Quem vivia nas terras que os vaqueiros começaram a ocupar por que houve?

Para Benjamin Rocha e Zeca Figueiredo, em suas gl�rias.

Pecu�rias

O car�ter extrativo, latifundi�rio e predador da cria��o de gado fez com que soci�logos, economistas, ge�grafos e historiadores transmitissem � posteridade uma imagem muito negativa da atividade. Num estudo cl�ssico, Valverde afirma que a pecu�ria trouxe ralos efeitos sobre o meio circundante, porque moldou-se a ele; foi ocupa��o de pouco trabalho e escassas exig�ncias t�cnicas. Caio Prado Jr. faz mais ou menos os mesmos coment�rios sobre o assunto, comparando a amplitude da �rea ocupada pelo gado com o baixo emprego gerado e a miser�vel produtividade.[1]

Da� veio a interpreta��o da pecu�ria bovina  como pouco mais que uma praga dos campos brasileiros, pois quando n�o est� se movendo tocada por inc�ndios ateados pelos fazendeiros e pela fome dos bois, est� afrontando posseiros e sitiantes, tomando terras para garantir seu exclusivo dom�nio. Em geral os autores destacam, tamb�m, as poucas contribui��es da cria��o de gado: serviu para interiorizar o povoamento, produziu alguns magros surtos de riqueza, construiu uma sociedade mais m�vel que a plantation cl�ssica.

Estas considera��es n�o deixam de ser parcialmente verdadeiras. Elas se esquecem, por�m, de alguns outros aspectos, pois, afinal de contas, pecu�ria teve tanto de ajustado ao meio quanto as lavouras de coivara ou tocos; foi um sistema de produ��o bem adaptado. Al�m disso, a pecu�ria criou rela��es sociais e comerciais muito pr�prias, que ficaram historicamente ofuscadas pela exuber�ncia da plantation.Estudar a organiza��o da produ��o e do trabalho na cria��o de gado revela muito dos mitos rurais e da sua din�mica.

Certo, mesmo, � que a pecu�ria exigiu muito trabalho: nem sempre s�o corretas as associa��es entre cria��o e �cio, pecu�ria e fazendeiro absente�sta, gado e estagna��o t�cnica. Apesar de o servi�o direto n�o recair sobre o fazendeiro, cabia ao vaqueiro campear por vastas extens�es, dominar muitas t�cnicas enfrentando uma natureza hostil e incerta. Por isso, nas regi�es de pecu�ria seu of�cio deu a base para criar muitas lendas.

Este estudo analisa a pecu�ria de �soltas� estabelecida no Nordeste de Minas Gerais, nos vales do Mucuri e Jequitinhonha, desde o s�culo XIX. Procura estudar, primeiro, o of�cio do vaqueiro e seu processo de trabalho. Mostra que, numa situa��o onde era imposs�vel o controle do trabalho, somente a valoriza��o cultural, a domesticidade e a subordina��o pessoal do trabalhador ao fazendeiro poderiam garantir uma gest�o eficiente do sistema de produ��o.[2] Depois, procura compreender a pecu�ria na sua rela��o com o ambiente. Revela que esta atividade n�o era est�tica, pelo contr�rio: incorporou �s suas pr�prias custas e riscos muitas inova��es t�cnicas, que vieram, afinal, fazer sua fama e algumas fortunas. O com�rcio de gado � estudado em seguida, analisando-se as caracter�sticas mercantis e n�o-mercantis da fazenda. Nota-se a� a ambig�idade de fazenda e fazendeiro, este um h�bil manipulador de s�mbolos do poder e dos recursos que produzem a riqueza. Por �ltimo o estudo analisa os comerciantes de gado e a complexa arquitetura do sistema de trocas que montaram. De novo, aqui, emerge um personagem t�o amb�guo quanto o fazendeiro, produzido por encontro de novidade e tradi��o, paternalismo e trabalho, domesticidade e com�rcio, que foi, afinal, a velha fazenda de gado.

Vaqueiros e bois

No Nordeste de Minas Gerais, at� meados do s�culo XX, fazenda era um mundo: dezenas, �s vezes centenas, de moradores agregados,[3] produ��o variada de mantimentos, pastagens que n�o respeitavam limites. O gado nas fazendas exigia um acompanhamento regular, embora inconstante. Solto nos pastos, ficava desacostumado �s pessoas, bravo e arisco; era preciso vigi�-lo, e os vaqueiros faziam isto todos os dias, apesar de n�o acompanharem as mesmas reses. Vigiavam �reas, retiros, pastos, mangas, grotas ou currais �os nomes variavam� onde costumavam ficar certos grupos de gado. Este servi�o exigia a viagem at� o pasto, �s vezes viagens de l�guas, e constantemente alguma r�s carecia de trato, aparta��o ou medica��o. Mas o gado pastava longe �na solta, alongado, dizia-se� e de tempo em tempo era preciso junt�-lo para aparta��o, castra��o, ferra ou venda; ent�o demandava meses, �s vezes, de rotina perigosa. Foram esses campeios que fizeram da sorte do vaqueiro a mais famosa de todas as ocupa��es do campo.

Com a vida aventurosa e coragem posta todo dia � prova os vaqueiros deram assunto para uma cr�nica que separou a sua das outras atividades rurais; fizeram seu prest�gio as lidas com bois curraleiros dentro de macegas e capoeiras. Quando suas aventuras s�o comparadas �s dos agregados �que moravam e faziam suas ro�as na fazenda, que levavam a vida na regularidade farta das lavouras e � dist�ncia da casa de sede� pode-se entender porque ocuparam posi��o �mpar nas fazendas, hist�rias, lembran�as e cultura.

Ent�o, embora a fazenda de gado seja parte menor da historiografia do campo brasileiro, a lenda do vaqueiro se esparrama pelo imagin�rio deste rural. Visto na mem�ria do fazendeiro, na lembran�a do agregado, nos casos contados nas antigas zonas de pecu�ria, o vaqueiro se agiganta, transforma-se no maior dos personagens. Ele se iguala em express�o � fazenda de gado porque � seu s�mbolo; marca est�rias e produ��o cultural.

Na festa do Boi-Duro, que acontece todo janeiro no Salto da Divisa durante a semana de S�o Sebasti�o, o ponto alto do espet�culo � o desfile de um cortejo formado pelo Pai da Mata, Maria Manteiga, Mulinha de Ouro, Loba e Ca�ador, pela banda de tambores e p�fanos, pelo Boi-Duro e, naturalmente, pelo Vaqueiro. Todos vestidos a car�ter, dan�am e cantam a est�ria do boi: O nosso Boi-Duro / vamos vadiar / a nossa brincadeira / at� o sol raiar (...) / Eu queria ser vaqueiro, / de vaqueiro boiador, / pra vim aboiar meu gado, / na casa do meu amor.

Numa altura que o grupo j� est� acompanhado por p�blico bastante para uma representa��o, o Ca�ador pergunta aos donos de uma casa se querem a festa do Boi-Duro. Se autorizado, come�a: ao som da banda os personagens brigam entre si e com a plat�ia; o Ca�ador enfrenta a Loba, Maria Manteiga �homem disfar�ado de mulher escandalosa� agarra algum da plat�ia para sua dan�a indecente, o Pai da Mata ataca o Ca�ador, o Boi-Duro d� a testa ao Vaqueiro, at� ser morto por este no ferr�o. A� come�a a parti��o do boi, com cantoria puxada pelo Vaqueiro, respondida em coro pelo cortejo, dividindo as partes conforme mere�a maior ou menor considera��o cada um dos cidad�os, presentes ou ausentes: a �tripa fina� vai para �as menina�, a �tripa grossa� para �as mulher da ro�a�, o �fi' da costela� vai para �Dona Bela�. Sempre, o coro pontuando: �Boi iai�, boi que d�. / �-�-�-�-�-�, / O seu Tenente, / mandou me chamar.

V�o assim cantando o Vaqueiro e seu coro, revisando a sociedade do Salto, passando a limpo suas diferen�as, exaltando os amigos,  criticando uns e outros.

A festa do Boi-Duro � uma tradi��o reconstru�da a duras penas: quase todos que a fazem j� sa�ram h� tempos do Salto, s�o migrantes, e retornam de empregos urbanos para a semana de folia.[4] Ela pode, sem d�vida, ser entendida como uma representa��o daquela sociedade, um acerto das contas entre o cortejo e a comunidade que aplaude ou vaia a parti��o que est� sendo feita. A festa tamb�m pode ser entendida como um momento de invers�o dos lugares ocupados pelas pessoas nessa sociedade. Quem � oprimido ou marginalizado, nos dias de festa se torna o her�i, principal personagem; h� valoriza��o simb�lica do que no cotidiano � subordinado. Ela pode ser analisada de muitos modos, � claro; mas � poss�vel entend�-la como homenagem que os pobres do Salto �sitiantes, ex-agregados, aposentados, os rec�m-urbanizados� prestam ao Vaqueiro e ao Boi: o Vaqueiro-Her�i que puxa o cortejo enfrenta um Boi bravo e o derrota, distribui as partes do vencido a seu crit�rio e fica �uma vez por ano e simbolicamente� dono nas ruas do Salto de um espet�culo que foi seu nas mangas de pasto, onde sempre foi o rei.

Como o Salto, toda a sociedade rural do Mucuri e Jequitinhonha, principalmente das partes baixas dos dois rios, cultivou a hist�ria do vaqueiro. No alto Jequitinhonha, de unidades familiares e raras fazendas de gado, o vaqueiro tamb�m tem seu lugar bem guardado, embora n�o seja nada que sequer se aproxime da sua desenvoltura nas �reas de cria��o, porque vaqueiro n�o existe sem fazenda, e fazenda espalha a lenda do vaqueiro e a sua pr�pria.

Essa lenda � alimentada por duas circunst�ncias: a complexidade da tarefa e a proximidade que mantiveram com fazendeiros e casa de sede. O trabalho era artesanal, executado e controlado por ele mesmo; um saber. A proximidade era a condi��o para o controle do trabalho, pois em of�cios artesanais, apenas as rela��es hier�rquicas e dom�sticas ou o controle do produto do trabalho permite administrar convenientemente o trabalhador. O fazendeiro que n�o podia gerir o trabalho artesanal, geria o trabalhador que a fazenda moldava.

