a trazêlos para “um estágio superior, mais avançado de civilização”, de modo a torná-los “civilizados como nós”. Deveria ser essa a nossa motivação quando ensinamos índios a ler e a escrever? É para se tornarem “melhores” que eles querem dominar a escrita? Pensar sobre a afirmação de Meliá (1989:60), a seguir, nos parece importante.

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Para reflexão

© Rosa Gauditano / Studio R

“ A alfabetização quer assimilar o índio; o índio quer assimilar a alfabetização, mas para não ser assimilado.” B. Meliá

Crianças Xavante na escola. Aldeia Pimentel Barbosa - MT, 2001.

Nosso grafocentrismo faz com que freqüentemente inculquemos, no índio, noções enganosas sobre os benefícios da escrita. Uma delas refere-se à idéia de que só quando ele aprender a ler e a escrever é que conseguirá, de fato, compreender a lógica do mundo dos brancos. “Alfabetize-se e nos decifre” é uma mensagem subliminar que, infelizmente, deu apoio a muitos programas de Educação Escolar Indígena em nosso país. A aquisição dessa competência seria, assim, a garantia de que o índio conseguiria resolver os problemas decorrentes do contato, e também a garantia de que ele teria uma participação plena na sociedade nacional. Embora muitos índios acreditem nessa fantasia, vários já percebem quão ilusórias são essas nossas “promessas”:

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“Nosso ponto de vista é mais a organização, a conversa, o diálogo, a orientação. Se só a escrita resolvesse o problema, não tinha milhares de pessoas aí nas grandes cidades sabendo ler e morrendo de fome.” Isaac Pinhanta Asheninka, in Jornal Yuimak~l , 2001:2.

“Nós, Yanomami, que somos, xamãs, sabemos. Vemos a floresta. Depois de tomar o poder alucinógeno de suas árvores, nós vemos. Fazemos os espíritos da floresta, os espíritos xamânicos, dançarem suas danças de apresentação. Vemos com nossos olhos. Depois de ‘morrer’ sob o poder do alucinógeno, vemos a ‘imagem essencial’ da floresta. Vemos o céu sobrenatural. Nossos ancestrais o viam antes e nós continuamos a vê-lo. Nós não estudamos, nem vamos à escola. Vocês, brancos, vocês mentem. Não conhecem as coisas. Vocês acham que as conhecem, mas só vêem os desenhos de sua escrita.” Davi Yanomami, citado por Bruce Albert, no artigo “O ouro canibal e a queda do céu — uma crítica xamânica da economia política

A importância da escrita na vida de muitos povos indígenas — principalmente daqueles que vivem em contato intenso conosco — não pode, nem deve, ser ignorada. Mas que não se tenha ilusões: a alfabetização pode destravar algumas portas, mas ela, sozinha, não garante a ninguém o acesso a nada, como bem aponta o professor Asheninka. É preciso ficar claro que os problemas indígenas existem não porque os índios pautam suas vidas não na escrita mas na conversa e no diálogo, e, sim, porque são oprimidos política e socialmente. A opressão de um povo sobre outro pode assumir várias formas. Uma delas — talvez uma das mais eficientes — consiste na valorização excessiva do saber do povo dominante e, simultaneamente, na desqualificação dos saberes do povo que se quer dominar. Nem sempre, no entanto, esse estratagema funciona, como atesta o depoimento de Davi Yanomami, a seguir:

da natureza (Yanomami)”, 2002.

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Em que pese o valor relativo da escrita, ela pode, sim, ser um ganho muito interessante para alguns índios, mas afirmar isso não é o mesmo que dizer que os “desenhos da escrita” seriam o único — ou o melhor — caminho para “ler” o mundo, da perspectiva indígena: há atributos e competências tradicionais considerados tão ou mais eficientes para ver e interpretar a realidade em que vivem as populações indígenas. Desse modo, aqueles que pretendem ingressar no campo da Educação Escolar Indígena devem estar sempre atentos para que a introdução da escrita, da habilidade de ler e escrever, não contribua para subjugar e/ou alienar culturalmente os povos indígenas. Ela pode entrar como um recurso potencialmente útil, mas nunca para deslocar o conhecimento dos contadores de histórias, dos pajés ou de qualquer outra fonte de saber tradicional.

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Alfabetizar e letrar? Como assim?

No passado somente o termo “alfabetização” era utilizado; “letramento” foi introduzido na década 1980. É importante, no entanto, enfatizar que Paulo Freire, já nos anos 1970, diferentemente de outros autores, usava o termo “alfabetização” para significar também “letramento”. Nesse caso, alfabetizar, num sentido mais amplo, não se referia apenas à aquisição da escrita, mas incluía também a formação do cidadão leitor e escritor. Neste texto, usaremos os dois termos: “alfabetização”, para fazer referência ao aprender a ler e a escrever e “letramento”, para fazer referência à familiarização com as práticas sociais que incluem a escrita.

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ão várias as questões que surgem quando se focaliza a Educação Escolar Indígena. Uma delas está relacionada à discussão sobre alfabetização e letramento. Na distinção que fazemos entre os dois conceitos, alfabetizar se relaciona a aprender a ler e a escrever e letramento, à familiarização com a língua escrita através de seus usos e práticas sociais. Em outras palavras, “decifrar” o jogo da escrita e da leitura, decodificar a tecnologia da escrita estão no âmbito da alfabetização. No âmbito do letramento, está saber o que fazer com a leitura ou a escrita — por exemplo, quais os caminhos para tirar um documento, inscrever-se em um concurso, fazer uma reclamação formal a um órgão público? Cada uma dessas ações depende de conhecer rotinas que estão (d)escritas em folhetos,

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manuais, editais e, hoje em dia, muitas vezes também disponíveis na Internet. Nesse caso, só saber ler ou escrever não é suficiente. Além de saber onde buscar a informação é necessário saber o que fazer com ela para fazer valer nossos direitos de cidadania. E é bom lembrar que a sociedade, continuamente, nos apresenta novas exigências de leitura e escrita às quais precisamos saber responder. Um exemplo ilustrativo disso é o uso da leitura em repartições públicas. De novo, além da leitura, é preciso familiarizar-se com a cultura desses órgãos públicos, que constantemente modificam seus procedimentos de rotina — recentemente houve a inclusão de senhas para atendimento, que devem ser retiradas em lugar específico. Em repartições públicas pode, por exemplo, haver avisos escritos sobre essas mudanças de procedimentos, de locais e de horários de atendimento. Muitas vezes, também é preciso saber que é necessário acompanhar o noticiário no rádio ou na televisão para saber sobre essas mudanças, ou, ainda, ter sempre a iniciativa de telefonar para um determinado setor antes de dirigir-se pessoalmente ao local. Para reflexão Por que é necessário discutir alfabetização e letramento na Educação Escolar Indígena? Afinal, na sociedade envolvente, essas são questões de ensino a serem melhoradas e não necessariamente questionadas.

Para uma parte da sociedade cujo cotidiano está centrado na escrita, saber fazer uso da leitura e da escrita é algo que começa antes de a criança ser alfabetizada. Isso acontece através da familiarização da criança com a cultura letrada dentro ou através da própria família. Um exemplo disso seria uma criança de quatro anos que ainda não aprendeu a ler, mas que surpreende um adulto ao demonstrar que sabe como funciona a rotina de um banco ou como buscar informação em uma máquina eletrônica. Pode-se dizer, então, que a criança é letrada antes de ser alfabetizada no

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contexto que ela conhece. Essa mesma criança, porém, não estará letrada em mundos de tradição oral onde, como já apontamos, as práticas sociais estão calcadas em outros códigos que não a palavra escrita. Uma criança que pode saber para que serve e como é usado um computador, pode não saber o que é ou para serve um remédio da mata, coisa que uma criança indígena, que mora na floresta, aprende logo, por questões de sobrevivência. Ela pode não saber tudo o que o adulto sabe, pode ainda estar aprendendo a identificar os sinais da natureza, mas já sabe como as coisas funcionam. Um parêntese é aqui necessário para anotarmos que, na discussão acima, estamos propondo e fazendo uso de um conceito ampliado de “letramento” — conceito esse de base sociocultural, que vai além da letra e está relacionado às práticas sociais no contexto sócio-histórico e político da comunidade focalizada. Retomando, então, o que queremos dizer com uma pessoa pode ser ”letrada” (ou “letramentada”) antes de ser “alfabetizada” é que ela sabe como funciona o mundo ao seu redor e tem estratégias de sobrevivência e de sucesso em situações conhecidas ou já experimentadas. E o contrário também pode ocorrer: que pessoas consideradas alfabetizadas na sociedade envolvente apresentem um nível incipiente de letramento porque desconhecem práticas sociais da cultura letrada. A importância da escrita, hoje, como já afirmamos, não pode ser subestimada. Portanto, ao mesmo tempo que é preciso enfatizar que a escrita não é parte integrante de toda e qualquer comunidade, seja ela indígena ou não-indígena, é preciso também registrar que, neste texto, nosso objetivo é levantar questões que possam iniciar ações para responder à demanda por escola em comunidades indígenas. E a escola está, no imaginário indígena e não-indígena, relacionada à escrita. É preciso novamente apontar que a escola em comunidade

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indígena é uma instituição que vem de fora e tanto pode caminhar paralelamente, sem ameaçar a educação tradicional indígena, como pode competir com essa educação. É necessário apontar que a educação indígena não pode ser ignorada nesta nossa discussão, sob pena de cairmos na visão etnocêntrica da sociedade dominante que só reconhece como válida a educação escolar. Concordamos com Street (2004: 328), quando diz que a escrita é um instrumento que pode ajudar nas ações relacionadas aos direitos locais daqueles povos que correm o risco de ver o chamado ”mundo moderno” deslocar seus modos tradicionais de agir e conhecer. Como a escrita, geralmente, vem através da escola, é preciso, portanto, atenção para que esta se torne um apoio e não um problema para a comunidade. Pensando a escola como apoio e vendo a escrita como instrumento de defesa para a cidadania, fica mais claro que alfabetizar somente não é o suficiente. Como escreve Magda Soares (1998: 47):

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“... o ideal seria alfabetizar letrando, ou seja: ensinar a escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se tornasse ao mesmo tempo alfabetizado e letrado”.

