Tempo e espaço constituem as dimensões essenciais da história justifique a afirmação

1Apresentemos de imediato nossa hipótese principal: a geografia possui papel epistemológico primordial na elaboração e no desenvolvimento das principais inovações que caracterizam a escrita histórica braudeliana. Se a historiografia dedicada a Braudel tem obscurecido ou negligenciado este ponto, esta investigação pretende contribuir para problematizá-lo, tornando-o mais visível.

  • 1 A edição em espanhol da Fondo de Cultura Económica traduziu este título como La influencia del medi (...)

2No universo braudeliano, a fertilidade do encontro entre a Geografia e a História tem um de seus pontos altos na seção de abertura de La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II, a tão famosa e debatida La part du milieu1 (BRAUDEL, 1949). Incentivado por Febvre a escrevê-la, já em sua prova de fogo inicial mostrou sua face polêmica quando, na cerimônia de defesa da tese de doutorado, recebeu a reprovação de Gaston Zellner: Braudel havia sido geógrafo demais e historiador de menos (cf. DAIX, 1999:267 [1995]). Essa seria a primeira das muitas críticas recebidas por conta de sua aproximação com a Geografia. Talvez possamos alegar, a título de sugestão, que parte das censuras endereçadas a Braudel tem como raiz, exatamente, a incompreensão do lugar adquirido pela Geografia em sua concepção de História.

3Sigamos diretamente a La Méditerranée. Mais precisamente, ao prólogo da primeira edição francesa de 1949, momento privilegiado em que Braudel expõe alguns elementos de método e explica o desenho da obra — ele praticamente não o fará durante as quase duas mil páginas de texto. Que nos seja permitido reapresentar aquelas que são, provavelmente, as mais belas e conhecidas deste livro:

“A primeira [parte] trata de uma história quase imóvel, a história do homem em suas relações com o meio que o rodeia; a história lenta em fluir e se tranformar, feita não poucas vezes de insistentes reiterações e de ciclos incessantemente reiniciados. Não quis esquecer dessa história, quase situada fora do tempo, em contato com as coisas inanimadas, nem tampouco contentar-me, a propósito dela, com as tradicionais introduções geográficas dos estudos de história, inutilmente colocadas nos umbrais de tantos livros, com suas paisagens minerais, trabalhos agrícolas e flores, que se fazem desfilar rapidamente ante os olhos do leitor, para não voltar a referir-se a elas ao largo do livro, como se as flores não nascessem novamente a cada primavera, os rebanhos se detivessem em seus deslocamentos, os barcos não tivessem que navegar sobre as águas de um mar real que muda com as estações. Por cima desta história imóvel se alça uma história de ritmo lento: a história estrutural de Gaston Roupnel, que nós chamaríamos de bom grado, se esta expressão não houvesse sido desviada de seu verdadeiro sentido, uma história social, a história dos grupos e agrupamentos. Na segunda parte deste livro, estudando sucessivamente as economias e os Estados, as sociedades, civilizações e economias, tenho esforçado-me em expor como este mar de fundo agita o conjunto da vida mediterrânea, intentando, por último, manifestar, para esclarecer melhor minha concepção de história, como todas estas forças entram em ação nos complexos domínios da guerra. Pois a guerra não é, como sabemos, um domínio reservado exclusivamente às responsabilidades individuais. Finalmente, a terceira parte, a da história tradicional ou, se quisermos, a da história cortada não à medida do homem, mas à medida do indivíduo, a história dos acontecimentos, segundo François Simiand: a agitação de superfície, as ondas que alçam as marés em seu potente movimento. Uma história de oscilações breves, rápidas e nervosas. Ultrasensível por definição, o menor passo fica marcado em seus instrumentos de medida. História que, como tal, é a mais apaixonante, a mais rica em humanidade e, também, a mais perigosa. Desconfiemos desta história todavia em fragmentos, tal como as pessoas da época a sentiram e viveram ao ritmo de sua vida, breve como a nossa. Essa história tem a dimensão tanto de suas cóleras quanto a de seus sonhos e ilusões” (BRAUDEL, 1949: XIII).

  • 2 Seria esta uma censura voltada ao livro de Febvre La terre et l’évolution humaine: introduction géo (...)
  • 3 É por estes motivos que o historiador francês Daniel Roche, ex-estudante da Sorbonne, confessa que (...)

4Passemos à exegese destas breves linhas, mas que já causaram tanta controvérsia (RIBEIRO, 2010). E não era para menos: em um campo de conhecimento extremamente cioso de seus domínios, anunciar uma história imóvel e quase fora do tempo; revestir a Geografia de um significado que ia além da tradicional introdução à História 2; historicizar o meio ambiente; estudar a rede tecida pelas sociedades, civilizações, economias e Estados; e ver a história acontecimental como um perigo representava, no mínimo, uma intolerável exibição de rebeldia 3. Como se não bastasse, de certa forma Braudel “desloca” da História seu pilar de sustentação, o alicerce de sua fundação: a cronologia, a datação rígida em que os eventos apresentavam-se sequencialmente dispostos uns após os outros a caminho de um futuro inevitável. Por meio dela, o presente era justificado pelo passado; o Estado, em nome da nação; a guerra, em prol da paz. Trata-se de uma perspectiva que parecia inapelável. Cabia, apenas, resignar-se.

  • 4 “A geografia era o meio por excelência de desacelerar a história”, confessaria Braudel em 1984 à Ma (...)

5No entanto, a contrapelo, Braudel oferece o tempo histórico em sua pluralidade e totalidade. Sim, a história é também meio geográfico e sociedade, e não apenas política e biografia. Seu devir não é teleológico e unitemporal, mas ritmado segundo variações climáticas, distâncias, barreiras naturais, crescimento demográfico, epidemias, alimentação, códigos civilizacionais... Tudo isso impõe a necessidade de apreensão do processo histórico enquanto a combinação de mudança e permanência, velocidade e lentidão, evento e estrutura. Ao “desacelerar” a história, Braudel desestrutura o passado, descerrando-o de seu aspecto progressivo, linear e monolítico. E, nesse movimento, ao entrar em cena a Geografia 4, a dialética da duração ganha consistência, materialidade, já que a incorporação de espaços variados revelaria uma gama de tempos e de histórias, expostas para quem quisesse ver na apreensão da história à escala do mundo — apreensão esta que reforçou não a mundialização eurocêntrica ditando os rumos dos fenômenos, mas a diversidade de histórias segundo a variedade de espaços e a consciência de uma história construída à luz de um intercâmbio global.

6Mas, por quê estudar o mar Mediterrâneo? Entre outras razões, pela “simples” ocorrência de ser um valioso testemunho da vida passada. De onde veio esta idéia? Dos ensinamentos recebidos pelos mestres geógrafos da Sorbonne, idéia que tomou para si “com uma tenacidade que dá tônica e sentido” à obra (BRAUDEL, 2002:12 [1966]). Gratidão intelectual evidenciada, desde o início Braudel apresenta o Mediterrâneo como a possibilidade de “destacar com vigor os nexos permanentes que unem a história ao espaço (...) (idem)”.

  • 5 Expressão utilizada por François Dosse acerca de Lucien Febvre, que praticaria simultaneamente uma (...)

7Contudo, sua perspectiva não assimila sem constestação a lição de seus antigos professores. O Mediterrâneo no qual se debruçará não é o dos geógrafos, geólogos e biogeógrafos, de contornos nítidos e delimitados sem polêmica (ibidem, p.221). Ao exercer um dos princípios-base dos Annales, a história-problema, acrescido do fato de que se trata agora do Mediterrâneo histórico, é inevitável que este lhe escape, fuja ao seu controle: são muitas suas saídas e entradas. Sobretudo no século XVI, sublinha ele, cuja vastidão à escala do homem era muito maior que hoje. É preciso contorná-lo, bem como reconhecer as consequências desta operação, pois, tendo em vista o perigo de um “estudo histórico centrado sobre um espaço líquido” (ibid., p.15) não se trata de algo neutro e sem implicações. Praticando uma espécie de geografia-problema5, elucida que “estes problemas de enquadramento, os primeiros que nos colocam, trazem consigo em seguida todos os demais: delimitar é definir, analisar, reconstruir e, quando faz falta, eleger e, inclusive, adotar uma filosofia de história” (ibid., p.13). Diante desta empreitada, como não reprovar e tentar ultrapassar uma história “indiferente às conquistas da Geografia” (ibid., p.15), história cujo passado se resume à coleta de documentos e à memorização de datas?

8Interessante é tentar captar o embate braudeliano com uma história impassível não apenas à Geografia, mas à economia e aos problemas sociais; às civilizações e seus feitos; às religiões, às letras e às artes. E, nesse contexto, em que consiste o Mediterrâneo? Não um mar, mas um conjunto deles; rota secular de encontros e desencontros entre povos e civilizações distintas; obstáculo e ponto de ligação entre Europa, África e o resto do mundo. Um espaço tornado objeto histórico e, assim sendo, sujeito à analise temporal em sua plenitude. Braudel pinta o Mediterrâneo com todos os seus detalhes espaço-temporais: climas, paisagens, ilhas e relevos são amalgamados ao homem tanto em suas atividades mais corriqueiras (a subsistência) quanto às mais complexas (o mar como meio de ligação econômica e palco de disputas políticas), culminando na ousadia de desalojar Felipe II do lugar central que a historiografia dominante dedicara aos ditos “grandes personagens”. Em suas trezentas páginas, a primeira parte, “a mais forte e a mais original” (POMIAN, 1984), explicita uma complexa interação homem-natureza-espaço: o espaço mediterrâneo deixa de ser um cenário estático e imutável e passa a ser visto como algo eminentemente histórico, “vivo”. Contudo, sua relevância localiza-se, sobretudo, pelo fato de constituir-se em um meio para a realização de uma nova história. A pesquisa sobre o Mediterrâneo ensinara a Braudel não só o trabalho do homem diante do meio, mas que este mar consistia em um locus de tensão em virtude de interesses econômicos distintos e das civilizações e culturas díspares que por ele se ligavam e se chocavam. Laboratório ideal, portanto, para pôr em prática noções annalistes como interdisciplinaridade, pluralidade temporal e história total. O Mediterrâneo encarnaria o objeto ideal para que a história à la Langlois, Seignobos e Lavisse fosse devidamente interrogada:

“Não era uma excelente ocasião, ao tratar de um personagem que não se encaixa em nenhum dos moldes estabelecidos, aproveitar-se de sua massa, de suas exigências, de suas resistências e de suas ciladas, mas também de seu brio, no intento de construir a história de modo diferente da que nossos mestres nos têm ensinado? (...) Ainda que fosse apenas por nos obrigar a sair da rotina, o Mediterrâneo nos havia prestado um grande serviço” (BRAUDEL, 2002:17 [1966]).

