Quem fez a carta de alforria dos escravos?

Artigo publicado na edi��o n� 42 de junho de 2010.

No agreste das mulheres

a alforria no quotidiano da escravid�o feminina (Feira de Santana, 1850-1888)


Flaviane Ribeiro NASCIMENTO

'Terra de Lucas', essa � uma express�o comumente atribu�da � Feira de Santana, normalmente carregada de uma conota��o pejorativa, cujo simbolismo est� correlacionado � rebeldia escrava personificada em Lucas Evangelista, o 'Lucas da Feira', que viveu e atormentou aquela regi�o da Prov�ncia da Bahia na primeira metade do s�culo XIX. A escravid�o em Feira de Santana � resumida � rebeldia de Lucas [*1]. Nessa narrativa, a experi�ncia feminina do cativeiro � subjacente ao protagonismo do macho.

Na historiografia da escravid�o, a experi�ncia das mulheres � reduzida a pap�is coadjuvantes no quotidiano, principalmente com rela��o ao estudo da resist�ncia escrava e a busca de melhores condi��es, menospreza-se a dimens�o pol�tica dos projetos individuais de nega��o � escravid�o que contribu�ram conjuntamente para solapar o sistema escravista, os quais refletiam, de alguma forma, os interesses de um grupo social que sofria os males da escravid�o.

Nessa narrativa, o objetivo � tomar as alforrias para contar a hist�ria dessas mulheres na regi�o de Feira de Santana, localizada numa encruzilhada de caminhos e sede de uma vigorosa feira que alimentava as demandas do interior da Prov�ncia e da capital no s�culo XIX. � um convite a se embrenhar pelas caatingas do agreste baiano escravista [*2]. Ao agreste das mulheres!

1. "pelos bons servi�os que me tem prestado"

A busca pela liberdade permeou a experi�ncia de mulheres e homens escravizadas/os quotidianamente. Essa, talvez, tenha sido a contradi��o maior do sistema escravista: o processo de reifica��o di�rio de seres humanos e, ao mesmo tempo, a contesta��o a esse processo. Se, no mundo impessoal dos neg�cios da escravid�o, aquelas pessoas eram submetidas a transa��es comerciais, nas quais eram reduzidas a meros instrumentos de trabalho, as cartas de alforria demonstram que as rela��es entre senhor/a e escravizados/as estavam mergulhadas num emaranhando de a��es complexas e delicadas, nas quais muitas vezes conscientes de seu poder de barganha, vinculadas a experi�ncias e tradi��es hist�ricas particulares e originais.

As alforrias, atrav�s de seu car�ter ambivalente, evidenciam que, ao lado de uma ideologia de concess�o senhorial, tamb�m foram conquistadas a partir de estrat�gias tecidas quotidianamente do lado escravo. Restrita ao �mbito dom�stico, cabia apenas ao/� propriet�rio/a legislar sobre a alforria - pelo menos at� 1871 quando se garantiu a cativos/as recorrer na justi�a o direito � liberdade. Nesse aspecto, o/a senhor/a podia considerar o/a escravizado/a apenas como "coisa", mas eram homens e mulheres com ideias pr�prias, que lutaram e conseguiram pequenas ou grandes vit�rias. Interessa aqui, portanto, compreender a partir das cartas de alforria como as mulheres constru�ram na micropol�tica quotidiana estrat�gias para a conquista da liberdade na regi�o de Feira de Santana, na segunda metade do s�culo XIX.

Conforme a documenta��o ora analisada, as alforrias femininas superam as masculinas ao longo dos anos de 1850 a 1888. Reconhecer o significado da maioria das alforrias na regi�o de Feira de Santana, onerosas e "gratuitas", terem sido conquistadas por mulheres e, dentre os homens, um n�mero relativamente alto de filhos daquelas mulheres evidencia que a participa��o feminina pela liberdade fora efetiva. Esse fato n�o se contrap�e aos estudos historiogr�ficos que t�m se debru�ado sobre essas fontes[*3] . � tamb�m recorrente nesses estudos que a alforria foi muito mais comum nos espa�os urbanos, onde os/as cativos/as, especialmente os/as do ganho, conseguiram negociar graus maiores de autonomia se comparado ao trabalho dom�stico ou da lavoura.

