Que razões levam os imigrantes peruanos a se estabelecer no Brasil e qual é o perfil dessa população?

1 INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta a forma com que a identidade social de imigrantes estrangeiros no Brasil vem sendo percebida por eles próprios nas organizações de trabalho e na sociedade de modo geral. O ambiente profissional no qual refugiados e imigrantes econômicos estão inseridos é modificado em função da interlocução com estrangeiro, seja devido à língua, às diferenças culturais ou à construção/desconstrução de estereótipos que levam à sustentação das percepções das diferenças culturais. Tendo o Brasil figurado como importante destino de migrações nas últimas duas décadas (BAENINGER, et al, 2017BAENINGER, Rosana et al. Imigração haitiana no Brasil. São Paulo: Paco Editorial, 2017.), o debate sobre o assunto torna-se primordial para a sustentação de possíveis políticas migratórias de âmbito social ou organizacional, afora trazer à tona elementos das relações de trabalho que dizem respeito à exclusão tanto pela raça quanto pela classe.

De acordo com Hall (2003)HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., com multiculturalismo é preciso ter igualdade social e justiça racial. Porém acredita-se que o racismo ainda está presente mesmo em sociedades multiculturais e que, dentro das organizações, também existem preconceitos. Acredita-se que, da visão do imigrante e sua realidade, aflorarão questões de preconceito relativo à cor, religião e etnia, mesmo que a diversidade seja uma questão considerada e respeitada nas organizações.

As migrações humanas estão presentes na história da grande maioria dos povos, especialmente desde o “aprimoramento das tecnologias dos meios de transporte e de comunicação, as culturas começaram a interagir e a se fundir” (GARCEZ; OLIVEIRA, 2016GARCEZ, Gabriela Soldano; OLIVEIRA, Meilyng Leone. Multiculturalismo, interculturalidade e direitos humanos: a responsabilidade da mídia em informar para a educação intercultural. Leopoldianum, Santos, SP, v. 40, n. 113-5, p. 7-20, 2016.). As pessoas migram por várias razões, como guerras, repressão política, violência, pobreza, visando a possibilidade de melhoria de vida para si e para suas famílias (HALL, 2003HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.).

Na contemporaneidade, a imigração internacional e sua complexidade crescem a cada ano com, por exemplo, a consolidação e aumento do número de refugiados (FIALKOM, 2016FIALKOM, Jaime Carrion. Migração internacional contemporânea: principais processos. Panorama Internacional - FEE, Porto Alegre, v. 1, n. 3, p. 8-11, mar. 2016.). De acordo com informações do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da ONU (DESA), em 2015, o número de migrantes internacionais alcançou a marca de 244 milhões, o que corresponde a 3,3% da população mundial, sendo 20 milhões de refugiados. Em relação ao ano 2000, isso significa um aumento de 41%.

O Brasil, por sua vez, que havia recebido cerca de cinco milhões de imigrantes entre 1819 e fins da década de 1940 - o que representava 10% da população do país -, estagnou por um longo período, recebendo somente refugiados, especialmente judeus, sírios, libaneses e palestinos. Porém, nas últimas duas décadas, houve crescimento: em 2000, os imigrantes representavam quase 96 mil, ao passo que, em 2014, eram mais de um milhão e cem mil. O Rio Grande do Sul (RS) apresenta a mesma tendência, embora com crescimento menor: de cerca de 17,5 mil passa para 43,5 mil (UEBEL, 2015).

Com esse cenário, é necessário verificar quais estratégias e políticas a sociedade e as organizações estão adotando em relação a essa realidade multicultural sob o contexto social e econômico em que forma de trabalho do imigrante se insere. Assim, a questão norteadora desta pesquisa é: De que forma a identidade cultural vem sendo problematizada frente à imigração no multiculturalismo organizacional? Como há fatores culturais (modo de se vestir, de se portar, língua falada, etc.), religião e etnia diferentes nos imigrantes, além das diferenças de conhecimento e educação, acredita-se que esses fatores precisam ser vistos e respeitados em organizações multiculturais, pois entende-se que “falar em imigração implica automaticamente em falar sobre cultura” (SARRIERA; PIZZINATO; MENESES, 2005SARRIERA, Jorge Castellá; PIZZINATO, Adolfo; MENESES, María Piedad Rangel. Aspectos psicossociais da imigração familiar na Grande Porto Alegre. Estudos de Psicologia, Natal, RN, v. 10, n. 1, p. 5-13, 2005., p. 6).

Nas relações multiculturais, é necessário ater-se à igualdade racial e justiça social, conforme já citado por Hall (2003)HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.. Mesmo com as considerações e respeito a essas questões, nesse âmbito costumam aflorar questões quanto a preconceitos diversos. A aceitação do diverso parte de uma transgressão das relações de poder que estão contidas em especial no que Sodré (2015)______. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. intitula de relação racial.

O objetivo geral desta pesquisa é verificar como a identidade social e cultural dos imigrantes é problematizada no multiculturalismo organizacional na capital do RS, Porto Alegre. Os objetivos específicos são: analisar a elaboração da identidade social dos imigrantes com base nas suas narrativas de inserção social no Brasil e identificar a percepção dos imigrantes frente ao mercado profissional, destacando aspectos específicos acerca do trabalho do imigrante. Para tanto, primeiramente são discutidas as questões de migração, identidade, multiculturalismo e globalização e, posteriormente, são analisadas as falas de imigrantes entrevistados para a pesquisa.

2 MIGRAÇÕES, IDENTIDADE, MULTICULTURALISMO E GLOBALIZAÇÃO

A identidade social do sujeito é o âmago para a construção de qualquer identidade cultural e nacional. Essa identidade é formada por diversos fatores de um indivíduo já inserido em um contexto histórico-social que o precede, estando ainda sempre em transformação (HALL, 2000______. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p. 103-33). Para Woodward (2000)WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. In: SILVA, Thomaz T. da (Org.). Petrópolis, RJ: Vozes, 2000., a identidade é relacional uma vez que uma identidade depende da outra identidade que é diferente para existir, ou seja, de algo fora dela, que fornece as condições para que ela exista.

A visão de que a identidade seja unificada e coerente, mas que o sujeito moderno apresenta uma identidade deslocada, é uma forma simplista de descrever o sujeito de hoje. Entende-se que a identidade do sujeito não é algo inato, não é engessada, formada e estática, ela é construída ao longo do tempo; tal como Jacques (2006, p. 155)JACQUES, Maria da Graça Corrêa. Identidade e trabalho. In: CATTANI, Antônio David; HOLZMANN, Lorena (Org.). Dicionário de trabalho e tecnologia. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2006. refere, é um “constante estar sendo”, que se funda tanto por meio da igualdade quanto da diferença em relação aos outros. O sujeito assume identidades diferentes, pois é influenciado pelo momento em que vive. Assim, a identidade completa, unificada, segura e coerente é uma fantasia, uma vez que a afirmativa que a identidade possa ser ‘deslocada’ tornou-se um modo não aprofundado (HALL, 1997______. A identidade cultural da pós-modernidade. 10. ed. São Paulo: DP&A, 1997.; 2000______. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p. 103-33; 2003HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.) de perceber o sujeito contemporâneo em relação as organizações.

