Por que o rei e a burguesia se Aliançaram e quais as vantagens que esses dois grupos obtiveram a se unir?

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Historia  de 
Portugai 


Luis  Augusto 

REBELLO  DA 
SILVA 


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J 


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HISTORIA  DE  PORTUGAL 


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HISTORIA 


PORTUGAL 

NOS 

SÉCULOS  XVII E  XYUI 

POR 

LUIZ  AUGUSTO  REBfiLLO  DA  SILVA 

Smío  tSttim  úi  academia  rt«l  úts  iM&im 


TOMO  V 


LlSitOÁ 

IMPRENSA  NACIONAL. 
M  UGCG  LXXI 


A  SUA  MAGESTADE 

O  SEIOR  DOM  FEDRO  DE  mmU 

IMPERADOS  DO  filUZIL 


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LIVRO  YH 


PÀRTE  YII 


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A  monarchia  portugueza  nasceu  em  um  campo  de  ba- 

laliia.  Suas  dilatadas  costas,  abertas  ás  aggrcssues  raai  i- 
limas,  e  sua  extensa  raia,  sem  barreiras  naturaes,  facili- 
tavam a  entrada  aos  invasores.  O  reino  sempre  embalado 
no  conílicto  das  armas  robnsteceu-se  lutando  desde  o 
primeiro  dia  contra  a  conquista  sarracena,  que  lhe  dis- 
putava a  posse  do  território  e  contra  as  lanças  leonezas, 
que  não  lhe  queriam  perdoar  o  arrojo  da  emancipação. 
Fadado  a  ser  a  primeira  na$ão  navegadora  do  xv  século» 
fimíliarísou-se  muito  cedo  com  os  terrores  do  oceano,  e» 
combatido  desde  o  berço,  aprendeu  na  severa  escola  das 
provações  a  só  contar  comsigo,  fiando  unicamente  a  de- 
feza  do  próprio  valor. 

Estreita  orla  de  terra  occidental,  cingida  de  um  lado 
pelo  braço  colossal  da  Hespanba,  e  do  outro  banhada 
jidas  ondas  do  oceano  Atlanticu,  Portuí?al  soube  sempre 
moslrar-se  grande  nos  espiiilos  e  no  amor  da  liberdade. 
£m  todas  as  occasiões  extremas  o  peito  de  seus  habi- 
tantes foi  a  muralha,  aonde  vieram  quebrar-se  os  esfor- 
ços contrários.  Em  mais  de  uma  crise  perigosa,  supe- 
rando o  numero  e  a  fortuna,  lograram  elles  recoí  dai  aos 


mais  soberbos,  que  a  leineridade  iieioica  dos  indómitos 
monlanhezes  do  Hermínio  revivia  no  coração  dos  des- 
cendentes. 

Proezas  admiradas,  sacrifícios  maiores  do  o  as  for- , 
^as,  e  o  odio  da  sujeição  estraiiiia,  realçado  pelo  despre- 
go da  morte,  forçaram  a  Victoria  a  sanccionai^  a  sua  resis- 
tência. Resolução  audaz,  unida  a  uma  rara  paciência  nos 
revezes,  e  ao  mais  ardente  affecto  patriótico,  Inflammando 
€  retemperando  o  caracter  nacional,  obraram  o  prodígio 
de  conseiTar  iniactn  e  respeitada  a  independência  tantas 
vezes  arriscada  e  sempre  triumpiíante.  Se  os  terços  do 
duque  de  Alba  o  subjugaram  foi  porque  a  politica  de  Fi- 
lippe  II  aproveitou  habilmente  a  catastrophe  de  Alcácer, 
e  poi'qiie  a  corrupção  Uie  aplanou  os  caminhos.  Mas  os 
iiespaiilioes  só  conquistaram  o  corpo  do  paiz  desmaiado 
pela  descrença  e  pelo  desalento.  Quando  a  grande  alma 
de  outras  epochas,  despertando,  volveu  a  anima-lo,  o  dia 
I.**  de  dezembro  respondeu  â  funesta  data  de  1581,  e  no- 
vas paginas  de  gloria  lembrar  am  Valverde  e  Aljubarrota. 