No entanto, na mec�nica real do processo de alforriar, permeou uma intera��o de fatores individuais, familiares, psicol�gicos, demogr�ficos, geogr�ficos, econ�micos e cronol�gicos, n�o sendo, pois, um fator isolado a determinar a frequ�ncia maior ou menor de manumiss�o [*4]. Esta investiga��o busca pensar a frequ�ncia das cartas de liberdade, situando o problema num contexto mais amplo ao buscar observar graus relativos de oportunidade e incentivo �s alforrias de mulheres na regi�o de Feira de Santana, inserindo-as na micropol�tica tecida no dia a dia a partir da rela��o senhor/a-escravizado/a.

A documenta��o sugere que as mulheres constitu�ram, demograficamente, a maioria entre os cativos daquela regi�o e que elas tamb�m foram eleitas para o trabalho na pequena agricultura, pr�pria daquelas regi�es da Prov�ncia no XIX. Aspecto muito diferente do abordado pela historiografia, que confirma a maioria de mulheres alforriadas proporcionalmente aos cativos homens, mas em cujos estudos aborda uma despropor��o entre os sexos: maioria masculina, preferida, e uma minoria feminina, necess�ria [*5]. Creio, portanto, que outras quest�es devem ser consideradas para o �xito feminino na conquista da liberdade. Muitas delas conseguiram construir espa�os "amistosos" no senhorio a partir da condi��o de escrava que ent�o vivenciavam. Ressalta-se que cerca de 13% das cartas de alforria foram justificadas, explicitamente, enquanto conquistas dos/as cativos/as pelos bons servi�os que tinham prestado aos/�s seus/suas respectivos/as senhores/as.

Registrada em 1880, em Feira de Santana, a carta de liberdade conferida � cabra Victoria, de 24 anos, por seu senhor Mac�rio de Oliveira Melo, com a condi��o de acompanh�-lo at� a sua morte, foi justificada da seguinte maneira: "[...] pelos bons servi�os prestados, em remunera��o aos bons servi�os [...]" [*6]. Com uma justificativa n�o menos ousada, Anna Maria de Jesus alforriou em 1872, em Feira de Santana, Maria e Francisco "[...] pelo amor de Deus em gratifica��o dos bons servi�os por eles prestado [...]" [*7]. Nesses escritos, os propriet�rios argumentaram que, em decorr�ncia dos "bons servi�os", Victoria, Maria e Francisco foram remunerados ou gratificados com a liberdade.

Na alforria de Maria Caetana, com idade de 50 anos, conferida em 1863, Joaquim Ferreira da Silva afirmou que libertava a sua "Escrava Maria Caetana cabra com idade de cinquenta anos pelo amor de Deus e pelos bons servi�os que me tem prestado, e poder� depois de meu falecimento gozar de sua liberdade como se de ventre livre nascesse [...]"[*8] . Maria Caetana, certamente, havia servido Joaquim Ferreira da Silva por anos e de forma a agrad�-lo, o que justificava a "concess�o" de sua liberdade, que s� viria a gozar ap�s a morte do senhor. A import�ncia atribu�da �s a��es di�rias dos/as cativos/as na aquisi��o da liberdade � uma marca importante nas alforrias, mesmo naquelas em que os/as escravizados/as trabalharam para pagar com dinheiro a sua liberdade.

Ap�s reunir a quantia de quinhentos mil r�is e pagar por sua liberdade - que havia sido avaliada em oitocentos mil r�is por Antonia Joaquina de S'Anna - em mar�o de 1865, Luiza crioula tamb�m tornou-se forra condicionalmente, "[...] pelos bons servi�os que me tem prestado, lhe perdo-o [sic] o excedente, com a condi��o por fim de me acompanhar enquanto eu viva for [...]"[*9] . Com essa carta, Antonia Joaquina, al�m de manter Luiza presa legalmente a ela, salvaguardou sua eterna gratid�o � benevolente senhora que lhe havia perdoado a quantia de trezentos mil r�is.