Ao processo de identificação, entende-se que este “opera por meio da différance, ela envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas, a produção de ‘efeitos de fronteira” (HALL, 2000______. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p. 103-33, p. 106). As identificações, assim, podem ir ao encontro da identidade do sujeito ou diferenciar-se por completo. Nesse jogo de reconhecimento é que a identidade vai se criando, e isso faz com que a produção de identificações não seja algo lógico e determinado. O processo de identificação, ou de diferenciação, será fundamental para a compreensão da formação das identidades. A identidade será coletivamente constituída por essas identificações, através do discurso, muito embora o ego ideal seja “composto de identificações com ideais culturais que não são necessariamente harmoniosos” (HALL, 2000______. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p. 103-33, p. 107). Sobre o processo de formação de identidades, importante também ressaltar que os diferentes espaços de trabalho vão se constituir em oportunidades diferenciadas para a aquisição de atributos qualificativos da identidade do trabalhador e, por vezes, podem tanto qualificar quanto desqualificar os modos de ser dos sujeitos trabalhadores (JACQUES, 2006JACQUES, Maria da Graça Corrêa. Identidade e trabalho. In: CATTANI, Antônio David; HOLZMANN, Lorena (Org.). Dicionário de trabalho e tecnologia. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2006. ).

A construção de uma identidade está inteiramente conectada a uma comunidade simbólica, sendo essa, recorrentemente, uma nação. No mundo atual, as culturas nacionais em que se nasce ainda são uma das principais fontes de identidade cultural, outras dizem respeito à raça e etnia. Para Guimarães (2003)GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Como trabalhar com ‘raça’ em sociologia. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 93-107, jan./jun. 2003., as raças devem ser estudadas somente quando se trata de identidades sociais. Pode-se dizer que a raça faz parte do discurso da origem e que "certos discursos falam de essências que são basicamente traços fisionômicos e qualidades morais e intelectuais; só nesse campo a ideia de raça faz sentido" (GUIMARÃES, 2003GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Como trabalhar com ‘raça’ em sociologia. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 93-107, jan./jun. 2003., p. 96). Esses discursos sobre as origens de um grupo, que usam termos que remetem à transmissão de traços fisionômicos, qualidades morais, intelectuais, psicológicas etc. remetem principalmente a relações de poder (PEREIRA; OLIVEIRA, 2017PEREIRA, Flávia Oliveira; OLIVEIRA, Josiane Silva. A intersecção entre raça, gênero e imigração no mercado de trabalho: um estudo com mulheres haitianas na cidade de Maringá, Paraná. Trabalho apresentado no VI ENCONTRO DE GESTÃO DE PESSOAS E RELAÇÕES DE TRABALHO. Curitiba, 2017. ), especialmente pela discriminação do diverso e da hierarquização da sociedade brasileira em estruturas de poder e, sobretudo de classe (SODRÉ, 2017SODRÉ, Muniz. Raça como fraude civilizatória. Palestra proferida em ocasião da gravação do filme “Depois de ser cinza”, Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, 2017.).

Quando se fala de lugares, discursos sobre lugares geográficos de origem (Brasil, Peru, Senegal, Haiti, etc.), fala-se também de etnia. Para Guimarães (2003)GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Como trabalhar com ‘raça’ em sociologia. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 93-107, jan./jun. 2003., o conceito de etnia remete ao lugar de onde se veio e à identificação com um grande grupo de pessoas. A etnia não está impressa nos genes de uma pessoa, contudo pensa-se nela como se fosse parte da natureza essencial de uma pessoa. Todos esses fatores nutrem a construção da identidade de uma pessoa como indivíduo. De acordo com Hall (1997)______. A identidade cultural da pós-modernidade. 10. ed. São Paulo: DP&A, 1997., a pessoa (sujeito) precisa se sentir parte de um lugar (país) para criar e ter sua identidade. Do contrário, ele experimentaria um profundo sentimento de perda subjetiva. A cultura nacional de uma pessoa é a principal fonte de identidade social, pois atua como foco de identificação para o indivíduo e como um sistema de representação - que é uma nação. Portanto é instigante conhecer o que ocorre com a identidade social de uma pessoa quando se muda para outra nação, ou, quando na sua própria nação, há indivíduos pertencentes a outras nações. Este é o retrato atual do sujeito pós-moderno marcado pela globalização, como os toxicômanos de identidade (ROLNIK, 1997ROLNIK, Sueli. Toxicômanos de identidade: subjetividade em tempo de globalização. In: LINS, Daniel (Org.). Cultura e subjetividade: saberes nômades. Campinas, SP: Papirus, 1997. p. 19-24.).

Com a globalização, marcada pela facilidade de os sujeitos vincularem-se com outras culturas, criam-se, cada vez mais, sujeitos ‘deslocados’, pois a identidade de um indivíduo e a identidade cultural de um país é constituída também por outras culturas (MIRANDA, 2000MIRANDA, Antônio et al. Sociedade da informação: globalização, identidade cultural e conteúdos.Ciência da Informação, Brasília, v. 29, n. 2, p. 78-88, maio/ago. 2000.). Assim, “as transformações associadas à modernidade libertam o indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas” (HALL, 1997______. A identidade cultural da pós-modernidade. 10. ed. São Paulo: DP&A, 1997., p. 25), possibilitando espaços híbridos com narrativas multiculturais. Assim, as identidades das sociedades atuais estão constantemente em transformação, as identidades nacionais “estão em declínio, mas novas identidades - híbridas - estão tomando seu lugar” (HALL, 1997______. A identidade cultural da pós-modernidade. 10. ed. São Paulo: DP&A, 1997., p. 69).

A vida social está mediada pelo mercado global de estilos, lugares, imagens, viagens internacionais, comunicação etc. Somos confrontados diariamente por uma gama de diferentes identidades, dentro das quais é possível fazer escolhas. Hall (1997)______. A identidade cultural da pós-modernidade. 10. ed. São Paulo: DP&A, 1997. defende que isso difundiu o consumismo e que vivemos em um “supermercado cultural”. Com isso, criou-se um fenômeno que o autor chama de “homogeneização cultural”. Porém o autor argumenta que a constatação de que as identidades sociais são homogeneizadas é simplista, tornando-se um formato exagerado e unilateral. Da mesma forma que há o impacto da globalização, há o interesse pelo “local”, por ser diferente dentro de uma cultura globalizada. Portanto é improvável que a globalização destrua as identidades nacionais, mas provável que produza, simultaneamente, novas identificações globais e novas identificações locais.

Após a segunda guerra mundial, o fenômeno da migração se intensificou. Um dos motivos que Hall (1997)______. A identidade cultural da pós-modernidade. 10. ed. São Paulo: DP&A, 1997. ressalta para este fenômeno é a mensagem que o consumismo global transmitiu. Pessoas impulsionadas pela pobreza, fome, seca, guerra civil, subdesenvolvimento econômico, distúrbios políticos etc., acreditaram na mensagem de que há chances maiores de sobrevivência onde os “bens” são produzidos. Este foi um dos períodos mais longos e não planejados de emigração na história recente, facilitado pelo acesso ao ocidente, que, na era das comunicações globais, está a apenas a um voo de distância. Dessa forma, havia migrações contínuas e de grande escala, sendo estas legais ou ilegais. Como exemplo, podemos citar os latinos de países mais pobres (Haiti, Cuba, Porto Rico e República Dominicana) migrando para os Estados Unidos, o que acarretou uma mudança na mistura étnica do país. “Em 1995, previa-se que um terço dos estudantes de escolas públicas americanas seria constituído por não brancos” (CENSO DOS ESTADOS UNIDOS, 1991 apud HALL, 1997______. A identidade cultural da pós-modernidade. 10. ed. São Paulo: DP&A, 1997.).