  • 6 No início da parte três de La Méditerranée — “Os acontecimentos, a política, os homens” —, Braudel (...)

9Terminantemente, o Mediterrâneo não aceitaria a imposição de uma história historizante, a consagração de atores já conhecidos ou uma percepção unilateral do tempo. Ao contrário, ele carrega consigo múltiplas histórias, como a do homem convivendo com as agruras e benesses do clima ou a dos pastores e citadinos ocupando montanhas e planícies, histórias estas talhadas lentamente por outros personagens tão simples, mas tão importantes, como pescadores, nômades, camponeses e comerciantes. Entretanto, um objeto inovador demanda uma metodologia igualmente inovadora, focalizada, em particular, na relação entre o tempo e o espaço. Ou, para ser mais exato, entre tempos, espaços e epistêmes. Assim, o que se entende pela concepção braudeliana de história expressar-se-á em algumas das palavras-chave de seu vocabulário, como rotina, cotidiano, continuidade e permanência, que remetem seus seguidores àquilo que lhe é mais caro: as estruturas da história. Considera-se que a história possui uma cadência, um ritmo, uma temporalidade mais durável e resistente à mudança, que os obriga a buscar não no agora e na brevidade dos acontecimentos, mas na longa duração, aquilo que a sustenta e a conforma enquanto uma “totalidade”. Isto não significa, contudo, uma negligência para com o evento, mas sim o reconhecimento de que este deve ser suplantado através de sua incorporação em uma duração mais longa, pois é este movimento que permite alcançar as estruturas profundas da vida material 6 (LLOYD, 1995 [1993]).

10O tempo quase imóvel é um tempo geográfico, escreverá Braudel no prefácio à primeira edição francesa de La Méditerranée (BRAUDEL, 1949). Anos depois, em seu celebrado texto epistemológico Histoire et Sciences Sociales. La longue durée, ele continuará a articular a Geografia às realidades lentas e duradouras, admitindo as sociedades como prisioneiras dos “quadros” e das “coerções” dadas pelos climas e pelas vegetações, destacando a fixidez das civilizações em determinados espaços e a permanência de certas rotas e tráficos na constituição das cidades (BRAUDEL, 1958).

11Por acaso estaria Braudel igualando a Geografia ao meio ambiente, atrelando-a às características físico-naturais do Mar Mediterrâneo para capturar a história de longa duração? “Como seu título indica, a primera parte deste livro está centrada em torno da geografia” (BRAUDEL, 2002:27 [1966]). No entanto, é interessante perceber que ele sublinha o fato de que não se trata somente de geografia ou, pelo menos, trata-se “de uma geografia muito sui generis, atenta especialmente ao que concerne aos fatores humanos” (idem). Aperfeiçoando a interlocução desenvolvida por Marc Bloch e Lucien Febvre, Braudel sugere a criação de uma “espécie particular de história” (ibidem). Em suas próprias palavras, “a geografia deixa de ser um fim em si para converter-se em um meio, ajudando a recriar as mais lentas das realidades estruturais, a ver tudo em uma perspectiva segundo o ponto de vista da duração mais larga [e] a descobrir o movimento quase imperceptível da história” (ibid.).

12Assim, La Méditerranée evidencia o papel nuclear do milieu géographique na compreensão da sociedade. As atividades humanas são indissociáveis de seus respectivos ambientes. Muito mais que um quadro fixo e imóvel, o meio é uma estrutura, um personagem histórico de primeira grandeza. Complexo, ele não é apenas fonte de recursos de toda sorte, mas também algo hostil no qual as sociedades travam suas lutas pela sobrevivência. Um peso ora esmagador, ora contornável, mas sempre algo do qual não se pode escapar. É preciso entender os humores das estações, as dificuldades impostas pelo sítio, as múltiplas associações entre clima, relevo, vegetação e hidrografia. Embora parcialmente, o meio impõe um ritmo, uma cadência; a seu turno, os homens vão modificá-lo, adaptando-o às suas mais variadas exigências. A história humana não se constrói fora do espaço, mas, sim, a partir dele, com ele, concomitantemente. Para Braudel, isto ocorre no âmbito da longa duração. Tal temporalidade é desenhada como o resultado de uma via de mão dupla: das condições efetivas colocadas pelo meio às sociedades e das respostas dadas por estas ao ambiente que as envolve. Assim esboçada, uma concepção singular de História resolvia, compatibilizando tempo e espaço, o problema de apreensão simultânea das mudanças e das permanências.

Tempo e espaço constituem as dimensões essenciais da história justifique a afirmação

A geohistória em La Méditerranée: principais usos e aspectos

  • 7 Contrariamente ao uso habitual em português, lançaremos mão do termo geohistória sem hífen, visando (...)

13Se é possível afirmações isoladas como as de que sequer houve uma geohistória7 em Braudel (ARAÚJO, 2003), por outro lado, pode-se vê-lo como um verdadeiro revolucionário quanto às concepções de espaço e de tempo (FOURQUET, 1989 [1988]). Igualmente, enquanto alguns enxergam somente o determinismo geográfico (DOSSE, 1992 [1987]; KINSER, 1981; GURIÊVITCH, 2003 [1991]), outros observam um determinismo diferente e bastante singular (AGUIRRE ROJAS, 2003). De qualquer maneira, uma coisa é certa: La Méditerranée suscitou inúmeros debates, atravessando e dividindo gerações (FEBVRE, 1950; BAYLIN, 1995 [1951]; LEFORT, 1952; FONTANA, 1998 [1982]); RUANO-BORBALAN, 1993; SHAW, 1994; PERROT, 1998; DOSSE, 1999; REIS, 1994, 2003).

14Vejamos como Braudel instrumentaliza a geografia e a história, transformando-as em geohistória. A título de síntese, podemos admitir que existem algumas situações recorrentes que ilustram, de maneira nítida, a utilização da geohistóriaem La Méditerranée. Se houvesse uma espécie de “tipo ideal”, ele seria contemplado pelos seguintes casos:

  • relação homem-meio;

  • ocupação/povoamento/migrações/redes urbanas;

  • distâncias;

  • traçado de rotas comerciais terrestres e marítimas;

  • descrição do sítio e da situação/análise de posição;

  • domínio político do espaço;

  • dimensão econômica do espaço.

15Quanto ao primeiro tópico, não é muito difícil notar que ele ocupa o centro das atenções. É a herança vidaliana em estado pleno que, desde o final do século XIX, vinha fertilizando as Ciências Sociais na França. Mas é à História em particular que ela atinge em cheio, ajudando a definir as ambições dos Annales. Se o raciocínio a seguir guardar alguma validade, se Braudel tivesse que escolher qual seria o núcleo da vida em sociedade, o “motor da história”, seriam muitas as chances de sua opção recair na conexão homem-meio. Não podemos esquecer que La Méditerranée é uma análise em torno do século XVI, o que torna tal conexão um tanto quanto dramático no sentido de que o meio é, em boa parte dos casos, um empecilho. Nele estão contidas tanto as determinações quanto as possibilidades. É impossível parar a chuva ou conter o vento, mas é possível administrar as intempéries construindo diques ou drenando o solo, por exemplo. Nessa tessitura, elemento importante é conferido à técnica, incrementando a ação humana na modificação da natureza de acordo com suas necessidades. Assim constrói-se o meio geográfico: não se trata nem da natureza em si, nem, tampouco, de coisa inalterável, mas sim de algo durável, constante. Uma realidade pesada, sólida, onipresente.

“O saldo a favor da montanha não é, pois, tão minguado como a priori se supõe. Nela, a vida é possível, embora não fácil. Quais penalidades existem para o trabalho agrícola, nessas terras inclinadas onde não se pode empregar animais domésticos? O homem tem que trabalhar estes campos pedregosos, sujeitando a duras penas a terra que lhe escapa e lhe desliza ao longo dos declives, às vezes levando-a em cestos até os cumes, onde a retém por meio de pequenos muros de pedras secas, nos quais se distribuem os cultivos. Trabalho penoso e interminável. Um só instante de repouso e a montanha retorna ao seu estado primitivo e selvagem. No século XVIII, quando os habitantes da Catalunha tomam posse das altas terras pedregosas dos maciços da costa, os colonos se surpreendem ao encontrar, no meio da mata, enormes olivais que ainda produziam, bem como muros de pedras: prova de que sua conquista era, na realidade, uma reconquista” (BRAUDEL, 2002:53 [1966]).

  • 8 Causa perplexidade a afirmação categórica de Lacoste de que “Braudel não se refere absolutamente à (...)
  • 9 A expressão é do filósofo francês Henri Lefebvre no clássico La Révolution Urbaine (LEFEBVRE, 1996: (...)

16Outro traço importante diz respeito às formas de ocupação humana. Há que se lidar não só com as águas calmas do Mediterrâneo ibérico, mas com o intempestivo deserto do Saara. Assim explicam-se as aglomerações humanas: levando em conta relevo, clima, vegetação, hidrografia, distância, há, no processo de reprodução da vida cotidiana, distintas respostas segundo os diferentes ambientes nos quais os homens estão imersos. A combinação homem-meio-técnica foi conceituada por Vidal de la Blache como genre de vie (VIDAL DE LA BLACHE, 1911, 1991a) e apropriada várias vezes por Braudel como ferramenta importante no esclarecimento de assuntos como concorrência entre grupos sociais, sítios de estabelecimento, formas de habitat 8(RIBEIRO, 2011). Da composição de redes de cidades e do florescimento da vida urbana até a urbanização completa da sociedade 9, tal trajetória é bem explicada à luz da longa duração.