O fato de as alforrias terem se restringido ao campo costumeiro at� a d�cada de 1870 obrigava que os/as escravizados/as tivessem bom relacionamento com seus propriet�rios para que pudessem, por sua parte, criar as condi��es para a alforria. Mostrar-se merecedor/a da liberdade foi uma estrat�gia largamente utilizada pelos/as escravizados/as. Negociar melhores condi��es de sobreviv�ncia e, qui��, a liberdade sob as circunst�ncias do cativeiro exigiu dos/as cativos/as obedi�ncia, fidelidade, humildade, depend�ncia e muitos bons servi�os.

Tamb�m usou dessa estrat�gia Maria Sib�ria, mulata, que conseguiu, em 1860, no lugar chamado Rio Fundo, a sua alforria, ainda que condicional. Manoel Jos� Dias tornou-a forra "Sob condi��o de prestar me [sic] servi�os [a]t� a minha morte, concedo liberdade a minha escrava Maria Sib�ria, mulata, em aten��o � seus bons servi�os e fidelidade." [*10] J� a crioula Maria Gertrudes conquistou sua alforria "gratuitamente", por�m condicional, em maio de 1865, "[...] por ter me prestado eminentes servi�os al�m dos de seus deveres."[*11]

Nas alforrias, enfatizava-se a generosidade ou a afei��o e, em contrapartida, a fidelidade e os bons servi�os da parte do/a cativo/a, o que o/a tornaria eleg�vel para a liberta��o[*12] . A conquista das alforrias como resultado de um processo repleto de investimentos individuais e, por vezes, coletivos, demonstra que os la�os entre as /os escravizadas/os e senhores/as foi uma condi��o importante, porque recorrente, para a concess�o da alforria.

Justificar as alforrias como uma "recompensa" aos "bons servi�os", ou por ser os/as propriet�rios bons crist�os, que cultivavam os valores da caridade e do amor enquanto ensinamentos do 'Pai Eterno', tornariam os/as senhores/as bem vistos aos olhos escravos [*13]. "Pelo amor de Deus e pelos bons servi�os" foram libertadas Maria Caetana e v�rias outras cativas. Luis Gonzaga da Silva e sua mulher libertaram a Cabrinha Francisca, "[...] pelo amor de Deus e por Amor que a temos [...]"[*14] , uma demonstra��o p�blica de amor a Deus e ao pr�ximo. Em outros momentos, ficou expl�cita, al�m do altru�smo e do desapego aos bens, a necessidade de garantir a salva��o ao admitir o pavoroso pecado: n�o amar ao pr�ximo como a si mesmo. Admitir-se-ia, portanto, a humanidade do escravizado. Adriano de S�o Marcos Lima justificou a liberta��o de Maria Cabra como por "[...] desencargo da minha consci�ncia [...]" [*15], um argumento que revela a necessidade moral do escravista.

As alforrias funcionaram como instrumento de controle e disciplina, posto que "prestar bons servi�os" durante o per�odo do cativeiro poderia resultar na liberdade, bem como ratificar a benevol�ncia senhorial, ao qual se deveria eternamente a liberta��o. Nesse aspecto, as alforrias condicionais funcionavam muito mais eficazmente, j� que o/a escravizado/a ficava sujeito/a a revoga��o da carta [*16], um direito salvaguardado na lei at� 1871, quando, com a chamada "lei do ventre-livre" se garantiu ao/� cativo/a a liberdade uma vez consentida.

Na carta de 1869, registrada em 1885, do pardinho Salvador, filho de Benedicta, com idade de um ano, conferida condicionalmente, o propriet�rio n�o se omitiu de explicitar suas condi��es: "[...] cujo beneficio confiro-lhe gratuitamente sob a condi��o de esta reservando-me o direito de revogalo [sic] no caso de desobedi�ncia ou ingratid�o [...]"[*17] , a possibilidade da revoga��o seria um forte refor�o � ideologia paternalista e a depend�ncia e a subordina��o n�o se esgotariam com a "liberdade". Nesse caso, a possibilidade de revoga��o da liberdade de Salvador serviu para manter Benedicta obediente ao cativeiro.