O of�cio de vaqueiro era uma arte. Trabalho em pecu�ria alongada al�m de incerto, aventuroso e a cada dia e esta��o sujeitar o trabalhador a uma quantidade de riscos, exigia destreza e treino. Gado criado solto embrabecia; ent�o o vaqueiro devia dominar um servi�o que exigia anos de adestramento: la�ar gado bravo, domar animais de sela, amansar vacas de leite, dar campo em mangas sem fecho, colocar em boiada gado arribado que passava �s vezes meses ou anos sem ver curral; era um servi�o especializado.

A lembran�a do her�i rom�ntico, apegado ao cavalo e � pouca-vergonha com mo�as em fundo de cozinha de casa de sede, � s� o fragmento mais cotidiano da vida de vaqueiro. A sa�da para o servi�o exigia cavalos mansos, arreios e la�os fortes para a delicada e perigosa tarefa de lidar com gado de solta; exigia uma sabedoria aplicada � idade, ra�as, meio, clima e costumes de fazenda.[5] Era um servi�o que n�o prescindia do ferr�o para enfrentar gado bravo nas aparta��es, e ao usar aquela zagaia para boi o vaqueiro deveria possuir adestramento e sangue-frio bem dosados, para medir a altura do redemoinho da r�s, firmar a ponta da vara sem vacilar, dar o recuo certo ��remar�, como definem eles� para garantir que a topada fosse uma e acertada, porque naquela disputa n�o existiam duas chances. La�o e chincha tamb�m eram fundamentais para cura dos gabarros e bicheiras porque nem todo gado chegava ao curral, e nem sempre os currais eram perto.

O gado era, ainda, outro dom�nio, com manias e segredos. Quando um vaqueiro sa�a para dar um campo, dificilmente sabia o que encontraria, e sua habilidade estava em improvisar nas mais dif�ceis situa��es. Joaquim, da fazenda Jatob�, escrevia constantemente para seu �Padrinho e Patr�o�; sempre, antes das novidades, come�ava: �Hoje cedo eu sa� corrigindo as mangas...,� porque conhecia o incerto que havia no seu ramerr�o, e relatava os descontroles que a natureza impunha ao seu c�lculo.[6]

Ao contr�rio dos demais trabalhadores de um fazenda, o vaqueiro labutava com o ind�cil. Gado criava seus ritmos pr�prios, independente da sucess�o de seca-e-s'�gua dos agregados cultivando suas lavouras de mantimentos; soltar os bezerros de leite na manh� antes de ir dar um campo era a �nica rotina num dia de servi�o. Podia encontrar vaca parida dando testa para topada, garrote ca�do em valeta, garanh�es se retalhando em brigas, gado fugido de manga, bezerro novo com bicheira; sabia pouco do que o esperava, o que seria seu dia; mas, certo, era gastar o tempo num servi�o extenuante, cheio de desafios; a�, era a hora em que fazia prevalecer sua arte, que aproveitava para tamb�m a divulgar.

A arte do vaqueiro era, com raz�o, saber dos mais considerados; vaqueiro foi o oficial de um artesanato.[7]

Vaqueiro, por ser artes�o e dono de sua arte, foi um trabalhador pr�ximo ao fazendeiro; seu trabalho, obedi�ncia e solidariedade foram para a casa de sede; seu mundo era diferente daquele do trabalhador ordin�rio das lavouras. Nas fazendas de gado era costume o vaqueiro ser criado na casa, convivendo na comunidade da fam�lia duma sede.

Natal, vaqueiro de �guas Formosas, entrou aos 16 anos no servi�o de um fazendeiro; quando o vaqueiro antigo saiu, exerceu o of�cio por anos seguidos. Morou na casa de sede, nela recebia roupa, bom trato e comida. Quando, aos 24 anos, depois de muitos adiamentos resolveu finalmente casar-se, largou aquela que fora sua casa contrariando os patr�es. Saiu chorando de uma fazenda que n�o pode esquecer e ficou na sua lembran�a o aprendizado na luta di�ria do campo, nas madrugadas chuvosas em que enfrentara um curral com meio metro de lama, nos coices das vacas malabazadas, e num dia inteiro, a seguir, em lombo de cavalo.[8]

Manelinho, da fazenda Sul Am�rica, criou-se l�, foi vaqueiro na gl�ria da fazenda, viveu seu decl�nio, e depois dela acabada mudou-se para o batente da cancela da velha casa de sede. Zeca Figueiredo, gerente no esplendor da fazenda, narrava sua hist�ria como exemplo, pois Manelinho ficou morador da casa, acostumado ao patr�o, � fazenda e seu sistema; fora, define, �o cavalo de pegar os outros�.[9]

Um fazendeiro do Pav�o, Minas Gerais, contava que regia a vida do vaqueiro da inf�ncia � aposentadoria; ferrava-lhe as reses de costume no ano, zelava por elas, selecionava, trocava, vendia, orientava os neg�cios at� reunir o que julgava bastante. Ent�o resolvia o pen�ltimo neg�cio para o protegido: desfazer do gadinho e comprar a terrinha; e o �ltimo: doar o gado que servia para o antigo vaqueiro tornar-se um criador �embaixo de minha ger�ncia e conselho�, dizia.

Mas a domesticidade que confundia trabalho e depend�ncia, foi uma armadilha para os dois. Gerald�o, vaqueiro do Chumbo, Bahia, jamais deixou de ser procurado pelo patr�o, mesmo 20 anos depois de sa�do do servi�o, quando j� era dono de seu pr�prio terreno: o fazendeiro recorria a ele nas necessidades de media��o e conselho.[10]

O vaqueiro era pr�ximo da sede por necessidade, seu resultado; conhecedor dos seus sistemas, gl�rias, desmandos e fraquezas, defensor da sua ordem e nome. At� meados do s�culo XX, quase sempre foi o �nico assalariado regular da  fazenda, e embora na maior parte das vezes o sal�rio fosse muito baixo, era distintivo e compensado pela regularidade de ofertas de dons que a fazenda concedia nos neg�cios, partilhas e apoio; no destino que repartia com os fazendeiros. Um vaqueiro da fazenda S�o Vicente recebera ao final de anos de servi�o 70 cabe�as de gado em doa��o e cinco alqueir�es em usufruto: nunca admitiu, nos anos que ainda viveu, retirar  seu gado da cria��o �embolada� com a fazenda. Mais tarde, quando sentiu a proximidade da morte, chamou os filhos diante do fazendeiro e determinou que nunca reivindicassem nada al�m do que j� havia recebido e, depois de morto, queria que a terra retornasse � fazenda e a partilha dos seus bens fosse feita pelo fazendeiro.[11]

Foi um trabalhador pr�ximo do fazendeiro, mas isto ainda n�o diz tudo; teria que ser pr�ximo, sobretudo porque desincumbia-se, por meio de sua arte, de uma tarefa n�o-control�vel, um trabalho sem ritmo definido; havia somente um vago rumo geral em cada esta��o e o restante era determinado pelo meio, situa��o e temperamento dos animais. Era trabalho artesanal, fundamental para a renda da fazenda: �s vezes a �nica entrada em dinheiro e o vaqueiro partilhava dos seus destinos tamb�m por ocupar-se da atividade que era a principal fonte de dinheiro e liquidez da fazenda. Por isto o patr�o devia conceder especial import�ncia e aten��o mais delicada a este servi�o, mais que todos os outros.

N�o era um trabalho administr�vel, e muita vez �ou na maioria das vezes� a dedica��o explicava o bom resultado: exigia paix�o de ca�ador ao gado arribado, pronto atendimento � vaca que expunha a �madre do corpo�, conhecimento dos sestros das reses do rebanho para encontr�-la nos esconsos. Tudo isso era essencial numa pecu�ria de �soltas�, e n�o poderia ser bem-feito com o est�mulo de apenas um pequeno sal�rio e alguma repreens�o. A sorte do fazendeiro ia �s mangas com seu vaqueiro, por isto conservar com ele uma intimidade, apoiar seus ocasionais desmandos e rompantes, tolerar-lhe os relaxos, era uma modesta contrapartida � dedica��o que recebia. Essa indisciplina do servi�o de gado teria que resultar na associa��o do vaqueiro � casa de sede, na domesticidade: proximidade era condi��o para fidelidade quando o fazendeiro n�o podia controlar o trabalho, mas apenas alguns dos seus frutos.[12]

Aquelas regalias de vaqueiro vinham da sua dedica��o. Numa sociedade de poucas oportunidades e, �s vezes, enormes dist�ncias sociais, elas chegaram a ser importantes. N�o era apenas o sal�rio �quando todos os trabalhadores recebiam equival�ncias em mercadorias ou alimentos preparados� que embora reduzido, era dinheiro; n�o eram, tamb�m, as lavouras de mantimentos que vaqueiro fazia ou alugava outro para fazer, porque isto era direito de todo morador de fazenda. Regalia de vaqueiro vinha do conhecimento e oportunidades de neg�cios que fazia junto ou � sombra do fazendeiro: era receber gado �na sorte�, ou seja, percentagem dos bezerros nascidos no ano, que podia chegar at� 25%; gerir um retiro com total liberdade e extrair dele as vantagens do gado na �meia� e servi�o dos outros; ou ficar sem sal�rio, mas receber o leite das vacas paridas para criar porcos ou fazer requeij�o, ou os dois, e vender; ou receber do fazendeiro gado �afetado� (de aftosa) para curar gabarros, recriar, negociar; ou merecer avais para neg�cio de terra ou gado. Junto a tudo isto, o fazendeiro podia admitir o �criame embolado�, quer dizer, dava os pastos, e o vaqueiro gastava um s� servi�o e rem�dios para cuidar do gado da fazenda e do seu.[13]

N�o eram, por�m, s� econ�micas as vantagens de vaqueiro. Eram, tamb�m, e talvez, principalmente, simb�licas: acesso ao quintal e � cozinha da casa de sede, tocar boiada nas viagens de gado, ascend�ncia sobre  fazendeiros e a secunda��o no poder sobre agregados.