Estas  feições  acceutuadas  desde  os  primeiros  períodos 
da  vida  nacional,  se  denunciam  grande  vigor  na  indole  e 
nas  aspirações,  &zem  suppor  também  uma  organísação 
adequada  ao  desenvolvimento  das  qualidades,  que  em  to- 
dos os  tempos  distinguiram  os  filhos  d  este  pequeno  Es- 
tado.  O  feito  arrojado  da  desmembraçâo,  que  o  separou 
da  corôa  leoneza,  a  restauração  lenta  e  perseverante  de 
siías  províncias  do  jugo  musulmano,  a  constância  inven- 
cível nas  hitas  da  independência,  e  por  ultiniu  a  ousadia 
revelada  nos  descobrimentos  do  xv  século,  e  nas  conquis- 
tas do  XVI,  attestam  que  uma  serie  de  príncipes  iliustres 
dirigiu  com  acerto  os  destinos  da  nação,  e  que  esta,  da 
sua  parte,  não  se  negou  nunca  a  acompanha-los,  tirando 
de  si  mesma  alentos  e  estímulos,  sem  nunca  Ibe  faltarem 


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I 


capitães  para  as  emprezas  mais  atrevidas,  firmeza  para  os 

lances  mais  aperladus,  e  ânimos  intrépidos  para  as  aven- 
turas mais  desproporcionadas. 
.  O  impossível  recuou  vencido.  A  espada  retalhou  im- 
périos, e  obscuros  soldados  levantaram  e  destruíram  rei- 
nos. A  bandeira  de  um  pequeno  paiz  a  milhares  de  léguas 
da  metrópole  foi  o  assombro  e  o  açoute  dos  mais  orgu- 
lhosos potentados*  Portugal,  inveja  e  maravilha  dos  po- 
vos cultos  da  £uropa,  gravou  então  na  historia  do  mundo  * 
uma  das  datas  mais  notáveis  da  cívílísação  moderna. 
Quando  a  epopeia  indica  soluçava  o  derradeiro  canto  nos 
dias  de  Filippe  11  ainda  se  avivavam  ii  aqiiella  admirável 
tela  nomes  e  feitos,  que  a  posteridade  saudou  a  par  dai> 
grandes  acções  immortalisadas  no  poema  de  Camões. 
£sta  gloria,  que  veiu  dourar  o  occaso,  foi  como  que  o 
sudário  l.inçado  pela  Providencia  sobre  a  monarcbia  pros- 
trada. Depois,  não  podendo  já  viver  de  si  no  presente, 
voltou-se  para  o  passado,  e  suas  recordações  serviram- 
Ibe  ao  mesmo  tempo  de  herança  e  de  consolação. 

O  caracter  dos  soberanos  e  o  dos  súbditos  na  meia 
idade  portugueza  explicam-nos  em  parte  os  prodígios, 
que  encerraram  o  xv  século,  e  illuminaram  o  alvorecer  e 
-a  primeira  metade  do  xvi.  Convém  advertir,  comtudo» 
que  os  marinheiros  e  soldados,  que  por  laiigo  espaço  fi- 
guraram na  grande  scena  das  navegações  e  conquistas,  não 
surgiram  de  iim  dia  para  o  outro  capitães  feitos.  As  insti- 
tuições que  habilitaram  D.  João  I,  AilonsoY,  D.  João  li 
e  D.  Manuel  a  ostentarem  poderes,  que  pareciam  incom- 
patíveis com  a  estreiteza  do  território,  haviam  sido  con- 
cebidas e  traçadas  necessariamente  com  profundo  conhe- 
cimento da  Índole,  dos  costumes,  e  das  tendências  da 
nação.  iSão  se  fundem  monumentos  com  operários  iner- 
tes, ou  inexpertos,  nem  os  navegadores  de  vulto,  como 


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Oil  Eannes,  Nuno  Tristão,  Diogo  Cam,  João  Affonso  de 

Aveiro  e  Bartliolomeu  Dias,  se  revelam  de  repente. 