“As planícies habitadas, que hoje em dia são a imagem da prosperidade, tem sido a culminação tardia e penosa de séculos de esforços coletivos. Na Roma antiga, no tempo de Varrón, persistia ainda a lembrança dos dias em que se navegava na barca pelo Velabro. A ocupação estendeu-se progressivamente, do alto até as baixas terras quentes, plenas de água parada. As provas disso são abundantes. No belo estudo de Pierre George, encontramos um mapa dos estabelecimentos pré-históricos da região do Baixo Ródano: todos os centros reconhecidos aparecem situados nas altas regiões calcáreas que dominam a depressão do delta, tanto a leste quanto ao norte. Mesmo mil anos mais tarde, no século XV, os trabalhos de saneamento das ‘marismas’ do Ródano ainda não haviam começado” (BRAUDEL, 2002:64 [1966]).

  • 10 Não será por isso que abre seu último livro indagando se a Geografia teria inventado a França? (BRA (...)

17Acaso não podemos decodificar La part du milieu como a reconstrução dos processos históricos de adaptação das sociedades e das civilizações ao espaço geográfico característico do mundo mediterrâneo? Nele, Braudel historicizava um espaço, deslocando a supremacia da História Política e dialogando com os principais nomes da Escola Francesa de Geografia. Enfatizava as montanhas como refúgios de bruxos e feiticeiras e fonte de recursos e as planícies como espaço favorável às populações urbanas; revelava as diferenças nos trajes entre montanheses e habitantes das vilas, assim como a raridade de matrimônios envolvendo os mesmos (idem, pp.40-57). A vida montanhesa é a primeira história do Mediterrâneo, “uma fábrica de homens para uso alheio; sua vida difusa e pródiga alimenta toda a história do mar” (ibidem, p.63), escrevia ele repetindo a fórmula de Pierre Deffontaines e Jean Brunhes. Percorre-o inicialmente como se quisesse dizer que antes, bem antes de Felipe II, da política, da diplomacia e da economia, a história das sociedades começa com suas ligações com o meio 10. E, assim, redescobre o cultivo das oliveiras, o nomadismo e a transumância, a alternância das estações, a dinâmica dos ventos, as rotas e os caminhos. Enfim, as imposições da natureza aos movimentos humanos e seus traços grafados nas paisagens como testemunhos de uma história assaz complexa e heterogênea. Aqui, o historiador loreno parece reproduzir a afirmação vidaliana de que o homem, como fator geográfico, é ativo e passivo ao mesmo tempo (VIDAL DE LA BLACHE, 1954:41 [1921]). E apreende, sobretudo, “ciclos mais que seculares” (BRAUDEL, 2002:131 [1966]), a permanência de determinados fenômenos em uma ampla escala temporal, uma duração específica, morosa, quase imóvel.

  • 11 Leiamos uma passagem de Braudel que se opõe frontalmente ao espaço em tela: “Uma coisa é certa: o e (...)

18Voltemo-nos agora para as distâncias, assunto insistentemente abordado por Braudel, cuja atenção se volta para a diminuição das mesmas, possibilitada pela técnica, no decorrer do processo histórico. Ao tratar da unidade do mundo provocada pela Revolução Industrial, ele considera a distância um dos grandes dramas do passado, “um dos mais importantes senão o mais importante” (idem).No entanto, diferentemente da maioria dos historiadores e cientistas sociais de seu tempo, Braudel consegue apreender a geografia para além da concepção hegemônica de espaço consagrada pelo paradigma cartesiano-newtoniano 11. Alimentada pelo tempo da história, o que antes representava um obstáculo vai sendo contornado pela ação humana: os limites do corpo, que, outrora, valorizavam a aptidão de mensageiros velozes e prodigiosos, vão sendo paulatinamente sobrepujados pelas técnicas de navegação e, mais adiante, pela revolução dos transportes e das comunicações. Aos olhos de todos, mares, oceanos e territórios, tidos como gigantes, vão diminuindo de tamanho. Essa é uma conquista humana que permite, entre outros desdobramentos, uma sensação de soberania, o conhecimento do desconhecido, o questionamento de verdades absolutas. Uma nova dinâmica econômica e social, enfim.

19Nada disso o impede de proclamar o espaço como “inimigo número um” (ibidem, p. 473), principalmente no século XVI:

  • 12 Mesmo uma reflexão como esta não impede alguns autores de afirmarem que, em La Méditerranée, “é cla (...)

“Hoje começa a nos faltar espaço: o mundo torna-se cada vez mais estreito. Mas no século XVI ele sobrava, o que era uma vantagem e uma desvantagem ao mesmo tempo. De todos os temas examinados pela literatura em torno do Mediterrâneo, o do ‘mar à medida do homem’, é um dos mais ausentes. Como se a medida do homem fosse sempre e quando quisesse a mesma! De toda forma, é indubitável que o Mediterrâneo não se ajustava à medida do homem do século XVI; este homem dominava seu espaço excessivo a tão duras penas como, até pouco tempo, o homem do século XX a extensão do Pacífico” 12 (ibidem).

  • 13 De onde podemos concluir, juntamente com os outros exemplos aqui arrolados, que, ao contrário do qu (...)

20Suplantadas as dificuldades iniciais de deslocamento, podemos observar o surgimento de rotas comerciais, sejam elas marítimas ou terrestres. Ao recuperar o sumário de La Méditerranée, encontramos temas como “De Gênova a Amberes e de Veneza a Hamburgo: as condições da circulação”; “O problema intrínseco da rota terrestre”; “Significado e limitação do comércio de longas distâncias” e “A grande rota de Barcelona a Gênova e o segundo ciclo dos metais preciosos da América”. Igualmente, “As economias: o comércio e o transporte”, capítulo terceiro da segunda parte de La Méditerranée, contempla assuntos como “As rotas do comércio do Levante”; “O comércio do trigo vinculado às rotas marítimas” e “Do trigo às especiarias: os holandeses conquistam o Mediterrâneo” 13.

  • 14 Em O Tempo do Mundo, volume terceiro de Civilização Material, Economia e Capitalismo: XV-XVIII, o t (...)

21A reunião destes temas culminará na espacialização da história. Tal aspecto relaciona-se não apenas à influência da geografia, mas também ao ângulo de visão no qual Braudel contempla o capitalismo, atentando menos para a produção e mais para a circulação. Destarte, seu interesse fixa-se no complicado controle das metrópoles junto às colônias; na origem e no destino das importações e exportações; no trajeto desenhado pelo tráfico portuário; nos contornos e nos deslocamentos das economias-mundo 14. Em uma passagem de enorme lucidez:

“A presença portuguesa, que tão rapidamente extendeu-se por uma imensa área através do Oceano Índico e mesmo além — graças não somente à necessidade de criar tráficos inter-regionais, mas também ao espírito de aventura ou de lucro —, havia culminado na criação de um império imenso e frágil. Por si mesmo, Portugal não era rico o bastante para manter esta vasta rede, suas fortalezas, suas custosas esquadras e seus funcionários. O império tem sempre que alimentar-se do império. Esta inferioridade financeira converteu desde logo os portugueses em aduaneiros, mas as fronteiras somente são proveitosas quando passam por elas torrentes de preciosas mercadorias” (ibid., p.722).

22Outra ocasião em que a geohistória se faz presente, e que não deixa de estar associada ao traçado das rotas comerciais, refere-se à descrição do sítio e da análise da situação. Neste ponto, Braudel parece ser o sucessor de uma antiga linhagem geográfica que envolve nomes como Bernard Varenius, Alexander von Humboldt, Karl Ritter, Friedrich Ratzel e Paul Vidal de la Blache (ver CLAVAL, 2005:115-134 [2001]). Para um historiador, ele avança substancialmente no que diz respeito ao tradicional sentido do ato de localizar, redimensionando seu papel ao contextualizar historicamente o sítio e a situação geográficas. Por conseguinte, Braudel deixa para trás todo o esquematismo cartográfico-matemático de base cartesiana. Já no século XVI a Europa era uma “colcha de retalhos”, com territorialidades superpostas, invasões estrangeiras desalojando espaços anteriormente ocupados por outros povos, migrações constantes. Nesta conjuntura, boa parte das vantagens deste ou daquele grupo eram dadas por sua situação espacial. Dependendo das circunstâncias, faria muita diferença habitar em uma montanha ou em uma planície; estar próximo ou distante de um porto; ter ao redor uma rede de cidades a fim de facilitar o intercâmbio comercial; dispor de uma saída ou não para o mar.

23La Méditerranée está repleto de passagens onde o sítio e a situação são ressaltados:

“O mar Interior, hoje em dia tão pequeno se o medirmos à escala do universo e de nossas velocidades habituais, continha no século XVI grandes regiões perigosas, vedadas, territórios de ninguém separando mundos diferentes. O mar Jônico é a mais vasta destas regiões hostis. Sua extensão desértica prolonga sobre o mar o vazio terrestre das terras da Líbia por ele banhadas ao sul, criando assim uma grande e dupla zona não-humana, continental e líquida, que separa o Oriente do Ocidente. Não obstante, do outro lado da ‘porta da Sicília’, outro vasto espaço marítimo se estende das ribeiras sicilianas ou sardas até as Baleares, Espanha e Magreb. Um mar (poderíamos chamá-lo mar da Cerdenha) que também é de difícil travessia, com suas costas inóspitas para a navegação e seus grandes e poderosos golpes de noroît e de levante. Na direção dos paralelos, as dificuldades da travessia seguem-se assim umas às outras, para maior castigo dos navegantes” (BRAUDEL, 2002:174 [1966]).

24Tais elementos adquiriam notável relevância, pois demonstravam a dimensão estratégica do espaço geográfico. O movimento histórico é inseparável deste campo de forças, que agia ora como benefício, ora como desvantagem. Neste domínio, Braudel demonstra extrema habilidade ao manejar diferentes escalas de análise, transgredindo, assim, o predomínio da circunscrição regional reproduzido por Bloch e preconizado por Febvre (cf. RIBEIRO, 2008:126-158). Para ele, a escala na qual a história deveria orientar-se era, primordialmente, a escala-mundo. A esse respeito, um item sugestivo encontra-se no terceiro capítulo da segunda parte de La Méditerranée: intitulado Movimentos gerais e movimentos locais, escondida entre suas habituais metáforas, há, na junção do tempo com o espaço, uma instigante lição de método. Ao revisar a expansão e a decadência da atividade industrial, ele aponta que tais oscilações:

“são compreendidas entre lugares que, com frequência, podem estar muito longe uns dos outros. A indústria — ou, melhor ainda, a pré-indústria — está submetida a um contínuo new deal, a uma incessante redistribuição de cartas. Quando uma mão foi jogada, começa outro jogo. O perdedor pode ter sorte na próxima partida, e Veneza parece provar isso. Mas o último a chegar na mesa de jogo será sempre o favorito, tal como provam a vitória das novas cidades da Itália e da Espanha no século XVI. E a vitória do Norte, seja qual for a antiguidade das atividades têxteis na encruzilhada dos Países Baixos, é a de um jovem rival. As indústrias surgem por todas as partes, instalando-se en qualquer lugar (...)” (BRAUDEL, 2002:579-580 [1966]).