A estabilidade temer�ria e artesanal do trabalho com gado produziu um trabalhador especializado com algumas tarefas diferenciadas repartidas ao longo do ano �aparta��o, junta etc.� e regularidades profundamente irregulares marcaram o cotidiano de um vaqueiro de pecu�ria na solta, pois ao contr�rio do lavrador, o vaqueiro era requerido o ano inteiro, sem lazer ou rotina, num trabalho cuja seq��ncia era aventura e risco. Da� veio a m�stica e a lenda dessa �sociedade r�stica dos vaqueiros�.[14]

Bois

Pecu�ria, no Nordeste de Minas, foi �e em fins do s�culo XX continuou sendo� uma atividade vinculada � natureza, como a lavoura: sua expans�o foi baseada na apropria��o de recursos do ambiente, e a princ�pio era mesmo dependente da lavoura. Mas, ao contr�rio desta, sempre manteve algum v�nculo com os mercados, o que certamente explica as suas not�veis transforma��es t�cnicas.

As primeiras informa��es sobre cria��o no Jequitinhonha datam dos anos 1860; na �poca o viajante Hartt encontrou vaqueiros campeando nas chapadas do Alto-dos-Bois. Seu crescimento, no entanto, ocorreu j� para fins do s�culo XIX, mais no baixo Jequitinhonha e, de maneira geral, muito associado �s levas de baianos que come�aram a migrar a partir dos anos 1890, quando chegavam fam�lias de criadores para Vigia, Fortaleza e S�o Miguel.

A expans�o deve-se � combina��o entre pecu�ria, agrego e lavouras[15]. N�o havia recompensa para quem derrubasse matas e formasse pastos, processos trabalhosos e caros; derrubava-se para produzir mantimentos; a cria��o de gado vinha depois, sobre uma terra j� amansada. Pecu�ria manteve uma associa��o forte �embora n�o exclusiva� com abertura de mata, lavoura e posse, surgia depois delas. N�o foi, ent�o, a cria��o de gado que abriu matas do baixo Jequitinhonha ou Mucuri; pelo contr�rio, resultou da abertura feita por lavradores ou madeireiros, nunca o inverso.[16]

Cria��o exigia terra desmatada, pasto natural, sistema extensivo e fogo, muito fogo mesmo. Ele torava, al�m dos pastos, capoeiras e matas, a ponto de o baixo Jequitinhonha ter transformada quase toda sua floresta em cinzas, e t�-la quase extinta no intervalo de 50 anos �entre meados dos anos 1860 e fins dos 1910, entre a viagem de Hartt e a de Santos Maia� quando n�o restou muito do que fora a Mata Atl�ntica que encantara os viajantes do come�o do s�culo XIX. Mas a cria��o de gado tamb�m consumia madeiras: as fabulosas �cercas de tesouras� usadas para repartir pastos, feitas com tora deitada sobre tora de madeira de lei, ficando a de cima presa na parte superior de dois esteios cruzados em forma de �X�; as cercas de mour�o furado, feitas de encaixes de madeira lascada,  repartiam pastos por l�guas, e nos finais do s�culo XX ainda podem ser vistas no Pamp� e Mucuri.[17]

Os agregados e suas ro�as m�veis de coivaras, que deixavam para tr�s capoeiras ou pastos, deram as condi��es para o sistema de criar alongado que fez a fama dessas �reas, foi a base do seu neg�cio e �s vezes do seu sustento. Mas � arriscado falar que agregado serviu principalmente para abrir terras e formar pastos, porque al�m de terem sido muito complexas suas rela��es com a fazenda, era muito elevada a capacidade de suporte nessas terras rec�m-abertas, e os rebanhos n�o eram muito grandes. A lembran�a dos pioneiros de matas do Pamp�, Mucuri e Jequitinhonha, � que terras boas e novas de empasta��o sustentavam duas cabe�as adultas por hectare, ou 10 reses por alqueire mineiro; � a mesma informa��o das anota��es de contas-correntes de fazendeiros, que at� os anos 1940 e 1950 tenderam para ficar nessa m�dia. Em vista do tamanho dos rebanhos, havia terra com sobra para lavoura e cria��o. Por exemplo, a fazenda Santana do Po�o, no Salto, nos anos 1930 comerciava anualmente algo em torno de 2.000 novilhos de aparta��o. Supondo uma taxa de desfrute de 25% e intervalo entre partos de 24 meses, conclui-se que o rebanho era mais ou menos 8.000 cabe�as; dada aquela capacidade de suporte, a cria��o ocuparia, no m�ximo, 4.000 dos estimados 50.000 hectares da fazenda � modestos 8% da �rea total. Outra fazenda que deixou registros da taxa de lota��o foi a Sul Am�rica, em Itaobim: segundo suas notas de gado, em 1955 pastaram 1.500 �garrotes boiadeiros� em seus 1.400 ha, ao lado de matas, capoeiras e ro�as de muitos agregados.[18]

A pecu�ria herdou benef�cios da agrega��o e da posse: foram geradores de aberturas nas matas do Jequitinhonha e Mucuri, frente de expans�o constante, oferta permanente de batedores de mangas, cerqueiros, valeiros e recurso cativo para formar pastos novos nos terrenos amansados. O conv�vio entre agrego e cria��o deixou registrados poucos conflitos at� meados do s�culo XX; a posse ou o uso transit�rio da terra deveria j� fazer parte da l�gica do lavrador itinerante, e, pressionado pelo gado, o sistema acabou por ficar marcado pela complementaridade. Na metade final do s�culo a contradi��o ficou patente, pois as terras perderam em fertilidade, ganharam pre�o, a pecu�ria alongada e o agrego desapareceram, desabou todo o sistema. A destrui��o da combina��o est�vel da pecu�ria com a lavoura liquidou por fim aquilo que fizera poss�vel a fazenda e seu mundo.[19]

A cria��o usou predatoriamente recursos naturais. Mas, em face da preda��o praticada nas ro�as e visto pela l�gica que movia o posseante pioneiro e o fazendeiro de gado, n�o havia desperd�cio, porque eram recursos t�o livres, fartos, acess�veis, redundantes, que seria impens�vel poup�-los naquele momento. Abria-se a mata para moldar humanamente a paisagem rural, garantir sustento e at� construir patrim�nio familiar; era �acreditava-se� uma benfeitoria.

Apesar de ser considerada por estudiosos uma explora��o tecnicamente estagnada, a pecu�ria passou por algumas transforma��es importantes no manejo, pastaria e, principalmente, rebanhos. A qualidade e a produtividade que a cria��o de gado no Nordeste de Minas Gerais mostra em fins do s�culo XX resultam dessas mudan�as, que acrescentaram ao seu car�ter extensivo os melhoramentos que ampliaram a produ��o.

A primeira mudan�a foi na capacidade de suporte das pastagens. Os pastos nativos de campos que os criadores pioneiros encontraram no Jequitinhonha, formados pelos capins redondo, mimoso, favorito, peludo e v�rios outros capins-de-campo, nunca serviram para alimentar muito gado porque suas densidade, palatabilidade e const�ncia n�o eram das melhores. Eles produziram � base de fogo freq�ente: depois de queimados brotavam tenros e forneciam pastagem por curto per�odo.

Nas terras f�rteis de cultura usadas para pasto existia o chamado capim-pernambuco �pasto baixo e duro� e, desde o come�o do s�culo XIX, o capim meloso ou gordura �Melinia minutiflora� de origem africana, que expandia com a fronteira agr�cola invadindo as ro�as abandonadas na trilha do povoamento. O meloso, apesar da sua razo�vel capacidade de suporte e boa aceita��o pelo gado, apresentava alguns inconvenientes: muito sazonal, pouco tolerante �s altas temperaturas e nada resistente ao fogo. Apesar de fixar-se com sucesso nos altos Jequitinhonha, Mucuri e Doce, nunca alcan�ou resultado parecido nas zonas baixas, quentes e f�rteis dos rios. L�, o capim de abertura foi, primeiro, o citado pernambuco e logo depois o capim provis�rio, tamb�m chamado jaragu� (Hyparrhenia rufa), extrema ou vermelho: o apelido varia de acordo com o lugar. O provis�rio era bem adaptado nessas zonas baixas, apresentava facilidade de reprodu��o e produzia abundantemente, de modo que toda a primeira expans�o de pecu�ria no baixo Jequitinhonha �como em quase toda Minas Gerais� foi feita sobre ele. A difus�o do jaragu� em lugar dos pastos nativos foi a primeira mudan�a t�cnica significativa na pecu�ria. Junto dele estabeleceram-se o bengo ou angola �Brachiaria mutica�, capim de v�rzeas, e o sempre-verde �Panicum maximum gongyloides� empregado por algum tempo no baixo Jequitinhonha.[20]

A segunda grande transforma��o no pastejo ocorreu dos anos 1910 em diante, com a introdu��o do capim-coloni�o (Panicum maximum jacq), que se tornou o s�mbolo de boa pecu�ria. O coloni�o, como quase todos os capins de pasto do Brasil, veio da �frica. � uma gram�nea alta, de 3 metros; segundo alguns autores em terra nova de mata alcan�ava at� 6 metros, e Arnaldo Cathoud, que viajou pelo Jequitinhonha nos anos 1930, afirma t�-la encontrado com at� 8 metros; resistente a pragas, fogo, secas, tem excelente aceita��o por bovinos e eq�inos. Sua outra grande vantagem � a propaga��o por sementes, min�sculas; levadas por vento e p� de boi, esparramou-se por todo baixo Jequitinhonha, Pamp� e Mucuri. Capim bem enraizado, o coloni�o suporta pisoteio todo o ano, sem problema para rebrota. Implantado numa �rea, multiplica-se rapidamente e resiste muitos anos.