A função da escrita está registrada no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (MEC, 1998: 126): “O aprendizado da escrita em português tem para os povos indígenas funções muito claras: defesa e possibilidade de exercerem sua cidadania e acesso a conhecimentos de outras sociedades”.

Voltamos a chamar a atenção, no entanto, para o fato de que, em sociedades de tradição oral, as práticas sociais não estão relacionadas somente à palavra escrita. O Brasil, um país de raízes orais, mas que se vê grafocêntrico, como já foi apontado, tem vários contextos, além dos indígenas, nos quais a maior parte das práticas sociais não está relacionada à palavra escrita. Pensando especificamente nas comunidades indígenas (veja Souza, 2001),

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os rituais de passagem, por exemplo, são práticas sociais em que o desenho, a pintura, o som, a música, a dança — e não a escrita — são os elementos importantes. Essa preocupação é importante para se estabelecer, juntamente com a comunidade, o papel a ser desempenhado pela escola. Por quê? Para evitar que as práticas das escolas regulares sejam simplesmente transpostas para as escolas indígenas, como se os contextos fossem semelhantes. É sempre importante lembrar que as escolas indígenas também não são semelhantes entre si. Como já foi apontado, há pontos em comum entre elas, mas há também diferenças entre as escolas de diferentes etnias, escolas em áreas com histórias diferentes de contato (conflito), escolas em comunidades próximas ou distantes dos centros urbanos. É relevante, também, relembrar que a sociedade envolvente e dominante alimenta o mito do aprender a ler e a escrever como a saída para todos os males, a “redenção” do cidadão, sua “entrada no Paraíso”, e ignora qualquer outro conhecimento que não seja calcado na palavra escrita. Temos aqui uma tensão que precisa ser resolvida antes de se fechar um planejamento de curso de formação de professores indígenas: não há como bater de frente com a sociedade dominante — a saída proposta é aprender a lutar com a mesma escrita com a qual essa sociedade exclui grupos marginalizados, isto é, trabalhar de tal forma a proporcionar uma escolarização que vá muito além da alfabetização em direção ao letramento, considerando as questões levantadas na discussão que estamos fazendo. Em resumo, para trabalhar com a Educação Escolar Indígena, o fator pedagógico está inserido em um contexto sócio-histórico em um determinado momento, ou seja, a pessoa que queira trabalhar com Educação Escolar Indígena precisa, necessariamente, focalizar qualquer proposta pedagógica dentro das molduras e mudanças sociais, políticas e históricas de cada etnia, de cada aldeia. Além

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disso, deve ser parte integrante das ações questionar e rever decisões tomadas e ponderar sobre suas possíveis implicações.

Ensinar a ler e a escrever, sim... Mas em que língua? Responder à pergunta acima não é nada simples. Em primeiro lugar, porque as escolas indígenas no Brasil são muito diversificadas quanto ao seu perfil sociolingüístico; em segundo, porque ao se tentar dar uma resposta, freqüentemente esbarramos em questões ideológicas. Nesta parte do texto, tentaremos recuperar os aspectos mais relevantes que cercam os debates A esse respeito veja, sobre a escolha da língua em que se vai ensinar o também, o Referenaluno indígena a fazer uso da linguagem escrita. cial Curricular Nacional paUm alerta, no entanto, se faz necessário: embora ra as Escolas Indígenas façamos referência à escolha da “língua de alfa- (RCNEI). betização” — essa é a expressão comumente utilizada na área —, esclarecemos que tal expressão deve ser entendida aqui em sentido amplo, isto é, de modo que abarque, também, práticas de letramento. Para reflexão É possível alfabetizar alguém em uma língua que essa pessoa não domine?

A resposta a essa pergunta depende do que se entende por “alfabetizar”. Se o que se quer dizer é “tornar alguém capaz de decodificar letra em som e vice-versa”, então a resposta é “Sim, é possível. Não é fácil, mas é possível”. Basta que alguém ensine a uma pessoa que não fale francês as correspondências entre sons e letras nessa língua, para que ela, após algum treino, seja capaz de pronunciar e escrever, com uma probabilidade de acerto bastante razoável, uma palavra como “jour”, por exemplo, mesmo não

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sabendo o significado do que está lendo ou escrevendo. Agora, se o que se entende por “alfabetizar” é “tornar alguém capaz de ler e escrever textos com propriedade” — que é a acepção que nos interessa discutir aqui —, a resposta é: “Na imensa maioria dos casos, não”. E por quê? (As exceções ficariam por conta de alguns casos excepcionais. Por exemplo, alguns professores de grego, uma língua morta, após anos e anos de muito investimento intelectual e de um esforço hercúleo, acabam sendo capazes de ler Platão no original. Mas, evidentemente, não se trata de tomarmos essas exceções como modelo para a definição de políticas educacionais.) Comecemos com a capacidade de leitura. Veja, sobre esse asPara que um indivíduo se torne um bom leitor é sunto, o volume Prepreciso que ele adquira várias habilidades. Gosciso “ensinar” o letramento? Não basta ensinar a ler taríamos, aqui, de chamar a atenção para uma e a escrever?, de Angela B. delas. Para tanto, pedimos a você que leia, rapiKleiman, nesta coleção. damente, os dois textos apresentados a seguir.

CUSCUZ DE FRANGO Modo de fazer Cozinhe o frango com o tempero. Reserve 2 xícaras (chá) do caldo do cozimento. Corte o frango em pedaços pequenos e reserve. Numa panela, coloque o óleo, a cebola, os tomates, a massa de tomate e o molho inglês. Adicione as duas xícaras do caldo de frango reservado e as ervilhas, deixando ferver por 5 minutos. Coloque, em seguida, o milho, o frango picado, o palmito e as azeitonas. Adicione a farinha de milho devagar, mexendo sempre. Retire do fogo e coloque a massa numa fôrma untada com óleo e previamente decorada (no fundo e nas laterais) com ovos cozidos e sardinhas. A quantidade de sardinhas usadas na decoração vai depender o tamanho da fôrma, mas em geral uma lata é mais do que o suficiente.

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PREVISÂO DO TEMPO A previsão é que o tempo em Campinas continue instável todo o final de semana, com chuvas esparsas no sábado e domingo pela manhã e possibilidade de tempestadas ao cair da tarde de ambos os dias. As temperaturas mínimas previstas serão de 22º C, devendo a máxima chegar a 29º C.

É possível que você não tenha percebido que “vai depender do tamanho da fôrma”, no primeiro texto, foi grafado “vai depender o tamanho da fôrma” e que, no segundo texto, a palavra “tempestades” foi grafada “tempestadas”. Se isso ocorreu, significa, então, que você seria um mau leitor? Não. Muito pelo contrário, significa que é um leitor proficiente, maduro, pois Gêneros textuais. Conjunestava construindo o sentido do texto e não apetos de textos organizados nas decodificando palavras encadeadas. sempre de modo semeUma leitura bem-sucedida, convém lembrar, é lhante. Cartas e reportagens policiais, por exemplo, aquela que culmina na compreensão do texto não pertencem a um meslido. E essa compreensão é resultado, dentre mo gênero textual, pois são outros fatores, de vários tipos de conhecimentos textos que obedecem a restrições, a convenções difeprévios que se tem. Do conhecimento prévio que rentes. Para que um texto se tem do tema e do tipo de gênero textual possa ser classificado no (previsão do tempo e receita culinária), e, o que gênero textual “carta”, é preciso, entre outras coinos interessa focalizar mais de perto neste sas, que nele haja referênmomento, do conhecimento prévio que se tem cia explícita a algum destisobre a língua na qual o texto foi escrito. natário (“Caro Antônio” ou “Prezado Sr.”). Essa exiNo segundo texto, por exemplo, o leitor, ao degência não existe quando parar com a seqüência “A previsão é que o tempo se pretende escrever uma em Campinas continue instável”, porque conhece “reportagem policial”, pois esse tipo de texto pertence o significado de “instável” e porque sabe o que a um outro gênero textual. isso pode significar em termos meteorológicos,