25Não há como perder de vista que a ampliação da escala espacial é fator determinante na ampliação dos próprios domínios da História. Embora La Méditerranée pudesse, num primeiro momento, situar-se nos marcos de um enfoque regional, esta obra não é a história de uma região, mas, sim, a história de um mundo em si, de uma economia-mundo sem fronteira e cartografia definidas de maneira habitual. Não por acaso, um dos elogios de Lacoste deriva justamente deste ponto: Braudel soube perceber que a mudança de escala significava a mudança qualitativa de um determinado fenômeno (LACOSTE, 1989 [1988]).

  • 15 Estamos acompanhados por Romano, para quem tanto o acontecimento quanto a política se fazem present (...)

26Assinalamos anteriormente a dimensão estratégica do espaço. Cabe agora extrair seus componentes políticos. Embora os Annales tivessem deslocado a história política em prol de uma história econômico-social, isso não significa de forma alguma a despolitização do conhecimento histórico. Aqui, a situação parece ser semelhante a que ocorrera com o acontecimento. Não que eles fossem esquecidos, mas o tratamento recebido a partir de então é que mudara. Ambos, a política e o evento, foram incorporados pelas estruturas e pelas conjunturas econômicas, sociais, geográficas e civilizacionais e, com efeito, removidos da centralidade de outrora 15. No que tange ao papel da geografia neste debate, não há como alegar que ela fora despida de conteúdo político, nem tampouco que os historiadores dos Annales apropriaram-se ingenuamente do conhecimento geográfico de então. Afinal, a Escola Francesa de Geografia não era, em absoluto, apolítica, conforme demonstram a apologia ao colonialismo presente nos Annales de Géographie, os trabalhos de Demangeon sobre o Império Britânico, os artigos de Vidal de la Blache sobre a geopolítica e, claro, seu livro La France de l'Est (VIDAL DE LA BLACHE, 1994 [1917]; RIBEIRO, 2010a). Além disso, delimitar uma porção do espaço já é, por si só, uma deliberação política. Decerto, não nos referimos aos termos política/político como sinônimos exclusivos de Estado-Nação, mas, sim, no sentido político de posse, controle, conquista e domínio do espaço. É em torno desta matéria que versará Braudel ao longo de La Méditerranée. Lacoste não chega a dizer, bem ao seu estilo, que o que prevalece neste livro é a análise das mudanças políticas? (LACOSTE, 1989:208 [1988]). Por conta disso, recebeu a crítica de Ruggiero Romano (ROMANO, 1997:88 [1995]).

27Braudel tem perfeita noção do uso do espaço como instrumento político. Como homem de fronteira, sentiu na pele a instabilidade de viver no limite entre a França e a Alemanha. Na prisão, pede a Febvre que o envie o Atlas histórico-geográfico (1894) de Vidal de la Blache. Sua atração por demarcações e limites geopolíticos é mais uma prova de seu empenho em espacializar a história e de sua defesa da geografia. Verificando o fracionamento do território e a imprecisão de suas fronteiras, Renaudet parafraseia a clássica fórmula de Metternich e arremata que a Itália do XVI é uma mera expressão geográfica. Braudel, exaltado, reage:

  • 16 É realmente significativa a perspectiva geográfica avant-garde de Braudel e seu destemor frente à g (...)

“Mas, acaso uma expressão geográfica é tão pouca coisa assim? É o destino de um conjunto histórico, na medida em que é o de um espaço trabalhado e atravessado facilmente pelos mesmos grandes acontecimentos, acontecimentos que têm sido, de certo modo, prisioneiros desse espaço e que tem tropeçado sempre, sem poder franqueá-lo, com o obstáculo de seus limites” 16 (BRAUDEL, 2002:216 [1966]).

28Prática social em sua totalidade, dominar o espaço é, também, um imperativo político. É mister valorizá-lo. Ele pode ser fator determinante na derrota ou na vitória. Como poucos, Braudel soube muito bem reconhecer que determinadas variações no arranjo espacial são sinais de câmbios na alternânacia de poder entre os grupos dominantes. Uma mudança de escala é uma mudança política. E algo mais:

“As cidades não puderam sobreviver intactas à grande crise política dos séculos XV e XVI. Elas têm sofrido os embates da tormenta e não têm outro remédio senão adaptar-se. [Porém], os Estados vitoriosos não podem controlar e assumir toda a responsabilidade: são pesadas máquinas incapazes de levar a termo tantas tarefas humanas e sobrehumanas. O que denominamos economia territorial nas classificações de nossos livros de texto não poderia permitir asfixiar-se pela chamada economia urbana. As cidades continuam sendo as forças-motrizes. Os Estados que incluem estas cidades em seus territórios não têm outro remédio senão chegar a um acordo com elas e tolerá-las. Estes acordos são perfeitamente naturais, considerando que as cidades, inclusive as mais independentes, precisam usar um espaço que pertence aos Estados territoriais” (idem, pp.453-454).

29Braudel trata da relação entre os espaços político e econômico, pois eles estão amalgamados. Tal cisão é forçosamente didática. Na prática, como separá-los? Não é a chegada de metais preciosos advindos do Novo Mundo um fator de grande importância política, implicando de modo contundente no reordenamento de forças entre os Impérios europeus? (BRAUDEL, 1987:36-37 [1966]). É dessa forma, praticando uma investigação alheia às compartimentações estanques, que podemos verificar mais um traço da geohistória: a dimensão econômica do espaço. Tal ponto parece agregar os que o precederam: meio, distância, sítio, situação e rotas conformam uma geografia econômica das mais notáveis já produzidas pelas Ciências Sociais. Distante tanto do exaustivo catálogo de pesos e medidas quanto do oportunismo presente no discurso das potencialidades territoriais das nações — que, juntos, caracterizavam a abordagem econômica em Geografia na segunda metade do XIX como ferramenta ideológica da classe industrial e canal de difusão das doutrinas liberais (cf. RHEIN, 1982:226-234) —, Braudel trilha a rota capitalista na esteira do desvio do Mediterrâneo para o Atlântico como locus econômico privilegiado. Em outra escala, reconhece as novas funções econômicas urbanas, bem como a expansão da atividade industrial frente à hegemonia multissecular da agricultura, delineando, assim, a moderna divisão geográfica do trabalho.

30Das cidades-estado italianas, “antigas economias de dominação urbana” (Gênova, Veneza, Florença e Milão), ao surgimento de uma nova e poderosa configuração espacial, o estado territorial moderno; das alternâncias de hegemonia no decorrer do percurso capitalista à formação dos mercados nacionais e suas fronteiras; da construção das Américas enquanto periferia do sistema-mundo aos traços político-econômicos de Portugal, Espanha, Países Baixos e África (ver também BRAUDEL, 1996 [1979]), Fernand Braudel alia a história econômica de Henri Pirenne, François Simiand, Henri Hauser e Marc Bloch (ver PARIS, 1999) à reconhecida tradição alemã, lançando mão desta última em, pelo menos, duas frentes: (i) ao convocar a teoria locacional de Von Thünen e seu conteúdo acerca da centralidade, hinterlândia e hierarquias quanto ao povoamento, distribuição e funcionamento das redes de atividades econômicas; (ii) ao cunhar o conceito de economia-mundo, com seus centros, periferias e semi-periferias a ocupar funções específicas segundo as regras da divisão do trabalho historicamente projetadas. Ele tem clara noção de que a movimentação da economia depende do espaço e, por conta disto, cria uma geografia econômica com forma e conteúdo específicos (campo-cidade, redes mercantis, Estados monopolistas).

“Temos mostrado os prós e o contras, os fatores que estimualm e ao mesmo tempo restringem a organização econômica de um espaço onde a distância é um obstáculo. Em outras palavras: uma divisão geográfica do trabalho. E esta divisão também existe, perfeitamente visível, no Mediterrâneo considerado como uma unidade total. Esse mundo de sessenta dias de longitude é, grosso modo, uma Weltwirtschaft, uma economia-mundo, um universo em si. Não impera uma ordem estrita e autoritária, mas se insinuam as linhas gerais de um esquema coerente. Toda economia-mundo aceita um centro, uma região decisiva que atua como estímulo às demais e estabelece, por si mesma, a unidade necessária. Atualmente, fica claro que este centro mediterrâneo é, durante os séculos XV e XVI, um pequeno quadrilátero urbano constituído por Veneza, Milão, Gênova e Florença, com seus conflitos e sua rivalidade entre cidades, tudo isso influenciado sempre pela relativa importância alcançada em determinado momento por cada uma delas: pode-se observar o centro de gravidade deslocando-se de Veneza (onde permanece ainda no começo do século) a Gênova, onde se estabelece brilhantemente entre 1550 e 1575” (BRAUDEL, 2002:514 [1966]).

Determinismo geohistórico, geografia francesa e geografia alemã na primeira edição de La Méditerranée (1949): um amplo e complexo debate

31A maioria das citações de Fernand Braudel arroladas até aqui foram retiradas da segunda versão de La Méditerranée, publicada no ano de 1966. Como é possível constatar, mesmo num momento de progressivo refreamento do diálogo entre as ciências em tela, seu conteúdo é pleno de geohistória (BOUTRY, 1998). Entretanto, a primeira edição é mais emblemática, traz mais elementos a respeito. Estamos falando, sobretudo, do debate em torno do determinismo geográfico. Iremos explorar sua primeira parte, começando por este item. Em seguida, retomaremos alguns pontos outrora mencionados.

