Qual a diferença da escravidão na África e a escravidão no Brasil?

A escravidão na África e a escravidão no atlântico

1. Escravidão na África

Ao iniciarmos qualquer discussão sobre escravidão na África é preciso primeiro desconstruir imagens sedimentadas no imaginário de nossos alunos sobre a escravidão no Brasil. São imagens de homens negros em fazendas de cana-de-açúcar, café e algodão; ou trabalhando nos engenhos e nas minas de ouro. Essas são representações tão difundidas que acabaram por ser amplamente aceitas pelo imaginário ocidental como a “verdadeira” imagem da escravidão (MIERS; KOPYTOFF, 1977, p. 03). Elas estão presentes nos livros didáticos e na mídia e constituem parte do conhecimento desses alunos sobre o tema. Portanto, não é raro nos depararmos com grandes dificuldades em compreender o funcionamento da instituição da escravidão em contextos diferentes, onde não somente o trabalho e a posição social desses escravos eram diversos, mas onde não havia uma diferenciação “racial” entre eles e seus proprietários.

No imaginário dos estudantes brasileiros existe uma conexão pretensamente lógica entre os termos escravo e africano. Alguns alunos chegam a usar estes termos como sinônimos, mesmo quando se referindo a escravos nascidos no Brasil. Assim, para essas pessoas ser escravo é ser africano. Ao estudarmos a instituição da escravidão na África, os alunos começam a se dar conta que nem todo africano era escravo e que, ao contrário do que muitos acham possível, alguns africanos possuíam escravos e negociavam esses seres humanos no mercado atlântico.

Nos países de língua inglesa, especialmente nos Estados Unidos, já existe um cuidado maior ao tratar da categoria “escravo africano”. Para além do reconhecimento de que nem todo africano era escravo, existe o cuidado para não naturalizar esta condição. Ser escravo não é uma característica nata dos povos africanos. Portanto, esses são “africanos escravizados” e não “escravos africanos”. Note que esta simples mudança na terminologia afasta o africano da condição natural de escravo e demonstra que a escravidão é, antes de tudo, uma condição adquirida e em alguns casos temporária.

É interessante notar que no imaginário de alguns estudantes existe também uma conexão essencial entre escravidão e “negritude”. Assim, ser escravo é ser negro. Mesmo quando entendem que o contrário nem sempre é verdadeiro, isto é, que existem negros que não são escravos, alguns ainda carregam a impressão de que a “negritude” é condição essencial para que um indivíduo se torne escravo. Muitos se espantam ao aprenderem que escravo já foi um termo reservado para os povos eslavos na Europa, como explica Isabel Castro Henriques:

Efetivamente, tanto o escravo quanto a escravatura são termos recentes na história cultural do mundo: o termo escravo, do latim medieval sclavus, provindo de slavus, terá aparecido no século XIII, enquanto a palavra escravatura só terá integrado as línguas europeias no século XVI. (HENRIQUES, 2006, p. 62).

Note que apenas problematizando os termos comumente utilizados no estudo da escravidão e do comércio de escravos é possível desconstruir uma série de preconceitos e mal-entendidos sobre as relações entre os povos africanos e a instituição da escravidão. Assim, nem todo escravo é africano. Nem toda pessoa escravizada nasceu (ou morreu) escravo. Ser negro não é condição básica para que um indivíduo perca sua liberdade e, de fato, o termo escravo foi criado para identificar povos brancos que foram subjugados por outros brancos. Alguns deles eram escravos loiros de olhos azuis. Séculos mais tarde o conceito de escravo foi banalizado pelas relações comerciais no Atlântico e, embora não encontrasse paralelo nas sociedades africanas, passou a ser usado de forma indiscriminada. Assim, as diversas formas de submissão e obediência, que caracterizavam a relação entre os soberanos ou anciãos africanos e seus dependentes, acabaram sendo simplificadas pelos observadores europeus e unificadas pelo termo escravidão (HENRIQUES, 2006, p. 59).

