Qual a linha de pensamento de Paulo Freire?

Introdução

A obra de Freire apresenta-se como uma referência fundamental para pesquisadores e educadores.

A partir de sua trajetória como educador e de seus estudos sobre referenciais teóricos diversos, Freire elaborou suportes para a análise crítica da formação humana. Freire resgatou a centralidade do sujeito histórico e sua ação transformadora da realidade. Com isso, demonstrou a necessidade da ação educativa comprometida com as classes populares e com sua libertação.

No atual momento histórico, em que a obra de Paulo Freire tem sofrido críticas por alguns setores da sociedade, inclusive sendo acusada de dogmática, considerou-se oportuno e de extrema relevância a divulgação de um estudo que demonstra a consistência do pensamento de Paulo Freire e a singularidade de sua obra, que tendo em vista as diversas influências adotadas não pode ser considerada dogmática[1]

Neste artigo, resultado de uma pesquisa bibliográfica fundamentada na perspectiva teórico-metodológica do materialismo histórico dialético[2], apresenta-se uma breve análise sobre as influências teóricas constituintes do pensamento de Paulo Freire, com o objetivo de avaliar se é possível considerar a predominância de uma dessas perspectivas no conjunto de sua obra. Para tanto, realizou-se a análise das principais obras do autor, procurando localizar as categorias centrais e investigando os vínculos destas com as vertentes teóricas que influenciaram o seu pensamento.

A seleção das obras[3] teve por critério de escolha as múltiplas etapas de desenvolvimento do pensamento de Paulo Freire, trabalhada com singularidade por Scocuglia (1999). Assim, foram escolhidas oito obras que serviram de divisor de águas no desenvolvimento de sua produção teórica, como Educação Como Prática Da Liberdade, obra da década de 1960, com forte influência existencialista e personalista cristã; Pedagogia do Oprimido, obra também da década de 1960, já com influência marxista em uma perspectiva superestrutural; Cartas à Guiné-Bissau, obra da década de 1970, quando é incorporada a categoria da infraestrutura na obra de Freire; Ação Cultural Para a Liberdade, obra dos anos 1970, que faz a discussão sobre uma proposta de educação voltada para o conhecimento da realidade pelo sujeito, para possibilitar sua compreensão e transformação; Conscientização: teoria e prática da libertação; uma introdução ao pensamento de Paulo Freire, obra da década de 1980, em que é trabalhado o processo de tomada de consciência; Pedagogia da Esperança, obra da década de 1990, na qual Freire faz uma revisitação à Pedagogia do Oprimido, tendo característica de uma obra autobiográfica; À Sombra desta Mangueira, obra da década de 1990, na qual Paulo Freire expressa a sua visão de mundo, a qual também denota um viés autobiográfico; e por fim, Pedagogia da Autonomia, na qual Freire faz uma condensação de seu pensamento e prática como pedagogo, dirigindo-os para a escola, ao estabelecer prescrições para aplicação no cotidiano escolar, como, por exemplo, no Capítulo 1, sob o título “Não há docência sem discência”: “Ensinar exige rigorosidade metódica”, “Ensinar exige pesquisa”, “Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos”, “Ensinar exige criticidade”, “Ensinar exige estética e ética”, “Ensinar exige corporificação das palavras pelo exemplo”, “Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática”, “Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural” (FREIRE, 2005a, p. 07).

De acordo com a perspectiva teórico-metodológica adotada, as categorias de historicidade e mediação[4] orientaram a primeira etapa da pesquisa, que teve como ponto de partida a contextualização da produção teórica de Freire com base em uma leitura bibliográfica apresentada na primeira parte do artigo. Nessa contextualização procurou-se analisar a articulação entre a produção de sua obra, o contexto político, social, econômico e cultural da época e sua experiência de educador popular.

Em um segundo momento da pesquisa foi realizada a leitura exploratória de dezesseis obras, começando por Educação e atualidade brasileira, tese de doutoramento de Paulo Freire, publicada em 1959 e terminando em Pedagogia da Autonomia, obra publicada no ano de seu falecimento. Com base na leitura exploratória foram estabelecidos os critérios já destacados para a seleção das obras analisadas. O terceiro momento foi dedicado à investigação das obras selecionadas, localizando as categorias centrais de cada uma dessas e analisando a relação que estabelecem com as diferentes influências teóricas do autor, bem como possíveis contradições[5]. Esta etapa da pesquisa é apresentada na segunda parte do artigo, na qual são tecidas algumas reflexões sobre as principais influências teóricas do pensamento de Freire.