Foi o coloni�o que fez a fama da pecu�ria do Nordeste de Minas. A espantosa capacidade de suporte que permitia, explicam as duas cabe�as de gado por hectare/ano, ou 10 animais por alqueire.[21] Ele operou milagres na terra f�rtil do Jequitinhonha e do Mucuri, mas carecia trat�-lo com zelo, conserv�-lo livre da rebrota das capoeiras e dar folgas ao pisoteio para mant�-lo vi�oso. Nos tempos do coloni�o produtivo os vaqueiros receitavam que um pasto bom precisava s� de tr�s �f�s�: foice, fogo e folga. Foice era servi�o de agregados, nas empreitadas que ocupavam uma parte do tempo de n�o-trabalho das lavouras. Folga era decis�o de vaqueiros: os mais s�bios deles aprenderam que n�o podiam lidar com o coloni�o sobrecarregando-o de gado, era preciso deixar capim sobrar, mesmo que fosse, j�, um pouco de desperd�cio; os bons vaqueiros sabiam regular boca de vaca, momento de entrada e sa�da de um pasto, mesmo porque 30 dias de pousio eram o bastante para refazer qualquer manga nas d�cadas iniciais de ocupa��o da terra da mata. E quanto ao fogo, as queimadas eram feitas a t�tulos diversos: limpar as mangas de pasto dos matos maninhos ou miun�as, acabar com parasitos, fortalecer o capim, dar cinzas para o gado e outras explica��es t�o diferentes e enf�ticas que � imposs�vel entender manejo de pasto sem um fogo constante e voraz. Foi gra�as a esses manejos que o coloni�o dominou a paisagem f�sica, econ�mica e cultural do Nordeste de Minas; foi manejado assim, embora viajantes e memorialistas tenham se lembrado apenas do fogo.  

A difus�o do coloni�o induziu essas transforma��es no manejo, na medida que a cria��o e os pastos prosperaram nas primeiras d�cadas do s�culo XX. No correr desses anos, principalmente no baixo Jequitinhonha, foi-se tornando maior o cuidado com os pastos, sua reparti��o, zelo pelo volume de gado, perfilhamento do capim, limpa.[22] A partir dos anos 20 os fazendeiros preparavam mais cuidadosamente suas invernadas, os pastos de engorda para gado na seca que conseguiam fazer o boi ir conservando a carne que ganhava no tempo das �guas. As reparti��es de pastos foram feitas com cercas de moir�es furados, ou cercas de tesoura, ou simplesmente separadas por matas virgens mantidas intocadas, cerca viva e natural; proporcionava um uso mais equilibrado aos pastos, dava vigor �s rebrotas, garantia uso compartilhado de ro�as e pastagens, e da� vinha o costume de criar retiros e entreg�-los a um vaqueiro que governava ali pastos, gados e agregados.[23]

Mas a maior e mais importante de todas as transforma��es t�cnicas na pecu�ria foi mesmo o melhoramento dos rebanhos, que come�ou por volta dos finais do s�culo XIX.

No come�o da pecu�ria na zona do Jequitinhonha o rebanho era formado pelo conhecido p�-duro, curraleiro ou  comum, o gado sem ra�a, que ia do centro de Minas ou da Bahia para l�. Era muito resistente �s r�sticas condi��es da cria��o: suportava a solta, produzia largado em gerais, ag�entava parasitos, calor e seca. Apresentava, por�m, grandes problemas: baix�ssima produ��o de carne e leite, demasiado tardio, pouco f�rtil. O intervalo entre partos, segundo contam vaqueiros antigos, durava 36 meses; as novilhas entravam no calor por volta dos cinco anos, o boi chegava � maturidade por volta dos sete anos, quando alcan�ava algo em torno de sete arrobas (210 quilos de peso vivo) e possu�a, folcloricamente, sete palmos de chifres. Nos anos 20, na exposi��o agropecu�ria em Fortaleza, ganhou fama o boi �Junqueira�, pelo tamanho dos chifres. Era o modelo de boi daquele tempo.[24]

Nessa �poca era o gado poss�vel, mas os vaqueiros, criadores e boiadeiros lembram-se sem saudades daquele boi mais antigo, que depois vieram a chamar, vulgarmente, �bunda-de-sovela� por n�o fazer musculatura na anca e afinar da frente para tr�s. Lembrando desse gado, o fazendeiro Mois�s Gon�alves, Seu �Ioi��, do Pav�o, dizia: �N�o tinha boi ruim porque nada prestava, tudo era sem ra�a, tudo era ruim.�[25]

No Jequitinhonha e Mucuri o melhoramento do p�-duro chegou a ser feito com o gado malabar, uma ra�a que praticamente desapareceu, deixando duas vers�es sobre o seu surgimento. De acordo com J. Duarte, um navio indiano aportara em Salvador com a tripula��o doente e fora obrigada a descer a boiada que transportava; esse gado, cruzando sem crit�rio com o curraleiro, dera origem ao malabar. Outra vers�o, de dom�nio p�blico, conta que um europeu em finais do s�culo XIX se interessara por criar um gado adaptado ao semi-�rido e �s condi��es da pecu�ria brasileira: cruzara ent�o a rusticidade do p�-duro com o ganho de peso e precocidade do holand�s e do zebu, mais o caracu, dando origem ent�o ao malabar. Qualquer que seja a vers�o correta, certo � que o malabar foi o padreador de muitos rebanhos do Jequitinhonha e j� do Mucuri, at� por volta dos anos 30.[26]

O malabar foi o melhorador do p�-duro, mas n�o era considerado muito superior a este. Cruzando, suas vantagens costumavam ser anuladas, reproduzindo um curraleiro com pouca melhora. Uma hist�ria contada por J. Duarte ilustra isso: seu agregado Z� da Baixinha queria vender-lhe um novilho; quando perguntou se era de ra�a ou sem ra�a, o vendedor disse que �n�o � de ra�a nem sem ra�a: � malabar� (Duarte, 1972: 130).

O gado malabar sumiu dos pastos e da hist�ria da pecu�ria, engolido pelo zebu, que operou a mais profunda revolu��o t�cnica na pecu�ria do Jequitinhonha, Mucuri e de toda Minas Gerais.[27]

O zebu � um gado r�stico, precoce, pesado: re�ne as boas qualidades que faltam ao curraleiro. De origem indiana, divide-se em gir, nelore, guzer� e indubrasil, este �ltimo resultado de apuramento gen�tico feito no Brasil mesmo. Ele come�ou a ser introduzido em 1875, no fim do s�culo cresceram as importa��es por criadores do Tri�ngulo Mineiro, no come�o do outro s�culo elas aumentaram mais, e entre 1910 e 1920 ocorreu seu apogeu, a febre do zebu. Dos anos 20 em diante o zebu foi consenso e misturou-se intensamente com os rebanhos curraleiros. Depois dos anos 40, suas caracter�sticas j� eram dominantes no rebanho de praticamente toda Minas Gerais. O zebu foi levado para o Jequitinhonha nos anos 20 por Theopompo Almeida e Hermano de Souza.[28]

A partir da� esparramou-se, melhorando ganho de peso, produ��o leiteira e precocidade dos rebanhos. Aqueles bois que iam ao abate aos sete, passaram a ir mais cedo, aos quatro anos, pesando 16 ou 18 arrobas; novilhas pariam j� aos tr�s anos: quase que duplicou a possibilidade de desfrute do rebanho com a revolu��o do zebu.[29]

Porteira afora

Num artigo dos anos 50 Washington Albino reparava que o curral era o principal meio de comunica��o de uma fazenda do interior de Minas Gerais com o mundo: apenas atrav�s dele abriam-se suas portas.[30]

Esse � um dos aspectos mais complexos da velha fazenda de gado. Sua caracter�stica ao mesmo tempo aut�rquica e mercantil, mistura de aspectos senhoriais e comerciais, impede classific�-la como empresa, mas n�o oculta a evidente import�ncia da circula��o de valores por meio da pecu�ria. Definitivamente n�o era empresa, pois seu principal produtor de mercadorias, o vaqueiro, estava preso ao fazendeiro por la�os que dificilmente podem ser considerados salariato, como a depend�ncia pessoal, domesticidade, apadrinhamento, fidelidade vital�cia. Os pagamentos aos vaqueiros eram fluidos: parcelas em dinheiro mi�do, animais, bens de consumo; as contas-correntes arrastavam-se por anos; inclu�a sempre a comida enquanto fosse solteiro e morasse na casa de sede, e a ro�a de mantimentos feita com a fam�lia depois que se casava. Eram pagamentos em esp�cie: �200 cruzeiros e uma bezerra, mais duas mudas de roupa e uma espora� (Fazenda Araguaia, 1948 ms) por ano; outras vezes era cess�o de produtos do servi�o, como leite para o queijo ou percentagem nos bezerros. Al�m do mais a fazenda mantinha com sua clientela de agregados la�os que podiam representar muito, mas n�o rela��es capitalistas de produ��o.

Mas, porteira afora tudo mudava de figura, e o fazendeiro procurava pre�o para seu gado, buscava com titubeio e paci�ncia os cruzamentos de ra�as mais produtivos e maior rentabilidade nas vendas. Os registros de compras e vendas nas contas-correntes das fazendas mostram como eles procuravam organizar aquele caos, conseguir lucros,  economizar no que podiam, ganhar nas beiradas dos prazos e nos descontos dos juros.[31]

No curral, negociante e senhor tornavam-se a mesma pessoa: um fazendeiro. Na aparta��o de gado de descarte, em sele��o para invernadas, nos neg�cios de mea��o de boiada, por cima das r�guas de peroba, no batente de cancelas de monjolo, corrigindo a faina dos vaqueiros, regulando o gado que sai ou fica e, principalmente, negociando a boiada, o fazendeiro fez no curral a s�ntese das diferen�as. Para entender a fazenda do Nordeste mineiro n�o basta ter uma das imagens, mas as duas, neg�cio e n�o-neg�cio; e s� � poss�vel compreender sua l�gica percebendo a import�ncia das rela��es que estabelecia com o meio f�sico, pois foi a partir dele que os homens e o mercado criaram essas rela��es espec�ficas.