� importante ressaltar que, na quase totalidade das cartas de liberdade condicionais, o pr�-requisito para a efetiva��o da liberdade fora a presta��o de servi�os at� a morte dos/das respectivos/as senhores/as. Tal condi��o estendia-se, inclusive, aos cuidados com a alma do defunto/senhor. Manoel da Paix�o alforriou Vicente, crioulo, em 1856, com a condi��o de acompanh�-lo por toda a vida e, ap�s sua morte, ficava ainda "[...] obrigado ao meu enterro, e meia Capela de Missa [...]", quando ficaria de fato e de direito livre da escravid�o.

Essas condi��es, em sua maioria, foram impostas aos/�s alforriados/as "gratuitamente": aproximadamente 21% das mulheres e 24,8% dos homens escravizadas/os conquistaram a liberdade sob condi��es que deveriam ser atendidas para que a alforria se efetivasse. J� entre as alforrias onerosas identifiquei apenas cerca de 1,5% para as cativas e 5,5% entre os cativos, o que demonstra que a maior efic�cia das condi��es estava nas alforrias "gratuitas".

Ressaltam-se, nesse aspecto, os n�meros relativamente altos das alforrias "gratuitas", tanto para homens quanto para mulheres: 54,8% entre as mulheres e 53,7% para os homens [*18]. Acrescenta-se a esse fato que, no contexto de cess�o do tr�fico atl�ntico e de transfer�ncia de m�o de obra escrava para o sudeste cafeeiro, os/as cativos/as tornaram-se bens de valor inestim�vel e alforri�-los n�o significava, necessariamente, abrir m�o desses bens, mas garantir a depend�ncia e a subordina��o desses/as escravizado/as, mesmo porque � recorrente na documenta��o ora analisada o seguinte padr�o: as "gratuitas" exigiram condi��o para efetiva��o � posteriore.

A negocia��o quotidiana em prol da liberdade contribuiu ainda para a preserva��o da fam�lia escrava. Em fam�lia, os/as escravizados/as constru�ram espa�os de autonomia e redes de solidariedades com a expectativa de tornarem-se livres, de libertar filhas e filhos, amores... muitos que sonhavam juntos com o dia da liberdade. Na alforria de Gracina, de 1879, l�-se que a alforria foi consentida "[...] pelo pre�o de seiscentos mil r�is sendo quatrocentos mil r�is paga a liberdade e duzentos fica a mesma libertada obrigada a pagar com o seu marido Huberto no mesmo ano."[*19] Ressalto aqui a evid�ncia de que Gracina contaria com o marido na acumula��o do pec�lio que garantiria o pagamento da sua liberdade. Al�m desse caso, ao longo desse texto conto a hist�ria de m�es que libertaram seus filhos.

A partir das cartas de alforrias � poss�vel observar que muitas cativas lutaram e conseguiram proteger a institui��o familiar da instabilidade imposta pelo cativeiro. Trata-se de um aspecto nas cartas de alforria que, infelizmente, as poucas linhas que me restam n�o me permitem discutir.

2. "e mesmo j� seja velha forro pelo valor de cem mil r�is..."

A escravizada Ritta tornou-se liberta condicionalmente por sua senhora, Joanna Maria dos Reis, pela quantia de cem mil r�is, na Capela de Bom Despacho. Com 60 anos de idade quando fora libertada em 1862, sem d�vida, Ritta trabalhou muito para auferir a alforria, a qual s� alcan�ara j� idosa. No entanto, a quest�o principal a ser discutida foi como Ritta e tantas outras escravizadas da regi�o de Feira de Santana conseguiram amealhar o dinheiro necess�rio para resgatar a sua liberdade.

Alcan�ar a liberdade no agreste baiano n�o fora uma tarefa que prescindiu de dinheiro, ao contr�rio disso, aproximadamente 44,1% das mulheres, entre os homens 53,75%, pagaram por sua liberdade. Se compararmos, no entanto, o desempenho feminino com o masculino, a diferen�a alcan�a quase 50%, em n�meros absolutos, 128 para as mulheres e 66 entre os homens. Criar meios para pagar pela carta de alforria era, pois, uma condi��o recorrente para a liberdade, sobretudo entre as mulheres. O caso de Rita � exemplar para pensarmos a necessidade de pagamento, a qual "mesmo j� seja velha" foi obrigada a pagar por sua liberdade.