Como conclusão, a pesquisa evidenciou que não há uma adesão fechada de Freire a nenhuma das correntes que estão na base de sua perspectiva teórica. Freire faz um permanente diálogo entre a experiência construída da existência e os referenciais teóricos que dão sustentação ao seu pensamento.

Esta visão de conjunto entre leitura de contexto e leitura de texto resulta na síntese de uma proposta transformadora e emancipatória da sociedade e da práxis educacional. A ênfase na singularidade, complexidade e importância da obra de Freire para a ação educativa comprometida com a emancipação humana é o que torna a presente análise relevante.

Trata-se de uma discussão que sempre ficará em aberto, cabendo novas análises e novas interpretações, diante da riqueza conceitual da obra freiriana, ressaltando, por fim, que o conceitual, em Freire, está ensopado da realidade concreta que ele tão bem soube analisar.

Uma breve (e incompleta) leitura bibliográfica de Paulo Freire

As análises e reflexões de Freire são tecidas, em regra, em um diálogo permanente com um contexto concreto de uma dada conjuntura histórico-cultural. Assim, nesse diálogo entre o contexto histórico-cultural e as referências teóricas, vai constituindo sua obra como síntese de seu pensamento e relação com/no mundo.

Com base em Scocuglia (1999, p. 29), no presente estudo atentou-se para três momentos fundamentais na obra de Freire, “[...] o primeiro, correspondente aos escritos realizados entre 1959 e 1970; o segundo, correspondente à década de setenta e o terceiro com seus escritos mais recentes nos anos oitenta e no começo da década de noventa”.

Segundo Gadotti (1996, p.257) a primeira grande obra de Paulo Freire foi Educação e atualidade brasileira sua tese no “[...] concurso público para a cadeira de História e Filosofia da Educação de Belas Artes de Pernambuco”. Com alguns ajustes, realizados durante o exílio no Chile, esta obra foi publicada mais tarde com o título de Educação como prática da liberdade. O período histórico é o do final da década de cinquenta até a primeira metade da década de sessenta, marcado pelo nacionalismo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek (1955-60) e pelo nacional-populismo de João Goulart (1961-64).

Segundo Gadotti (1996, p. 57), nesta obra “[...] o autor procura mostrar o papel que a Educação pode desempenhar na construção de uma nova sociedade, a ‘sociedade aberta’”. Freire (2005b, p. 47), no início da obra, deixa clara sua concepção epistemológica, ao referir:

Entendemos que, para o homem, o mundo é uma realidade objetiva, independente dele, possível de ser conhecida. É fundamental, contudo, partirmos de que o homem, ser de relações e não só de contatos, não apenas está no mundo, mas com o mundo. Estar com o mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser o ente de relações que é.

Esta obra, segundo Scocuglia (1999), é influenciada, no nível filosófico, por Jaspers e Marcel. São, pois, efetivas as influências personalista e existencialista.

Ainda no Chile, Freire escreve Comunicação e extensão e Pedagogia do Oprimido, considerada por diversos teóricos como sua obra mais importante.

Em Pedagogia do oprimido, a centralidade reside na “[...] contradição dialética opressor-oprimido” (PAULY, 2008, p. 317), mediante a análise das formas de opressão da educação capitalista e os caminhos para sua superação. Aborda também a diferença entre duas concepções pedagógicas: a “bancária” e a “problematizadora”, e afirma a dialogicidade como essência da educação como prática da liberdade, trabalhando com conceitos como educação dialógica e diálogo, construindo uma teoria sobre a ação antidialógica (FREIRE, 1987).

Nessa obra começa a aparecer a influência marxista no pensamento de Freire. Segundo Scocuglia (1999, p. 30), essa obra e Educação como Prática da Liberdade

[...] marcam o início da vasta bibliografia de Freire, trazendo suas preocupações e propostas metodológicas para a alfabetização de adultos e tentando formular as primeiras matrizes de uma “pedagogia da resistência” aos processos de opressão, desenvolvidos em larga escala por toda a América Latina nos anos sessenta.