O principal componente da produ��o da fazenda era dado: a extra��o. Viveu daquilo que o ambiente ofereceu, tanto quanto a ro�a de toco ou coivara, s� que numa escala maior, pois, diferente desta, combinou extra��o com mercado. Empreendimento de fronteira, extrativo e mercantil, a fazenda n�o controlava o processo produtivo e este flu�a ao sabor da natureza: enquanto pastos brotavam, coloni�o perfilhava, vacas pariam e agregados produziam, o fazendeiro s� corrigia. Essa produ��o por dons da natureza, como m�gica, combinava-se com o sistema de neg�cios, associando com�rcio e extra��o, surgindo da� o empres�rio da mata, produtor aventureiro, o rentista da selva sugando os recursos com que a natureza dotara o meio e que o dom�nio privado permitia transformar no benef�cio pr�prio que foi a fazenda.

Mas, mesmo o com�rcio de gado �a faceta mercantil da fazenda� n�o era organiza��o estritamente empresarial, porque embora se tornasse freq�ente no correr do s�culo XX, eram transa��es com lentas e enoveladas negocia��es, que aconteciam numa economia de baix�ssima liquidez.[32] Vender uma boiada, nos anos 20, era negociar, entregar os bois, esperar serem levados, unidos a outros rebanhos, formada a grande boiada, feita a viagem para o ponto-de-venda, colocado o gado na invernada para engorda, refeito, engordado, entregue; ent�o era s� esperar que passasse aquele prazo de 90 ou 180 dias para o boiadeiro receber o pagamento; fazer a jornada de volta e saldar os compromissos assumidos com o dono do gado:  demora de ano ou dois, entre negociar e receber dinheiro. Foi assim at� por volta de meados do s�culo XX; raros aqueles que carregavam dinheiro no contado, mas diversos os que o possu�am espalhado em muitos cr�ditos de largos prazos. Era freq�ente a circula��o de promiss�rias, t�tulos e o repassamento de pap�is de um para outro dono por anos, com juros e descontos �dependendo do emitente� numa cadeia de d�vidas, compromissos e obriga��es.

Os neg�cios eram travados uns com os outros e n�o se resolviam facilmente. Os cadernos de contas-correntes, correspond�ncias e di�rios de fazendeiros s�o excelentes fontes para pesquisar essas transa��es.

Os di�rios e a correspond�ncia dos anos 20 do fazendeiro e negociante Helv�cio Ribeiro, mostram que ele resolveu sair da Bahia a caminho da �mata�, como faziam tantos outros conterr�neos. Suas atividades baianas eram muitas, mas pouco rendosas, a fazenda de seu pai certamente seria herdada por irm�o mais novo, por isso  labutava com of�cios e neg�cios rurais e urbanos, fora da fazenda. Os seus di�rios no per�odo 1922/1930 mostram que entre a tomada da decis�o e a sa�da passaram-se tr�s anos, e gastou esse per�odo �conforme suas agendas� desatando a teia de compromissos, acertos, interesses familiares e de terceiros, promiss�rias a receber, d�vidas a saldar e neg�cios ligados uns aos outros. A liquida��o tomava muito tempo, pois o ajuste de alguns neg�cios implicava assumir outros que ele julgava mais certos ou solv�veis: trocou cr�ditos em um jornal por um bilhar, cr�ditos em uma representa��o comercial por uma casa, d�vidas com um por cr�ditos com outro. No correr desses anos foi a Salvador e Ilh�us receber de devedores seus, aproveitou a viagem para quitar d�bitos alheios por encomenda, que acabou misturando aos seus. Sair daqueles �rolos� e �tran�as�, transformar cr�ditos �quase certos� em bens mais l�quidos, quitar ou transferir d�bitos seus para outros, foi a tarefa dos tr�s anos.[33]

Saiu da Bahia, enfim, em 1928, com arrieiro e tropa formada. Mas, antes dos anos de 1935, nunca deixou de ter cr�ditos e d�bitos cruzados na Bahia, onde voltava, �s vezes. Nota-se nos di�rios a dificuldade para resolver o varejo, que exigia mais que racionalidade econ�mica: carecia tato, paci�ncia, conversa, esperteza. Cr�ditos improv�veis transformaram-se em bons neg�cios, pois recebeu uma boa fazenda em troca de d�vidas; mas, tamb�m cr�ditos sadios podiam dar p�ssimos resultados.[34]

O gado era o bem mais negoci�vel e passava de um para outro fazendeiro; circulavam documentos que os uniam em redes de interesses e dinheiro. Pap�is como este de Wilson �Tin� Trindade: �Comprei a Idalino Ribeiro: 65 vacas indubrasil; 14 novilhas indubrasil; 34 bezerros indubrasil; 7 garrotes indubrasil; 1 garrote indubrasil; 9 garrotes comuns (boiadeiros): 130 reses por Cr$ 650.000,00. Nas seguintes condi��es: um t�tulo com 1 ano Cr$ 250.000,00; 1 t�tulo com 18 meses Cr$ 400.000,00. Vencimento em primeiro de mar�o de 1953 e primeiro de outubro respectivamente, sendo ambos prorrog�veis a juros de 2% por tempo indeterminado conforme interessar. Esta combina��o foi feita em presen�a do Senhor Eliezer Ferraz e ficou esclarecido e assinado por Idalino Ribeiro ao lado esquerdo das promiss�rias emitidas por mim� (Contas correntes da fazenda Sul Am�rica, ms).

O livro de contas correntes da fazenda Sul Am�rica cont�m anota��es desse tipo e o controle de empr�stimos feitos ou tomados, com prazos grandes, sempre mais de dois anos, com taxa de juros entre 1 e 2% ao ano. Aqueles neg�cios, pelo per�odo que � poss�vel segui-los, emendavam-se com outros, quitados com t�tulos de terceiros �parceiros de outros neg�cios variados� e repassados � frente, de modo que, rigorosamente, n�o se encontra o fazendeiro liquidando em dinheiro uma d�vida contra�da. Os acertos da fazenda Sul Am�rica com o meeiro de uma boiada para parti��o de lucros acontecia de dois em dois anos; mas como o s�cio sempre reinvestia capital e lucros, o fazendeiro embolava o fim daquele neg�cio �gado que entrava livre e seu como resultado de partilha bianual� com o come�o ou o meio de outro; a� se perde quem seguir a trilha da forma��o desse complexo patrim�nio. Nos quase 40 anos de registros sistem�ticos da fazenda Sul Am�rica, uma �nica vez h� liquida��o de cr�ditos da sociedade na boiada: em 1952 a fazenda apurara um lucro de Cr$ 332.770,00 que entrou em caixa, e no correr de todo o tempo parece ter sido a �nica ocasi�o de efetiva liquidez do fazendeiro Trindade.[35]

Compromissos de d�vidas firmados em promiss�rias �endossadas e postas a circular� uniam fazendeiros, boiadeiros, invernistas e negociantes em la�os s�lidos de d�vidas cruzadas. Eram neg�cios baseados no conhecimento que cada parceiro possu�a do outro e permitiam dilata��o dos prazos e transfer�ncia dos d�bitos. Quanto maior a possibilidade de d�bito, maior a capacidade de negociar. J. Duarte, por exemplo, saiu de Sergipe para a Bahia, de l� para Belmonte, da� subiu o Jequitinhonha comprando bois. Considerou-se, por fim boiadeiro quando um fazendeiro comentou que ele era um homem realizado: Duarte devia dinheiro da barra de Belmonte � barra do Ara�ua�, ao longo de todo o Jequitinhonha; recebia, portanto, cr�dito e confian�a bastante para comprar todo o gado que queria (cf. Duarte, 1976).

Os boiadeiros faziam neg�cios longamente embolados mas tamb�m fragilmente controlados, como aqueles dos fazendeiros. A apura��o de d�bitos e cr�ditos era demorada, durante longos per�odos sustentavam-se as mesmas contas em aberto com renova��es peri�dicas e liquida��es parciais. Um controle fluido, igual ao que era feito com agregados, armaz�ns fornecedores, devedores, boiadeiros, outros fazendeiros. As mesmas trocas de t�tulos e bens numa circula��o infinita. Em Joa�ma �que foi um grande centro boiadeiro, produtor de vaqueiros afamados em toda a zona do Mucuri, Jequitinhonha, Doce e Pardo� conta-se a hist�ria do boiadeiro Antonico Miranda que come�ou a ser perseguido pela id�ia que seus d�bitos eram maiores que seus cr�ditos. Obcecado por isso, tentava de todo modo fazer um balan�o dos t�tulos que emitira e dos cr�ditos por receber, e nunca conseguia chegar a resultado conclusivo. Desesperado, tomou formicida, morreu. Seu invent�rio durou dois anos e ao fim dele sua mulher e herdeiros descobriram-se muito ricos. Os cr�ditos, afinal, superavam os d�bitos.[36]

Quase n�o existiam transa��es l�quidas e finais: eram pagamentos fatiados, longas transfer�ncias de umas para outras d�vidas mi�das. Mesmo representantes comerciais agiam assim. Amadeu Martell, viajante comercial no Mucuri e Jequitinhonha do come�o do s�culo XX, revela numa carta ter aceito algod�o de fazendeiro devedor; certa vez fechou por uma noite um cabar� para seu deleite e cobriu a �rainha daquela casa de toler�ncia� com os cristais que recebera por um d�bito demoradamente cobrado.