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traz para a leitura todo um campo semântico que a língua portuguesa lhe coloca à disposição: “vento”, “ventania”, “garoa”, “chuva”, “trovão”, “trovoada”, “tempestade” etc. Ao continuar sua caminhada pelo texto, quando encontra a seqüência “possibilidade de tem...”, esse leitor, apostando no seu conhecimento lingüístico, faz uma previsão sobre o que está por vir: “tempestade”. E seus olhos saltam para a palavra seguinte. De maneira análoga, no primeiro texto, o leitor apóia sua leitura no que conhece sobre o funcionamento sintático da língua portuguesa: porque ele conhece a regência do verbo “depender” — quem depende depende sempre de algo —, é capaz de imprimir velocidade ao ato de ler, “pulando” a preposição e lendo a palavra seguinte. Bons leitores são, entre outras coisas, aqueles que desenvolveram a capacidade de fazer predições — a partir de pistas lexicais, sintáticas ou semânticas — durante a leitura; são aqueles capazes de prever o que está por vir e “saltar” sílabas, palavras, ou mesmo seqüências de palavras. É claro que essa habilidade só pode ser desenvolvida por quem tem a competência lingüística necessária. O que vimos apontando é apenas uma das evidências de que privilegiar a alfabetização em uma língua que o aluno desconhece, ou conhece mal, é apostar na obtenção de um leitor, na melhor das hipóteses, muito precário. Quase sempre, o “leitor” nessas condições, em vez de buscar o sentido do texto enquanto o decodifica, fará, no lugar de uma leitura, um ato meramente mecânico de decifração de sílabas. A tarefa de escrever um texto, por sua vez, implica fazer escolhas entre as inúmeras possibilidades que a linguagem nos oferece: “Será essa a melhor maneira de dizer o que eu quero dizer?” ou “Será essa a forma mais adequada para atingir meus objetivos?”. Obviamente, fazer isso numa língua desconhecida é extremamente difícil, se não totalmente impossível. O aprendiz não saberá “avaliar o valor dos recursos expressivos que uma língua lhe

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coloca à disposição. É em sua escolha que eles se realizam num discurso irrepetível e único”, como nos afirmou, certa vez, o professor Sírio Possenti, lingüista da Unicamp, autor de um dos livros desta coleção, cuja leitura indicaremos adiante. Assim, ao conduzir a alfabetização numa língua que o aluno não domina, negamos a ele o direito de poder colocar por escrito o que quer dizer, da maneira como quer dizer. Negamos a ele, enfim, o direito de ser autor do seu próprio texto. Na melhor das hipóteses, ele conseguirá apenas reproduzir o que um outro (o autor da cartilha ou o seu professor) quis afirmar, através de atividades de cópia do que está escrito nos manuais de alfabetização ou no quadro-de-giz. Além das desvantagens descritas acima, há que se considerar também as conseqüências negativas do ponto de vista psicológico que uma alfabetização nessas condições traz para o aluno: insegurança quanto à própria capacidade de ser bem-sucedido na leitura ou escritura de textos; rejeição à escola, e outras. Tudo o que vimos discutindo nos leva a poder afirmar, então, que a língua da alfabetização deve ser a língua na qual o aluno se sente mais à vontade. E como essa constatação ecoa nas escolas indígenas? Só é possível responder a essa pergunta, se considerarmos as diferenças sociolingüísticas existentes entre elas. De um modo geral, e como veremos a seguir, as escolas indígenas podem ser classificadas em três categorias: monolíngües, bilíngües e multilíngües. a) Escolas monolíngües Nesses contextos, os alunos fazem uso de apenas uma língua, seja ela a língua do seu grupo étnico ou o português. É importante, porém, aqui, relativizar o caráter “monolíngüe” das escolas nessas condições, pois, assim como nas escolas nãoindígenas do país, nelas também não encontramos uniformidade ou homogeneidade lingüística: a língua dos alunos — uma variedade vernacular do português — não corresponde à

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língua (escrita) da escola, isto é, à variedade “padrão” da língua portuguesa. Além disso, é preciso atentar também para o fato de que, embora a comunidade indígena em questão não faça mais uso comunicativo de sua língua tradicional, a língua indígena interditada muitas vezes pode permanecer residualmente no imaginário de seus falantes, o que nos coloca diante de uma situação de “bilingüismo simbólico”. b) Escolas bilíngües Nessas situações, os alunos fazem uso efetivo de duas línguas: uma língua indígena e a língua portuguesa. O grau de proficiência nas diferentes línguas varia de escola para escola, de aluno para aluno. Há escolas em que os aprendizes têm amplo domínio da língua de seus ancestrais e demonstram bem menos, ou pouca, proficiência em português. Há outras em que os alunos exibem fluência em português e têm um conhecimento menor, ou até incipiente da língua indígena do grupo. c) Escolas multilíngües Sociolingüisticamente muito complexas, essas são escolas em que, além da língua indígena local e da língua portuguesa, há crianças falantes nativas de outras línguas indígenas ou, como é o caso das escolas localizadas próximas a regiões de fronteira, até mesmo de uma língua estrangeira. À guisa de exemplo, podemos citar uma escola Jaminawa, no Acre, onde há, na mesma sala de aula, crianças cuja língua primeira (L1) é o Jaminawa, crianças cuja L1 é o português, pois são originárias de uma outra aldeia Jaminawa onde já houve perda lingüística acentuada, e crianças falantes de uma outra língua indígena (língua Manchineri) e do espanhol, pois suas famílias, membros da etnia Manchineri, migraram de uma aldeia próxima à fronteira com o Peru para essa aldeia Jaminawa. Casos como esse são comuns na Amazônia — bem mais do que se supunha até pouco tempo atrás.

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Tendo em mente os perfis de escolas indígenas delineados acima, voltemos à questão da língua de alfabetização. Quando alunos indígenas fazem uso de apenas uma língua, seja ela a língua indígena do seu grupo étnico ou o português, ou quando eles têm, em situações de bilingüismo, uma delas como língua materna, a questão da escolha da língua de alfabetização nem deveria, a princípio, ser colocada. A língua escolhida só poderia ser uma: aquela falada pelos alunos como primeira língua. O que poderia ser, à primeira vista, uma decisão tranqüila, porque já tomada a priori, muitas vezes, no entanto, não o é. Em muitos casos, por exemplo, embora a língua falada na comunidade e na escola seja uma língua indígena, opta-se por alfabetizar em português. Por quê? Vejamos: a) A opção pela alfabetização em português, nesses casos, pode ser fruto de uma política educacional assimilacionista. Espera-se que a escola cumpra, deliberadamente, a função de ensinar português para que índio abandone sua língua materna. Historicamente, esse modelo de eduPolítica educacional assimilacionista. Tem cação, conduzido pelo Estado ou por diferentes por objetivo assimilar as missões religiosas, foi dominante até poucas minorias à sociedade nadécadas atrás. Felizmente, hoje essas situacional, negando-lhes o direito de serem diferentes. ções são mais raramente encontradas. É imContrapõe-se a uma polítiportante ressaltar que a existência de profesca educacional pluralista, sores não-indígenas como agentes de alfabeticujo objetivo é possibilitar a inserção das minorias da zação se revela uma estratégia eficaz na imsociedade nacional, sem, plantação de políticas educacionais desse tipo. no entanto, negar suas di-

b) Opta-se pela alfabetização em português, por ferenças culturais e lingüísticas. exigência dos próprios índios. Olhada de fora, essa opção pode parecer absurda. Mas quando nos lembramos que, historicamente, a escrita entra no mundo indígena como um conhecimento necessário para fazer frente às dificuldades impostas pelo contato, essa exigência faz

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sentido. O problema é que a tomada de decisão acerca da língua de alfabetização não pode ser feita com base apenas em critérios políticos. É preciso considerar o lado pedagógico da questão e, nesse sentido, os resultados de pesquisas sobre a questão são categóricos: a tarefa de se tentar alfabetizar a criança indígena em português, sem que ela tenha um bom domínio dessa língua, tende a acabar em frustração, o que termina por inviabilizar o próprio objetivo político que se desejava alcançar. Cabe aos formadores, então, orientar os professores indígenas que estão enveredando por esse caminho equivocado, esclarecendoos a respeito das vantagens de se conduzir a alfabetização em língua indígena. Quando os alunos tiverem aprendido o funcionamento da escrita em sua língua materna, aí sim eles poderão trabalhar com mais facilidade as habilidades para a leitura e a escritura de textos em português. (É claro que tanto mais bem-sucedido será esse trabalho quanto maior tiver sido o investimento na aquisição do português oral até então.) Para que possamos prosseguir juntos neste texto, convidamos o leitor a, agora, refletir sobre mais algumas questões. Para reflexão Será que a única função da escrita em língua indígena é servir como um atalho necessário para que o aluno indígena se torne um bom leitor e escritor em português? Que outras funções relevantes você acha que a capacidade de saber ler e escrever em uma língua indígena poderia ter para os índios?

A escrita em língua indígena foi inicialmente introduzida, em muitos projetos de Educação Escolar Indígena, porque, percebeuse, ela era o caminho mais curto para se garantir que, posteriormente, os alunos pudessem se tornar leitores e escritores em lín-

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© Escola Indígena Utapinopona-Tuyuka, FOIRN - Instituto Sócio-Ambiental

gua portuguesa. Mas a sua importância — é preciso deixar bem claro — não é apenas servir de ponte, de elemento de transição para o domínio da língua portuguesa. Se assim fosse, se o estudo de uma língua indígena em sua modalidade escrita se desse apenas nas séries iniciais do currículo para ser abandonado tão logo fosse possível dar início ao trabalho com textos escritos em português, estaríamos promovendo o deslocamento de um saber indígena importantíssimo, estaríamos permitindo que a introdução da escrita na língua dominante funcionasse para substituir a própria língua minoritária.

Página de livro didático Tuyuka, da Escola Indígena Utapinopona-Tuyuka.