32Que Braudel considera seriamente o papel do meio sobre as sociedades, isso é indiscutível. Produto de uma época, de um contexto de amadurecimento das Ciências Humanas típico da primeira metade do século XX? Também. Resultado da influência dos geógrafos sobre os annalistes? Sem dúvida. De qualquer forma, para ele não se trata de um “modismo” ou de um ponto de vista que seria abandonado posteriormente: os laços entre a história e o meio geográfico atravessam toda sua obra. Diz respeito a um traço de método, a um caminho analítico.

33Como não levar em consideração a geografia se seu objeto de pesquisas era a história do mar Mediterrâneo? Aqui, o recorte temporal parece fundamental. Afinal, poder-se-ia falar em dominação da natureza no século XVI? Ou seria mais prudente enfatizar uma luta onde ora o homem venceria, ora perderia? É isto o que Braudel resgata: uma parte primordial do processo histórico realiza-se no embate do homem com o meio e, embora isso seja uma constante, não quer dizer que o raciocínio válido para o século XVI possa ser aplicado à Idade Média ou ao século XIX. Sendo um processo, a conexão homem-meio é datada, i.e., histórica por excelência. O próprio Braudel esclarece, na abertura de La part du milieu (não é a primeira página do primeiro capítulo e nem há título. Parece uma advertência, como se estivesse prevendo as críticas!), o que significa admitir o milieu géographique como ator histórico: embora ele aja sobre o homem, o homem age ainda mais sobre ele. E que o leitor não tome seus exemplos como uma lei histórica. Aqui, restituir seu argumento na íntegra nos parece essencial:

“Certamente que as explicações a seguir não querem a tudo elucidar. Elas intervém apenas como um fator parcial da interpretação. O meio geográfico não tolhe os homens sem remissão, posto que, precisamente, toda uma parte de seu esforço (uma grande parte e, talvez, a maior) consistiu, para eles, em se libertar das coerções da ‘Natureza’ — como disseram há tempos, com um respeito misturado à gratidão e ao espanto. A coerção do meio geográfico sobre os homens é cada vez menor. Mas os homens contém seu esforço, mesmo que agindo com brutais e raras intervenções — brutais e mortíferas como tantas revanches. Os capítulos desta primeira parte não propõem explicações geográficas válidas in aeternum, para todos os séculos e todos os estados civilizacionais. Eles visam o estado de coisas do século XVI e, mais precisamente, de sua segunda metade” (BRAUDEL, 1949:4, grifo nosso).

34Trata-se de um intelectual propenso a incorporar alguma espécie de fatalismo à História? Ou, antes, de alguém que reconhece o primado do homem em sua constituição?

35Atentemos para como Braudel analisa o meio. O papel das montanhas na vida mediterrânea é um exemplo interessante. Evidentemente, não é o caso de examinar os componentes físicos das mesmas — destacando sua composição mineralógica, idade geológica ou feições geomorfológicas —, nem tampouco limitar-se à descrição de seu subsolo e de suas riquezas minerais. O esforço é o de estabelecer uma apreciação humana da montanha, isto é, compreender como as sociedades se relacionam com ela em sentido amplo, identificando usos, dificuldades, táticas de adaptação. Por este caminho, ele desvenda que a montanha não é apenas um tipo de relevo, mas reservas de trabalhadores e guarida contra soldados e piratas; refúgio de liberdades, democracias e “repúblicas” camponesas; afastados os montanheses das religiões dominantes do mar (e, também, da língua das planícies), as montanhas tornam-se campo perfeito para a atuação de missionários; habitat de pastores e criadores, suas casas são feitas mais para animais que para pessoas (idem, pp. 9-20).

  • 17 Em uma passagem: “Temos observado a extrema lentidão das oscilações, nômades contra transumantes, m (...)

36Igualmente ricas são as planícies. Zona natural de convergência das águas, habitá-las é adaptar-se a todo instante. Tarefa mais difícil que a luta contra a floresta e os maquis (residindo aí, conforme Braudel, a grande originalidade da história rural mediterrânea), as inundações de inverno são habituais, e a perda da colheita durante um desses desastres obriga o Grão-Duque de Maremme a buscar o trigo em Dantzig — alterando, portanto, tanto o cotidiano quanto a economia locais. Construir barragens e desvios e promover irrigações e drenagens são imperativos para sua colonização, mas nem sempre é possível impedir a estagnação das águas. Dialogando com os geógrafos franceses Max. Sorre, Jules Sion e Maurice Le Lannou, Braudel se depara com o peso das condições naturais sobre a história das sociedades mediterrâneas: no verão, cria-se o ambiente perfeito para a proliferação do paludismo e da malária, “verdadeira enfermidade do meio geográfico” (ibidem, p.54). Entretanto, isso não significa aderir ao argumento de que esta foi uma das causas da decadência do Império Romano. “Tese muito larga e muito categórica” (ibid., p.54), em Braudel não há espaço para a monocausalidade. Dado seu caráter plural, a vida social exige o manejo de uma série de conhecimentos e de uma gama de explicações, bem como o reconhecimento de que nem todos os fenômenos possuem o mesmo ritmo. “A história das vias d’água mostra como a conquista do solo foi lenta. Ela foi feita por etapas, e cada uma delas correspondeu ao envolvimento de novos conjuntos humanos” 17 (ibid., p.62).

37Nas dificuldades colocadas pelo meio, o que dizer, então, do clima? “Unificador das paisagens e dos gêneros de vida” (ibid., p.195), seu notório impacto sobre o vestuário, a agricultura e mesmo no campo simbólico faz dele mais que um fator físico, e sim parte integrante da série de aspectos que compõem as civilizações. Ressaltada sua dimensão cultural, nem por isso as questões políticas e estratégicas que o envolvem são deixadas de lado: a tão conhecida característica do clima mediterrâneo, inverno e verão como duas estações bem definidas, afetará as viagens, a diplomacia e até mesmo a formação de rumores. Vejamos: o inverno não é a estação ideal das viagens — tal como comprova a comparação entre o tempo de duração dos dois períodos —, interditando, assim, a guerra das galés (ibid., p.218). É, portanto, o momento das discussões diplomáticas e das negociações de paz. Mas, também, retomando tema caro a Marc Bloch, de fausses nouvelles (BLOCH, 2006 [1921]), de especulações e de bravatas acerca dos inimigos (BRAUDEL, 1949:217). Porém, chegado o verão, surge a facilidade dos tráficos marítimos, assim como a concretização das batalhas (idem, p.198).

38Eis o que Braudel vincula ao determinismo: a influência do clima sobre as navegações ou, para ser mais preciso, os empecilhos provocados pelo inverno (ibidem, p.214), tais como a diminuição da navegação comercial (ibid., p.302). Ele também o fará ao comentar a travessia do Mediterrâneo e os obstáculos acumulados entre suas duas bacias, afirmando que a separação entre elas não pode ser de todo explicada pelo determinismo, ao mesmo tempo em que não se pode descartá-lo (ibid., p.101). Antes de problematizar este ponto, há uma passagem em que ele ilumina pertinentemente tal noção.

“Diremos, no presente caso, que o determinismo geográfico foi aniquilado? Que o homem, após 1450, triunfou face à natureza, tornando-se mestre do inverno? Triunfo sim, certamente, mas duas observações se impõem: antes de tudo, estamos seguros, como dizem Peter Lane e outros, que seja o mau tempo o único que pára o passeio dos barcos redondos de outrora? Certo; ele conta, e conta muito, dizem todos os documentos. Mas não há também uma qustão de frete, de possibilidade de carga, o que nos traz de volta as estações e ao calendário de colheitas? Segunda observação: o triunfo dos barcos sobre o inverno não é adquirido gratuitamente, uma vitória obtida de uma vez por todas. É uma vitória em que é necessário pagar a cada instante. Um esforço e, portanto, todo um encadeamento: construir os navios, o que supõe ter encontrado e transportado a madeira necessária, armá-los, conduzi-los, administrá-los... De um lado, o obstáculo natural; de outro, o esforço dos homens que o contrabalança, mas o modela sobre ele. O que é o determinismo, o que é a parte do meio, senão frequentemente estas sequências de esforços alinhados que o meio provoca por suas resistências?” (ibid., p.303, grifo nosso).

  • 18 “Mas não devemos tomar decisões cortantes entre o homem e as coisas. [...]. Não devemos aumentar ma (...)

39Portanto, para Braudel, o que é o determinismo? Não é uma noção mecânica e ingênua tal como as que levaram alguns intelectuais do século XIX a sustentar, entre outras afirmações, que a psicologia dos povos estava diretamente ligada ao clima ou que os habitantes dos trópicos eram mais preguiçosos que os das áreas temperadas. Não há nenhum fundo evolucionista a chancelar a superioridade de uma raça ou civilização em detrimento da outra. O “determinismo geográfico braudeliano” não é outra coisa senão a evidência que os aspectos naturais não estão separados e isolados das atividades humanas. Eles fazem parte de um todo onde o clima, o relevo, a hidrografia, o sítio e a posição jogam papel crucial na história das sociedades. Assim sendo, em certas situações e períodos, o meio determina esta ou aquela decisão, esta ou aquela resposta que, segundo as possibilidades técnicas e culturais que as sociedades dispõem, levaram a tomá-las. Segundo Braudel, alimentação, agricultura, produção de mercadorias, vestimentas, crenças, economia, relações internacionais, enfim, o conjunto da vida social é indissociável do meio. Aliás, “meio” não é somente a reunião das feições naturais, mas, sim, uma unidade concomitantemente física e humana. Ao examiná-lo, ele não está à procura das “influências” que o meio exerce sobre a história, tal como as abordagens ingênuas do século XIX e, mesmo, a “introdução geográfica à história” de Febvre e Bloch o fizeram (FEBVRE, 1991 [1922]; BLOCH, 2001 [1949]). Não significa ver os elementos físicos como algo “exterior”, os elementos humanos como “interior” e, a partir de então, procurar as influências que aqueles exerceriam sobre estes. Destacar cidades, ilhas e paisagens tampouco representa erigir uma história sem sujeitos, mas, sim, um recurso que visa restituir a ação humana em sua inteireza. Tem a ver também com sua concepção de História enquanto algo que se repete, se constrói lentamente e com obstáculos estruturais 18. Afinal, o que são as cidades senão a superação de sítios e condições naturais adversos? A agricultura, senão o domínio de certas técnicas e o conhecimento parcial da dinâmica da natureza? A atividade industrial, senão uma sofisticada operação de extração e transformação de recursos? O capitalismo, senão a conquista do espaço pelas redes comerciais de Estados e empresas a ligar todos os cantos do globo?