A rede pouco formal de d�bitos, cr�ditos e garantias apresentava seus riscos. Quando um devedor falia �fazendeiro, comerciante ou boiadeiro de vulto, todos viviam atolados em d�vidas� desencadeava um movimento geral de quebradeiras, tal a quantidade de t�tulos e pap�is de uns empenhados com outros, lastreados em neg�cios eternamente pendentes. Era por isso, ent�o, uma sociedade onde o t�tulo de d�vida deveria ter solidez, fundado primeiro na confian�a que o pr�prio emitente merecia, segundo nos seus bens de raiz e terceiro no patrim�nio dos seus avalistas, geralmente comerciantes. Da� a import�ncia que mereceram as casas comerciais Colombo (Jequitinhonha), Bazar 36 (Fortaleza), Manuel Martiniano (Te�filo Otoni), Idalino Ribeiro (Salinas), para citar as principais. Eram pontos-de-venda, mas tamb�m de garantias, empr�stimos, penhores e descontos. O lastro da confian�a, por�m, era vital: os costumes de honrar o neg�cio pelo fio de barba, garantir a palavra, sustentar todas as garantias que fornecera, eram fundamentais para a sobreviv�ncia individual e para a manuten��o  do pr�prio sistema.[37]

Em caso de protesto ou inadimpl�ncia os avalistas honravam os documentos que haviam assinado. Era a palavra, c�digo de honra, mas tamb�m garantia pessoal e coletiva. O aparente desprendimento que havia em falir por conta de outro, dava a confian�a necess�ria para o fazendeiro ou boiadeiro falido recome�ar sua fortuna com novas e multiplicadas pequenas d�vidas. Em muitos casos podia refazer o todo, ou pelo menos partes do seu patrim�nio, contando apenas com as rela��es pessoais, conhecimento de mercado e nome que soubera honrar. Theopompo Almeida, boiadeiro de levar 15.000 bois por ano � Bahia, faliu em Fortaleza, foi para Joa�ma, se refez, ficou dono da fazenda Ypiranga; de novo l� teve problemas financeiros; saiu para a �mata�, morreu em Carlos Chagas, ainda pela terceira vez recome�ando, sem dinheiro, mas deixando excelente conceito comercial. Argel, boiadeiro que foi para o Mucuri e Jequitinhonha nos anos 40, chegara a negociar em torno de 60.000 bois num m�s; faliu por tr�s vezes �numa por haver comprado bois a Cr$ 120,00 e entregue a Cr$ 75,00 a arroba, obrigado pelo contrato com o frigor�fico, perdendo ent�o gado e fazendas� e em duas delas conseguiu reconquistar novamente confian�a dos clientes para voltar a montar um neg�cio ainda mais vultoso que o anterior. Era, portanto, uma sociedade de c�digos r�gidos de confian�a, baseada em princ�pios mercantis costumeiros e s�lidos.[38]

Boiadeiros

Atrav�s dos neg�cios de gado por aqueles tortuosos acertos as fazendas das zonas de cria��o do Nordeste de Minas foram resolvendo seus problemas de dinheiro, construindo modestas e at� importantes fortunas. Nisso foi fundamental o empenho dos compradores de gado, os boiadeiros, que regavam essa economia com seus pagamentos vasqueiros e demorados.

A rela��o do fazendeiro com o boiadeiro era de neg�cios, � certo. Mas suas transa��es possu�am l�gica tortuosa: eram embolados neg�cios e confian�a, em viagens constantes formando boiadas reunidas de �reas imensas. O costume do boiadeiro era comprar na �perna� �quer dizer, avaliando �no olho� o peso ou simplesmente determinando pre�o por um lote maior� bois magros, erados e castrados que seriam conduzidos e engordados para o abate. Raras fazendas produziam sistematicamente grandes lotes de bois, pelo menos aquele boi �terminado� aos quatro anos. Por isso muitos fazendeiros compravam uns dos outros, formavam lotes um pouco maiores e os passavam a outros fazendeiros, que por fim os negociavam com boiadeiros. Eram cadeias de vendas, porque negociar compensava mais que produzir, e melhor ainda negociar um lote maior de gado, que recompensava a viagem de centenas de quil�metros, durante meses, com bagagem, despesas, acidentes e, depois do zebu, o risco da aftosa. Foi esse o trajeto dos boiadeiros pioneiros do baixo Jequitinhonha, que faziam longas viagens tocando curraleiros � procura de quem os aceitasse comprar em prazo inferior a dois anos.[39]

Nas viagens existiram percursos famosos pelas dificuldades. A rota das 10 l�guas de Cachoeirinha, no caminho de Itabuna, for�ava as boiadas a passarem por 60 quil�metros de matas fechadas, tremedais terr�veis, com on�as, queixadas e febres. Dura tamb�m era a rota de Campos, no come�o dos anos 40, quando o gado atravessava a floresta compacta do baixo rio Doce e os passadores precisavam cercar a boiada com fogueiras para espantar as on�as. Piorava tudo ainda quando o gado em viagem ca�a afetado �atingido pela febre aftosa� babava, perdia peso, ficava com o casco em chagas; a boiada era for�ada a parar por semanas e at� meses.

Boiadeiro foi esse misto de criador e negociante, cercado pela aura rom�ntica da aventura, informa��o e viagem � que envolveu tamb�m vaqueiros, tropeiros, viajantes comerciais e pe�es, personagens que lidaram com estradas e animais. Eles viajavam em equipe, formada por passadores e pe�es �pe�es de boiadeiros� que faziam o movimento e fama da boiada; criaram t�cnica e folclore, porque seu of�cio, como o do vaqueiro, exigia especialistas. Cada posi��o em servi�o guardava seu segredo e serventia: guia, contador, contraguia, coice, arribada, cozinha e tralha; a elas acrescentaram a cantoria, que dava o tom da marcha, o aboio e sua escala formada por primeira e segunda voz, contracanto e requinta. Assim entende-se o verso da festa do Salto, pois o cantador diz que queria ser vaqueiro, mas n�o qualquer vaqueiro e, sim, �vaqueiro (a)boiador�, que sabe as cantigas do aboio, o canto comprido que apruma o gado, comove e seduz.[40]

Na monetariza��o desse mundo os boiadeiros cumpriram pap�is t�o importantes quanto os fazendeiros. Foram a sa�da dessa �muralha feudal� que reclamava Albino, forneceram a modesta liquidez dessa sociedade de abund�ncia, e abriram as rotas que foram gradativamente irrigando essa economia com um dinheiro que ficou menos ralo, ao mesmo tempo que a fartura minguava.

A cria��o de gado foi-se tornando aos poucos um neg�cio, uma prosperidade demorada. Levar boiadas do Jequitinhonha para Vit�ria da Conquista e da� a Salvador era um estir�o de quase 1.000 quil�metros e os bois viajavam  20 ou 40 quil�metros num dia. O mercado baiano foi promissor e �nico at� os trilhos chegarem a Montes Claros no final dos anos 20, e foi por l�, aos poucos, pela via de Salinas, que as boiadas procuravam o rumo do  Oeste e depois iam embarcadas para o Sul, Belo Horizonte ou Rio de Janeiro.

Mas a grande transforma��o veio dos anos 30 em diante, com a abertura da rota de Campos, que se tornou o centro mais importante de invernadas de gado mineiro. Foi o contato de Campos que abriu o Mucuri para uma pecu�ria comercial est�vel. Os boiadeiros passaram a reunir l� �um gado mi�do� que ficava escondido dentro das touceiras de capim-coloni�o. Na mesma �poca come�ou a entrada do gado pelo Pamp�, inicialmente uma extens�o das fazendas de Joa�ma; mas certo � que o gado entrou no Mucuri pelo Norte, e acabou tornando-se um bom neg�cio vend�-lo para o Sul. Do ponto de vista das rendas foi uma verdadeira revolu��o, pois os boiadeiros campistas andavam por toda aquela zona formando lotes que sa�am no rumo aproximado do que veio a ser a rodovia Rio-Bahia, depois costeavam a divisa do Esp�rito Santo, atravessavam o baixo rio Doce, parte da Mata mineira e chegavam ao Rio de Janeiro. L� a boiada era refeita, engordada, abatida e posta no mercado da capital federal.[41]

O mercado novo s� prosperou da� por diante. Serviu para transformar a cria��o de gado em um bom neg�cio no Mucuri, principalmente, serviu para dar ao baixo Jequitinhonha tr�s grandes mercados: Bahia, Montes Claros, Campos. Foi a partir dos anos 40 que o baixo Jequitinhonha transformou-se num produtor sistem�tico, e ent�o sele��o, precocidade, com�rcio puderam valer mais, e os fazendeiros acrescentaram dinheiro ao seu rompante senhorial. Mercados, neg�cios e dinheiro vieram muito aos poucos, a pecu�ria n�o surgiu com eles.

Assim, por vias longas, tortuosas e dif�ceis, a fazenda monetarizou-se, a terra come�ou a ter um certo pre�o e o mercado fundi�rio surgiu ligado ao movimento de gado e � renda que foi criando. Na hist�ria que se escreveu, na arquitetura das casas de sede, nos grandes currais ficou impressa a trajet�ria comercial da pecu�ria. Mas, para o povo da ro�a e dos currais foi aventura o que ficou da lembran�a de boiadas, boiadeiros, bois e vaqueiros, mem�rias t�o marcadas pela �poca quanto a velha fazenda sem dinheiro e sua fartura tirada da mata.

Refer�ncias bibliogr�ficas

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Notas

[1] Consultar Valverde (1985) e Caio Prado J�nior (1962); ver tamb�m os estudos de Santos Filho (1957),  Castro (1972), Oliveira Vianna (1957) e Queir�z (1957).

[2] S�o raros os estudos sobre trabalho rural; mais raros ainda sobre gest�o, controle e processos de trabalho. Uma das poucas tentativas de interpreta��o do assunto foi feita por Loureiro (1981). Tratando dos processos gerais de produ��o rurais a autora assinala que a rela��o �ntima da agricultura com a natureza � um dificultador do controle estrito, taylorista, do trabalho, na medida que as rotinas flutuam ao sabor das estacionalidades.

[3] Agregados eram moradores de fazendas, com acesso � terra para lavouras e, eventualmente, empreiteiros ou assalariados. Para descri��o e an�lise mais detalhada desses lavradores consultar Martins (1981), Moura (1988) e Ribeiro (1996).

[4] Acompanhando a festa do Boi-Duro, em janeiro de 1994, no Salto da Divisa, foi poss�vel refazer a trajet�ria dos seus integrantes. Os mais jovens, quase todos, moram em Porto Seguro (BA) e voltam para a festa.