Ora, o que se deseja é justamente o contrário: é promover a manutenção e a valorização das línguas indígenas. Daí a importância de que o seu estudo se dê durante todo o currículo, como já vem

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acontecendo em muitas escolas. Nesses contextos, a escrita em língua indígena vem adquirindo funções sociais relevantes para muitos grupos indígenas. Ela está servindo para garantir a preservação da memória coletiva do grupo étnico, para a reescritura de fatos históricos relativos ao contato com a sociedade envolvente da perspectiva indígena, para a criação de acervos literários, para possibilitar a comunicação a distância (bilhetes, cartas) etc. É claro que a tarefa de se criar um ambiente em que a escrita em língua indígena não seja apenas um meio para se chegar a um fim, mas seja um fim significativo em si mesmo, é um empreendimento muito complexo. Voltando ao assunto desta seção — em que língua se deve conduzir a alfabetização em escolas indígenas —, consideremos agora aquelas escolas em que os alunos são monolíngües em língua portuguesa. Evidentemente, nesses casos, o cuidado que se precisa ter não é com a escolha da língua, que já está dada, mas com a questão das variações lingüísticas. O português indígena tem, em muitos contextos, características próprias, que devem ser consideradas e respeitadas no momento da introdução da escrita. Como as considerações de natureza dialetais no processo de aquisição da escrita são foco de discussão de outro livro desta coleção, não detalharemos essa importante questão aqui. Interessanos chamar a atenção, entretanto, para um outro Veja, sobre esse assunto, o volume contexto em que a alfabetização deveria ocorrer Aprender a escrever necessariamente em língua portuguesa: aquelas (re)escrevendo, de Sírio escolas em que os alunos são bilíngües, mas com Possenti, nesta coleção. pouca proficiência em língua indígena. Algumas vezes, os professores, por terem eles mesmos amplo domínio da língua indígena e por desejarem assegurar a preservação de suas línguas tradicionais, tentam nelas alfabetizar seus alunos. A revitalização das línguas indígenas é politicamente legítiLeia mais sobre este assunto no volume Línguas indígenas precisam de escritores? Como formálos?, de Wilmar da Rocha D’Angelis, nesta coleção.

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ma e desejável, mas o caminho para se chegar a isso não deve ser a alfabetização, e sim a utilização de uma metodologia de ensino de segundas línguas. Para terminar, chamamos a atenção para o fato de que, nas escolas em contextos multilíngües, os professores indígenas teriam que alfabetizar seus alunos em diferentes línguas, tarefa certamente das mais árduas, mas não há, de fato, outra possibilidade de escolha, se é que o que se deseja é tornar esses alunos leitores e escritores competentes. Resumindo: o aluno indígena não merece passar pela experiência de tentar aprender a ler e a escrever em uma língua ou em uma variedade lingüística que não seja a sua. Esse tipo de experiência violenta pedagogicamente a criança (nenhum “branco”, em sã consciência, permitiria que a escola tentasse alfabetizar seu filho em russo, por exemplo) porque o processo de alfabetização será sofrido e muito provavelmente redundará em fracasso, em repetência e em evasão.

Ler e escrever... O quê? Como? Com que propósito? Antes de tratar especificamente do tema desta seção, é relevante, mais uma vez, sublinhar a complexidade das questões na área de Educação Escolar Indígena, pois essa complexidade, que enfatiza a já apontada diversidade de contextos indígenas, precisa ser considerada nos planejamentos e decisões relacionados a cursos de formação de professores indígenas, ou seja: há implicações sociais e pedagógicas que são decorrentes das decisões tomadas. Porém, não há respostas únicas, sejam elas sociais ou pedagógicas: é preciso conhecer o contexto indígena para o qual se faz um planejamento de curso de formação de professores ou um acompanhamento do trabalho escolar. E para isso, é neces-

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sário que haja muita observação e muita conversa com os professores e com as comunidades. Para o que nos interessa discutir agora, propomos, a seguir, mais um ponto para reflexão. Para reflexão Qual é o lugar da leitura e da escrita nas comunidades indígenas?

[...] §2º - O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.”

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“Art. 210 - Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.

Constituição Federal, Título VIII, “Da ordem social”, Capítulo III, “Da Educação, da Cultura e do

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pecificamente construídas para eles. Essas propostas devem, atentas aos projetos politicopedagógicos de cada escola indígena, contemplar a elaboração de grades curriculares específicas e o estabelecimento de calendários e procedimentos metodológicos próprios. Uma escolarização diferenciada supõe, além disso, que a condução de todo esse processo esteja a cargo de professores indígenas.

Mesmo se chegarmos à conclusão que a leitura e a escrita não ocupam espaço no contexto focalizado, dada a demanda dos povos indígenas por escolas — e hoje também pelo terceiro grau indígena — é importante ter em mente que o acesso à escolarização já existe. (No Brasil, há algum tempo, vem sendo discutida a criação do terceiro grau indígena e, até o momento, essa discussão já gerou, pelo menos, Escolarização diferenciada. Quando nos referimos dois cursos universitários.) a processos de escolarizaÉ importante lembrar neste ponto que o direição diferenciados para os to à escolarização diferenciada para as popupovos indígenas, estamos falando da elaboração de lações indígenas é assegurado pela Constituipropostas curriculares esção de 1988:

Desporto”, Seção 1, “Da Educação”.

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A escolarização, porém, não pode ser obriEtnocentrismo. Refere-se gatória, como é na sociedade envolvente. Trataà tendência de considerar se aqui de um delicado equilíbrio que talvez os próprios valores culturais como medida ou paponha à prova o etnocentrismo da sociedade râmetro também para as dominante que, às vezes, parece ver a escola demais culturas. Uma pescomo a única solução para a população indígena. soa etnocêntrica acredita “Se o índio não for à escola, não vai sair do lugar. que os únicos valores verdadeiramente corretos são A escola deve ser obrigatória e ponto!”. Essa aqueles ensinados por sua seria uma maneira de resolver a questão rapidaprópria cultura. mente, sem muita reflexão e sem muita conversa, tendo como ótica o que a sociedade dominante vê como “certo” dentro de seu etnocentrismo, sem levar em consideração o Outro. O que fazer então? Os caminhos a seguir precisarão ser negociados com as partes interessadas: as vozes indígenas precisam ser ouvidas (veja Cavalcanti, 2000). E em curso de formação, o professor é o portavoz que toma decisões de acordo com as decisões tomadas em conjunto com suas comunidades. Nessa negociação é importante salientar que as opiniões e os argumentos podem divergir. Por um lado, não há, por exemplo, por que se surpreender se um professor indígena disser que nem todas as pessoas da aldeia irão à escola ou irão aprender a ler e a escrever. Pode ser que no momento (veja Cavalcanti, 2004) vivido pela comunidade, questões outras — por exemplo, de políticas públicas, de desenvolvimento auto-sustentado, de (re)organização política, de demarcação de terras — sejam mais importantes e cruciais na vida da comunidade do que a escola. É preciso, pois, conhecer o contexto e os planos da comunidade para si mesma e para a sua escola, saber quais os objetivos que se quer alcançar. A pressa em resolver o problema pode nos fazer cair, como já dissemos, no mito da “redenção” pela alfabetização, na busca pela eficiência de fazer o índio aprender a ler e a escre-

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ver a qualquer custo. Mas há que se ter cuidado para não privilegiar as opiniões que se encaixam no modo de ver o mundo da sociedade envolvente — caso, por exemplo, de um professor insistir em que a escola de sua comunidade tenha como modelo a escola do “branco” (o que quer que isso signifique). De novo, entra aqui a importância de se discutir, com as partes interessadas, as implicações das decisões tomadas. De qualquer modo, ensinar a ler e a escrever, como já foi apontado antes, fará mais sentido se acontecer no bojo das práticas sociais da leitura e da escrita identificadas no contexto sóciohistórico atual dentro e fora das comunidades. É esse o próximo ponto. Para reflexão Pense no contexto em que você pretende atuar como formador de professores indígenas: ●

Quais seriam as práticas sociais na aldeia?

E no contato com a sociedade não-indígena?

Existe alguma relação com a escrita nas práticas identificadas?

Que pessoas participam nessas práticas?

Vale reafirmar que essas práticas sociais podem diferir de aldeia para aldeia. Um exemplo de prática social que envolve a escrita e pode ser comum em contextos indígenas é o processo de preparação de um projeto de solicitação de recursos a um órgão público ou a uma organização não-governamental. Tal processo envolve leitura de instruções, discussão, tomada de decisão, planejamento, definição de orçamento, familiarização e conhecimento das implicações de utilização da verba e prestação de contas, preenchimento de formulários, redação de descritores físicos e geográficos, redação de justificativa, e assim por diante. Com base em uma prática social desse tipo, por exemplo, pode-se ver a

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necessidade de um trabalho escolar contextualizado desde o início da escolarização. Portanto, ir além do ler como decodificação e do escrever como cópia significa distanciar-se do trabalho pedagógico com itens isolados (descontextualizados). Resumindo, o que queremos dizer com aprender a ler e a escrever no bojo das práticas sociais da leitura e da escrita envolve alguns passos. Primeiro, é preciso conhecer o contexto e fazer um levantamento das práticas sociais existentes com e sem a escrita. Depois, com base nesse levantamento, é possível escolher os gêneros textuais mais relevantes para serem trabalhados. Finalmente, com esse tipo de informação em mãos, a decisão caminhará pela definição de objetivos, pela escolha de atividades didáticas e da maneira como o desempenho dos alunos será acompanhado. Em todo esse processo, não se pode esquecer de pensar a escrita como instrumento de defesa, de sobrevivência na sociedade envolvente, considerando o que já foi apontado anteriormente sobre as práticas sociais serem cada vez mais complexas e exigirem um conhecimento mais aprofundado, principalmente de leitura.