Em várias sociedades africanas existem categorias sociais reservadas para diferentes graus de submissão. O africanista Robert Sutherland Rattray, escrevendo na primeira metade do século XX sobre os Ashanti (localizados na atual Gana), identificou ao menos cinco termos para descrever diferentes níveis de servidão voluntária ou involuntária, sendo que apenas duas delas de alguma forma correspondiam à ideia de escravo como concebida pelos europeus no século XVIII: (1) odonko (um estrangeiro comprado com a finalidade específica de ser escravo); (2) domum (indivíduo entregue como pagamento de um tributo por parte de uma sociedade subjugada). Rattray acabou por concluir que os direitos e as condições de vida entre escravos e indivíduos “livres” entre os Ashanti não eram assim tão diferentes (RATTRAY apud FAGE, 1969, p. 394).

No entanto, é preciso reconhecer que as estruturas sociais africanas integram diversas formas de dominação (HENRIQUES, 2006, p. 66). Essa dominação exalta o poder e engendra situações diversas de dependência, que aos olhos dos estrangeiros não passam de escravidão. Os ideais Iluministas de “liberdade” e “individualismo” orientam o olhar ocidental a enxergar nas formas africanas de subordinação e dependência a perda dessa “liberdade” que, no entanto, também não encontra paralelo no pensamento africano. 

No pensamento ocidental o escravo caracteriza-se por ser uma propriedade cujo trabalho possui valor econômico e uma mercadoria que tem valor comercial (FAGE, 1969, p. 394). De fato, a escravidão é por definição uma forma de exploração e os escravos são geralmente tratados como propriedade privada e, por vezes, (mas nem sempre) podem ser vendidos ou utilizados para saldar dívidas. Escravos e escravas deveriam colocar sua força de trabalho e sua própria sexualidade a disposição de seu proprietário. Além dos abusos sexuais sofridos esses escravos não tinham controle sobre suas capacidades reprodutivas, podendo seus filhos ser retirados e separados dos pais de acordo com as determinações de seu senhor. (LOVEJOY, 2011, p. 01-02).

Assim, no pensamento ocidental a escravidão é a antítese da liberdade. Um homem “livre” não pode ser comprado ou vendido e tem controle sobre sua vida e sua prole (MIERS; KOPYTOFF, 1977, p. 04-05). Mas na África, a escravidão está mais ligada à questão de pertencimento do indivíduo à sua linhagem do que sua “liberdade” ou “individualidade”. Enquanto o pensamento ocidental afirmava-se na sua existência individual – como na afirmação de René Descartes “Penso, logo existo” – o pensamento africano pautava-se pelo seu pertencimento ao grupo e à linhagem – “Pertenço, logo existo”. Aqueles que pertencem a uma linhagem local geralmente não podiam ser escravizados.

O papel da violência na instituição da escravidão

A escravidão quase sempre tinha início por meio da violência, que reduzia a posição de uma pessoa de uma condição de liberdade para uma condição de escravo. O tipo mais comum de tal violência – incluindo ataques cujo objetivo era adquirir escravos; banditismo e sequestro – indicam que a escravização violenta pode ser vista como inserida em uma sucessão contínua de ação política em larga escala, na qual a escravização pode ser apenas um subproduto da guerra e não a sua causa, ou como uma atividade criminal em pequena escala, na qual escravizar é o único objetivo da ação. Tomados em conjunto, as guerras, os ataques em busca de escravos e o sequestro, foram responsáveis pela maior parte dos novos escravos da história. Mesmo quando o motivo da guerra não era adquirir escravos, a ligação entre guerra e escravidão era muitas vezes estreita. Nas sociedades onde era costumeiro escravizar os prisioneiros, os beligerantes invariavelmente levavam em consideração a possibilidade de custear as despesas da guerra com a venda ou a utilização dos escravos. Quando as guerras e invasões eram crônicas, eram constantes a escravização e reescravização dos povos, e a incidência da escravidão em tais situações aumentava (LOVEJOY, 2011, p.03-04).

A condição básica para alguém se tornar escravo era se tornar um “estrangeiro”. Estrangeiro da terra em que permanecia cativo, mas também estrangeiro da linhagem em comando. Portanto, na prática, para que alguém pudesse ser escravizado era necessário que perdesse seu lugar na linhagem. Isso poderia acontecer por uma série de sanções judiciais que retiravam a herança social deste indivíduo (LOVEJOY, 2011, p. 01).