[5] Cada cavalo, por exemplo, podia apresentar seu defeito, e estes eram muitos �aluado, boleador, coiceiro, doido-de-cabe�a, empacador, fogoso, galope-desunido, h�tico, intu�do, jogador-de-bunda, ladr�o, madra�o, nhato, passarinheiro, quartela-baixa, refugador, solto-dos-quartos, transcurvo, velhaco, xot�o ou zureta� que demandavam sua t�cnica exclusiva de corre��o. Cada cavalo possu�a uma natureza, e existiam m�todos muito diferentes de lidar com eles, suaves ou brutais, que iam -ou v�o- desde o trato gentil ao potro na desmama, at� a brutalidade da �professora�, o cabe��o de serrilha feito para �quebra� de animais defeituosos. Seu  fabul�rio particular acabava se grudando aos vaqueiros que os usavam, e �lvaro da Silveira recolheu muitas hist�rias de animais de servi�o; entre eles, a rima-de-neg�cio, comum em Minas Gerais, que relaciona o defeito do cavalo com sua cor. O dif�cil, mesmo, � prov�-lo verdadeiro nas horas de fazer �rolos�, �catiras�, �baldrocas� ou, simplesmente, trocas: �Cavalo alaz�o, ou frouxo ou ladr�o; Cavalo pedr�s, para carga Deus o f�z; Cavalo rosilho, s� a poder de muito milho; Cavalo baio, mesmo depois de morto ainda d� trabaio. Cavalo alaz�o, deixa o dono com os arreios na m�o. Cavalo pintado, s� na parede� (Silveira, 1922: 98, 395).

[6] As cartas de Joaquim est�o na Correspond�ncia de Germano Cunha Mello (ms). Euclides da Cunha mostrou a incerteza deste trabalho publicando o bilhete de um vaqueiro que contava ao patr�o os resultados do servi�o. Depois de empenho e esfor�o para reunir o gado, ao fim s� pode esclarecer ao fazendeiro: �Patr�o e amigo, participo-lhe que a sua boiada est� no despotismo. Somente quatro bois deram o couro �s varas. O resto trovejou no mundo.  Seu amigo vaqueiro F.�  (Cunha, 1967: 93).

[7] A rusticidade do servi�o nas juntas e aparta��es assombrou em 1918 o poeta Eduardo Santos Maia na sua visita a Joa�ma. Diante da viol�ncia dos servi�os de ferra no curral, fazia suas considera��es simbolistas: �No curral, a poucos metros da vivenda senhorial, o gado se escoiceia, e muge, e escava; marru�s, no cio, erguem-se de quando em vez sobre as vacas predispostas � fecunda��o; as crias, presas noutro compartimento, berravam insistentemente, correspondidas pelos urros aflautados e fundos das m�es, a rodearem a pris�o, pacientes, incans�veis... (...) Espet�culo arrepiante e penoso � o da ferra: tr�s ou quatro vaqueiros pulam no curral, munidos de grossa corda de couro cru tran�ado e la�a aqui, derriba ali, peia acol�! Um ferro, uma letra, um monograma, um sinal, embutido num cabo de madeira ou de osso, numa fogueira adrede enrubescido, aguarda o momento de judiar... Quando a r�s se encontra perfeitamente tolhida nos seus movimentos e na posi��o desejada, um meninote, para tal servi�o designado, na voz de ��traga o ferro�� leva-o, entregando-o a um dos vaqueiros. Este procura o s�tio costumeiro, toma posi��o adequada e pousa-o candente na pele do animal, erguendo-se uma fumarada de cheiro ativo, caracter�stico de cabelo queimado, ficando em negro o fac-s�mile da marca abrasada. O pobre bicho geme doridamente e dos seus grandes olhos escorrem duas l�grimas, vagarosas e longas...�  (Maia, 1936: 131).

[8] A hist�ria do aprendizado de Natalino Martins, o Natal, est� reproduzida em Ribeiro (1996).

[9] Zeca Figueiredo, entrevista em Ribeiro (1996);  cavalo de pegar os outros � uma refer�ncia ao animal manso, que pousa na beira da casa e permite ensilh�-lo a qualquer hora para reunir o resto da tropa.

[10] Os relatos do fazendeiro Seu Ioi�, do Pav�o e Gerald�o, do Chumbo, resultam de entrevistas, de 1994. Casos de doa��o de bens im�veis e gado a vaqueiros do Mucuri e Jequitinhonha s�o muito freq�entes nas hist�rias contadas e mais ainda nas representa��es. Embora possam �s vezes ser doa��es culturalmente constru�das, os casos encontrados s�o expressivos o bastante para serem levados em conta. Ocorreram principalmente nas grandes fazendas; mas mesmo nas outras nunca deixou de ser importante a d�vida declarada dos fazendeiros a seus vaqueiros.

[11] Pelos apontamentos de contas-correntes das fazendas, at� os anos 1970 o ordenado mensal da um vaqueiro chegava a um m�ximo de meio sal�rio m�nimo. O caso da S�o Vicente foi contado por Pedro Em�lio de Almeida Peixoto, em entrevista de junho 1994.

[12] Um caso rotineiro narrado por Zeca Figueiredo, vaqueiro de Itaobim, aconteceu quando o fazendeiro vendera uns bois e 16 deles ficaram perdidos numa macega, na beira do Jequitinhonha: �Eram bois alevantados na beira do rio. Aquilo era mato s�, n�o tinha uma aberturinha. Na primeira vez que esse gado viu a gente, arredimunhou, coriscou, baixou a cabe�a e s� via pau quebrando. Entrei no mato com a mula, vi: sa� mais um boi preto. O boi, na carreira, quando a mula encostou na anca dele s� vi vaqueta abrindo. Eu vim escambado, vim cheirando a anca dele, descemos, a�oitando. Passou um valo, passou uma cerca de arame velho que tinha dentro do mato e eu nem dei decis�o, vinha como vinha. Se o arame me pega em cheio tinha me matado, porque eu n�o sei como � que parava em arame quebrado. Do jeito que vinha, passou. O garrote na frente, quando chegou na beira do rio, que ali d� umas veredas limpas, quando ele ti�ou na beira do rio, no claro da vereda eu estava embutido nele. A mula era boa demais, de r�dea era boa, era igual cavalo para correr. Quando ele saiu no limpo, eu pus no ch�o, derrubado; ele caiu, levantou, tornou a correr, eu tornei puxar o sedenh�, ele caiu. Eu esbarrei a mula e pulei no ch�o e peguei ele. Segurei no vazio dele. A� eu n�o tirei o la�o, estava amarrado na garupa da mula. Puxei a mula para perto, tirei a ponta do cabresto. Garrote de dois anos. Tirei o la�o, pus na cabe�a dele com�um cabresto para ele n�o enforcar, amarrei numa toi�a de pau, pus o formig�o no nariz do boi. Nisso, eu acabei. A�, silen�ou... Ficou quieto. Falei: �, o meu eu peguei...� (Zeca Figueiredo, entrevista, julho, 1994, reproduzida em Ribeiro, 1996).

[13] Sobre as regalias de vaqueiro, consultar Duarte (1972 e 1976), Moura (1988) e Ribeiro (1996).

[14] A cita��o � de Euclides da Cunha (1967). Nesta pesquisa foram entrevistados os vaqueiros Natalino Martins (�guas Formosas), Jos� Zeca Ribeiro de Figueiredo (Itaobim) e o empreiteiro e gerente Jos� Curralinho (Te�filo Otoni). Foram coletadas informa��es nos cadernos de contas-correntes de fazendas, em conversas com boiadeiros, vaqueiros, passadores; deles, agrade�o em particular os ensinamentos de Benjamim Rocha, Al�rio C�co, Oz�rio Dudu, Ad�ozinho do S�tio Novo. Para entender a import�ncia do trabalho do vaqueiro foi fundamental, tamb�m, entender sua rela��o com o fazendeiro; a� valeram o cronista J. Duarte (1972, 1976, s.d.) e entrevistas com os fazendeiros Diniz V. de A. Coutinho, Mois�s Gon�alves, Pedro E. A. Peixoto, entre outros.

[15] As informa��es mais antigas sobre cria��o no Nordeste de Minas foram dadas por Hartt (1941). Para entender a pecuariza��o s�o importantes as pesquisas sobre migra��es baianas feitas por Almeida (1977), Duarte (1972, 1976), Tetteroo (1919) e Santos Filho (1957).

[16] Sobre a expans�o da pecu�ria consultar os autores citados acima; ver tamb�m Santos (1970) e Sol (1981).

[17] Cathoud (1936), descreve em sua nota de viagem o que viu no baixo Jequitinhonha e Pamp�: o fazendeiro riscava um f�sforo, e a�, protegidas as cercas j� feitas, o fogo liquidava o que estivesse a seu alcance. J. Duarte (1976) escreveu, e muito, sobre o assunto. Curiosamente, o tempo que a terra fica devastada, entre a queima e a rebrota do pasto, n�o costuma provocar dificuldades para o gado: de acordo com Jos� Curralinho e Zeca Figueiredo, a cinza �� forte�, tem �sustan�a� bastante para garantir o gado at� a chegada dos �invernos�.

[18] Sobre fazenda Santana do Po�o ver Otelino Sol (1981); a fonte dos dados da fazenda Sul Am�rica s�o os cadernos de contas-correntes, 1943/1964. Dados sobre capacidade de suporte, desfrute e intervalo entre partos foram coletados em entrevistas e registros de contas-correntes das fazendas.

[19] Em rela��o aos agregados, o dom�nio da fazenda costumava ser t�o completo que limitava a margem de contesta��o, ver Ribeiro (1996); segundo Tetteroo (1919) e Castaldi (1957), fazendeiros costumavam usar gado como meio de press�o sobre posseiros confinantes para conseguir a terra.

[20] Uma an�lise dos diversos capins, origens, vantagens e defici�ncias encontra-se em Marques (1969). Tratam do assunto tamb�m Primavesi (1984) e v�rios n�meros da revista Informe Agropecu�rio. As informa��es sobre expans�o do capim meloso est�o em Saint-Hilaire (1975); sobre o provis�rio ver Silveira (1922), Sol (1981) e Duarte (1976). A maior parte das informa��es sobre vantagens relativas e manejos populares de capins foram conseguidos em entrevistas campo, principalmente com Justino Obers, vaqueiros e criadores.