Acredita-se que discutir a possibilidade de escravizados/as acumularem pec�lio sendo estes/as propriedades de outrem estivesse intrinsecamente ligado � Lei Rio Branco, de setembro de 1871, mais conhecida como "Lei do Ventre Livre". Contudo, a despeito da autoriza��o legal, a acumula��o de pec�lio entre os/as escravizados/as aconteceu largamente antes de 1871, regulado muito mais pelo costume e pelos acordos no dia a dia que, necessariamente, por um mecanismo legal.

Em maio de 1860, Anna Cabra pagou a quantia de seiscentos e cinquenta mil r�is ao senhor Luiz Joz� Pereira Borges. Em 1864, a crioula de nome Eugenia, com 29 anos de idade, pagou a Sim�o Ferreira da Silva a quantia de novecentos mil r�is, ambas em Feira de Santana. No Limoeiro, em 1865, Antonia Parda conquistou a sua liberdade ao pagar por ela a quantia de quinhentos e cinquenta mil r�is a Joanna da Incarna��o [sic] Souza, sua propriet�ria. Todas essas mulheres, entre muitas outras, auferiram quantias, relativamente altas, para pagar por sua liberdade mesmo antes de 1871. � certo que a lei de 1971 foi mais que a liberta��o dos/as filhos/as das cativas e ampliou muito, ao menos teoricamente, os meios para a liberdade. No entanto, a liberta��o do ventre e o direito a liberdade mediante indeniza��o era, desde antes, uma pr�tica costumeira intensa (EISENBERG, 1989, p. 33).

Francisca, de na��o cabra, pagou quinhentos mil r�is por sua librdade na fazenda S�o Tiago, em julho de 1865, dos quais foram abatidos trinta mil r�is "[...] que lhe damos por Esmola de nossa parte e a mais quantia para a dita Escrava ir nos dando durante a nossa vida, e ficando devendo, ficar� o resto para os nossos herdeiros e por nossa morte gozar� de sua liberdade como se nascesse de ventre livre."[*20]

Outro caso foi o de Anast�cia crioula [*21], escrava de Izac Sabac, comerciante da vila da Feira, o qual sugere que a escravizada tamb�m pudesse morar e/ou trabalhar na pra�a comercial de Feira de Santana ou nos seus arredores. Anast�cia pagou por sua alforria a quantia de quatrocentos mil r�is ao seu propriet�rio, que recebeu a citada quantia em "diversas vezes", condi��o imposta para o gozo da liberdade, a qual se efetivou em 1866, quando o comerciante Sabac tornou-a forra.

O pagamento em "diversas vezes", ou mesmo o "ir nos dando", demonstra que as mulheres escravizadas podiam vislumbrar a liberta��o se conseguissem, de algum modo, auferir com regularidade pequenas quantias em dinheiro e, naquele contexto, o ganho seria uma atividade que lhes permitiria lograr sucesso. O jornal Correio da Feira, de 8 de janeiro de 1882, relata, por exemplo, a presen�a das fateiras [*22] - comuns em feiras livres -, sujeitas � persegui��o da C�mara Municipal por fazer seu com�rcio nas pra�as p�blicas, uma atividade que no Brasil imperial era das "gentes de cor".