Em Ação cultural para a liberdade é feita uma

[...] análise sociológica muito mais incisiva e rigorosa, emergindo a questão das classes sociais e da luta entre elas como um avanço fundamental do pensamento de Freire, inclusive em relação às questões especificamente pedagógicas (SCOCUGLIA, 1999, p. 75).

Está presente a influência de Marx, no tocante à “ação consciente”, a qual transita para a “consciência de classe”, com a influência de Goldman, Lukács e Hobsbawn. O contexto da obra, embora Freire já se encontre em Genebra, é o período de 1968 a 1974, possivelmente o mais repressivo (e opressivo) da ditadura civil-militar brasileira.

Em Educação e mudança, publicado pela primeira vez no Brasil em 1979, Freire afirma que não há mudança sem conscientização. A conscientização é o “motor” da educação proposta por Freire.

Na obra Cartas a Guiné-Bissau, é relatada a experiência de Freire e de sua equipe “[...] em um programa de educação de adultos capaz de servir aos planos de reconstrução nacional de Guiné-Bissau logo após a proclamação de sua independência do domínio português” (GADOTTI, 1996, p. 269).

Nesta obra, começa, segundo Scocuglia (1999, p. 75), a “[...] incorporação da categorização teórica infraestrutural”, marcando uma nova dimensão político-educativa de Freire. Aqui começa, também, a influência de Antonio Gramsci, que, por sua vez, influenciou o líder da guerrilha guineense, Amilcar Cabral. Ambos passam a influenciar o pensamento de Paulo Freire.

Em Conscientização: teoria e prática da libertação, Freire fala da superação do âmbito da apreensão espontânea da realidade concreta para um estágio crítico no qual a realidade apresenta-se como objeto cognoscível, na qual o sujeito assume uma posição epistemológica. A conscientização é concebida mais como um processo do que uma tomada imediata de consciência. Diz Freire (2001, p. 30):

Num primeiro momento a realidade não se dá aos homens como objeto cognoscível por sua consciência crítica. Noutros termos, na aproximação espontânea que o homem faz do mundo, a posição normal fundamental não é uma posição crítica, mas uma posição ingênua. A este nível espontâneo, o homem, ao aproximar-se da realidade, faz simplesmente a experiência da realidade na qual ele está e procura.

Os conceitos de conscientização, de Educação e de Liberdade passam por significativas mudanças ao longo de seu discurso.

Neste sentido, diz Scocuglia (1999, p. 47):

As esferas das relações entre a educação como processo de conscientização e da educação como conquista da liberdade, constituem marcas constantes do discurso político-pedagógico de Freire. Entretanto, antes de mais nada, devemos destacar que essas relações passam por mudanças significativas ao longo da construção do seu discurso. O conceito de “conscientização”, por exemplo, inicialmente pensado como um produto psicopedagógico, progride para o entendimento da contribuição educacional para a busca da “consciência de classe” – com a incorporação de preceitos marxistas de análise.

Freire, no início, não fazia a articulação entre as bases da infraestrutura com as esferas da superestrutura para a formação da consciência crítica. Diz Scocuglia (1999, p. 50): “Em outras palavras, a sociedade seria transformada a partir da superestrutura”. Posteriormente, passou a analisar a questão sob o prisma da consciência de classe.

Na Pedagogia da esperança, Freire faz uma reflexão sobre a Pedagogia do oprimido, ou, como consta no título complementar ou subtítulo da obra: Um reencontro com a Pedagogia do oprimido, ou seja, “[...] reencontro da opressão com a esperança” (STRECK et al., 2008, p. 315).

O contexto histórico/político/cultural desta obra é marcado pelo processo inicial de consolidação do chamado Estado Democrático de Direito no Brasil, após o final da ditadura civil-militar, que perdurou por mais de duas décadas e também com o advento, há aproximadamente quatro anos antes da publicação da obra, da chamada Constituição Cidadã, de 1988. Outra marca deste período é o retorno das eleições diretas para presidente da República, em 1990, após trinta anos (a anterior foi em 1960) de eleições indiretas.

Enfim, Freire escreve essa obra num momento de esperança de um novo amanhã para o Brasil, abordando sua experiência existencial (FREIRE, 1999), fazendo uma leitura das críticas à Pedagogia do Oprimido e, finalmente, discutindo temáticas atuais à luz da sua obra maior.