[21] Uma capacidade de suporte equivalente a esta s� foi regularmente alcan�ada com os capins braqui�ria em solos corrigidos de cerrado a partir dos anos 1980, com o custo, alto, da mecaniza��o e aduba��o.

[22] As pastagens do Salto foram descritas assim: �se o viajante cai do animal, cai no capim coloni�o. Se procura, tem dificuldade em encontrar um ramo para bater no animal.� (Sol, 1981: 112).

[23] Sobre t�cnicas de pecu�ria ver Sol (1981), Duarte (1972; 1976) e Zeca Figueiredo em  Ribeiro (1996).

[24] Sobre gado do Mucuri e Jequitinhonha ver J. Duarte (1972 e 1976) e Almeida (1977); sobre ra�as e manejos ver Marques (1969). Outras informa��es vieram das entrevistas com Zeca Figueiredo, Pedro E. A. Peixoto, Otelino Sol, Diniz V.A. Coutinho e Natalino Martins. Esse gado curraleiro recebia cr�ticas de todos os lados: o Doutor Rebourgeon, contratado pelo Conselheiro Afonso Penna para opinar sobre os problemas da pecu�ria mineira, dizia que a mortalidade atingia 50% dos bezerros, a produ��o leiteira m�dia de uma vaca era 1,5 litros/dia; ver Rebourgeon (1884); para coment�rios sobre europeiza��o do rebanho ver Silveira (1919, 1922). Segundo J. Duarte este boi curraleiro possu�a �aspas� �os chifres� enormes, e tamb�m �quartos chochos, peito esguio e dif�cil engorda� (Duarte, 1972: 122). Em 1936, quando fez uma viagem ao rio S�o Francisco da Bahia, C�ndido Versiani (Ribeiro, 1996) descrevia o gado como �p�-duro ao extremo�, e, dizia que �seus bois s�o menores que os nossos bezerros�: mas j� falava depois da revolu��o que foi a ado��o do zebu.

[25] Entrevista de junho, 1994.

[26] Diniz V. de A. Coutinho, antigo possuidor desse gado, definiu em entrevista o malabar como �meia-orelha, pesado, umbigudo, peito largo, pouco leiteiro; vermelho, amarelo ou azeitona.� E J. Duarte, tamb�m criador, deu outra defini��o, parecida: �boi meio azeitonado, de cara escura, corpulento, chifres curtos e pouco curvados, com uma pinta preta dentro da orelha, considerada caracter�stica da ra�a.� (Duarte, 1972: 129).

[27] Houve disputa s�ria na imprensa sobre as boas e m�s qualidades do zebu, e �lvaro da Silveira foi um defensor intransigente da sua introdu��o, substituindo o caracu e as ra�as europ�ias. Silveira sustentava pol�micas  com os defensores da introdu��o de lavouras e ra�as exigentes em Minas Gerais; manteve por anos debate acalorado com um articulista de um jornal de S�o Paulo. Ele dizia que os campos mineiros produziam capim-redondo, que nenhuma serventia possu�a; mas, havia uma m�quina que transformava-o em prote�na: era o gado zebu, que n�o exigira mais que campos e sal para criar a riqueza do Tri�ngulo Mineiro. Diante da mortandade de gado europeu, dos desperd�cios feitos em nome do melhoramento gen�tico, por que n�o deixar o zebu pastar livremente para fazer da rusticidade riqueza? Silveira (1919) louvava a sabedoria r�stica dos criadores: quem entendia de agricultura n�o escrevia sobre o assunto; e quem escrevia, nada entendia do agricultor.  Sobre zebu ver Marques (1969), Lopes e Rezende (1984),  Duarte (1976) e a revista Informe Agropecu�rio (v�rios n�meros).

[28]  Jos� Vaqueiro, passador de gado de Theopompo Almeida, gastou um ano para percorrer 100 l�guas, de Buen�polis at� Pedra Azul, tocando a p� as primeiras 160 cabe�as de zebu que foram do Tri�ngulo Mineiro para o Jequitinhonha. Sobre Jos� Vaqueiro e sua viagem consultar Almeida (1977) J. Duarte (1976: 96) afirma que Hermano de Souza cruzava Nelore com Malabar e era muito criticado por criar gado de orelhas curtas: �A paix�o pelos chifres enormes desaparecia para surgir o amor �s orelhas longas e pendentes. Peso, precocidade, qualidade da carne e rendimento n�o entravam nas cogita��es dos fazendeiros. Orelhas, chifres, barbela e umbigueira eram objeto de discuss�es entre os �entendidos�. �

[29] Jo�o de Senna Santos, memorialista, antigo morador de fazenda, contou-me a hist�ria duma novilha Gir, cheia por um boi famoso, comprada em Uberaba, nos anos 30, e levada para o Nordeste de Minas. Criou-se na fazenda enorme expectativa pela pari��o. Certo dia, um menino entrou correndo na cozinha, gritando que a novilha finalmente tinha parido. O fazendeiro pulou atarantado, perguntando: ��O bezerro tem muita orelha?� �N�o senhor��respondeu o menino� �s� tem duas.�

[30] Segundo Albino  �Este curral constitui a �nica fresta de rompimento da muralha feudal com a venda de bois para pontos distantes. No mais, s�o o auto-abastecimento quase completo e o regime feudal t�pico.� (Albino, 1956: 133).

[31] Nesta pesquisa foram analisados os cadernos de contas-correntes das fazendas Sul Am�rica (Itaobim), C�rrego Seco (Novo Cruzeiro), Araguaia (Carlos Chagas), Jatob� (Te�filo Otoni), Butequim (Te�filo Otoni) e Gameleira (Comercinho do Bruno), cobrindo o per�odo 1917/1980, e a correspond�ncia a eles associada.

[32] Diniz Vieira, na entrevista citada acima, contou que nos anos 20, em Urucu, recebeu 180 cabe�as do melhor malabar em paga de cinco anos de trabalho; durante um ano andou por onde pode e n�o conseguiu fazer o gado virar dinheiro.

[33] �Rolos� ou �tran�as� s�o os nomes dos neg�cios que n�o envolvem apenas dinheiro, mas tamb�m bens; em algumas regi�es recebem o nome de �catira�.

[34] Entre estes di�rios dos anos 20 pesquisados encontra-se longa carta de um antigo devedor baiano que contava a hist�ria de uma briga por heran�a: um mau-car�ter seduzira sua irm� h� 10 anos, casara-se, fazendo-a escrava de seus caprichos; ela fora levada a falsificar a assinatura do pai no testamento, de modo a excluir o irm�o da melhor heran�a e o restante penhorara em seu proveito, com o sogro ainda em vida; vendera a casa da m�e e a pr�pria casa onde morava o missivista, que decidira ir �s armas, mas errara o tiro ao cunhado e fora processado, tendo ent�o que vender seu com�rcio ��ltimo bem!� para pagar as despesas forenses. Desculpava-se, ent�o, por n�o poder pag�-lo naquele ano; no pr�ximo, quem sabe...

[35] Equivalia a 300 sal�rios m�nimos de 1952 e era metade do lucro  de dois anos sobre 1.500 bois.

[36] A hist�ria de Miranda foi relatada por Jos� Curralinho; outras pessoas em Joa�ma contam-na muito parecida.

[37] Maria Sylvia de Carvalho Franco (1974) analisou os neg�cios rurais nessa perspectiva: a aparente informalidade ocultava os mecanismos que agilizavam os neg�cios feitos nessas sociedades de pouca liquidez.

[38] Informa��es sobre Theopompo Almeida est�o em Al�rio Almeida (1977). Outras, foram prestadas por Pedro E. Almeida Peixoto, seu sobrinho-neto, em entrevista citada; o caso de Argel foi relatado em entrevista.

[39] Ver sobre boiadeiros Almeida (1977), Duarte (1972, 1976), Sol (1980).

[40] Os servi�os da viagem de gado eram muitos. O ritmo era essencial, pois for�ando a boiada ela estropia, estropiada n�o anda, perde peso, perde at� gado; o segredo era �fazer o casco� do gado na sa�da, com dois ou tr�s dias de marcha vagarosa, saindo nas madrugadas e parando no sol das 10 horas, caminhando � tarde duas ou tr�s curtas horas, para o casco endurecer. Nas paradas do forte do sol rodava o gado em lugar de pasto e aguada, ia conhecendo a boiada, dosando a caminhada, descobrindo o boi arisco e fuj�o, que d� trabalho aos vaqueiros de arribada. Depois de tr�s ou quatro dias, sabendo o trato do gado, o pe�o colocava o gado no ritmo que dura semanas ou meses. Nessas viagens tocadas por vaqueiros conhecedores do of�cio e do rebanho, o gado n�o perdia peso, chegava a seu destino lustroso e sadio. Ver sobre boiadas Duarte (1972, 1976), Santos Filho (1957) e a entrevista de Natal em Ribeiro (1996).

[41] A cita��o � de Paternostro (1937). Sobre a expans�o de pecu�ria ver Duarte (1972, 1976), frei Samuel Tetteroo (1919, 1922), mais Almeida (1977), Sol (1981) e Santos (1970). As hist�rias dos mercados e boiadas foram coletadas em entrevistas.


Quem vivia nas terras que os vaqueiros?

Eram homens livres, índios, mamelucos, mestiços e negros libertos. Houve poucos trabalhadores escravos na atividade pastoril nordestina. A vida dos ocupantes do sertão era difícil.

Quem vivia nas terras que os vaqueiros começaram a ocupar porque houve conflitos nessas?

Resposta: quem vivia nas terras que os vaqueiros começaram a ocupar? Os indígenas.

Por que houve conflitos nessas terras?

Conflitos relacionados a disputas pela posse, ocupação e exploração da terra são a principal causa da violência praticada contra populações indígenas e comunidades tradicionais no Brasil na última década.

Qual é a relação entre os vaqueiros do Nordeste e os mineradores?

Resposta. Resposta:os vaqueiros eram pessoas q trabalhavam com animais q pode ser vacas e outros animais. e mineradores são aqueles que trabalham em minas,túneis assim pegando pedras tipo our,ferro,metal,diamante,cobre,alumíni e entre outros.