O per�metro urbano de Feira de Santana n�o estava muito distante das ro�as, dos s�tios e das fazendas, tanto geograficamente quanto no que diz respeito �s rela��es rural-urbano. E, al�m disso, a feira possibilitava que essas dist�ncias ficassem ainda menores, visto o fluxo corriqueiro para a cidade. Nesse sentido, Francisca e Anast�cia, para desenvolverem atividades "de ganho", poderiam ser da cidade ou n�o. Desse modo, poderiam viver e trabalhar na ro�a e, ainda assim, vender e acumular pec�lio na cidade, inclusive, do que havia produzido autonomamente na ro�a.[*23]

Se a maioria das mulheres estava empregada no servi�o da lavoura, como indica a documenta��o, sem d�vida muitas dessas mulheres tamb�m conseguiram a sua liberta��o, n�o apenas pelos bons servi�os prestados, mas tamb�m atrav�s da compra viabilizada pela acumula��o de pec�lio da venda de g�neros na feira. Na carta de alforria, conferida pelo capit�o Afonso Pedreira de Cerqueira, em 1881, � cativa Justina, afirmou o dito capit�o que recebeu "[...] de Guilhermina, africana, quinhentos mil r�is q[ue] me deu para liberdade de sua filha Justina crioula de quarenta anos mais ou menos do servi�o da lavoura." [*24]

Salvo Guilhermina, n�o encontrei outras cativas cujo of�cio fora registrado nas cartas de alforria. Ao analisar esse aspecto para Salvador, K�tia Mattoso (2004, p. 94) faz uma constata��o semelhante e pondera que o baixo n�mero desses registros pode ter sido devido a uma omiss�o proposital. "Obrigados [os senhores] a pagar uma taxa especial sobre os escravos que exerciam profiss�o ou of�cio, continuavam ocultando a eventual qualifica��o que o escravo possu�a no ato da outorga da liberdade." Sendo assim, a qualifica��o s� seria registrada se a alforria fosse consentida a pre�o elevado.

Al�m disso, quanto mais '�ntimas' e 'amistosas' a rela��o senhor/a- escravizado/a, mais m�dico poderia ser o pre�o estipulado pelo/a propriet�rio/a, bem como o seu contr�rio. Assim sendo, a historiografia tem considerado que, frequentemente, as alforrias tenderam a favorecer os/as escravizados/as brasileiros/as, ent�o denominados/as crioulos/as [*25]. Trata-se de um aspecto relevante das alforrias de que por hora n�o � poss�vel uma an�lise mais detida, mas que, sem d�vida, � muito importante para pensar o processo de liberta��o no agreste baiano p�s-1850.

3. Considera��es finais

Em uma sociedade de base patriarcal em que a coexist�ncia do direito costumeiro e da lei, sendo preponderante o primeiro, serviu � manuten��o de uma classe dominante, em meio a conflitos violentos, foi necess�ria a negocia��o cotidiana por parte do/a escravizado/a na busca de melhores condi��es de sobreviv�ncia. Atrav�s do paternalismo os/as senhores/as tentaram ultrapassar a contradi��o da coisifica��o do/a escravizado/a, desarticular a��es coletivas e dar estabilidade ao sistema, posto que buscavam garantir a sua aceita��o por todos os membros, mas os/as escravizados/as usaram o paternalismo como arma na luta contra a escravid�o.

Longe de legitimar o patriarcalismo a partir do paternalismo senhorial, conceber o paternalismo como aspecto importante que mediou a rela��o entre senhor/a e escravizado/a, apenas admite que, em muitos casos, as rela��es amistosas dissimulavam rela��es de poder assim�tricas, permeadas pelo desejo por melhores condi��es de vida para si e para os seus. Assim, no agreste das mulheres foram tecidos, na micropol�tica quotidiana, espa�os de autonomia e nega��o ao dom�nio e explora��o senhorial onde as cativas forjaram estrat�gias poss�veis que, em muitos momentos, resultaram nas suas respectivas liberdades, de filhas e filhos e de seus amores.

Refer�ncias bibliogr�ficas

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Graduada em Hist�ria pela Universidade Estadual de Feira de Santana - BA (2009), atualmente mestranda no Programa de P�s-Gradua��o em Hist�ria da Universidade Federal da Bahia, pesquisadora vinculada � linha de pesquisa "Escravid�o e Inven��o da Liberdade" e bolsista CAPES. E-mail para contato: .

Lucas Evangelhista, o "Lucas da Feira", foi um escravo fugido que se juntou com outros negros, criando um grupo de "bandoleiros" que atormentou a regi�o de Feira de Santana at� 1849, quando fora capturado e condenado � morte. Ver: Lima (1990).