Em À sombra desta mangueira, Freire (1995) expressa sua visão de mundo, a partir de sua experiência como cidadão, educador, pensador e militante progressista, em um momento ainda delicado para a esquerda que há pouco havia presenciado a queda do Muro de Berlim, marca simbólica do fim do chamado socialismo real. É um momento de reflexão de Freire sobre a globalização da economia, num contexto chamado de pós-modernidade. Diz Freire (1995, p. 29):

Recuso que nada é possível fazer quanto às consequências da globalização da Economia e curvar docilmente a cabeça porque nada se pode fazer contra o inevitável. Aceitar a inexorabilidade do que ocorre é excelente contribuição às forças dominantes na sua luta desigual contra os “condenados da Terra”.

A Pedagogia da autonomia é possivelmente a obra mais lida de Freire pelos educadores, e também a mais polêmica. A centralidade desta obra está na “[...] questão da formação docente ao lado da reflexão sobre a prática educativo-progressiva em favor da autonomia do ser dos educandos” (FREIRE, 1996, p. 13). Freire, segundo Evaldo Luis Pauly (2008, p. 314), no verbete sobre Pedagogia da autonomia: “[...] segue a tradição moderna do Iluminismo pois sua noção de autonomia assemelha-se à de Kant”. Esta obra foi escrita depois da experiência de Freire na Secretaria da Educação da cidade de São Paulo, no governo Erundina.

Para Freire (2005a): “A autonomia vai se constituindo na experiência de várias, inúmeras decisões que vão sendo tomadas”. Com efeito, ela é uma construção histórica.

Como se observa, a forma como Freire elabora as categorias centrais de suas obras, demonstra que as influências teóricas de seu pensamento relacionam-se de maneira complexa com sua experiência de vida e que não há sobreposição de uma vertente filosófica em relação à outra, conforme se analisa no item a seguir.

Breve discussão sobre as principais influências teóricas na formação do pensamento de Freire

A obra de Paulo Freire é marcada por três filosofias juntamente com a concepção teológica cristã e o movimento personalista de Mounier: o existencialismo, a fenomenologia e o marxismo.

Dos seus primeiros escritos até o exílio chileno, sua obra é marcada pela influência humanista, com orientação personalista, de Mounier, e pelo existencialismo cristão de Gabriel Marcel. Para Franco (1981), este período pode ser considerado como a primeira etapa da obra de Freire.

A visão personalista e as filosofias existencialistas, segundo Franco (1981), continuaram a exercer influência na segunda etapa da obra freiriana, iniciada com Pedagogia do oprimido, só que agora com a inegável influência marxista, pela presença do materialismo histórico nas suas análises da realidade.

Neste sentido, assevera Franco (1981, p. 49) que na “[...] segunda fase dos escritos de Freire, definida pela ‘Pedagogia do Oprimido’, nota-se uma continuidade da linha personalista”. Diz, ainda: “Além do personalismo, as filosofias existencialistas também exercem considerável influência nas concepções de Freire” (FRANCO, 1981, p. 50). Mais adiante, aduz: “Por outro lado, apesar da aparente impossibilidade de reconciliação com as influências anteriores, é necessário observar as marcas crescentes e definitivas deixadas pelo marxismo nos escritos de Freire” (FRANCO, 1981, p. 50).

Scocuglia ao referir-se à Pedagogia do oprimido, diz:

Nessa obra, a aproximação aos pensamentos marxiano e marxistas é notória, principalmente quanto a uma leitura da realidade que leva em consideração, por exemplo, as questões relativas às classes sociais e ao conflito entre elas – resultando, daí, uma visão educacional mergulhada (mas, não-aprisionada) em tal conceituação. Também é na Pedagogia do Oprimido que Freire “começa a ver” (segundo suas palavras) a politicidade do ato educativo com maior nitidez, embora a educação ainda não seja explicitada em sua inteireza política, mas apenas em seus “aspectos” políticos (SCOCUGLIA 1999, p.59, grifo do autor).

Ainda, no mesmo sentido de Franco (1981), refere Scocuglia (1999, p. 60), que “[...] as correntes existencialistas/personalistas (definidoras do seu ‘humanismo idealista’ inicial) continuam presentes, agora misturadas com as incorporações do pensamento marxista”.