As  tentativas  do  infante  D.  líonuque  não  teriam  sido 
possíveis  sem  os  reinados  de  Affonso  IV  e  de  D.  Fernando. 
As  victorias  de  D.  João  I»  ao  cabo  de  looga  serie  de  dis- 
córdias e  infelicidades,  inculcam  uma  organisa^ão  militar 
e  social  assas  vigorosa,  porque  sem  ella  o  entliusiasmo  do 
povo  pouco  pôde  sempre  na  realidade.  Os  soldados  de 
Affonso  V  aprenderam  em  Ceuta  mm  os  vencedores  de 
Aljubarrota.  Os  navegadores  de  D.  Manuel  formaram-so 
na  austera  escola  de  D.  João  1!.  Todos  os  progressos  se  li* 
LMi!!.  A  cultura  introduzida  pela  dynastia  de  Aviz  deveu 
Ian  Lo  pelo  menos  aos  exemplos  de  fora,  como  á  vocação 
natural  dos  vassallos  e  ao  impulso  illustrado  dos  monar- 
chas.  Entre  a  milicía  do  século  xii  e  os  cavalleiros,  que 
no  cerco  de  Goria,  ou  no  assalto  de  Ceuta  rodeavam  o  fi- 
lho de  El-Rei  D.  Pedro,  medeiava  immensa  distancia. 

Cumpre-nos  discriminar  com  acerto  estas  differenças 
para  avaliarmos  com  exactidão  relativa  as  forças  defensi- 
vas de  Portugal  oo  século  xvi  e  na  primeira  metade  do 
século  XVII.  A  grandeza  e  a  decadência,  igualmente  rapi^ 
das,  ficariam  inintelligivcis,  se  não  penetrássemos  as  ra- 
sões  da  superioridade  dos  exércitos  e  das  armadas,  e  de- 
pois o  segredo  da  fraqueza»  que  tão  depressa  os  attenuou* 
O  reino  de  certo  não  se  fez  tão  poderoso,  nem  declinou 
com  tanta  brevidade  sem  motivos  suflicientes.  Na  histo- 
ria de  suas  instituições  militares  encontraremos  um  ca- 
pitulo instructivo  acerca  do  estado  politico  e  social,  e  em 
parte  a  revelação  das  verdadeiras  causas  da  grandeza  e 
da  mina  da  sua  milicía.  Sem  elle  as  apreciações  seriam 
falsas,  ou  injustas. 


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LIVRO  VII 

y 

ESIAIIO  SOCIAL  Di  lOSiBCHU 

FORÇAS  OFFENSIVÂS  £  DEFENSIVAS 
CAPITULO  I 

milícia  D£  WM. 

Aitiga  organisafSo  militar  do  paiz. —  Soas  epochas  notáveis. —  Ordenanças  crcadas 
|Mr  B.  Silnstato  «m  tilTOi— Ropugnancias,  qae  mmánmn,  e  eaosu  d*ella«.— ' 
Bicola  muciil  dos  portQgii6Mt.<—  Sapenoiidade  das  amas  hsipaiiholas  •  soa  Íb- 
iMDflta*'— Formação  do  terço  de  infanteria  como  miidade  táctica. —  Primeiros 
terços  da  coroa  de  Porlu^';il — As  patentes  na  milícia  do  scculo  xvii. —  Armas  di» 
Tirsas  dc  que  eUa  se  compunha.—  Cavallaria  pesada  e  cavallaria  ligeira. —  Arca- 
biKeiros  montados.—  Dragões.—  Os  postos  e  svas  preemineodas.»  ArtQheria.— 
Mamiisio  do  Nassaa  e  Gnstavo  Adolfilio.— Adminístnflo  mOitar.— Ordens  do  htn- 
ttUA  mais  usadas.--PnwiofSNH.«-IMNBWttt08.—  Disc;plina.~  Estado  do  fri- 
quexi  do  paiz.— Profidendas  |Mm  o  sea  armaffloalo  o  defesa.— Soldos.— Encar> 
gos  d»  BúUcia. 