Há muitos outros exemplos, como os senegaleses na França e na Bélgica, os turcos e norte-africanos na Alemanha, os asiáticos (de ex-colônias holandesas) na Holanda etc. Essa fusão de etnia minoritária no interior dos estados-nação do ocidente levou à pluralização das culturas e identidades nacionais.

Para o subsecretário-geral do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da ONU (DESA), Wu Hongbo, o aumento de imigrantes internacionais reflete a crescente importância da migração e tem se tornado uma parte integral das nossas economias e sociedades. A migração bem administrada traz importantes benefícios aos países de origem e destino, bem como para os migrantes e suas famílias. A agência da ONU para os refugiados afirma que esses são protegidos por leis internacionais. Eles saem de seus países por medo de perseguição, conflitos, violência e outras circunstâncias que perturbam seriamente a ordem pública. A situação dos refugiados é frequentemente tão intolerável que eles cruzam fronteiras para estarem em segurança e, ao serem reconhecidos como refugiados, passam a ter acesso à assistência do país em que se encontram. Para eles, é muito perigoso o retorno para casa, a ponto de a negação de asilo ter consequências que podem levar à morte. Essa situação é muito diferente da simples imigração voluntária, em que alguém decide cruzar fronteiras em busca de melhores oportunidades ou, ainda, da migração forçada, que diz respeito às pessoas que são deslocadas por motivos de desastres ambientais, fome etc. Porém essa última não é um conceito legal ou mesmo uma definição universalmente aceita (UNITED NATIONS REFUGEE AGENCY [UNHCR], 2016UNITED NATIONS REFUGEE AGENCY (UNHCR). Refugees’ and ‘Migrants. 16 mar. 2016. Disponível em: <http://www.unhcr.org/afr/news/latest/2016/3/56e95c676/refugees-migrants-frequently-asked-questions-faqs.html>. Acesso em: 13 jun. 2017.
http://www.unhcr.org/afr/news/latest/201...
).

Os próprios editores do The Oxford Handbook of Refugee and Forced Migration Studies reconhecem que a linha a ser traçada entre refugiados e migração forçada não é consenso, mas que se trata de situações diferentes (JURASZ, 2016JURASZ, Olga. Book reviews. International Journal of Refugee Law, v. 28, n. 2, p. 347-61, 2016.).

A imigração interfere diretamente na construção de nova identidade social de um país e, consequentemente, na construção da identidade do indivíduo, seja ele migrante ou nativo de uma nação. As migrações humanas têm papel principal na construção de sociedades híbridas. Com a imigração internacional progressiva, a sociedade multicultural é vigente. Segundo Hall (2003, p. 52)HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., multicultural é:

[...] um termo qualificativo. Descreve características sociais e problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo tempo em que retêm algo de sua identidade “original”.

Sob esse aspecto, a identidade social dos indivíduos e seu desenvolvimento contemplam a sociedade multicultural. Para uma sociedade multicultural, um termo utilizado para caracterizar as culturas cada vez mais mistas é o hibridismo, porém, seu sentido tem sido mal interpretado. Hibridismo “não é uma referência à composição racial mista de uma população. É realmente outro termo para a lógica cultural da tradução” (HALL, 2003HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 74). Para o autor, hibridismo não se refere aos indivíduos, mas refere-se ao momento de transformação social, do qual a tradução cultural nunca se completa e permanece em desenvolvimento. Conforme Hall (1997)______. A identidade cultural da pós-modernidade. 10. ed. São Paulo: DP&A, 1997., as identidades nacionais estão em declínio e novas identidades híbridas estão tomando o seu lugar. A globalização interfere no multiculturalismo, sendo que a globalização padroniza a forma de se vestir, língua utilizada mundialmente para se comunicar, comida, música etc.

O termo multiculturalismo refere-se “às políticas e estratégias para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas sociedades multiculturais” (HALL, 2003HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 52). Ele possui dificuldades específicas e é caracterizado por articulações, ideais e práticas sociais. O multiculturalismo sempre existiu, ele é tão antigo quanto a humanidade, e tem se intensificado desde a segunda guerra mundial, além de ocupar um lugar destacado no campo político (HALL, 2003HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.). Isso traz sérias mudanças decisivas nas forças e relações sociais de todo o mundo. O encaminhamento das ações ligadas ao multiculturalismo depende da natureza das questões em debate e dos países envolvidos. No caso do Brasil, “leva-se em conta a diversidade étnica e o pluralismo cultural” (D'ADESKY, 1997D'ADESKY, Jacques. Pluralismo étnico e multiculturalismo. Afro-Ásia, n. 19-20, p. 165-82, 1997., p. 165) inclusive na Constituição Federal.

Kymlicka (2012)KYMLICKA, Will. Multiculturalism: sucess,failure, and the future: transtlantic council on migration. February 2012. Tradução de Maria Tereza Amodeo. Interfaces Brasil/Canadá, Canoas, RS, v. 14, n. 18, p. 123-74, 2014. descreve diversos fatores que interferem na implementação do multiculturalismo. Esses incluem enxergar o multiculturalismo como uma política social ou como questão de segurança de Estado - quando o Estado considera os imigrantes uma ameaça, principalmente aqueles que chegam como refugiados ou ilegais, caso em que o apoio ao multiculturalismo é reduzido.

Um fator que facilita o multiculturalismo é quando existe comprometimento compartilhado em relação aos direitos humanos em todas linhas étnicas e religiosas envolvidas. Nesse caso, se o Estado identifica que determinados grupos (como exemplo, os muçulmanos) não estão dispostos a respeitar as normas democráticas liberais, é pouco provável que conceda direitos ou recursos multiculturais a esse grupo. Um ponto interessante, e destacado por Kymlicka (2012)KYMLICKA, Will. Multiculturalism: sucess,failure, and the future: transtlantic council on migration. February 2012. Tradução de Maria Tereza Amodeo. Interfaces Brasil/Canadá, Canoas, RS, v. 14, n. 18, p. 123-74, 2014., é que o multiculturalismo funciona melhor quando é genuinamente multicultural, isto é, quando há imigrantes de vários países em vez de um enorme grupo de um mesmo país.

O esforço e contribuição econômica que os imigrantes fazem à sociedade também é um embasamento ao multiculturalismo. Consequentemente, quando as questões facilitadoras estão presentes, o multiculturalismo pode ser visto como uma opção de baixo risco. De qualquer forma, conforme salienta Kymlicka (2012)KYMLICKA, Will. Multiculturalism: sucess,failure, and the future: transtlantic council on migration. February 2012. Tradução de Maria Tereza Amodeo. Interfaces Brasil/Canadá, Canoas, RS, v. 14, n. 18, p. 123-74, 2014., rejeitar o multiculturalismo de imigrantes, sob circunstâncias de asilo e de entrada ilegal, é um movimento de alto risco porque é, precisamente nessa situação, que o multiculturalismo pode ser mais necessário para dar suporte a essas pessoas.