Pela multiplicidade de correntes filosóficas que influenciaram sua obra, Freire foi alvo (e sua obra ainda é) de inúmeras críticas. Uma delas é relacionada ao conceito de luta de classes como motor da história, sobre a qual ele faz a seguinte reflexão, na Pedagogia da Esperança:

Nunca entendi que as classes sociais, a luta entre elas, pudessem explicar tudo, até a cor das nuvens numa terça-feira à tardinha, daí que jamais tenha dito que a luta de classes, no mundo moderno, era ou é o motor da história. Mas, por outro lado, hoje ainda e possivelmente por muito tempo, não é possível entender a história sem as classes sociais, sem seus interesses em choque. A luta de classes não é o motor da história, mas certamente é um deles (FREIRE, 1999, p. 90).

Observe-se que ele não nega a luta de classes como motor da história, mas entende não ser a luta de classes o único motor de história. Com efeito, isso mostra de forma clara a influência marxista em seu pensamento, mas não a adesão incondicional, mecânica e dogmática desse mesmo pensamento.

Acrescente-se, ainda, na totalidade epistemológica, antropológica e filosófica de Paulo Freire, a influência teológica do cristianismo, em especial do catolicismo, que adotou como religião. Todavia, a influência cristã, como bem acentua Aranha (1996, p. 206), “[...] se embasa em uma teologia libertadora, preocupada com o contraste entre a pobreza e a riqueza que resulta dos privilégios sociais”.

De modo geral, ressalvadas as exceções que ele mesmo admite, em obras como Pedagogia da esperança, por exemplo, as críticas resultam de leituras fragmentadas de Freire e da tentativa de se sobrepor uma vertente filosófica à outra sem entender a síntese que ele realiza.

Para Gadotti (1989), não seria mesmo possível agradar a todos um pensamento tão vigoroso, como o de Freire, com a repercussão mundial alcançada. E não só pelo vigor ou pela repercussão, mas também, e, sobretudo, pela complexidade de sua obra, influenciada por diferentes correntes filosóficas, como o existencialismo e o marxismo. Ademais, a própria radicalidade de sua práxis na luta para a conscientização dos “deserdados da terra”, não poderia deixar sua obra infensa às críticas, principalmente daqueles que querem manter a exploração e a opressão.

É inegável a influência marxista no pensamento de Freire, mas não sua adesão incondicional, mecânica e dogmática a essa concepção, a ponto de se dizer que Freire é marxista. Ora, Freire é freiriano! No tocante a essa influência, não se pode negar, sem qualquer demérito a Freire, que, enquanto no pensamento de Marx existe uma permanente articulação entre a estrutura e a conjuntura, não ocorrendo rompimentos epistemológicos significativos, salvo pela análise de alguns autores, como Althusser, o mesmo não se pode dizer em relação ao pensamento de Freire, em que prevalece uma visão do conjuntural, na qual o momento histórico influencia decisivamente na maior ou menor radicalidade de sua práxis.

Os escritos de Freire, em regra, são o resultado de suas influências teóricas articuladas com sua leitura do mundo, ambas ensopadas pela sua experiência de vida, ou como diz Ana Maria Freire (2006, p. 393): “Paulo sistematizou, como podemos constatar, suas ideias e práxis em livros”. A multiplicidade de influências teóricas que impregnam seus textos, algumas inconciliáveis, em determinados momentos, pelo menos do ponto de vista teórico, em articulação com sua práxis, culminaram com algumas rupturas ou mudanças no processo de construção da totalidade do seu pensamento.

Anote-se, também, que essas mudanças e rupturas são efeitos de uma práxis que se constrói articulada com as conjunturas de seu contexto histórico e também com multifacetada influência teórico-filosófica que a inspira, são, portanto, parte do processo de evolução de seu pensamento.

Neste sentido, aponta Scocuglia (1999, p. 73)

Defendemos a idéia de que a incorporação aberta (não dogmática) de categorias analíticas marxistas socioeconômicas – infraestruturais – determina uma “ruptura” significativa no pensamento político -pedagógico de Paulo Freire.

Anote-se que a ocorrência de mudanças e rupturas na trajetória do pensamento de Freire não impediu a construção de um pensamento emancipatório marcado pela diversidade de seu alicerce filosófico.