O Agreste � uma regi�o de transi��o geomorfol�gica entre o Rec�ncavo Baiano e o Sert�o.

Ver: Mattoso (1972), Shwartz (1976), Belini (1988), Eisenberg (1989), Paiva (2000), Bertin (2004), Almeida (2005), entre outros.

Cf.: Russel-wood (2005, p. 59).

A hip�tese que levanto acerca da demografia escrava na regi�o de Feira de Santana � um aspecto que ainda tenho buscado mais fontes que a consubstancie, mas, de acordo com os n�meros que tenho trabalhado, essa � uma quest�o que tem aparecido com frequ�ncia sob os seguintes aspectos: maioria de mulheres, mesmo que pequena, nas alforrias, nas escrituras de compra e venda, nas escrituras de doa��es, nas escrituras de penhor e hipoteca, e certo equil�brio nas procura��es (passadas a terceiros pelos/as senhores/as para venda). Ver: Nascimento (2009, p. 54, 58, 69, 70 e 78).

Livro 17 (ou 10). Grifo da autora. Todos as refer�ncias a �livros� e �pacotes� que fa�o s�o referentes a documentos que est�o atualmente no CEDOC/UEFS (Centro de Documenta��o e Pesquisa da Universidade Estadual de Feira de Santana). Esses documentos ainda n�o est�o arrumados em caixas e estantes, mas, quando da realiza��o das pesquisas para este trabalho, os citados livros ainda estavam no Primeiro Tabelionato de Notas, no F�rum Desembargador Filinto Bastos, Feira de Santana-BA, e a identifica��o que uso � justamente como est�o identificados, por exemplo, �Pacote ? 1885-1886� � um pacote com folhas avul�as de livros.

Livro de Notas 8A. Grifo da autora.

Livro n� 9A ou 10 � 1862. Grifo da autora.

Livro n� 9A ou 10 � 1862.

Livro de Notas 8A. Grifo da autora.

Livro n� 9A ou 10 � 1862. Grifo da autora.

Cf.: Reis; Silva (1989, p. 136-137).

Ver: Paiva (2000, p. 65-91).

Livro n� 9 ou 10 � 1862.

Livro 5 A.

Cf.: Malheiro (1976, p. 132).

Pacote � 1885-1886. Grifos da autora.

Nesses n�meros considero tanto as �gratuitas� quanto as �gratuitas�/condicionais. Vale ressaltar que os n�meros n�o s�o exatos, mas aproximados.

Livro 17 (ou 10).

Livro de Notas n�10 ou 9A (1862). Grifo da autora.

Livro de Notas n�10 ou 9A (1862).

Ano 1, N� 25, p. 3.

Ver: Barickman (2003, p. 104-127), Neves (1998, p. 60) e Reis; Silva (1989, p. 22-32).

Livro de Notas 1888 - Fragmento X � Darlan Cruz, 21-7-2000.

J� citei anteriormente alguns desses estudos.

Quem escreveu a carta de alforria?

1875, 8 de março – Chiquinha escreve uma Carta de Alforria para libertar João, um jovem escravizado do casal, mas nesta data Chiquinha não morava mais com Jacintho há anos, revelou os documentos encontrados.

Quem deu a carta de alforria aos escravos?

A carta de alforria era geralmente concedida por um titular, o senhor ou a senhora, que a redigia de próprio punho. Entretanto, se um casal fosse proprietário do escravo, a concessão partiria do marido e da esposa conjuntamente. E, no caso de o titular ser analfabeto, alguém seria encarregado da escrita.

Quando foi criada a carta de alforria?

a lei [de 1871] tinha a seguinte estrutura: primeiramente foi decretado que os filhos de escravos nascidos após 28 de setembro de 1871 seriam livres.

Como os africanos conseguiram a carta de alforria?

É importante descrever que, geralmente, o escravo conseguia a sua carta de alforria depois de juntar muitos trocados, dinheiro e ouro roubado nas minas onde tinham que trabalhar. A palavra alforria da expressão árabe “Al Horria” que significa “a liberdade”.