Só para deixar mais claro: o letramento entra onde mesmo? É necessário destacar, novamente, que muitos contextos sociais indígenas (assim como alguns contextos não-indígenas) no país não são permeados pela escrita, o que pode dificultar o seu ensino. Essa dificuldade vai existir independentemente de qual for a língua de alfabetização (a situação é a mesma, em língua indígena ou em língua portuguesa). A criança indígena (e, em grande parte da sociedade envolvente, a criança não-indígena) chega à escola com pouca ou nenhuma familiaridade com a escrita e suas funções em práticas sociais. Dependendo do grau e da história de contato, ela chega à sala de aula com pouquíssimo — se é que

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algum — conceito prévio sobre o objeto-escrita. Será que isso é levado em consideração? Se não for, ou seja, se houver pressuposição de conhecimentos que não existem na realidade, teremos aqui mais um grande entrave acrescido a tantos outros.

Crianças indígenas Tuyuka na Escola São Pedro. Rio Tiquié - AM, 2002.

Temos que lembrar, ainda, que a escola da sociedade envolvente, que — queira-se ou não — é ponto de referência no imaginário indígena, centra todo o seu trabalho na escrita, muito mais do que na leitura. No entanto, o trabalho na escola depende muito da leitura — de textos, de instruções para atividades nas diferentes disciplinas, do enunciado de problemas de matemática, de perguntas. Mas a escola parece não investir na leitura depois que o aluno é alfabetizado — leitura, aqui, encarada do ponto de vista do letramento. É como se a competência em leitura fosse um pressuposto e uma decorrência da alfabetização: espera-se que o aluno, uma vez alfabetizado, já saiba ler. Por isso, argumentamos aqui que a escola

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indígena poderia investir de modo intensivo na leitura. A escrita — acreditamos — viria com mais facilidade, como conseqüência do trabalho com a leitura. De qualquer modo, é bom lembrar que leitura e escrita estão muito associadas: uma alimenta a outra. O que queremos reafirmar é que não adianta apenas decodificar letras e formar palavras; é preciso ler e interpretar o que se lê. É claro que isso passa pela decodificação, mas não se pode estacionar aí. E, dependendo do tipo de atividade que é desenvolvida na escola, pode-se ficar somente na decodificação. Vem daí a questão: depois de aprender a ler, além de se perguntar o que se vai ler, deve-se perguntar como se vai ler e com que propósito. O importante é saber que não é necessário ler tudo da mesma maneira; que existem atalhos que dependem, por exemplo, do propósito da leitura. Para ilustrar este ponto, trazemos a leitura para buscar uma informação específica. Nesse tipo de leitura, a informação buscada tanto pode ser algo pontual, como o título de um livro, como algo mais abstrato, como a definição de um conceito. É essa busca de informação que direciona para uma leitura rápida, que termina tão logo se encontre o que se busca. O importante neste caso é saber que não há necessidade de ler o texto todo. E saber também que a localização de palavras-chaves pode funcionar como um atalho para conseguir a informação desejada. Às vezes, porém, a leitura que se quer é mesmo detalhada, aprofundada. Neste caso, atalhos não funcionam. É necessário ter concentração e paciência para ler de forma cuidadosa, de acordo com o objetivo que se tem. Um objetivo (propósito) aqui poderia ser definir o tom de um texto — por exemplo, se é de crítica ou aceitação de uma idéia ou pensamento, de posicionamento de um autor com base em uma ou outra teoria. Resumindo, o letramento entra onde mesmo? Entra nas decisões tomadas, nos caminhos escolhidos de acordo com a prática social em que se está inserido.

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Privilegiando a leitura, sem deixar a escrita Privilegiar a leitura, dar mais ênfase ao ensino de leitura é um caminho para enfrentar as demandas da sociedade envolvente em relação ao letramento. Sabemos, no entanto, que as pessoas parecem ver a leitura como uma tarefa pesada e difícil. Ler precisaria, primeiramente, deixar de ser uma tarefa árdua para se tornar uma atividade mais prazerosa. Para investir na leitura, é necessário ter disponíveis textos adequados à faixa etária, sobre assuntos de interesse do leitor e nas línguas em uso nas comunidades. É preciso construir um acervo que venha de fora, ao mesmo tempo que, juntamente com os professores indígenas, se constrói um acervo de dentro, ou seja, se elabora material de leitura específico para aquela Veja, sobre esse ascomunidade, na(s) língua(s) que ali é(são) falasunto, o volume da(s). Esse trabalho envolve tanto a leitura para Meus alunos não gostam de ler... O que eu faço?, decidir sobre os títulos a serem adquiridos, como de Marisa Lajolo, nesta a escrita, para a elaboração de material. coleção. No levantamento de textos a serem trabalhados pedagogicamente, é importante escolher e disponibilizar para os alunos uma gama variada de textos de tamanhos diversos (como notícias de jornal, avisos, bilhetes, fascículos, livros), de registros de linguagem variados (dentro do continuum formal — informal), voltados para diferentes públicos leitores. Essa variedade seria uma maneira de familiarizar os alunos indígenas com gêneros textuais diversos. Consideramos importante a questão do tamanho do texto porque as pessoas tendem a rejeitar o texto longo por acreditarem ser mais difícil e cansativo. Isso não quer dizer que estejamos desprezando os textos longos. Ao contrário, o trabalho pedagógico deve ser desenvolvido para chegar aos textos longos, sejam eles artigos ou livros.

Quanto ao trabalho pedagógico com esses textos, insistimos em que a leitura deve ser motivada e propositada. Ela deve ser

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motivada por interesses pessoais dos leitores (interesses internos) ou por interesses criados externamente, e deve ter um propósito, isto é, um objetivo previamente definido. Importante seria que esse objetivo variasse de modo a exigir habilidades diferentes de leitura. As atividades de leitura podem daí enfatizar desde o trabalho de leitura e compreensão propriamente dito até o encorajamento da expressão de opinião do leitor.

Retomando a escrita como conseqüência do trabalho com a leitura Se, na sociedade envolvente, já se lê pouco, escreve-se menos ainda, e as pessoas parecem desenvolver uma resistência ainda maior com a escrita do que a que têm com a leitura. Isso talvez aconteça porque a cobrança social é grande em relação à escrita quando esta acontece ou é necessária. Feita essa ressalva, entremos no ponto que nos interessa aqui. A leitura tem papel importante na preparação para a escrita. Ela pode ser explorada para dar modelos, dar idéias, fazer refletir, mostrar possibilidades para serem trabalhadas criativamente. A escrita deveria ser focalizada no ensino quando a necessidade ou o interesse fosse despertado — por exemplo, quando, em sala de aula ou fora dela, surgisse a solicitação para a redação de uma carta para pedir a solução de um problema que a escola ou a comunidade estivesse enfrentando. Esse trabalho com a escrita poderia ser iniciado com a ajuda da leitura de cartas e outros textos que pudessem servir tanto de modelo de gênero textual como de desencadeadores para a criação de argumentos. O importante é que não se espere até que a carta esteja no programa de curso para ser trabalhada, mas que se aproveite o momento em que a oportunidade surja. Mesmo que

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© Cortesia do COMIN - Conselho de Missão entre Índios, RS

se pense que o aluno não está ainda preparado para essa empreitada (escrever cartas), seu simples interesse imediato na tarefa já servirá de motivação inicial. De qualquer modo, essa entrada nesse tipo de atividade certamente voltará a acontecer outras vezes em sala de aula e na vida. Uma possibilidade para despertar o interesse pela escrita talvez seja diversificar os textos e direcionar as atividades de leitura, privilegiando uma postura de posicionamento por parte do aluno leitor. E por que isso seria importante? Estamos pensando aqui no aluno indígena interessado em cursar o terceiro grau. Nesse caso, em um curso universitário indígena que se enquadre na educação diferenciada, ele precisará estar preparado para escrever Veja, a esse respeito, também em português. Está aí o desafio de saber o volume Aprender usar a escrita como instrumento de defesa. O que a escrever (re)escrevendo, de Sírio Possenti, nesta interessaria na escrita seria um trabalho continuacoleção. do em que seja sempre considerado um leitor potencial quando se escreve. Mostrar que haverá mudança na redação e mostrar como poderá ser essa mudança (ou alternativas de mudança) são pontos a serem explorados nas atividades de escrita.

Capa do livro Discussões sobre a situação de saúde dos Mbyá-Guarani no Rio Grande do Sul.

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Material didático: uma empreitada necessária

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empre que possível, o material didático deveria ser específico para o contexto indígena focalizado. De preferência, deveria ser elaborado pelo próprio professor, o que significa que no currículo do curso de formação deve haver espaço para discussão e criação de material didático. Vemos a elaboração desse material como parte da formação do professor-autor indígena e do exercício da prática de buscar na observação as necessidades e os interesses potenciais dos alunos nas comunidades. E é para a elaboração do material didático que será necessário decidir que gêneros textuais focalizar, que tipo de atividades didáticas incluir, que ligação se vai estabelecer entre leitura e escrita, como se vai acompanhar o desenvolvimento e o rendimento dos alunos. ■

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“Não tem textos em Terena pra trabalhar, então a gente faz tradução de textos dos livros de língua portuguesa... Mas não é o ideal porque o livro não tem nada a ver com o contexto do aluno.” Professora Maria de Lurdes Terena, citada em Nincao, 2005.