40Comparando as duas edições de La Méditerranée, percebe-se que a conclusão Géohistoire et déterminisme, referente à primeira parte da primeira edição, foi suprimida da versão de 1966. Portanto, a interrogação natural é: qual a razão desse procedimento, já que sabemos que Braudel defendeu sua abordagem determinista até o fim da vida? (BRAUDEL, 1989c [1986]; RIBEIRO, 2010c). Visto que Braudel jamais esclareceu tal supressão, ensaiemos três hipóteses:

  • o contexto geral que envolve a redação do livro em tela é amplamente permeado pela incorporação da geografia à história, consoante os esforços de Bloch e Febvre e a própria natureza do objeto da pesquisa de Braudel. Assim, nada mais coerente que finalizar La part du milieu de maneira geográfica, demarcando tanto a diferença da geohistória face à geopolítica de matiz alemã quanto admitindo as determinações do meio junto ao processo histórico;

  • em 1966, o historiador loreno já não estava mais na posição subordinada de quem defende uma tese na tradicional Sorbonne. Não estamos mais falando de um outsider que precisa mostrar e defender suas idéias, mas, sim, de alguém plenamente inserido no establishment francês: professor do Collège de France, diretor dos Annales ESC e fundador da Maison des Sciences de l’Homme. Destarte, além sua aproximação com a geografia já ser por demais conhecida, a própria Escola Francesa de Geografia já não estava mais “ameaçada” por Ratzel ou pela geopolitik. Não havia mais motivo para “defendê-la” — tal como revela o conteúdo da conclusão de 1949;

  • o alcance da geohistória na composição de seu pensamento não se resume a ser a conclusão de uma parte dedicada ao papel do meio na história do Mediterrâneo. Digamos que, uma vez suficientemente “autonomizado” perante a dupla herança recebida (refiro-me às diferença entre Braudel diante dos primeiros Annales e da Geografia francesa), Braudel ampliaria e personalizaria, através de triagens e aperfeiçoamentos, o que em 1949 era apenas o início de um projeto. Sua geohistória não poderia ficar vinculada exclusivamente ao meio, posto que sua pretensão situava-se na indissociabilidade entre tempo e espaço, entre Geografia e História, em todos os aspectos da vida social.

  • 19 Que o leitor nos permita recuperar aqui alguns dos argumentos já expostos no artigo Fernand Braudel (...)

41Nesta trilha, nos deparamos com a posição de Pierre Daix 19, para quem nosso investigado teria “renunciado a seu neologismo ‘geohistória’” (DAIX, 1999:278 [1995]). De acordo com ele, isso se deve ao fato de que, na segunda edição de La Méditerranée, Braudel teria conseguido se livrar do determinismo, noção incongruente com a concepção de história que ele mesmo estava tentando afirmar. Como provas, Daix aponta a retirada da conclusão Géohistoire et déterminisme, algumas mudanças na montagem dos capítulos, a posição acadêmica, a maturidade intelectual adquirida e, inclusive, a herança geográfica apropriada e superada pela história. Dividida em quatro páginas e entremeadas por citações do livro em tela, que nos seja permitido recortar a argumentação literal do autor sem, com isso, deixar de expô-la de forma minimamente coerente:

“Conclusão parcial [Géohistoire et déterminisme] que mais uma vez deixava transparecer certo embaraço face à geografia. Conclusão na qual se multiplicavam os exemplos para justificar comparações ousadas entre experiências afastadas no tempo, mas apesar de tudo conclusão então inovadora (...). Mas se Braudel tratava então, e com razão, de expulsar este excesso de determinismo pela porta da história, a geografia e mesmo a sua ‘geohistória’ traziam-no de volta pela janela. Ei-lo então acuado a recorrer a nuances que debilitam seu projeto e no fim das contas o diminuem, chegando acaso a pôr em risco esta emancipação da história face à geografia (...) [Não obstante, o] profundo trabalho empreendido por Braudel na segunda edição a respeito das ‘crises políticas urbanas’ mostra como ele se saiu desse debate, que já não pertence à sua ‘nova história’. Sua decisão foi tomada em favor da importância das escolhas, das tentativas dos homens face às possibilidades da geografia. (...) Em vista do próprio movimento de conjunto do livro, foi a história que tomou a frente da herança da geografia por demais estática que Braudel recebeu na época de sua formação. (...) As modificações operadas na segunda parte, ‘Destinos coletivos e movimentos de conjunto’, não são da mesma ordem que as da primeira, pois Braudel já liberara esta parte da ganga geográfica e da história factual ao mesmo tempo” (idem, pp. 276-279, grifo nosso).

42A admiração pela pesquisa de Daix como fonte de consulta plena de informações e detalhes importantes, por abranger os três grandes livros e por cobrir a história intelectual da França durante o século XX, não nos interdita o exercício da crítica. Assim sendo, poder-se-ia identificar quatro itens de sua fala a serem questionados:

43- a géohistoire não é sinônimo de determinismo. Uma breve leitura de La Méditerranée é suficiente para perceber que a dimensão geográfica que emana da análise social, econômica e política está longe de ser monopolizada por uma abordagem determinista;

44- como temos visto, Braudel não rejeita o determinismo e a “ganga geográfica”, pois, ao homem, as possibilidades não são ilimitadas — postura em total sintonia com sua concepção estrutural de história;

45- sugerir uma “nova história” ao comparar as duas edições do livro acima mencionado contraria a trajetória intelectual de seu autor, onde as inovações e os aperfeiçoamentos andam ao lado de uma profunda coerência teórico-metodológica;

  • 20 “Digamos, para sermos diretos, que a geografia — para quem tinha, como ele, o espírito aberto e ao (...)

46- seria questionável, porém plausível, sustentar que a geografia era estática quando do período de formação de Bloch e Febvre, mas não é este o caso de Braudel, cujo tradicionalismo de sua graduação em história na Sorbonne contrastava exatamente com a riqueza da geografia de então (BRAUDEL, 1992 [1972], 1997 [1941-1944]), algo admitido com eloquência pelo próprio Daix 20.

47Entretanto, mais que nossos argumentos, passemos a palavra a Braudel, cuja definição sobre a géohistoire em 1949 mostra precisamente o oposto dos desfechos de Daix:

“pretendemos designar algo diferente do que está implicado na geopolítica, algo mais histórico e ao mesmo tempo mais amplo, que não seja simplesmente a aplicação, à situação presente e futura dos Estados, de uma história espacial esquematizada e, o mais das vezes, previamente direcionada num determinado sentido [...]. Obrigar a geografia a repensar, com seus métodos, seu espírito, as realidades passadas e, por isto mesmo, aquilo que poderíamos denominar os devires da história” (BRAUDEL, 1949:295, grifo nosso).

48Tomando o conceito de geopolitik como base de crítica para engendar a geohistória, o sucessor dos primeiros Annales possui, pelo menos, três pretensões: (a) dotar o neologismo de densidade histórica, capacitando-o a explorar as dimensões da longa duração (“algo mais histórico”, “as realidades passadas”); (b) fugir de qualquer tipo de dogmatismo (político, estatal ou determinista-mecanicista) e esquematismo (a introdução geográfica à história, por exemplo), liberando seu uso aos mais diversos campos da vida social (sem estar “previamente direcionado num determinado sentido”); (c) associar o passado mais longínquo ao presente e ao futuro (“os devires da história”).

49Voltemos a Daix: se levarmos ao pé da letra sua afirmação — “Compreende-se assim que Braudel tenha renunciado a seu neologismo ‘geohistória’” (DAIX, 1999:278 [1995]) —, é até possível concedê-lo razão, já que o uso da expressão parece realmente desaparecer após 1949. Todavia, é preciso destacar que a démarche braudeliana é parte integrante de um processo geral de estruturação epistemológica das Ciências do Homem cuja edificação deu-se através da desconfiança face aos modelos iluministas de conhecimento (RIBEIRO, 2010:137). Esse é um ponto essencial: por mais que Braudel tenha elaborado uma concepção de História — e isso comporta, pelo menos, dois vetores: o esforço em definir um campo de delimitação e uma metodologia para a consecução do ofício do historiador e uma interpretação original do processo histórico —, nem por isso podemos asseverar que ele se pôs a trabalhar rigorosamente à base de conceitos e categorias analíticas.

50Além disso, e, sobretudo, não há abandono da geohistória simplesmente por que, no limite, isso significaria renunciar à própria idéia de história tal como Braudel a imaginava e a praticava. Mais que um recurso, um “operador” ou um diálogo com a Geografia, a géohistoire é a própria história. Se em 1949 ela surgia como um neologismo ― a rigor, o correto seria falar em um período anterior à La Méditerranée, quando do artigo Géohistoire: la société, l'espace, le temps (BRAUDEL, 1997 [1941-1944]; RIBEIRO, 2012) ―, na década de sessenta tal conceito já estava plenamente integrado à escrita histórica de seu criador, cuja obra é globalmente atravessada por raciocínios espaciais. Estes não vêm do exterior, mas são um traço constituinte de sua visão de mundo. E se a segunda edição de La Méditerranée acusa alguma transformação em torno deste ponto, esta mudança não deixa de estar relacionada aos desenvolvimentos conceituais ocorridos no interior do próprio pensamento geográfico.

51O que estamos querendo dizer, sugerindo uma alternativa à posição de Daix, é que a geohistória foi “substituída” pela noção de espaço. A geohistória tinha como propósito maior a incorporação do meio à história, seja por intermédio das lições de Vidal de la Blache sobre os gêneros de vida, seja pela diversidade empírica aportada pelas monografias regionais. Assim como Bloch e Febvre, Braudel não se apropriará das contribuições urbanas, econômicas e geopolíticas engendradas pela Escola Francesa de Geografia; tais temas acabariam por fazer parte do legado geográfico alemão e seus conceitos Raum (espaço), Wirtschaft (economia) e Gesellschaft (sociedade). Corrigindo alguns desvios de ambas as tradições, tais como um certo fisicalismo em alguns representantes da primeira e a fixação estatal da segunda, sua proposta diz respeito a uma geografia humana inteligente que desenvolva os problemas humanos no espaço, mas não apenas no presente e de acordo com fronteiras meramente administrativas, mas à luz do processo histórico. Em resumo, uma verdadeira geografia humana retrospectiva (BRAUDEL, 1997 [1941-1944]). Assim sendo, ele dialogará com tais vertentes durante toda sua obra, ora inclinando-se para uma, ora para outra. Assim, O Meio, Gramática das Civilizações, As estruturas do cotidiano : o possível e o impossível e as três partes d’A identidade da França (BRAUDEL, 1949, 2004 [1963], 1996 [1967], 1989 [1986], 1989a [1986], 1989b [1986])aproximam-se mais do pensamento geográfico francês, enquanto Destinos coletivos e movimentos de conjunto (segundo tomo de La Méditerranée), Os jogos das trocas e O tempo do mundo (livros II e III de Civilização Material) (BRAUDEL, 1949, 1996 [1979], 1996a [1979]) inspiram-se mais na herança espacial alemã.