Quatro  epochas  distiiictas  abraçam  as  instituições  mili- 
tares de  Portugal  até  aos  reinados  do  cardeal  D.  Henrique 
e  de  Filippa  n.  Na  primeira,  decorrida  desde  a  fiuida^^o 
4a  monarchia  até  ao  governo  de  Affonso  III,  as  leis  ge- 
raes  e  as  cartas  de  foral  organisam  as  forças  do  paiz  ap- 
plicadas  á  deíeza  do  território.  Na  segunda»  em  que  sao 
já  sensíveis  9S  progressos,  opera  D.  Diniz  reformas  im- 
portantes, muldadas  pelo  typo  das  ParUdat  de  Affonso 
o  Sabio  de  Castella.  Na  terceira  D.  Fernando  e  D.  João  I, 
•advertidos  pela  experiência,  renovam,  ou  modiiicam  os 


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8  HISTORIA  DE  PORTCGAL 

Milícia  antigos  elementos,  imitando  os  exemplos  das  nações  mais 
^  adiantadas.  Na  quarta»  finalmente,  D.  ManaeK  seguindo 
de  perto  os  traços  de  Fernando  e  de  Izabel  depois  do  cerco 
de  Granada,  que  foi  a  grande  escola  guerreira  da  [)eiiin- 
sula  ibérica  n'aquelle  século,  assenta  as  bases  do  novo 
systema»  que  seu  âliio  e  seu  neto  completaram,  procu- 
rando conciliar  o  pensamento  da  meia  idade  com  as  no- 
vas circumstancías  creadas  pela  renascença. 

Na  primeira  metade  do  século  xv  (de  1401  a  1438)  a 
organisagão  militar  do  reino  podia  dizer-se  quasi  perfei- 
ta. Alem  das  iaúças,  com  que  as  ordens  de  cavallaria  re* 
lígiosa,  os  senhores  ecclesiasticos,  e  os  fidalgos  eram 
obrigados  a  servir,  o  rei  podia  em  curto  csparo  convocar 
em  volta  da  sua  bandoií  a  os  homens  de  armas  dos  conce- 
lhos recenseados  na  classe  dos  aquantiados,  as  compa- 
nhias dos  bésteiros  do  conto,  ou  do  numero,  tirados  d)S 
grémios  fabris  e  industriaes,  os  bésteiros  de  pé  e  de  Ca- 
vallo, e  os  homens  de  lança  e  escudo,  que  as  cidadfs  e 
villas  tinham  obrigação  de  pôr  cm  cnm[)0  <i  i)i-iiTieira  voz. 
Só  os  besteiros  do  conto,  á  sua  parte,  formavam  utc  cor- 
po de  cinco  mil  soldados  práticos  e  adestrados,  cióa  ar» 
ma,  a  bésta,  equivalia  quasi  na  táctica  da  epocha  pdos  ef- 
feitos  destruidores  á  acção  da  espingarda  moderna  Desde 
os  moços  de  dezoito  annos  até  aos  homens  de  stssenta  e 
de  sessenta  e  nove  annos  a  todos  cumpria  acud  rempela 
honra  «  pela  segurança  da  pátria.  Âo  primeiro  rebate  d^ 
viam  ter  os  cavallos  apparelhados,  as  armas  prcmptas  e  os 
•cabos  na  frente.  D.  Manuel  conservou  os  lineamentos  capi- 
tães doeste  plano,  e,  abolindo  os  bésteiros  do  conto  já 
quasi  inúteis,  creou  as  companhias  de  piques  e  de  arcii- 
buzeiros  municípaes.  D.  Jo^o  III  na  lei  das  ^ntias  apro- 
priou ás  condições  de  riqueza  do  seu  tempoo  antigo  censo. 
D.  Sebastião,  por  ultimo,  generaiisando  aiíida  mais  o  priiv 


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DOS  SECDLOS  IVH  E  XVIU 


9 


dpío,  intentou  realísar  com  a  instituição  da  Ordenança  a  MiUda 
idéa  de  um  povo  de  soldados  sem  o  ónus  e  os  inconve-  ^ 
nientes  dos  exércitos  permanentes. 