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Às vezes, porém, não é possível construir um material didático específico e se utiliza material didático “importado”. Recomendase cuidado com materiais que falam das “coisas do branco” que, como sinaliza a professora Maria de Lurdes Terena, distantes da realidade indígena, muitas vezes mais alienam do que motivam. Se os “caminhos suaves” da vida já são considerados inadequados para a alfabetização de crianças brancas, que dirá para a de crianças índias... Muito melhor seria, portanto, a criação, junto aos próprios sujeitos a serem escolarizados, de materiais de trabalho relevantes para o grupo. Essa questão se coloca ainda mais evidente na fase de alfabetização. Nessa fase da escolarização, é importante começar com o mundo conhecido — o mundo indígena — para se preparar para conhecer o mundo não-indígena. E, com o cuidado constante para que a escola não atropele o conhecimento tradicional, do mundo conhecido, é preciso pensar em alçar vôo para o mundo desconhecido, estranho e não-familiar. Isso é necessário para preparar o aluno para enfrentar as exigências da sociedade em relação às práticas sociais que envolvem leitura e escrita (e, como já vimos, muitas vezes, mais a leitura do que a escrita).

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E os agentes de alfabetização e de letramento?

Esta parte do texto é uma releitura de Maher, 2004.

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ntendemos que só um membro da comunidade onde a escola indígena está inserida, isto é, um professor indígena, tem plenas condições de ministrar aulas de modo culturalmente sensível e relevante em sua aldeia e de gerenciar o processo educativo formal de sua comunidade como um todo. Que conteúdos servem ao projeto politicopedagógico dessa escola? Quais são as formas pedagogicamente mais produtivas de trabalhá-los e, no caso das escolas bilíngües, em que língua fazê-lo? Quais são os modos apropriados para interagir com um aluno indígena? Quando e como elogiá-lo ou repreendê-lo? Os instrumentos comumente utilizados para avaliar a aprendizagem são eficazes nesse contexto? Por mais bem-intencionado e preparado que seja, um professor não-índio terá muitas dificuldades para responder com propriedade a essas perguntas. De pouco ou nada lhe servirá toda a sua rica bagagem cultural e comunicativa: as matrizes culturais e lingüístico-discursivas em vigor em uma escola indígena são outras. E os princípios da pedagogia indígena não estão pormenorizados em

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manuais acadêmicos: os detalhes dessa complexa teoria estão impressos, em sua totalidade, apenas nos arquivos da memória de cada povo indígena. A percepção da importância de que a escolarização formal de alunos indígenas fosse conduzida pelos próprios índios começou a se instalar, no Brasil, somente a partir da década de 1970, época em que os primeiros programas de formação de professores indígenas foram implementados por organizações não-governamentais. Esses poucos programas pioneiros, no entanto, fizeram escola e rapidamente começaram a surgir, em todas as regiões do país, mais e mais programas de formação para o Magistério Indígena. Durante as décadas de 1980 e 1990, um conjunto de medidas legais fez com que as questões que envolvem a Educação Escolar Indígena passassem a fazer parte do rol de responsabilidades do Estado e, hoje, vários dos programas de formação de professores indígenas são geridos por secretarias estaduais de educação. Para reflexão O que caracteriza um programa de formação de professores indígenas? Quais são as suas especificidades? No que programas dessa natureza diferem, enfim, de outros programas de formação para a docência?

Em primeiro lugar, é importante atentar para o fato de que, enquanto cabe ao professor não-índio formar seus alunos como cidadãos brasileiros plenos, é responsabilidade do professor indígena não apenas preparar as crianças, os jovens e os adultos sob sua responsabilidade para conhecerem e exercitarem seus direitos e deveres no interior da sociedade brasileira, mas também garantir que seus alunos continuem exercendo amplamente a cidadania no interior da sociedade indígena à qual pertencem. É por esse motivo — já afirmamos — que os professores indígenas, em seu processo de formação, têm que constantemente

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refletir de maneira crítica sobre as possíveis contradições embutidas nesse duplo objetivo, de modo a encontrar soluções para os conflitos e tensões daí resultantes. Apenas à guisa de exemplo: é costume, em algumas sociedades indígenas, que todo o período de plantio e/ou colheita do milho seja entremeado por rituais religiosos intensos dos quais toda a comunidade deve participar, inclusive as crianças e os jovens. Durante semanas, portanto, toda a energia da aldeia deve se voltar, exclusivamente, para esse fim. Elaborar um calendário escolar que garanta, ao mesmo tempo, o desenvolvimento, por parte dos alunos indígenas, das competências acadêmicas desejadas e o respeito a esse tipo de prática cultural é apenas um dos inúmeros desafios impostos aos professores indígenas em seus cursos de formação.

Página do Livro do Artesanato Waiãpi, com “Calendário Waiãpi”.

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Outra diferença significativa é que um aspirante não-índio ao cargo de professor chega ao seu Curso de Formação para o Magistério tendo, quase sempre, passado por anos de escolarização formal: em tese, ele já domina a maior parte do conteúdo que irá ensinar. Situações semelhantes também existem em alguns programas de formação para o Magistério Indígena, mas são poucas. Grande parte desses programas forma professores que, embora já atuem na escola de sua comunidade, têm pouca experiência com a escolarização formal. Esse tipo de professor sempre traz em sua bagagem um amplo domínio dos conhecimentos acumulados por seu povo, mas seu conhecimento sobre os nossos saberes acadêmicos é restrito. Daí tais programas contemplarem não apenas a formação para o exercício profissional em serviço, mas também o aprimoramento da escolarização formal de seus participantes. Sendo assim, os currículos dos cursos de formação para o Magistério Indígena são bastante extensos (veja RCNEI, 1998: 80-4). Esse fato, aliado à inconveniência de manter os professores indígenas afastados de suas aldeias por longos períodos de tempo, faz com que esses cursos sejam realizados quase sempre em etapas presenciais intensivas, ministradas durante as férias escolares, e a distância, ao longo do ano. Quando um professor “branco” começa a lecionar, o currículo escolar da instituição que o contratou já está pronto e em funcionamento — o máximo com que ele provavelmente tem que se preocupar é com a montagem do programa de sua disciplina. Mas não é assim com a imensa maioria dos professores indígenas: em geral, são eles os responsáveis pela elaboração de todo o projeto politicopedagógico de suas escolas — pelo estabelecimento de seus objetivos educacionais, de seu calendário, de sua grade curricular, do conteúdo das disciplinas e do seu sistema de avaliação. Além disso, enquanto um professor não-índio tem à sua disposição (em livrarias, bibliotecas, jornais e na Internet) toda uma variedade

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de materiais e recursos para lhe servirem de suporte pedagógico, muitos professores indígenas não têm em que se apoiar para desenvolver seu trabalho. Como já apontamos, a maior parte dos materiais que lhes poderiam ser úteis ainda está “por fazer”. Assim, é característica marcante dos cursos de formação para o Magistério Indígena o investimento feito na formação do professor-elaborador de material didático, o que implica, necessariamente, o desenvolvimento da capacidade de atuar em diferentes áreas de investigação, inclusive na qualidade de pesquisador. Em alguns programas de formação para o Magistério Indígena / Educação Continuada a disciplina “Iniciação à Pesquisa” (veja Cavalcanti, 2001) já foi incluída no currículo e se apresenta como um contraponto à maneira tradicional de construção de conhecimento no mundo indígena.

No que se refere especificamente aos materiais voltados para o ensino da lecto-escritura, tais investigações envolvem, geralmente junto aos mais idosos da aldeia, a coleta de histórias, de cantos, de conhecimentos medicinais tradicionais, entre outros, os quais, posteriormente transcritos e impressos, passam a compor materiais didáticos que serão trabalhados em sala de aula. A atividade de registrar os conhecimentos tradicionais indígenas, isto é, tornar-se “guardião da herança cultural” de seu povo, além de ser considerado parte integrante da atividade do docente indígena, constitui-se, hoje, em uma de suas funções mais importantes. Uma outra competência necessária para que Essas questões esos professores indígenas possam produzir literatão discutidas de fortura e materiais didáticos em suas próprias línma mais detalhada no volume Línguas indígenas preciguas é a capacidade de tomar decisões informasam de escritores? Como das sobre o modo adequado de grafá-las, já que formá-los?, de Wilmar da os sistemas de escrita de muitas línguas indígeRocha D’Angelis, nesta coleção, cuja leitura já reconas encontram-se em processo de definição. É por mendamos anteriormente. isso que a maior parte dos programas de for-

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© Escola Indígena Utapinopona-Tuyuka, FOIRN -- Instituto Sócio-Ambiental

mação para o Magistério Indígena inclui, em seus currículos, cursos de introdução à Lingüística. E, como a grande maioria desses docentes atua em comunidades bilíngües, eles freqüentemente se vêem envolvidos em atividades de tradução — seja do português para a língua indígena ou vice-versa —, o que demanda o domínio de uma habilidade muito específica. E é esse o motivo pelo qual tais projetos já começam a também incluir, em seus currículos, oficinas de tradução, para que, assessorados por especialistas da área, os professores possam discutir os dilemas que envolvem esse tipo de prática com a linguagem.