No caso do comércio atlântico, os indivíduos escravizados eram levados para longe de sua terra natal não apenas fisicamente, mas também culturalmente. Eles eram forçados a renunciar suas línguas, suas cosmologias e suas práticas sociais. Mesmo as parcas roupas entregues aos escravos por seus senhores tinham como objetivo apagar e esconder quem esses homens e mulheres foram um dia. Assim, o próprio corpo do escravo era refeito e novas marcas buscavam cobrir as mais antigas de origem africana:

As marcas a ferro e fogo (recorrendo às técnicas utilizadas para marcar os animais), os objetos de contenção (grilhões e grilhetas, correntes várias, máscaras e libambos), os vestuários, eliminam do corpo-escravo as marcas da socialização dos africanos, evidenciada através do recurso a tatuagens e a escarificações, à circuncisão, à escultura dos dentes e dos penteados, à pintura da pele, aos adornos que os marcavam e hierarquizavam socialmente. (HENRIQUES, 2006, p. 65).

A escravidão nas Américas

Um breve comentário se faz necessário para considerar o caso especial da escravidão nas Américas, porque o sistema americano teve um desenvolvimento particularmente deletério. Muitos aspectos da escravidão americana eram similares à escravidão em outras épocas e lugares, incluindo o numero relativo da população cativa, a concentração de escravos em unidades econômicas grandes o bastante para serem classificadas como plantation e o grau de violência física e coerção psicológica usadas para manter os escravos em seus lugares. Não obstante, o sistema de escravidão americano era único em dois aspectos: a manipulação da raça como um meio de controlar a população cativa e a dimensão da racionalização econômica do sistema” (LOVEJOY, 2011, p.08-09)

Alguns historiadores consideram os escravos uma “classe” de pessoas que perderam sua ligação com sua linhagem de origem e foram forçadas a prestar obediência a outra linhagem. No exemplo dos povos imbangalas da África Centro-Ocidental, os escravos eram pessoas que haviam perdido o direito ao “nome” de sua linhagem e, portanto, constituíam uma “classe” subalterna que tinha que se afiliar a outra linhagem e adaptar-se aos costumes e vontades de seus senhores. Esses homens e mulheres sem linhagem que se afiliavam a senhores locais eram conhecidos como Abika (singular Mubika). Paradoxalmente, esses abika, ou “escravos”, são homens “livres” de obrigações com suas linhagens de origem, e, por isso, acabaram por se tornar boas aquisições, como dependentes dos régulos imbangalas, em tempos de disputa pelo poder (MILLER, 1977, p. 205-233).

Eram vários os motivos que podiam levar um africano a ser escravizado. As formas mais comuns e amplamente adotadas eram a guerra e o sequestro. Outros acabavam nessa condição ao serem penhorados por seus familiares. O penhor de pessoas era uma prática amplamente difundida na África. Esses indivíduos eram retidos como garantia no pagamento de dívidas, sendo o seu valor derivado do fato deles serem diretamente ligados ao devedor. Neste caso, era o pertencimento do indivíduo, entregue como garantia, que assegurava o pagamento da dívida. Dessa forma, este era um tipo diferente de cativo. Este indivíduo não constituía uma mercadoria que poderia ser revendida. Por detrás desta proibição havia a possibilidade do penhorado ser um dia resgatado por sua família, uma vez que a dívida fosse saldada (LOVEJOY, 2011, p. 11-13).

Nas sociedades africanas os escravos também não eram necessariamente vistos apenas como mão de obra barata, mas podiam constituir grupos de profissionais especializados de grande valor, que raramente seriam comercializados, como no caso dos ourives africanos. Assim, escravos que possuíam ofícios eram por vezes tratados de forma diferenciada e não eram vistos como mera mercadoria. Alguns escravos chegavam a posições de comando dentro dos reinos ou domínios de seus proprietários e alguns viajavam centenas de quilômetros para negociar em nome de seu senhor (HENRIQUES, 2006, p. 79).

Na África, a incorporação de escravos libertos às sociedades de seus antigos proprietários também acontecia de forma mais integral, embora o estigma da escravidão fosse algo difícil de desaparecer completamente. Ainda que essas sociedades africanas possuíssem estruturas profundamente hierarquizadas, que regulavam as relações políticas e sociais, essas hierarquias não eram totalmente rígidas, permitindo a inserção de parte da escravaria em estruturas familiares locais e limitando os excessos de violência na relação entre senhores e escravos (HENRIQUES, 2006, p. 68-69).