A  Ordenança  decretada  em  1570  nasceu  doeste  pensa- 
mento, mas  as  inclinações  bellicosas  do  principe  exagera- 
ram a  sua  applicação  a  ponto  de  excitar  as  repugnancias 
geraes,  e  da  lei,  por  excessivamente  symetríca  e  oppres- 
siva,  lutar  desde  o  começo  com  a  má  vontade  dos  súb- 
ditos. A  rede  de  encargos  e  de  responsabilidades,  em 
que  apertava  os  hoiiiens  válidos,  e  a  obrigação  imposta 
a  todos  de  concorrerem  com  as  pessoas  e  os  bens  ainda 
seriam  toleráveis  na  opinião  de  muitos,  se  o  soberano  li* 
mtlasse  os  esforços  á  defeza  do  território,  e  n3o  inquie- 
tasse um  paiz  já  amigo  da  paz  e  do  socego  com  os  [íroje- 
ctos  temerários  da  conquista  africana.  Não  admira,  por- 
tanto, que  as  Ordenanças,  sempre  mal  acceitas,  ficassem 
letra  morta  apenas  o  rei  desappareceu.  Uma  das  suppli- 
cas  das  Côrtes  de  Thomar  a  Filippe  II  foi  a  sua  extincção, 
e  o  astucioso  monarcha  annuiu  sem  diíliculdade.  Su  qua- 
renta e  cinco  annos  depois,  em  16:^3,  é  que  a  instituição 
renasceu  mutilada  em  muitos  preceitos  essenciaes. 

O  alvará  de  1570,  íilbo  da  generosa  idèa  de  continuar 
as  tradições  das  grandes  epochas  da  monarchia  foi  sem- 
pre vencido  pelos  obstáculos.  As  guerras  distantes  da 
Asia  e  o  desfallecimento  gei  al  tomavam  pesada  e  vexato* 
na  de  mais  a  satisfação  de  deveres,  cuja  utilidade  imme- 
diata  os  povos  já  não  attinglam  nos  dias  de  D.  João  III,  e 
muito  menos  depois  de  unida  á  Hespanha  a  coi  òa  d*  Vov- 
tugal.  O  gabinete  de  Madrid  por  motivos  óbvios  não  de- 
sejava espertar  o  zélo  marcial.  Sempre  duvidoso  da  obe- 
diência do  paiz,  preferia  conservado  inerme  a  vé-lo  ar- 
mado. Foram  estas  as  ras5es  por  4ue  depois  da  morte  de 
D.  Sebastião  tu^io  esmoi  eceu  e  afrouxou.  Mais  ao  diante. 


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10  UISTOMA.  DE  PORTUGAL 

másL  quando  o  governo  de  Fiiippe  IV,  coagido  pela  necessidade, 
quiz  restaurar  o  systema,  não  colheu  d^elle  a  menor  van- 
tagem. Faltou-lhe  a  condição  principal»  o  apoio  da 