Página de livro didático Tuyuka, da Escola Indígena Utapinopona-Tuyuka.

Antes de terminarmos este texto, gostaríamos de insistir, mais uma vez, em um ponto que nos parece importante: pensar que as responsabilidades de um professor indígena se resumem àquelas

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© ATIX — Associação Terra Indígena Xingu / Instituto Sócio-Ambiental

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Página de apresentação de livro para alfabetização na língua Mehinaku.

atividades circunscritas ao ambiente escolar é um engano. O leque de atribuições que lhe cabem é, quase sempre, muito mais amplo. O fato de ele ter acesso aos códigos da sociedade brasileira faz com que se perceba, e com que seja percebido, como elemento crucial na interlocução cultural e política de seu grupo étnico com a sociedade envolvente e, por isso, é comum ver um professor indígena liderando discussões e negociações que envolvem, por exemplo, a posse e a segurança do território de seu povo ou os problemas de saúde que acometem sua comunidade. Esta é uma variável que não pode ser desconsiderada nos cursos de formação para a docência nesse contexto.

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Conscientes da importância de seu cargo para a determinação do futuro das sociedades indígenas, os cerca de 6.000 professores indígenas em serviço atualmente no Brasil vêm se organizando, desde o final da década de 1980, em entidades de classe, com o intuito de se fortalecerem politicamente. A militância desses professores no interior dessas entidades tem sido crucial para a formação e o estabelecimento de políticas públicas mais justas para os povos indígenas do nosso país.

Para encerrar este trabalho, voltemos ao que foi dito logo no início. Você se lembra quando dissemos que atuar na área da Educação Escolar Indígena era pisar em um terreno povoado por desafios, dilemas e incertezas constantes? A questão, como se vê, é mesmo muito complexa — tanto para o formador de professores, quanto para o próprio professor — mas essa complexidade, que envolve tomar decisões pedagógicas com sérias implicações políticas e sociais, deve ser vista como um desafio. A tarefa é árdua, mas muito gratificante.

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ALGUNS DADOS SOBRE OS POVOS INDÍGENAS MENCIONADOS NESTE LIVRO Povo

Localização

População

Língua

Asheninka

Acre*

813 pessoas (em 1999)

Asheninka (família Aruak)

Jaminawa

Acre**

500 pessoas

Jaminawa (família lingüística Pano)

Kaxinawa

Acre***

1.400 pessoas (em 2000)

Kaxinawa (família Pano)

Manchineri

Acre

259 pessoas (em 1999)

Manchineri (família Aruak)

Menihako

Parque Indígena do Xingu (MT)

199 pessoas (em 2002)

Menihako (família Aruak)

Pataxó

Bahia

2.790 pessoas (em 1998)

Português

Terena

Mato Grosso do Sul

16.000 pessoas (em 2001)

Tikuna

Amazonas****

32.613 pessoas (em 1998)

Tuyuka

Amazonas

593 pessoas (em 2000)

Tuyuka (família Tukano Oriental)

Waiãpi

Amapá*****

32.613 pessoas (em 1998)

Wajãpi (família Tupi-Guarani)

Xavante

Mato Grosso

9.602 pessoas (em 2002)

Xavante (família Jê)

Yanomami

Amazonas e Roraima******

11.700 pessoas (em 2000)

Yanomae, Yanomami, Sanoma e Ninam (família Yanomami)

Yawalapiti

Parque Indígena do Xingu (MT)

208 pessoas (em 2002)

Yawalapiti (família Aruak)

* Os Asheninka habitam também o Peru. ** Os Jaminawa habitam também o Peru e a Bolívia. *** Os Kaxinawa habitam também o Peru. **** Os Tikuna habitam também o Peru e a Colômbia. ***** Os Waiãpi habitam também a Guiana Francesa. ****** Os Yanomami habitam também a Venezuela.

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Terena (família Aruak) Tikuna (língua isolada)

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Bibliografia

ALBERT, B. “O ouro canibal e a queda do céu. Uma crítica xamânica da economia política da natureza (Yanomami)”. In Albert, Bruce & Ramos, Alcida Rita (org.). Pacificando o branco: cosmologias do contato norte-amazônico. São Paulo: Unesp/Imprensa Oficial do Estado, 2002. P

A partir de 1987, os Yanomami (povo que ocupa uma área na região ocidental do estado de Roraima, no norte do Brasil) passaram a entrar em contato intenso e conflituoso com garimpeiros que, realizando uma extração predatória do ouro em suas terras, são responsáveis pela morte de centenas de Yanomami. A partir da análise do “tema ecológico” presente no discurso político do líder yanomami Davi Kopenawa, Bruce Albert discorre sobre as elaborações desenvolvidas pelos Yanomami sobre esse seu contato recente com a sociedade envolvente, atentando para o importante papel que a cosmologia e a etnicidade assumem nas “análises do fenômeno da inovação cultural”.

BRASIL, Referenciais para Formação de Professores Indígenas. Brasília: MEC/SEF/ DPEF/Coordenação Geral de Apoio às Escolas Indígenas, 2002. P

Coordenado por Luís Donisete Benzi Grupioni e Nietta Lindenberg Monte, o documento tem por objetivo sistematizar idéias e práticas consensuais dis-

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cutidas, em diferentes encontros e seminários, por profissionais indígenas e não-indígenas que atuam no campo da Educação Escolar Indígena no país. Bastante objetivo, o texto abrange os seguintes temas: aspectos legais, ■

institucionais e administrativos da implantação dos programas de formação de professores indígenas; professores indígenas; características gerais do currículo de formação de professores indígenas; avaliação nos programas de formação; material didático e de pesquisa e implicações para a gestão institucional de programas de formação de professores indígenas.

BRASIL, Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI Indígena). Brasília: SEF/MEC, 1998. P

Elaborado por profissionais de diferentes áreas e instituições que atuam em projetos de Educação Escolar Indígena e por professores índios, o RCNEI oferece subsídios para a elaboração de propostas curriculares para as escolas indígenas. O texto tem caráter formativo e é dividido em duas partes: na primeira (“Para começo de conversa”) há a exposição dos fundamentos políticos, legais, históricos e antropológicos de uma proposta de educação escolar indígena; na segunda (“Ajudando a construir o currículo das escolas indígenas”) são apresentadas referências para a elaboração de práticas pedagógicas nas escolas indígenas para o ensino de Línguas, Matemática, História, Geografia, Ciências, Arte e Educação Física.

CAGLIARI, L. C. Alfabetização e Lingüística. São Paulo: Scipione, 1997. P

A obra se destaca por estar entre as primeiras participações de lingüistas em projetos educacionais, ou seja, é um estudo lingüístico da alfabetização. Ela surgiu partindo do pressuposto de que a alfabetização é a aprendizagem da leitura e da escrita, atos estes que nada mais são do que atos lingüísticos. Cagliari se dispõe a discutir e a tentar resolver os problemas técnicos relacionados ao ensino da escrita e da leitura.

CAVALCANTI, M. C. A Pesquisa do Professor como Parte da Educação Continuada em Curso de Magistério Indígena no Acre. In A. B. Kleiman (org.) A Formação do Professor – Perspectivas da Lingüística Aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 2001. P

Neste artigo, Cavalcanti traz o relato de uma pesquisa (na época em anda-

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mento) sobre a sala de aula, desenvolvida por treze professores indígenas das etnias Asheninka, Katukina, Kaxinawa, Manchineri, Shawãdawa e Yawanawá. O projeto surgiu em um curso de Português como L2 ministrado por ela, em que os próprios alunos (professores indígenas que haviam acabado de concluir o Magistério Indígena e que estavam em curso de educação continuada) manifestaram o desejo de entender o que era um projeto de pesquisa. Assim, desenvolvendo uma metapesquisa (uma vez que examina a pesquisa em andamento sob sua orientação), Cavalcanti propõe um projeto de pesquisa de cunho etnográfico a ser desenvolvido pelos professores indígenas, inicialmente ao longo de um ano, com o objetivo de investigar como estava sendo construída a educação escolar indígena nessas escolas diferenciadas, como se configuravam as formas de aprender e ensinar, quais eram as características da interação professor-aluno, alunoaluno. A autora expõe e discute as primeiras asserções advindas dos dados gerados pelos professores em suas escolas, chamando a atenção para o papel e a função da escola nas diferentes comunidades.

______________. “Entre Escolas da Floresta e Escolas da Cidade: Olhares sobre Alguns Contextos Escolares Indígenas de Formação de Professores”. Trabalhos em Lingüística Aplicada. Campinas, (36): 101-119, jul./dez. 2000. P

Partindo de registros gerados pelo Projeto Escolas da Floresta e a Formação dos Professores — projeto iniciado em 1995, que buscou investigar a natureza das interações transculturais (entre índios e não-índios) e levantar subsídios para cursos de Magistério Indígena, focalizando formação de professores e pesquisadores —, a autora, nesse texto, analisa a natureza e a função da escola a partir da perspectiva de professores indígenas de diversas etnias. Os contextos considerados foram os seguintes: cursos de formação de professores no Acre, Programa de Implantação de Escolas Indígenas, em Minas Gerais, Cursos de formação de professores do Parque do Xingu; Curso de Magistério Indígena da Universidade Federal de Roraima e Programa de Magistério de Professores Indígenas, na Universidade Federal da Bahia. Além de trazer questões referentes ao biletramento, bilingüismo, educação bilíngüe, utilização e papel do material didático, a autora evidencia, ao longo da análise, que a escola denominada diferenciada é um con-

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ceito em construção para os professores indígenas e o papel da escola na construção de identidades indígenas está ligado à apropriação da cidadania, ao papel social do professor dentro da comunidade.

COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DO ACRE, Yuimak~l – Um Jornal Indígena do Acre, 2001:2. P

Yuimak~l , um jornal multilíngüe, em sua 26ª edição, com tiragem semestral, é publicado pela Comissão Pró-Índio do Acre com apoio da OPIAC (Organização dos Professores Indígenas do Acre) e da Rainforest Foundation/Noruega. Com contribuições dos professores indígenas do Acre e, ocasionalmente, também de outros representantes de povos indígenas da floresta, o jornal é distribuído nas aldeias indígenas acreanas.

GAVAZZI, R. A. Observações sobre uma Sociedade Ágrafa em Processo de Aquisição da Língua Escrita Em Aberto, Brasília, INEP ano 4, nº 63, jul./set. 1994. P

Gavazzi discute o processo de apropriação da escrita pelo povo indígena Kaxinawa, do Rio Jordão, no Acre. Para isso, focaliza a função dos diários escritos pelos Kaxinawa, amplamente usados na aldeia para registro de atendimento na saúde, registro de reuniões na aldeia, de visitas de parentes, de cantigas tradicionais e de orações. O autor mostra, ilustrando com trechos de alguns diários, como a escrita, em língua Kaxinawa e em língua portuguesa, surge como um novo elemento dentro da cultura Kaxinawa.

KLEIMAN, A. B. (org.) Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da leitura e da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 2001. P

A obra é dividida em três capítulos: “Modos de participação da oralidade no letramento”, “O não-escolarizado na sociedade letrada” e “Verso e reverso do analfabetismo”. A primeira parte trata a oralidade como importante fator para o letramento; a segunda mostra as diferentes identidades letradas, e a terceira discute as representações do analfabetismo de pessoas adultas.

MAHER, T. M. Ser professor sendo índio: Questões de língua(gem) e identidade. Tese de doutorado. Departamento de Lingüística Aplicada. Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp. 1996.

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Partindo de registros gerados em um projeto de educação indígena na Amazônia Ocidental, esta tese de cunho etnográfico descreve e discute os modos pelos quais as práticas discursivas dos participantes índios refletem processos de (re)definição da identidade (notadamente no que diz respeito à identidade lingüística) do professor-índio, considerando-se o contexto de conflito diglóssico no qual esses sujeitos estão imersos. Os discursos analisados revelaram, por parte dos professores-índios, esforços de preservação e recuperação de línguas indígenas, bem como a emergência de um “Português Índio” utilizado para marcar etnicidade e a utilização da língua dominante para o estabelecimento de uma identidade indígena pan-étnica.

___________________.“Como formar professores índios para as escolas indígenas?”. In Boletim da série Escola e Povos Indígenas no Brasil do Programa Salto para o Futuro / TV Escola (programa 3), ago. 2004 (também disponível em www.tvebrasil.com.br/salto). P

A autora traça o perfil do professor indígena, destacando as especificidades de seu processo de formação para o magistério quando comparado com o processo de formação de professores não-indígenas. Maher chama a atenção para fato de que, diferentemente dos demais docentes no país, o professor indígena, além de suas tarefas em sala de aula, é freqüentemente responsável pela elaboração do currículo escolar intercultural de sua comunidade e pela maior parte dos materiais didáticos que utiliza. Vai daí que seu processo de formação visa também a prepará-lo para exercer as funções de pesquisador e de tradutor. Ganham destaque no texto as funções políticas exercidas por grande parte dos professores indígenas em suas atuações fora da sala de aula.

MELIÁ, B. Desafios e tendências na alfabetização em língua indígena. In L. Emiri e R. Monserrat (orgs.). A conquista da escrita. São Paulo/Cuiabá: Iluminuras/OPAN, 1989. P

Este artigo desfaz o mito de que a introdução da escrita no contexto indígena estaria atrelada à conquista e domínio dos povos indígenas. O autor aponta que, inicialmente, tal suspeita era concreta uma vez que a escrita era imposta pelo colonizador com o intuito de traduzir a Bíblia com o fim último de facilitar a conversão dos indígenas. Porém, com vários relatos de experiências de introdução da escrita em comunidades indíge-

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nas, mostra que a escrita está longe de ser a passagem para a tradução e integração do indígena no mundo do branco. Ao contrário, há um processo de incorporação criativa do código escrito à cultura indígena que denota a conquista da escrita pelos indígenas.

MONTE, N. L. Escolas da Floresta — Entre o passado oral e o presente letrado. Rio de Janeiro: Multiletra, 1996. P

A autora, com larga experiência na questão da Educação Escolar Indígena, relata uma pesquisa que focaliza diários de classe de professores Kaxinawa do Acre, na qual registrou a chegada da escrita em uma cultura predominantemente oral e avaliou o valor dessa nova ferramenta intelectual para os índios da região.

MORTATTI, M. R. L. Educação e letramento. São Paulo: UNESP, 2004. P

Focalizando os problemas que circundam a aquisição da capacidade de leitura e escrita no Brasil, Mortatti refaz, nesse livro, o trajeto teórico-ideológico que, problematizando os conceitos de alfabetização e analfabetismo, vem propondo — não sem algumas discordâncias entre seus especialistas — a substituição desses conceitos, no país, pelos de letramento e iletrismo. No penúltimo capítulo (“Letramento, alfabetização, escolarização e educação”), a autora problematiza, de maneira instigante, a pedagogização do letramento. No final da obra, encontram-se glossário, sugestões de leitura comentadas e questões para reflexão e debate.

NINCAO, O. S. Do ideal ao real: a formação superior do professor Terena e o processo de produção de textos em língua indígena. Tese de doutorado (em andamento). Departamento de Lingüística Aplicada, Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp. P

Esta tese (em andamento) discute as condições de produção de textos em língua Terena por professores indígenas do Curso Normal Superior Indígena da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul / Unidade de Aquidauana. O objetivo final desta produção é a criação de um banco de textos a ser utilizado em material didático de leitura para alunos pós-alfabetizados.

SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.

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O tema da obra é um só: o letramento. Porém o diferencial é que a autora o trata sob três diferentes condições de produção escrita: o verbete, o texto didático e o ensaio. O livro apresenta diferentes situações de enunciação e de pontos de vista. A cada gênero focalizado, o tema se expande e ganha novas significações.

SILVA, A. L. “Educação Indígena entre diálogos interculturais e multidisciplinares: introdução”. In Silva, Aracy Lopes da & Ferreira, Mariana Kawall Leal (org.). Antropologia, História e Educação: a questão indígena e a escola. São Paulo: Global, 2001. P

No texto introdutório da obra são apresentados textos de antropólogos e lingüistas sobre as diferentes práticas de educação escolar desenvolvidas com povos indígenas no Brasil. A partir da análise desses processos educacionais, a autora objetiva realizar uma reflexão sobre as relações estabelecidas entre a Antropologia e a Educação, auxiliada pela História e pela Lingüística.

SOUZA, L. M. M. “Para uma ecologia da escrita indígena: a escrita multimodal Kaxinawá”. In I. Signorini (org.) Investigando a relação oral/escrito e as teorias de letramento. Campinas: Mercado de Letras, 2001: 167-192. P

O autor aponta as implicações nefastas de uma “visão grafocêntrica de uma cultura indígena no Brasil” como sendo: a) a redução dessa cultura a uma “oralidade” sem escrita; b) a incapacidade de percepção da “complexidade de práticas culturais” existentes. Discute o poder da lente etnocêntrica que confere um status inferior ao mundo “oral” sem nenhum esforço para compreendê-lo.

STREET, B. “Futures of the Ethnography of Literacies.” Language and Education, 18/4: 326-330, 2004. P

Street, renomado autor na área de estudos sobre letramento, faz um apa-nhado dos textos apresentados neste volume especial da revista Language and Education. O volume apresenta relatos de pesquisa etnográfica sobre letramentos em diferentes contextos de minorias lingüísticas. O autor discute as perspectivas desse tipo de metodologia de pesquisa e suas implicações em relação aos estudos sobre letramento.

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Qual a importância da leitura e da escrita para os povos indígenas?

O aprendizado da escrita em português tem, para os povos indígenas, funções muito claras: defesa e possibilidade de exercerem sua cidadania, e acesso a conhecimentos de outras sociedades.

Qual é a importância da linguagem oral para os povos indígenas?

A tradição oral pode ser considerada como a base da transmissão do conhecimento de uma geração para a outra dentro das comunidades indígenas. Foi através das narrativas orais que os povos nativos mantiveram seus laços coesos e suas estórias em constante movimento.

Qual é o papel da literatura indígena?

“A literatura é uma ferramenta de propagação de valores e de visão de mundo dos povos indígenas para muita gente, ampliando o poder de difusão de uma diversidade de saberes. Torna-se, assim, mais do que afirmação de identidade e autoestima, uma forma de preservar conhecimentos e de (re)existência” afirma o escritor.

Qual a importância de se estudar a literatura indígena em sala de aula explique?

Como esse aprendizado se dá: em sala de aula e também em visitas de campo, a aldeias e outros lugares de interesse? A ideia da disciplina Literaturas e Culturas Indígenas é romper com preconceitos e apresentar esse campo de investigação e prática para nossos futuros professores de língua portuguesa.