Somado aos problemas relacionados ao desenvolvimento social devido à diversidade de etnias, ainda há o ressurgimento de traços de antigos nacionalismos étnicos e religiosos mal resolvidos, fazendo com que as tensões nessas sociedades ressurjam de forma multicultural. A exclusão social e a discriminação são alguns traços étnicos permanentes na sociedade. Existe o racismo informal e o institucionalizado, conforme Hall (2003)HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. destaca. Por isso, o racismo é existente nas ruas, nas empresas, nos órgãos governamentais e nas instituições. Sob este contexto, um dos aspectos atuais mais problemáticos procedente da imigração e da globalização é a exclusão social. Os aspectos discriminatórios devido à religião e etnia ainda existem e ganham força nessas sociedades que ressurgem sob a forma multicultural. Nesse sentido, destacam-se as pautas dos direitos humanos enquanto centrais à manutenção dos processos democráticos, especialmente “quando neles se introduz o debate sobre o direito das minorias e dos grupos étnicos marginalizados em grandes áreas culturais” (OLIVEIRA; SOUZA, 2011 , p. 123).

A comunidade que recebe o imigrante não está alicerçada numa tradição imutável, da mesma forma que as tradições do indivíduo variam de acordo com a pessoa e constantemente são reformuladas devido à experiência do processo migratório. Trazendo esses aspectos que acarretam constante mudança de identidade social para o universo das organizações, é necessário primeiramente entender que a empresa e as pessoas que as compõem precisam estar preparadas para a diversidade. De acordo com Fleury (2000)FLEURY, Maria Tereza L. Gerenciando a diversidade cultural: experiências de empresas brasileiras. RAE - Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 40, n. 3, p. 18-25, jul./set. 2000., o conceito de diversidade na organização está relacionado ao respeito à individualidade dos empregados e ao reconhecimento desta. Respeitar a identidade cultural do funcionário imigrante, a sua diversidade caracterizada pela conduta e comportamento, de acordo com Sarriera, Pizzinato e Meneses (2005)SARRIERA, Jorge Castellá; PIZZINATO, Adolfo; MENESES, María Piedad Rangel. Aspectos psicossociais da imigração familiar na Grande Porto Alegre. Estudos de Psicologia, Natal, RN, v. 10, n. 1, p. 5-13, 2005., talvez seja o aspecto mais importante a ser conquistado para se viver numa sociedade e organização multiculturais.

Atualmente a ideia de reconhecer e valorizar a diferença dos indivíduos integra o repertório do universo corporativo, como salientam Barbosa e Veloso (2007)BARBOSA, Lívia; VELOSO, Letícia. Gerência intercultural, diferença e mediação nas empresas transnacionais. Civitas - Revista de Ciências Sociais, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 59-85, jan./jun. 2007.. Além disso, os autores afirmam que, tanto na esfera política quanto na própria esfera organizacional, a noção de multiculturalismo vai além das políticas identitárias, pois constrói as questões da diferença e da identidade em cima da importância do reconhecimento da diferença, elemento importante tal como reforça Jacques (2006)JACQUES, Maria da Graça Corrêa. Identidade e trabalho. In: CATTANI, Antônio David; HOLZMANN, Lorena (Org.). Dicionário de trabalho e tecnologia. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2006. . Esse conceito inclui não só identidades pessoais, mas inclui as políticas multiculturais, os dilemas éticos relacionados à diversidade cultural e étnica, os conflitos interculturais e a questão da integração (individual e social).

Nas organizações, o multiculturalismo é caracterizado pela coexistência de várias identidades sociais no interior de um mesmo espaço de trabalho. Algumas vezes, a necessidade de interação cotidiana é limitada, ou não existe interação entre as pessoas. De acordo com Barbosa e Veloso (2007)BARBOSA, Lívia; VELOSO, Letícia. Gerência intercultural, diferença e mediação nas empresas transnacionais. Civitas - Revista de Ciências Sociais, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 59-85, jan./jun. 2007., para uma empresa alcançar seus objetivos com uma equipe multicultural, faz-se necessário ir além dos aspectos do multiculturalismo e da compreensão da diversidade; é necessária uma base comunicacional comum, onde o diálogo predomine e onde todos compreendam os objetivos do negócio e a melhor forma de atingi-los. Existe a necessidade de se entender o outro de um ponto de vista cultural, para que o diálogo e a comunicação possam ser estabelecidos, ou seja, precisa-se de uma “cultura organizacional com enfoque global” (BUENO; FREITAS, 2015BUENO, Janaína Maria; FREITAS, Maria Ester de. As equipes multiculturais em subsidiárias brasileiras de multinacionais: um estudo de casos múltiplos. Organizações & Sociedade, Salvador, BA, v. 22, n. 72, p. 15-34, jan./mar. 2015., p. 15). Sodré (2017)SODRÉ, Muniz. Raça como fraude civilizatória. Palestra proferida em ocasião da gravação do filme “Depois de ser cinza”, Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, 2017., por sua vez, sugere que não bastam as políticas afirmativas, mas que são necessárias uma educação e uma aproximação pela afetividade.

3 AS ENTREVISTAS E OS ENTREVISTADOS

Trata-se de uma pesquisa qualitativa exploratória que utilizou entrevista e dados demográficos. De acordo com Bauer e Gaskell (2003)BAUER, Martin; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. , esse tipo de pesquisa lida com interpretações das realidades sociais. É uma pesquisa empírica, que não utiliza números, mas textos que devem ser interpretados. Como o foco do estudo é verificar de que forma a identidade dos imigrantes vem sendo vivenciada em cidade e organizações multiculturais, definiu-se que a pesquisa exploratória é o melhor método para a busca do corpus a ser analisado. A definição do método partiu da necessidade de entender diferentes ambientes sociais e observar conceitos, opiniões, vivências, crenças, sentimentos, identidades, ideologias, religiões e hábitos, através de uma pesquisa qualitativa exploratória. Esse tipo de pesquisa é também uma maneira de dar voz e poder às pessoas, em vez de tratá-las como objeto.

A técnica utilizada de coleta de dados é a entrevista semiestruturada. De acordo com Bauer e Gaskell (2003)BAUER, Martin; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. , o foco de uma entrevista não é contar as pessoas/opiniões, mas explorar as opiniões num meio social específico onde haverá diferentes representações sobre o assunto. A entrevista é a vivência do entrevistado e tem como objetivo uma compreensão detalhada das crenças, atitudes e motivações em relação ao comportamento das pessoas num contexto social específico.

Outras vantagens dessa técnica, de acordo com Gil (2008)GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008., é que a entrevista não exige que a pessoa entrevistada saiba ler e escrever, possibilita um maior número de respostas (pois é mais fácil negar um questionário do que negar a ser entrevistado), oferece maior compreensão das perguntas (pois o entrevistador pode explicar as perguntas que faz) e ainda possibilita captar a expressão corporal e oral do entrevistado, fator importante e ressaltado por Bauer e Gaskell (2003)BAUER, Martin; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. .