No caso da escravidão atlântica, além dos estigmas e da violência física típicas da instituição da escravidão havia mais uma violência simbólica marcada pelo preconceito racial. Nos territórios africanos os escravos não eram “racialmente” distintos de seus proprietários.

Assim, filhos de escravos com seus senhores podiam se livrar da condição de escravidão e ser, após um período relativamente longo, integrado à sociedade. Nem todos os estigmas eram apagados, mas seus filhos podiam alcançar importantes posições em suas comunidades (HENRIQUES, 2006, p. 62-69). Já no Mundo Atlântico, o estigma estava conectado a cor de pele, o que dificilmente passava despercebido: “Para os europeus, os escravos eram vistos como racialmente distintos; apesar da aculturação, eles ainda eram mais claramente estrangeiros, garantindo desta forma que a aquisição de direitos na sociedade de origem europeia fosse severamente limitada.” (LOVEJOY, 2002, p. 32).

O olhar europeu e sua “grelha de estereótipos”

O historiador europeu não pode deixar de ser prisioneiro do quadro sociointelectual em que nasceu e foi treinado. Aprendeu por isso os estereótipos do seu grupo, uma vez que nos entendemos entre nós através dessa “grelha de estereótipos” que permitem definir aquilo a que devemos dar o nome de “implícito cultural”, ou seja, o sistema de valores que permite que possamos viver numa sociedade, respeitando as regras sociais mínimas. Ora, os valores somáticos constituem uma das determinantes das sociedades ocidentais: podemos encontrar em As Políticas de Aristóteles, e podemos, sobretudo, identificar em meados do século XV, em Gomes Eanes de Zurara, uma das primeiras tentativas de organizar a relação entre os brancos e os não brancos. Embora possamos talvez registrar uma referência mais violenta a esta estrutura somática numa das cantigas de escárnio e maldizer do rei Alfonso X, o sábio.

Esta grelha somática permitiu dividir os homens em dois grupos radicalmente separados: os brancos e os outros. Tal tem sido a nossa leitura, que possui a vantagem de parecer racional, pois se pode ver com a maior facilidade a diferença entre os brancos, os “meio-brancos” e os não brancos. Por sua vez, esta grelha somática permitiu organizar a sociedade entre “superiores” e “inferiores”, classificação que precede aquele que estabelece a relação obrigatoriamente complementar do senhor e do escravo. Mais ainda: é porque há senhores que os escravos são indispensáveis ao equilíbrio normal da sociedade. As formas discriminatórias não são senão uma das consequências desta relação fundadora que atribui o poder aos senhores, que são sempre brancos. (HENRIQUES, 2006, p. 62-63).

Qual é a diferença entre a escravidão na África e a escravidão no Brasil?

A principal diferença era que a escravidão na África não tinha o caráter comercial adotado após o desenvolvimento do tráfico de escravos através do oceano Atlântico. Um dos sistemas que existiam na África negra era o jonya, difundido no Sudão ocidental, no Níger e no Chade.

Quais são as diferenças entre a escravidão no continente africano e a escravidão na América?

Dessa forma, os escravos africanos eram utilizados da esfera estatal, enquanto que na escravidão nas Américas os escravos eram mão de obra nas colônias. A escravidão dentro da África possuía caráter estatal, ao passo que nas Américas o escravismo era para comércio, ou seja, os escravos se tornavam propriedade privada.

Qual a diferença da escravidão no Brasil para a escravidão em outros países?

A assinatura da lei Áurea, em 13 de maio de 1888, decretou o fim do direito de propriedade de uma pessoa sob outra, porém o trabalho semelhante ao escravo se manteve de outra maneira. ... Comparação entre a nova escravidão e o antigo sistema..

Qual é a diferença entre a escravidão indígena e negra?

A cultura indígena era baseada essencialmente na vingança e, dessa forma, a captura do inimigo não tinha fins lucrativos. Ao contrário dos povos africanos, que construíam reinos estruturados com base no comércio negreiro com os estrangeiros.