Debalde  a  mesa  do  desembargo  do  paço,  instada  pelas 
ordens  do  conselho  de  Portugal  em  Bladrid,  mandou  em 
1623,  que  o  regimento  de  10  de  dezembro  de  1570  sobre 
os  capitães  móres  e  os  capitães  e  ofíiciaes  das  companhias 
de  Cavallo  e  de  pé  da  Ordenança  fosse  reimpressos  posto 
em  vigor,  e  que  as  milícias  locaes  se  adestrassem  com  os 
exercícios  recommendados  n'elle.  Em  vão  segundo  as 
prescrípções  da  organisação  de  1570  os  alcaides  móres 
e  os  donatários  ficaram  sendo  os  chefes  militares  das  ter- 
ras, e  os  commandantes  das  forças  recenseadas.  Os  mo- 
radores das  cidades,  villas,  aldeias  e  casaes,  de  dezoito  a 
sessenta  annos  de  idade,  deviam  ser  obrigados  segundo 
o  rendimento  dos  bens  moveis  e  de  raiz  ao  serviço  da 
milícia  local»  comprando  á  sua  custa  as  armas  offensivas 
e  defensivas.  Os  mais  ricos  haviam  de  ter  cavallo  próprio 
e  de  marca,  lança,  espada,  morrião  e  peito  de  aço,  ou 
coura  de  laminas.  Os  menos  abastados  haviam  de  alistar- 
se  nas  companhias  de  pè  com  espada,  arcabuz,  ou  pique, 
armadwa  do  tronco,  oa  còssolete.  Os  mais  pobres,  por 
fim,  serviam  nas  fileiras  só  armados  de  lanças  compridas. 
As  coiiipaiihias  compunliani-se  de  %)()  liuinens  repartidos 
por  dez  esquadras,  e  cada  mna  tinha  ca])itão,  alferes, 
bandeira,  sargento,  dez  cabos,  e  um  tambor.  Todos  os 
annos  peio  S.  Miguel  competia  aos  capitães  móres  passa- 
rem revista  á  ordenança  dos  seus  districtos,  e  todos  os 
mezes  a  gente  de  pé  e  de  cavallo  era  obi  iif  nla  a  t  xorci- 
tar-se  no  campo  e  nas  barreiras,  manobrando,  atirando 
ao  alvo,  e  ensaiando  as  evoluções  próprias  da  soa  arma  K 

t  *  Regimento  dos  capitaens  riiéres  e  oficiae$  das  companhi»  4k 


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DOS  SÉCULOS  xvn  E  XVIU 


ii 


D.  Sebastião,  promulgando  esta  lei,  imaginara  conver- 
ter o  paiz  eiii  um  vasto  acampamento.  Não  era  íacil,  po- 
rém, violentar  a  vocação  dos  povos.  As  epochas  de  ardor 
gaerreiro  estavam  extinctas,  e  querer  transformar  lavra- 
dores, ofliciaes  mechanícos,  mercadores,  e  até  chatíns  em 
milicianos,  e  força-los  ao  nso  e  á  fadipfa  das  armas,  era 
uma  illusão,  que  a  realidade  desnienlm  depressa.  Maior 
Alusão  ainda  foi  a  do  conde  de  Olivares»  quando»  receioso 
das  hostilidades  dos  inimigos  contra  o  nosso  território, 
suppoz  possível  acordar  as  populações  do  somno  de  tan- 
tos annos  para  as  sujeitar  de  novo  á  disciplina  da  lei  de 
1570.  O  tardio  esforço  do  ministVo  serviu  só  de  provar 
€om  evidencia  quio  impotentes  são  os  meios  artifíciaes  em- 
pregados para  substituir  o  patriotismo  ausente.  As  ordens 
da  corte  não  reanimaram  os  brios  amortecidos,  nem  po- 
deram  reanimar  a  organisação  repellida  pela  indifferença 
publica.  Os  capitães  móres  e  os  capitães  das  companhias 
locaes  existiram,  os  outros  postos  foram  providos,  mas  M- 
taram  sempre  os  soldados,  as  armas,  e  tudo  o  que  só  a  von- 
tade enérgica  da  nação  sabe  prestar  ás  instituições,  quan- 
do, perfiihaiido-as,  quer  fazel-as  verdadeiramente  suas. 