De acordo com o tema pesquisado, foi empregada a técnica de grupos naturais para segmentar os entrevistados. Sabe-se que, nos grupos naturais, as pessoas podem partilhar um passado comum ou ter um projeto futuro comum. Nesta pesquisa, os participantes passaram pela mesma experiência de vivenciar um processo de imigração e estão vivendo na mesma cidade, no caso, Porto Alegre, e que estão no mercado de trabalho (ou tentando entrar). A seleção foi de 8 participantes, pois, conforme Bauer e Gaskell (2003)BAUER, Martin; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. , após a entrevista é necessário analisar o corpus de cada uma, lembrando que, cada uma dessas gera volumosos aspectos a serem analisados.

Tabela 1
Descrição da Amostra

Com esse universo de entrevistados, foi possível obter representações individuais, perceber a interferência da identidade dos indivíduos e verificar os processos sociais e profissionais de cada pessoa. Cada uma das entrevistas teve um tempo médio de uma hora e, elaboradas com 19 perguntas em um roteiro semiestruturado, contemplaram questões sobre: a história de vida dos participantes e o percurso migratório, percepções destes quanto às diferenças culturais e, ainda, quanto aos modos de vida no trabalho em relação aos dois países.

A análise e a interpretação dos dados coletados seguiram a técnica da análise de conteúdo. Para iniciar a análise, primeiramente o corpus passa por um processo de codificação. Após, é feita uma leitura no sentido de limpá-los, e o passo seguinte é o de definir unidades de análise por temas (MORAES, 1998MORAES, Roque. Uma experiência de pesquisa coletiva: introdução à análise e conteúdo. In: GRILLO, Marlene Correro; MEDEIROS, Marilú Fontoura de (Org.). A construção do conhecimento e sua mediação metodológica. 1. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. p. 111-29. ). Para isso, iniciou-se com a leitura flutuante das entrevistas e, a partir desta, destacaram-se as unidades de significado. No decorrer, cada entrevista foi lida e segmentada pelos temas (significados) existentes. Identificaram-se as principais ideias expressas, sendo possível ordená-las de forma que construam um texto descritivo, apresentadas neste estudo em tabelas, que sintetizam o conteúdo da respectiva problematização inicial. Por fim, apresentam-se extratos de entrevista, retirados diretamente das suas transcrições para formar descrições mais consistentes e realizar a validação de conteúdo.

Para melhor análise dos temas, os entrevistados foram segmentados em dois grupos, sendo o primeiro grupo de migrantes forçados e o segundo grupo de migrantes voluntários, categorias definidas a posteriori da coleta dos dados. Aos haitianos, por exemplo, foram concedidos vistos humanitários em detrimento do status de refugiado (já que não se tratava de perseguição política), em virtude de todas as obrigações do Estado para com os refugiados, como garantias civis, sociais, educacionais e até mesmo trabalhistas. Tratou-se de sugestão do próprio Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), pois assim não onerava o governo brasileiro com as obrigações da Convenção de Genebra, mas permitia a esses migrantes uma proteção estatal mínima (UEBEL, 2016UEBEL, Roberto Rodolfo Gearg. A mudança da política externa brasileira para imigrantes e refugiados: o caso da imigração haitiana no início do século. Barbarói, Santa Cruz do Sul, RS, edição especial, n. 47, p. 22-43, jan./jun. 2016.). Assim como os haitianos, os senegaleses também são considerados migrantes econômicos (UEBEL, 2015______. Análise do perfil socioespacial das migrações internacionais para o Rio Grande do Sul no início do século XXI: redes, atores e cenários da imigração haitiana e senegalesa. 2015. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Instituto de Geociências, Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2015. ) e fazem parte do primeiro grupo. O segundo é composto por imigrantes do Peru e do Chile.

Tabela 2
Divisão dos grupos. Países dos entrevistados

É significativo salientar que alguns dados dos entrevistados do Grupo 1 foram invalidados. As habilidades das entrevistadoras nas línguas portuguesa, inglesa e francesa não foram suficientes para uma comunicação efetiva em relação às línguas nativas. Dessa maneira, foram analisados os conteúdos dos entrevistados E1, E2 e E3, do grupo 1, e dos entrevistados E7 e E8 do grupo 2. A unidade de análise foi dividida em três temas que compreendem desdobramentos da problemática desta pesquisa, a saber: identidade social, imigração e multiculturalismo.

4 ANÁLISE DA IMIGRAÇÃO DE SENEGALESES, HAITIANOS E LATINO-AMERICANOS RESIDENTES EM PORTO ALEGRE

A primeira categoria analisada foi a identidade sob uma perspectiva social, no que diz respeito à etnia e raça dos entrevistados, a costumes e cultura, e como essas características se fazem presentes no cotidiano, mesmo estando em outro país. A tabela abaixo sintetiza os principais resultados da análise dos dados, dando destaque aos elementos mais referidos pelos entrevistados de acordo com os dois grupos propostos.

Tabela 3
Identidade social

Os dados do Grupo 1 mostram que a etnia é valorizada, e a raça é relacionada com características comportamentais das pessoas, como ser trabalhador e de fácil adaptação. Tal valorização fala de uma classificação preconceituosa e questionável, uma vez que é temerário classificar etnicamente uma pessoa por características comportamentais, e raça, como mencionado anteriormente, não é uma categoria biológica, mas sim discursiva (PEREIRA; OLIVEIRA, 2017PEREIRA, Flávia Oliveira; OLIVEIRA, Josiane Silva. A intersecção entre raça, gênero e imigração no mercado de trabalho: um estudo com mulheres haitianas na cidade de Maringá, Paraná. Trabalho apresentado no VI ENCONTRO DE GESTÃO DE PESSOAS E RELAÇÕES DE TRABALHO. Curitiba, 2017. ). Conforme relato do E2, “O Senegalês trabalha muito e quer trabalhar, só precisa nos oferecer trabalho”. No Grupo 2, a etnia é relatada e comparada quando os valores de vida do seu país são valorizados e contrastados com o do país migratório. Conforme E7 relata:

Eu não gosto da falta de estruturação que o brasileiro tem. O brasileiro vive o hoje e nunca pensa no amanhã. O sucesso, a ideia que o brasileiro tem da vida está na lei dos jogadores de futebol. Brasileiro tem sonhos e não planos.

Hall (1997)______. A identidade cultural da pós-modernidade. 10. ed. São Paulo: DP&A, 1997. argumenta sobre a importância das culturas nacionais em que a pessoa nasce, e que constituem na principal fonte de identidade cultural. Ao fazer autorreferência sobre ser brasileiro, senegalês ou chileno, se está informando, de forma metafórica, algum elemento sobre a identidade, representada aqui como pertencente a uma raça e etnia, fatores que contemplam um Estado-nação. Todos os entrevistados demonstraram verbalmente orgulho e lealdade ao seu país, relatando valores e características de sua nação.

A cultura e os costumes demonstrados na pesquisa têm grande significado na vida dos entrevistados e são comprovados com os relatos de carência desses aspectos no país migratório em ambos os grupos analisados. A comida é o item mais destacado, seguido por festas tradicionais, sendo estas religiosas ou nacionais. Hall (1997, p. 50)______. A identidade cultural da pós-modernidade. 10. ed. São Paulo: DP&A, 1997. afirma que “uma cultura nacional é um discurso, um modo de construir sentidos que influencia e organiza nossas ações e a própria concepção de nós mesmos”. Dessa maneira, é reafirmado que fatores culturais como comida, celebrações nacionais, música, dança e língua são presentes diariamente na vida das pessoas e são o que faz sentido para a formação de sua identidade social.