52De modo amplo, tudo indica que o termo “espaço” tem a função de unificar esses dois lados — lados que Braudel, mesmo quando censurou a geopolítica, não percebia como absolutamente opostos. Por fim, será que poderíamos aventar que a substituição do conceito de géohistoire pelo vocábulo espaço não estaria ligada a uma tentativa de ir além da junção de duas disciplinas, mas, sim, captar as dimensões espaço-temporais da vida social?

53Qual intelectual levou a associação geografia-história tão a sério? E o que nos surpreende não é só o uso da geohistória de maneira bastante inovadora, mas o fato de que Braudel reteve os principais debates promovidos pelos geógrafos da época, vinculou-os aos problemas epistemológicos da história e da geografia e abriu uma série de pistas para pensarmos a difícil articulação tempo-espaço. Todavia, alguém poderá dizer: “Mas Febvre já havia feito um esforço de interpretação teórica sobre os vínculos entre a geografia e a história”. Não concordamos com tal leitura, pois, além de Febvre e Bloch não terem desenvolvido as questões espaciais de maneira consistente — ambos seguiram outros caminhos que os desviaram de suas preocupações com o espaço (DEVOTO, 1992:81) —, La Terre et l’évolution humaine é um livro abertamente anti-germânico, simplificador tanto do pensamento de Ratzel quanto do de Vidal de la Blache (RIBEIRO, 2009). Seu objetivo primordial é combater a geopolítica e o “determinismo” alemães e recomendar aos historiadores uma “geografia humana modesta” (FEBVRE, 1991:53 [1922]).

  • 21 Para maiores informações sobre as referências geográficas de La Méditerranée, vide o levantamento r (...)

54É fato que há pontos em comum entre Braudel e Febvre: aquele fará críticas ao fatalismo de Ratzel e à visão estreita da geopolítica alemã, bem como louvará Michelet como pioneiro do estudo das relações homem-meio — além de elogiar La Terre, embora não o mencione em La Méditerranée. Mas não há como comparar, entre outras coisas, a riqueza da dupla filiação contida em La Méditerranée. Nele, o diálogo de Braudel não se resume ao nome de Vidal de La Blache, mas engloba a leitura dos Annales de Géographie, de algumas teses regionais e a referência a Émile-Félix Gautier, Albert Demangeon, Andre Siegfried, Jules Sion, Pierre Deffontaines, Jean Brunhes, Emmanuel de Martonne, Max. Sorre, Raoul Blanchard, Maurice Le Lannou, Xavier De Planhol, Pierre Monbeig, Pierre Gourou e Pierre George (estes quatro últimos publicariam vários trabalhos nos Annales dos anos 60, quando Braudel era o diretor do periódico). Quantos aos geógrafos alemães (que também são um pouco historiadores), são mencionados Philippson, Hettner, Ratzel, Fischer, Günther, Goetz, Sternberger, Gehler, Fritsche, Carus, Okel, Hummel, Sievert e Wenzel, bem como a prestigiada revista alemã Geographische Zeitschrift. Sem esquecer o geógrafo sérvio Jovan Cvijic, citado amiúde 21.

  • 22 De Réclus a Vidal, passando por Brunhes, Sion, Dion, Deffontaines, Sorre, De Planhol, Le Lannou, Ga (...)
  • 23 Ele continuaria a pensar assim até seu último livro, A identidade da França: “A geografia é uma ope (...)
  • 24 Seguindo os exemplos de Bloch e Febvre, Braudel também discutirá com os geógrafos o problema das de (...)

55Enfim, devemos grifar que os aspectos geográficos referentes à relação homem-meio não possuem somente um papel empírico, descritivo, prático. É bem verdade que tal papel não deve, de forma alguma, ser descartado, seja porque representa um avanço no diálogo entre as disciplinas em tela22, seja porque o estatuto epistemológico das Ciências Humanas na primeira metade do século XX desconfiava da Filosofia e, portanto, conferia novos sentidos e status à questão teórica. Todavia, ao analisarmos de perto os fundamentos da história annaliste e o modo como Braudel a explora em La Méditerranée, nota-se que a geografia é uma forma de representação do concreto, do palpável; um saber objetivo 23. Das montanhas, planícies, distâncias, climas e mares não se pode escapar. Ela coloca o cientista humano com os “pés no chão”, servindo mesmo como um antídoto contra as teorizações inócuas e os problemas de cunho metafísico. Ela não é inquestionável, obviamente 24. Mas é incontornável no sentido de que não se pode falar de história dos homens sem destacar sua associação com o meio. As paisagens mediterrâneas remontam não a um passado imaginado ou romantizado, mas a uma história plena de concreticidade e daquilo que é visível. O Mediterrâneo e sua geografia mostram a Braudel que a história é algo presente, vivo e observável por intermédio da cultura de seus povos e seu enraizamento espacial, do peso da agricultura e seu vínculo com a terra, da solidez do ambiente, do elemento simbólico jogado pelo pão, azeite e vinho... A geografia é uma ferramenta analítica importante contra o fetiche documental da história e contra uma concepção fechada do passado. Afinal, as paisagens se modificam, mas conservam seus traços estruturais. Representam a história in situ, ao ar livre. Mais que imagens, são discursos latentes prontos a serem decodificados.

56Problematizaremos agora como Braudel trabalhou a influência alemã em sua geohistória. Vimos que sua reação frente à geopolítica não foi a mesma de Febvre. E não podia sê-lo por uma única e simples razão: embora concorde com ele quanto ao tom militarista e estatal da Geopolitik, bem como com o fato de que a história é mais difícil, ampla e complexa que a geografia, Braudel não aprova a “geografia humana modesta” ditada por aquele (FEBVRE, 1991: 68 [1922]). Afinal, o Mediterrâneo testemunhara lições geográficas mais complexas: domínio estratégico, locus de tensão em virtude de interesses econômicos distintos e das civilizações e culturas díspares que por ele se ligavam e se chocavam. Em torno dele, piratas atacavam; lutava-se por recursos naturais; era mister ter o controle das rotas comerciais; conhecer o fluxo de mercadorias. Se Braudel mostra interesse pelos critérios quantitativos da economia mediterrânea (as toneladas transportadas pelas embarcações, as trocas e os investimentos), isso não significa nem a adoção de um economicismo nem, tampouco, uma negligência para com a materialidade da atividade econômica e sua dinâmica espacial. Ele nos apresenta o florescimento das cidades e seus vínculos de abastecimento junto ao campo; as modificações urbanas a fim de erigir locais habitáveis; as redes comerciais atravessando distâncias e obstáculos naturais; a expansão das trocas criando uma interdependência espacial; a ultrapassagem da escala local como escala privilegiada de realização da vida cotidiana. Se o embate com a natureza é algo que atravessa séculos, o desenvolvimento de técnicas agrícolas, industriais e de engenharia acaba por criar um meio cada vez mais material. Assim, as aldeias transformam-se e são incorporadas pelas cidades, que atraem mão-de-obra e conhecem um sensível crescimento demográfico.

  • 25 Exatamente em 1950, sentindo falta de pesquisas que associassem espaço e economia, Braudel desafiav (...)

57Portanto, Braudel expõe o valor lato sensu do espaço, manifestado através da proximidade de áreas madeireiras para a fabricação de navios, da abertura de rotas terrestres, da exploração de recursos coloniais. Ressentindo-se de uma discussão mais política, estratégica, material e mesmo urbana acerca do espaço, a tradição alemã complementará o aporte da tradição francesa, já que nesta a Geografia Econômica permaneceria deslocada até pelo menos o início dos anos cinquenta 25 (CLAVAL, 1998:192). É claro que não podemos deixar de lado os importantes trabalhos de Demangeon nesse domínio e, tampouco, o Vidal de la Blache de textos como Évolution de la population en Alsace-Lorraine et dans les départements limitrophes, La rénovation de la vie régionale e La frontière de la Sarre, d’après les traités de 1814 et de 1815 (VIDAL DE LA BLACHE, 1916, 1917, 1919). Mas, assim como Febvre, Braudel também retém os ensinamentos dos geógrafos franceses conforme o esquema homem-meio. Logo, não é mera coincidência que os livros mais mencionados de Vidal sejam o Tableau e, em seguida, o póstumo Principes de Géographie Humaine (VIDAL DE LA BLACHE, 2007 [1903], 1954 [1921], respectivamente) .