Assim, não existe uma adesão pura e simples, de forma fechada, de uma dada influência teórica por Paulo Freire. Por exemplo: considerar o homem como ser-no-mundo é uma marca do pensamento existencialista. Pois bem, Freire não fica nisto, ele vai além, mostrando que a realidade objetiva deste mundo é uma realidade opressora. Assim, o homem, nesta perspectiva, não é somente o ser-no-mundo, mas o ser-no-mundo do opressor e o ser-no-mundo do oprimido.

Por fim, Freire (1999, p. 101), mostra a influência da dialética em sua práxis, a partir da seguinte reflexão de natureza epistemológica:

Subjetivismo ou objetivismo mecanicista, ambos antidialéticos, incapazes, por isso mesmo, de apreender a permanente tensão entre a consciência e o mundo.

Na verdade, só numa perspectiva dialética podemos entender o papel da consciência na história desvencilhada de qualquer distorção que ora exacerba sua importância, ora a anula ou a nega.

Nesse sentido, a visão dialética nos indica a necessidade de recusar, como falsa, por exemplo, a compreensão da consciência como puro reflexo da objetividade material, mas, ao mesmo tempo, a necessidade de rejeitar também o entendimento da consciência que lhe confere um poder determinante sobre a realidade concreta.

Isso mostra que toda a influência filosófica que alicerça o pensamento de Freire, não é objeto de adesão dogmática ou fechada. Pelo contrário, elas se complementam e se excluem, superando-se dialeticamente, para formar uma nova síntese. E essa nova síntese é o que torna a obra de Freire singular e, sobretudo, uma importante referência para os pesquisadores e estudiosos da área da Educação comprometidos com uma formação na perspectiva da emancipação humana.

Conclusão

Numa tentativa de resposta à pergunta norteadora deste texto, afirma-se que, pelo menos até este momento, com base nas leituras realizadas de e sobre Freire, é possível destacar a presença muito acentuada da base teórica marxista no pensamento freiriano, a partir da Pedagogia do oprimido, sem, todavia, se pretender, com isso, descartar, a partir desta mesma obra, as demais influências filosóficas de seu pensamento. Com efeito, se o marxismo ganhou espaços, a partir da Pedagogia do oprimido, consolidando-se como uma base filosófica vigorosa do conjunto da obra de Freire, por outro lado, o personalismo e o existencialismo continuaram a figurar entre as bases teóricas constituintes do pensamento freiriano. Destarte, a síntese desta multiplicidade de influências não é nenhuma delas isoladamente, mas o conjunto dessas influências interpenetrando-se, complementando-se e negando-se dialeticamente.

Buscando uma maior especificidade, pode-se dizer que o marxismo predomina, por exemplo, na Pedagogia do oprimido, nos chamados escritos africanos, em Ação Cultural para a Liberdade, na Pedagogia da Esperança, em À sombra desta Mangueira e na Pedagogia da indignação. Pode-se afirmar, também, com todos os riscos inerentes a tal afirmação, que, desde a edição da Pedagogia do oprimido, a obra de Freire passa a ter forte presença de uma base marxista, primeiro com categorias de análise superestruturais, avançando, posteriormente, para categorias de análise infraestruturais, mas, ainda, sem o abandono das influências existencialista/personalista/fenomenológica.

Observe-se, por exemplo, que Freire, referindo-se à Marx, afirmava que não se pode pensar em objetividade sem subjetividade.

Contudo, a base filosófica multifacetada continua presente em toda a sua rica obra, apesar da ênfase marxista, no período mencionado e nas obras apontadas como relação exemplificativa, não podendo ser olvidada, também, a influência hegeliana na Pedagogia do oprimido.

Conclui-se que não há adesão dogmática ou fechada de Freire em relação às suas influências teóricas. Elas não atuam como uma camisa de força em seu pensamento. Pelo contrário, elas se complementam e se excluem, superando-se dialeticamente, para formar uma nova síntese, que mantém como característica constante de sua obra, seu compromisso com uma educação emancipatória. E esta síntese é um novo pensamento: o pensamento de Paulo Freire.

Referências

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GADOTTI, M. Convite à leitura de Paulo Freire. São Paulo: Scipione, 1989.

GADOTTI, M. Paulo Freire: Uma biobibliografia. São Paulo: Cortez, 1996, p. 608-609.