Quando a pessoa emigra, a carência desses aspectos é a mais perceptível. A permanência ou tentativa de realizar alguns fatores culturais da sua nação no país migratório (como ter acesso à comida típica, celebrar festas nacionais etc.) é visivelmente comprovada nos relatos do Grupo 1 e 2. Tal fato remete a dois elementos importantes: identidade e memória. É pela memória que o sujeito se constitui (BLEICHMAR, 2005BLEICHMAR, Silvia. La subjetividad en riesgo. 1. ed. Buenos Aires: Topía, 2005.) e o fato de lembrar das comidas e festas já celebradas alimenta a narrativa e construção da vida e memória. Conforme o relato do E8, “Mas mais que tudo, a comida eu sinto muita, muita falta. Agora, em Porto Alegre, tem 2 restaurantes peruanos que, quando eu posso, eu vou, pois realmente a comida eu sinto muita falta.” Assim, há, quando possível, a continuidade de seus costumes e cultura no país estrangeiro. Porém Hall (2003)HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. salienta que as tradições são mutáveis, como ocorre nas diásporas, e variam de acordo com a pessoa ou mesmo dentro de uma pessoa, e seguidamente são refletidas, revisadas e transformadas em respostas às experiências migratórias. Compreende-se, assim, a abordagem de que a identidade social do indivíduo é constantemente modificada e reconstruída de acordo com a identidade dos locais onde a pessoa transita, criando então uma nova identidade social.

Isso provoca a pensar também a importância de associar identidade social com relações de trabalho. À medida que o sujeito se insere em um novo mercado de trabalho, novas relações de trabalho também emergem e novas configurações entre os agentes sociais (trabalhadores e empregadores) são apresentadas (FISCHER, 1987FISCHER, Rosa Maria. Pondo os pingos nos “is”: sobre as relações do trabalho e políticas de administração de recursos humanos. In: FLEURY, Maria Tereza; FISCHER, Rosa Maria (Coord.). Processo e relações do trabalho no Brasil. São Paulo: Atlas, 1987.), formando uma imagem caleidoscópica das relações de poder emergentes dessa nova configuração.

O segundo tema analisado foi motivo e efeito de migrar, especialmente a existência ou não de discriminação por ser imigrante. A tabela abaixo sintetiza os principais resultados da pesquisa de acordo com a prevalência dos argumentos coletados nas entrevistas individuais.

Tabela 4
Os motivos e efeitos da imigração

O motivo de migrar do Grupo 1 foi a necessidade de dar melhor condição de vida para a família (que ficou no país de origem). Bem diferente dessa necessidade, o Grupo 2 teve como motivo de imigração o desenvolvimento pessoal e profissional, não possuindo necessidade de melhorar de vida por já terem condições muito boas no seu país. Contudo os entrevistados do Grupo 1 relataram que melhorar de vida, para eles, também é ter mais dinheiro e estudar para se desenvolver numa profissão. Esse ponto reflete uma dimensão da ideologia dominante produzida pelas práticas gerencialistas e reproduzida pelos trabalhadores cotidianamente (BENDASSOLLI, 2007BENDASSOLLI, Pedro Fernando. O mal-estar na sociedade de gestão - e a tentativa de gestão do mal-estar (Prefácio). In: GAULLEJAC, Vincent de. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2007.). Há uma questão econômica presente no imaginário social, portanto, que serve ao exercício de uma dominação empresarial, conseguindo aliar os desejos humanos às demandas das organizações, sem responsabilizá-las ou ao Estado pela ausência de políticas de educação. Afora isso, esse imaginário social também serve para ressaltar que tanto os diferentes espaços de trabalho quanto as diferentes oportunidades laborais que se apresentam para os imigrantes, vão se constituir em oportunidades diferenciadas para a aquisição de atributos qualificativos da identidade deles e, por vezes, podem tanto qualificar quanto desqualificar os modos de ser dos sujeitos trabalhadores (JACQUES, 2006JACQUES, Maria da Graça Corrêa. Identidade e trabalho. In: CATTANI, Antônio David; HOLZMANN, Lorena (Org.). Dicionário de trabalho e tecnologia. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2006. ).

No momento da decisão da migração, todos os entrevistados escolheram o Brasil como país migratório devido às oportunidades. Cabe ressaltar que o Grupo 1 teve informações não oficiais para tomar a decisão de migrar para o Brasil, conforme relata E1: “Na verdade, eu trabalhava no Senegal. E lá muita gente fala que o Brasil é bom para trabalhar e que ganha mais aqui do que no Senegal.” Um dos entrevistados do Grupo 2 (E8) fez ampla pesquisa sobre custos de vida, como é a cultura e estudou a língua anteriormente. Já o entrevistado E7 (do Grupo 2) buscou o Brasil devido à oportunidade de trabalho e relatou que o motivo de migrar foi por ter saído do seu país 4 anos antes (para fazer doutorado) e, quando retornou, não reconheceu a cultura do seu país:

Quando eu parti, em 1989, Chile era uma ditadura militar. Nesta época, eu e meus amigos estávamos todos no final de seus estudos. Quando eu retornei, tínhamos uma democracia e tudo era diferente. Meus amigos eram na grande maioria homens casados. Para, mim foi um choque. (E7).

Algumas constatações dos motivos de migrar são as mesmas que Hall (2003)HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. elucida sobre a pobreza, o subdesenvolvimento e a falta de oportunidades serem alguns fatores que forçam a pessoa a migrar, além de guerra, desastres naturais, repressão política etc., esclarecendo que a migração e o deslocamento fazem parte da história dos povos. Assim, percebe-se que os motivos, independente da época de imigração, se repetem. Também nota-se que uma nação certamente sofre interferência de outras culturas. Outro ponto a refletir é sobre a decisão de migrar devido ao não reconhecimento do seu país após experiência de migração anterior, conforme relatou E7. Para Hall (2003)HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., esta é uma sensação familiar e moderna do deslocamento e que não é preciso viajar muito longe para experimentar. Assim, muitos imigrantes não reconhecem a identidade social de seu país quando retornam e têm a sensação de não pertencer mais à nação. Se a memória diz também sobre a identidade de uma pessoa (BLEICHMAR, 2005BLEICHMAR, Silvia. La subjetividad en riesgo. 1. ed. Buenos Aires: Topía, 2005.), pode-se imaginar o sofrimento de um indivíduo quando perde os laços e a sensação de não pertencimento ao seu lugar de origem, tal como relata E7.

Porém, apesar da interferência de outras culturas, cada país possui a sua, e foi instigante analisar se as diferenças culturais interferem de forma destacada na vida dos imigrantes. De acordo com os entrevistados de ambos os grupos, a falta de segurança foi característica destacada e de grande surpresa para eles, inclusive para o entrevistado que pesquisou sobre o Brasil. Além disso, grande parte dos entrevistados querem retornar ao seu país de origem, por afirmarem ter se decepcionado com o Brasil, seja pela promessa não conquistada de postos dignos de trabalho, seja pela discriminação recorrente. Isso também talvez ocorra já que é possível que “cada disseminação carregue consigo a promessa do retorno redentor” (HALL, 2003HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 28).