58Inspirado pela fortuna analítica dos já citados conceitos germânicos Raum (espaço), Wirtschaft (economia) e Gesellschaft (sociedade), o Mediterrâneo de Braudel não é outra coisa senão um espaço-movimento, uma economia-mundo a atrair pessoas, mercadorias e dinheiro. A intensidade do comércio marítimo fertilizaria as cidades em seu entorno, cidades estas que, ao se tornarem epicentros políticos, econômicos, sociais e culturais, arrastariam consigo a dinâmica como um todo. Elas são fluxos: sua vida depende deles, e não mais, como outrora, de câmbios esporádicos com outros espaços. Criam-se redes de transporte, comunicação, infraestrutura. Da hegemonia inicial das cidades-Estado aos poderosos Estados territoriais, a expansão é, simultaneamente, aproximação de lugares, diminuição de distâncias, controle de populações e do uso do espaço. Bloqueá-lo ou romper seus fluxos representa um impacto em toda a vida social. Em uma emblemática passagem:

“As cidades morrem ou sofrem quando afetadas em suas relações circulares. Assim Florença em 1528: suas ligações em direção ao Sul foram cortadas pelo saque de Roma. Em 1527, a cidade perde, assim, cada semana, os 8000 ducados que sua clientela romana lhe assegurava, e também os 3000 das compras de Nápoli. Desastre também do lado do Norte, onde todos os caminhos são cortados em direção à França (por causa de Gênova) e em direção à Alemanha (por causa de Veneza). De um golpe, Florença se vê obrigada a diminuir a fabricação de seus ‘panni garbi, o fini, o d’oro’ e ter que recorrer a rotas desviadas e inabituais de contrabando para continuar a viver e exportar pelo mar em direção à França e Lyon, e por Asola, Mantoue e mesmo Trieste, em direção à Alemanha. É a superioridade de estados territoriais ricos de espaços de poder que, a seu grado, bloqueiam ou afetam as relações entre as cidades e comprometem, à distância, o equilíbrio sempre complicado destas vias. Gênova acusa a França de ajudar os corsos revoltados, mas (...), provocada por estas acusações, se a França quer prejudicar Gênova, ela tem necessidade destes atos indiretos? Bastar-lhe-ia, tranquilamente, interditar o uso de sedas e outras mercadorias genovesas e de proibir aos provençais de comerciar com Gênova e toda sua costa, que eles abasteciam de trigo e vinho. Em 1575, quando dos distúbios de Gênova, uma das primeiras preocupações da Espanha, temerosa do pior, foi cerrar àquela cidade o graneiro siciliano” (BRAUDEL, 1949:260-261, grifo nosso).

59Deste modo, constata-se que as políticas entre os Estados não ocorrem exclusivamente por intermédio de negociações e de acordos, mas que a forma de atuação dessas instituições consiste justamente em encarar o espaço como se fora um tabuleiro de xadrez, onde cada movimento de peças é um ato a ser elaborado e pensado, visto que suas consequências podem indicar ou a derrota ou a vitória. Admitir o espaço como objeto histórico significa compreender com mais clareza a dinâmica das civilizações, das grandes cidades e dos Impérios. Não quer dizer, em nenhuma hipótese, qualquer tipo de determinismo, mas sim um meio a mais no qual é possível captar o processo histórico. Comentando a diversidade e a oposição mediterrânea entre as margens ocidental e oriental, Braudel grifa exatamente essa dimensão estratégica do espaço. Nesse sentido, o uso de expressões como “aliança”, “carta geopolítica”, “imperialismo”, “dominação”, “linha defensiva” e “ameaçada” não faz outra coisa senão desvendar os liames existentes entre o mar, a geografia e a política:

“Os conjuntos ocidental e oriental se comunicam e estão ligados um ao outro, mas tendem sempre a se organizar em circuitos fechados. Ou, se se prefere, a despeito das misturas, alianças e interdependências, eles vivem, antes de tudo, sobre si mesmos. O fato, no século XVI, é sublinhado pela política com uma clareza talvez muito viva, mas em todo caso útil. Que bela carta geopolítica poderíamos desenhar, com flechas, da bacia ocidental, entre meados do XV e do XVI, mostrando as novas e antigas direções do imperialismo hispânico, as posições que adquiriram e exploraram para apoderar-se do mar ocidental! Pois eles se apoderaram. E, a partir de 1559, com a desmobilização da frota francesa e o relaxamento das ligações políticas entre o Rei Cristianíssimo e o Sultão, o mar ocidental tornou-se, sem contestação, o mar hispânico. O muçulmano tinha apenas um lado e, por certo, não era o melhor: o da África do Norte. E não o tinha senão por seus corsários, e sua dominação, brecada pela linha defensiva dos presídios espanhóis, estava constantemente ameaçada por dentro e por fora” (idem, p.103, grifo nosso).

60Examinando uma fase em que as pujantes cidades-Estado vão perdendo poder para os Estados Nacionais, a circulação assume destaque e mostra que o espaço geográfico não é uma coisa fixa e inerte, mas algo no qual se joga, se dispõe, se mobiliza. O processo histórico caminha lado a lado da complexificação das estruturas espaciais ou, dito de outra forma, fenômenos como a expansão da mancha urbana, as ramificações de seu tecido, a integração de lugares outrora isolados e a construção de uma infraestrutura física transformam a paisagem e o cotidiano das sociedades do século XVI. Locus econômico por excelência, o Mediterrâneo revelaria toda sua grandeza através de suas cidades e rotas. Se seu passado se conservava (e também se renovava, evidentemente) nas práticas camponesas multisseculares dadas pela relação com a terra, seu futuro era desenhado através dos acontecimentos ocorridos nas cidades mais importantes. Mesmo com a emergência dos Estados, aquelas continuariam a manter parte do poder econômico e da influência política. Seus fixos e fluxos são a própria vida do mar.

“No Mediterrâneo, a unidade humana é, simultaneamente, o espaço das estradas e o espaço urbano, estas linhas e estes centros de força. Cidades e rotas são um único e mesmo aspecto do equipamento humano do espaço. Qualquer que seja a forma, arquitetura ou civilização que a ilumine, a cidade do Mediterrâneo é filha do espaço e, ao mesmo tempo, criadora e criatura de rotas. Vidal de la Blache o disse a propósito da cidade americana, mas o espaço mediterrâneo no século XVI (e, em se tratando das cidades, é necessário tomar o máximo de sua extensão) é, também, imensidão e exagero. No século XVI, nenhuma região do mundo oferece tão pujante equipamento urbano. Paris e Londres não estão ainda que no início da modernidade” (ibidem, p.239, grifo nosso).

61Aqui, dois aspectos devem ser destacados: primeiro, falar das rotas e da circulação de forma geral não significa, em nenhuma hipótese, um outro tipo de determinismo, mais sofisticado que o determinismo naturalista. O próprio Braudel faz questão de esclarecer isso, conferindo ao humano o primado da explicação de todas as coisas.

“Não; sem dúvida, a estrada, excelente introdução até o coração das cidades, não explica toda sua vida complicada. Ela a esquematiza em excesso. De fato, as cidades dependem de outros fatores: das vicissitudes da economia, das civilizações que a esclarecem, de circunstâncias. As cidades estão expostas a todos os acasos da história. Aliás, se a estrada cria a cidade, a seu turno a cidade cria a estrada e a organiza. Em Nápoli e em Palermo, no século XVI, ruas são prolongadas para além da cidade em longos passeios acessíveis às carroças citadinas, atração de estradas modernas. Mesmo Spalato (Veneza) organiza o lançamento (senão a criação, no final do século) da longa estrada terrestre que vai uni-la a Constantinopla. Além de que, pode-se imaginar a vida das estradas e sua manutenção fora do capitalismo operando nas cidades? Cidades e rotas, repitamos, são os aspectos de uma mesma realidade, deste equipamento humano do espaço mediterrâneo. Como em outros lugares, mas mais ainda no Mediterrâneo, pois a circulação permanece o grande problema, o problema dominante ” (ibid., p.268, grifo nosso).

62Segundo, sua percepção das dimensões do Mediterrâneo de acordo com as condições de transporte do século XVI enquanto algo grande e difícil de transpor indica claramente que, para ele, a escala é algo social e não uma referência matemática; não é uma grandeza física, mas uma “medida” que varia historicamente. Assim, por conta das velocidades alcançadas e da própria materialização do mundo como escala das ações humanas, o que era grande no início dos tempos modernos tornar-se-ia pequeno segundo os padrões do século XX (ibid., p.99). Destarte, no âmbito das Ciências Humanas, Braudel expõe, como já mencionamos, sua posição vanguardista ao ultrapassar a concepção cartesiana-newtoniana de espaço, mostrando-se não apenas à frente de seus pares mas, mesmo, de alguns geógrafos posteriores a ele (referimo-nos à corrente neopositivista dos anos cinquenta).

Conclusão

63Ao conferir ao meio o status de personagem e objeto históricos, Fernand Braudel ressignificou e aprofundou o enlace com a ciência geográfica herdado de Marc Bloch e Lucien Febvre. Se La Méditerranée é um marco na historiografia do século XX graças à sua inovação temporal, tal novidade não pode ser dissociada do que a geografia representou para a escrita histórica braudeliana: um saber crucial na apreensão dos fenômenos de longa duração.

64No presente artigo, quisemos mostrar um pouco da complexidade de autores, idéias e conceitos que contribuíram para que Braudel engendrasse o conceito de geohistória, bem como as múltiplas apropriações deste último no edifício constitutivo de La Méditerranée.

65Ao nosso ver, a geografia produzida na segunda metade do século XX assumiu um rumo perigoso, posto que deixou de ver a si mesma enquanto uma ciência processual e histórica. O presente torna-se uma obsessão. A formação e o método geográficos se empobrecem.

66Dito isto, recuperar La Méditerranée e chamar a atenção para a reflexão braudeliana é, em termos particulares, sublinhar a importância da geografia na obra de um dos maiores intelectuais da era contemporânea, bem como tentar escrever um capítulo da história do pensamento geográfico a partir dele. Em termos gerais, representa nossa consciência de que a historicidade da vida social é indispensável na compreensão de toda e qualquer geografia.

Qual é a importância do tempo e do espaço para a história?

Para o mundo educativo, e o ensino de história em particular, também se faz necessário perceber e entender a importância do tempo. O tempo representa, assim como o espaço, um aspecto essencial para a construção e compreensão do processo histórico, tanto no seu aspecto social quanto individual.

Qual é a relação do tempo com a história?

A relação entre o Tempo e a História é tema inesgotável, com questões, problemas e propostas analíticas, campo de conflito insolúvel entre filósofos e historiadores, que pode ser explorada sob múltiplos aspectos, cada uma delas aparentemente encerrada em si mesma, e na prática inter-relacionada com todas as outras (1).

Quais são os três conceitos que são fundamentais para o ensino de história?

Antes de iniciarmos o estudo dos acontecimentos históricos mais cobrados nos vestibulares, temos que nos familiarizar com os conceitos básicos do estudo da História. Dentre eles, estão os conceitos de cultura, sociedade, economia e política.

Por que é importante aprender e ensinar sobre o tempo histórico?

Além disso, o tempo histórico permite conhecer o processo pelo qual passou ou passa a realidade em estudo, pois a história não está presa ao tempo cronológico, está sempre em constantes mudanças. Se hoje vivemos alguns fatos, amanhã outros indivíduos poderão vivenciá- los de formas diferentes.