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SCOCUGLIA, A. C. A história das ideias de Paulo Freire e a atual crise de paradigmas. 2. ed. João Pessoa: Ed. Universitária/UFPB, 1999.

STRECK, D. et al. (Orgs.). Leituras de Paulo Freire: contribuições para o debate pedagógico contemporâneo. Brasília: Liber Livro Editora, 2008, p. 39-55.

Notas

[1] Recentemente o artigo sobre a biografia de Paulo Freire divulgado na Wikipedia sofreu alterações a partir de um órgão público federal. As referidas alterações afirmam a obra de Freire como “doutrinação marxista” responsável por um ensino “atrasado, doutrinário e fraco”. Os trechos acrescentados no artigo da página foram retirados do texto Paulo Freire e o assassinato do conhecimento, assinado por um integrante da rede Estudantes pela liberdade e do Movimento Universidade livre. O Movimento Escola sem Partido também tem sido autor de críticas a obra de Freire. O fato levou a viúva do intelectual, Nita Freire, a enviar uma carta ao presidente interino Michel Temer, expressando seu descontentamento com as alterações na biografia do Patrono da Educação brasileira.

[2] Kesseler (2008, p. 33-34), assim define o materialismo histórico dialético: “A expressão ‘materialismo histórico’ significa, portanto, ao mesmo tempo, que ‘as relações materiais constituem a base de todas as relações’ que os homens mantêm em sociedade e que essas relações, enquanto reais e materiais, são necessariamente históricas e transitórias, submetidas a um movimento contínuo por causa das contradições internas que as definem. Um materialismo não histórico é tão falso quanto uma historicidade não materialista”.

[3] Afora as obras de Paulo Freire selecionadas para este trabalho, serviram de base teórica para a realização deste estudo as seguintes obras: A história das ideias de Paulo Freire e a atual crise de paradigmas (SCOCUGLIA, 1999); Leitura Crítica de Paulo Freire (TORRES, 1981), com destaque para o artigo Paulo Freire e sua obra: influências ideológicas e postura religiosa (Franco, 1981); Paulo Freire: uma biobibliografia (GADOTTI, 1996); Convite à leitura de Paulo Freire, (GADOTTI, 1989) e Paulo Freire: uma história de vida (FREIRE, 2006). Através do diálogo com estas obras foi possível se chegar à conclusão deste trabalho, que é sempre provisória, no sentido de que Paulo Freire não adere incondicionalmente a nenhuma das perspectivas constituintes de sua base teórica.

[4] Historicidade: “1. O modo de ser do mundo histórico ou de qualquer realidade histórica. [...] 3. A importância histórica que, às vezes, se atribui também a fatos presentes e contemporâneos” (ABBAGNANO, 2007, p. 508). Mediação: Mediação: “[...] (in. Mediation; fr. Médiation;ai. Vermittelung; it. Mediazione). Função que relaciona dois termos ou dois objetos em geral. Essa função foi identificada: 1 no termo médio no silogismo; 2" nas provas na demonstração; 3” na reflexão; 4”- nos demônios na religião”( ABBAGNANO, 2007, p. 655).

[5] Contradição: Há contradição, quando, simultaneamente, se afirma a presença e a ausência de um atributo, na mesma coisa e ao mesmo tempo. Assim há contradição quando se diz que, simultaneamente, A é B ou A não é B; ou seja, quando se afirma a presença do atributo B, e ao mesmo tempo a sua ausência em A. Só há realmente contradição, quando um atributo afirmando como presente e como ausente, é dado como simultâneo, pois se se afirma ora a presença, ora a ausência, não há propriamente contradição (SANTOS, 1963, p. 340). Especificamente, para o Materialismo Histórico e Dialético são as contradições que dão movimento à História.

Qual era a linha de pensamento de Paulo Freire?

Sua filosofia baseia-se no diálogo entre professor e aluno, procurando transformar o estudante em um aprendiz ativo. Nesse sentido, ele criticava os métodos de ensino em que o professor era tido como o detentor de todo o conhecimento, e o aluno apenas um “depositório” — o que ele chamava de “educação bancária”.

Que tipo de educação era defendida por Paulo Freire?

A prática pedagógica que Freire propõe abarcar o não conformismo com a educação dominadora, questionando, maiormente, todas as formas de opressão, de apassivamento, de domesticação e de anulação da criticidade dos educandos (FREIRE, 1994).