A discriminação foi outro fator analisado. De acordo com as entrevistas, o grupo 1 não sofreu discriminação no Brasil de forma que sobressaísse a outros países. Já no grupo 2, há um relato sobre discriminação, em que o entrevistado argumentou que, por falar outra língua, uma pessoa na rua o discriminou por estar “tirando” trabalho de um brasileiro. Nesse caso, a discriminação não foi devido à raça ou etnia, mas por ser imigrante. Essa análise pode ser incorporada à explanação de Hall (2003)HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. sobre a discriminação relativa ao imigrante, pois ele defende que tanto o racismo biológico quanto a discriminação cultural não constituem dois sistemas distintos, mas dois registros do racismo. Dessa forma, a discriminação demonstrada no relato do entrevistado é cultural, somada à situação de falta de emprego que o Brasil enfrenta.

O terceiro tema analisado foram as questões do multiculturalismo no Brasil e nas organizações. Destacaram-se os fatores como recepção ao chegar no Brasil e nas organizações/instituições, convívio no ambiente multicultural, amizade e vida social. A tabela seguinte, da mesma forma das anteriores, destaca os principais achados analíticos.

Tabela 5
Multiculturalismo e as diferenças culturais

Ao analisar as entrevistas, foi apurado que os brasileiros recepcionam bem os imigrantes na chegada ao país. O Grupo 1 teve algumas dificuldades em ter acesso à informação sobre aspectos legais, como: onde ir para buscar documentos, como proceder, quanto tempo de espera, etc. Porém essas dificuldades se deram também devido aos imigrantes não falarem a língua portuguesa nem a língua inglesa. Já o Grupo 2 não relatou qualquer dificuldade e os entrevistados informaram que foram bem recebidos. Aliás, essa característica de bem recepcionar o estrangeiro foi uma grata surpresa para todos os imigrantes.

Percebi que as pessoas viam que eu não era do Brasil e eram mais atentas comigo, alegres e perguntando o que eu precisava. Teve uma mulher que perguntou o que eu estava precisando e me levou até a Polícia Federal. Aqui no Peru isso seria muito estranho, nós somos desconfiados com as pessoas e no Brasil não...eu pensava o que estas pessoas queriam pois elas não me conheciam. Eu achava muito estranho. Além disso, na parada de ônibus, quando eu cheguei, fiz uns 2 ou 3 amigos que até hoje eu falo. (E7).

Para Hall (2003)HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., uma nação multicultural é caracterizada por diferentes comunidades que tentam construir uma vida em comum. Ao recepcionar, ajudar e orientar os imigrantes, os brasileiros se revelam abertos aos estrangeiros. Entretanto, a análise realizada sobre a amizade, vida social e convívio no Brasil mostra que o Grupo 1 tem uma colônia separada dos brasileiros e que, apesar de viver nesse país, não possuem uma vida em comum com os brasileiros. Diferentemente do que informa o teórico como característica multicultural, os imigrantes não conhecem a cultura brasileira e não têm acesso a ela, pois a maioria não sabe a língua portuguesa e não tem amigos brasileiros. Desse modo, eles vivem “isolados”. Um dos entrevistados afirma: “Não posso falar da cultura brasileira, pois não conheço. Vivo no bairro com imigrantes, no trabalho tinha poucos colegas brasileiros, tinha bem mais amigos imigrantes” E2. Essa perspectiva, por si só, reflete a segregação dos imigrantes, especialmente ao Grupo 1, demonstrando a pouca receptividade da sociedade local quanto à integração do ‘diferente’. Além disso, o grupo 1 menciona que existe tendência de remuneração mais baixa por ser imigrante. Tal fato é recorrente no Brasil com imigrantes, especialmente com mulheres, já revelou o estudo de Pereira e Oliveira (2017)PEREIRA, Flávia Oliveira; OLIVEIRA, Josiane Silva. A intersecção entre raça, gênero e imigração no mercado de trabalho: um estudo com mulheres haitianas na cidade de Maringá, Paraná. Trabalho apresentado no VI ENCONTRO DE GESTÃO DE PESSOAS E RELAÇÕES DE TRABALHO. Curitiba, 2017. .

Mais uma vez, a língua destacou-se por ser essencial para permear a cultura local, o que aparece mais forte nos migrantes forçados, que é o Grupo 1, provavelmente por não terem tido tempo ou condições de se preparar para migrar. O Grupo 2, conforme referido, domina a língua portuguesa, conhece muitos aspectos culturais, participa de festas tradicionais e possui amigos estrangeiros e brasileiros. Está, assim, mais integrado ao país e podendo ter a experiência de viver num país multicultural, onde as comunidades culturais convivem e tentam construir juntos uma vida em comum, como Hall (2003)HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. defende, apesar de isso não acontecer com o grupo de migrantes forçados. A possibilidade de acolhimento desse imigrante pelos brasileiros apresenta-se como um fato sobretudo humano relacionado ao trabalho. O trabalho, por vezes, por si só, já é carregado de precarização; torná-lo mais humano e com momentos de acolhimento a esse trabalhador, que já vem de uma história de sofrimento e solidão, pode fazer a diferença na trajetória de vida pessoal e profissional desses imigrantes.

Parte-se da premissa de que “traços culturais brasileiros podem influenciar na maneira pela qual as pessoas são percebidas, geridas, administradas e controladas” (MOTTA; ALCADIPANI; BRESLER, 2001MOTTA, Fernando C. Prestes; ALCADIPANI, Rafael; BRESLER, Ricardo B. A valorização do estrangeiro como segregação nas organizações. Revista de Administração Contemporânea, Curitiba, PR, v. 5, número especial, p. 59-79, 2001., p. 61). Assim, em relação ao multiculturalismo nas organizações, ambos os grupos apresentaram grandes problemas para serem recebidos pelas empresas e instituições. Para o Grupo 1, o fator de não falar a língua é um problema para obter trabalho, bem como para negociar a sua permanência na atividade desenvolvida, havendo relatos de discriminação e violência verbal no tratamento do superior. O Grupo 2, apesar de os entrevistados se sentirem inseridos e aceitos na cultura local, no momento de desenvolverem atividades no trabalho, há uma exclusão, por parte dos colegas, por serem imigrantes.

Os grupos são muitos fechados, eles (colegas) gostam de nós (imigrantes), de mim e uma amiga estrangeira, para as festas, mas são fechados para o trabalho. Imagino que deve ser complicado pra eles para trabalhar com conflito de culturas e personalidades diferentes e percebi que não estão tão abertos para trabalhar com pessoas de outra cultura. (E8).

Dessa forma, a fala deixa transparecer que há contato nas relações pessoais, de cunho íntimo, mas que encontra dificuldades quando se trata de uma valorização profissional, por vezes até movida pelo sentimento de que o imigrante estaria ocupando um lugar que não é de seu direito. Assim, há um indicativo de que o trabalho avança a fronteira da posição de turista, marcando uma outra posição ao imigrante, limite este que faz com que o grupo crie dificuldades de reconhecimento. De acordo com Hall (2003)HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., com o multiculturalismo, existe a demanda por igualdade e justiça social contra um racismo diferenciado. Além disso, existe a demanda pelo reconhecimento da diferença cultural. Todos esses fatos corroboram com análise desta pesquisa. Já no contexto organizacional, esta demanda também é existente. Fleury (2000)FLEURY, Maria Tereza L. Gerenciando a diversidade cultural: experiências de empresas brasileiras. RAE - Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 40, n. 3, p. 18-25, jul./set. 2000. expõe a necessidade de igualdade social como conceito de diversidade, salientando a relação da diversidade com o respeito à individualidade dos trabalhadores.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Inicialmente, a língua demonstrou-se característica primordial do impasse com a cultura local para que o imigrante possa ser inserido na sociedade, mesmo que esta tenha marcas híbridas de processos migratórios significativos ao longo da história. Nesse sentido, políticas públicas, iniciativas de movimentos sociais e das organizações formais de trabalho que focassem no ensino da língua portuguesa como forma de inserção social, pretendem cumprir com uma importante lacuna desse processo de inclusão.

A raça e etnia são motivos de reflexão e compreensão ao olhar o outro, já que, ao nascer num país, obtém-se a identidade social desse país, mas, muitas vezes, é preciso um árduo movimento para conquistar o efetivo direito de pertencer ao espaço que é considerado do outro. A identidade de nascimento faz parte do “eu social”, ao dizer que se é brasileiro como critério de delimitação de si, por exemplo. Contudo a identidade não é engessada e muda de acordo com o ambiente e as vivências que se adquirem no decorrer da vida, inclusive pela possibilidade de pertencimento intencional a um ou mais espaços de Estado-nação.

Por outro lado, sublinha-se que o indivíduo credita importância à comprovação de fazer parte de uma etnia e raça para não “perder” sua identidade. Por isso, a cultura e os costumes em um país migratório são os aspectos mais relevantes e destacados nas narrativas cotidianas dos entrevistados. Conclui-se, portanto, que a língua, a comida e o modo de viver do Estado-nação causam um sentimento de falta ao imigrante e são muito mais importantes do que ele previamente poderia pensar, apesar de se traduzir, em grande parte, em elementos considerados simplórios. No entanto eles dizem respeito especialmente à memória, que nos constitui como sujeitos e faz parte da nossa narrativa da vida. Observa-se, nesse sentido, que a real importância da cultura nacional para um indivíduo só é efetivamente percebida em sua dimensão quando ele deixa de tê-la no seu cotidiano, reconhecendo como as atitudes simples do cotidiano lhes são realmente representativas. Apesar disso, a ausência da cultura nacional oferece a oportunidade para que os costumes do indivíduo se modifiquem, devido à interferência e à absorção das tradições e da cultura do país migratório. Percebe-se, claramente, a interferência da identidade social do país migratório na construção de uma outra identidade social do imigrante. Dessa maneira, uma pessoa torna-se um indivíduo híbrido e um sujeito com identidade social multicultural, de maior complexidade do ponto de vista das diferenças, que aquela anterior ao processo migratório.

Este estudo também identificou que, pela seleção dos participantes, os motivos de migrar são os mesmos, independente da época. Isto é, o motivo que trouxe os italianos, alemães e ­poloneses ao Brasil, e especial ao RS, no século XVIII, são os mesmos que atraíram os haitianos e senegaleses hoje em dia, que é a busca de melhoria na qualidade de vida. O curioso é que muito do racismo e da xenofobia parte dos descendentes desses imigrantes europeus, normalmente mascarados pelo discurso de suposta superioridade, que é reflexo da dialética das relações raciais em que há a dominação do Norte (IANNI, 2004IANNI, Octavio. Dialética das relações raciais. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 50, p. 21-30, jan./abr. 2004.). Todos esses fatos contribuem para deixar o trabalho mais desumano.

A questão de imigrar e não reconhecer o país de origem e sua cultura após o retorno, não se reconhecer como indivíduo pertencente à nação de origem, é outro fator que oportuniza um aprofundamento de estudo. Se o indivíduo não viver a mudança do seu país (no campo político, social, econômico), acaba tendo um sentimento de desconhecimento, já que os tópicos linguísticos que circulam no social podem não fazer mais sentido nesse espaço de socialização que antes era naturalizado. Dessa forma, a cultura pode ser entendida como bidirecional e (re)construída ao longo da vida dos indivíduos.

Considera-se que o Brasil é um país multicultural, justamente por possuir diferentes comunidades culturais que convivem juntas (como a comunidade formada pelo Grupo 1, por exemplo) e buscam construir uma vida em comum, especialmente afetiva, embora preservando aspectos da sua identidade nacional de origem. Os grupos de imigrantes forçados sofrem com a falta de inserção nos costumes e cultura locais, um fator a ser pensado e desenvolvido pelo governo e pelas organizações de trabalho em relação ao multiculturalismo, haja vista que a falta de diversidade cultural existente numa organização ou instituição acarreta uma certa discriminação. As pessoas que trabalham numa organização ou instituição, aceitam os imigrantes no quadro de funcionários, mas há exclusão no momento de executar as atividades. No assunto em questão, é preciso debater o tema da diversidade dentro das organizações e melhorar as estratégias e regras relacionadas ao multiculturalismo para que o imigrante se sinta integrado ao grupo. Além disso, o diálogo aliado a uma clara comunicação interna nas empresas é um caminho mostrado como essencial para organizações multiculturais. A dificuldade a ser enfrentada pelas organizações privadas de trabalho é criação de uma cultura organizacional na qual a diversidade seja respeitada e aceita como uma característica que possa agregar, inclusive, valor comercial à empresa.

Constata-se um verdadeiro paradoxo: as pessoas querem ser multiculturais e viver com a diversidade, mas relutam em conviver e aceitar a cultura, a religião e a cor de pele das pessoas. Reforçando o que discutimos, e amparados em Sodré (2017)SODRÉ, Muniz. Raça como fraude civilizatória. Palestra proferida em ocasião da gravação do filme “Depois de ser cinza”, Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, 2017., não existe identidade racial, e as discussões sobre raça são eminentemente uma categoria discursiva (PEREIRA; OLIVIERA , 2017PEREIRA, Flávia Oliveira; OLIVEIRA, Josiane Silva. A intersecção entre raça, gênero e imigração no mercado de trabalho: um estudo com mulheres haitianas na cidade de Maringá, Paraná. Trabalho apresentado no VI ENCONTRO DE GESTÃO DE PESSOAS E RELAÇÕES DE TRABALHO. Curitiba, 2017. ). Por isso, o multiculturalismo precisa ser tratado no sentido de buscar responder a uma lacuna nas relações sociais da contemporaneidade no que diz respeito ao debate sobre a discriminação. Seja por parte do Estado, das organizações formais, dos veículos midiáticos ou dos movimentos sociais, ainda é visível a necessidade de ampliar o diálogo sobre as imigrações para buscar o entendimento e a aceitação de outras culturas, de modo a formar um modelo de Estado-nação efetivamente multicultural.

REFERÊNCIAS

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Que razões levaram os imigrantes peruanos a se estabelecer no Brasil?

A inserção dos imigrantes peruanos na cidade e no Interior de São Paulo ocorre no contexto de reestruturação produtiva no Brasil e do consequente aumento do setor informal, com o comércio de artesanato e bijuterias e serviços domésticos.

Que razões levam os imigrantes?

A imigração é o processo de entrada de um indivíduo em um determinado território. Ela se dá por motivações econômicas, políticas, culturais e naturais. No geral, os imigrantes buscam por meio desse processo uma melhor condição de vida. Os deslocamentos populacionais fazem parte da história da humanidade.