A  pobreza  geral,  a  aversão  ao  serviço,  o  odio  do  jugo 
estranho,  e  a  emigrado  para  o  ultramar  e  para  o  estran- 
geiro reduziram  nos  dezesete  aanos,  que  durou  ainda  o 
governo  liespanhol,  os  (  juadi^os  das  compaiiliias  a  núcleos 
iasigoilicantes.  As  camaias  cruzavam  os  braços,  os  cor- 

MffenÊB  de  ^ooaffo  ê  de  pé  $  da  ordan  que  ierâo  em  w  wíreUarm, 
«igm  ncmunânte  oídenado  pera  todo  o  soldado  (er  e  pera  saber 
«leger-se  e  aproreitar  dos  privilégios  e  de  tudo  o  mais  contendo 
«ndle.»  Em  casa  de  Belchior  de  Faria,  cavalleiro  da  casa  de  Elrey 
Nosso  Senhor  e  sen  livrehu  A  portaria  da  mesa  do  desembargo  do 
paço  é  datada  de  26  de  novembro  de  16S3  e  assignada  por  Y .  CSal* 
dsta,  Ibmiz,  Araujo^  J.  Peneira  e  D.  de  UaUo. 


i%  HISTORIA  DE  POUTLGAL 

.miteu  regedores  e  juízes  de  fóra,  compadecidos  da  miséria  pu- 
blica,  e  temendo  concitar  resistências,  não  apertavam 
pelo  cumprimento  da  lei,  e  as  moslias  aiiiiuaes  e  os 
exercícios  mensaes,  adiados,  ou  esquecidos,  não  se  rea- 
lisavam,  ou,  se  por  necessidade  extrema  se  faziam,  eram 
^ómente  um  arremedo  quasi  brutesco  do  primitivo  dese- 
nho da  milícia  creada  polo  onlhusiasmo  pouco  feliz  do  ul- 
timo rei  cavalleiro.  No  seio  da  profunda  paz  interna  e  da 
apathia  geral  as  prevenções  de  guerra  pareciam  violen- 
tas e  inúteis,  e  atè  mesmo  os  rebates  do  perigo  já  não 
despertavam  os  brios.  Mais  de  uma  vez  os  saltos  dos  pi- 
ratas barbarescos  e  dos  corsários  inglezes  e  hollandezes 
infamaram  as  praias  portuguezas,  e  as  vigias  faltavam 
nos  seus  postos,  ou  repetiam  em  vão  os  signaes.  Âs -ga- 
lés e  navios  da  guarda  da  costa  apodreciam  nos  lodos  do 
Tejo  e  nos  outros  portos,  e,  embora  os  fachos  e  as  colum- 
nas  de  fumo  avisassem  as  povoações  da  eminência  do  peri- 
go, os  moradores  deixavam  nos  cabides  as  lanças  e  as  es- 
padas, e  não  despregavam  da  parede  o  arcabuz  desarmada. 

Quando  o  arrojo  dos  contrários,  crescendo  com  a  cer- 
teza da  iiiipLinidade,  devassou  na  índia  e  na  America  os 
mares  c  os  territórios  foi  preciso  arrastar  á  força  solda- 
dos e  marinheiros  para  as  armadas  de  soccorro,  e,  quan- 
do a  cArte  de  Madrid,  infringindo  as  immunidades  jura» 
das  em  Thomar,  ousou  arrancar  os  portuguézes  da  terra 
natal  para  os  enviar  aos  campos  de  batalha  da  Itália,  de 
Flandres  e  da  Alleiíianha,  perdidas  as  esperanças  de  alis- 
tar voluntários,  teve  de  aliançar  grossos  prémios  aos  re- 
cmtadores,  que  iam  buscar  ás  aldeias  a  gente  bisonha  para 
reforçarem  os  terços.  Âcabára  de  todo  com  a  indepen- 
dência o  fervor  guerreiro  já  bastante  attenuado  na  segun- 
da metade  do  século  xvi,  e  á  sède  de  gloria  e  de  renome, 
que  iliustrára  com  tantos  varões  distinctos  a  monarchia. 


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DOS  SÉCULOS  XVil  £  XVIU 


13 


succcdèra  a  apagada  tristeza,  que  pifcede  a  iioito  das  na-  míiící» 
yões,  e  prepara  o  seu  suicídio  Desde  o  ultimo  quar-  ^ 
tel  do  XT  século  os  presídios  de  Africa  e  as  expedições 
da  índia  foram  a  única  escola  militar  aonde  os  portugue- 
zes  se  exercitaram,  e  n3o  admira,  que,  em  paz  com  a  Eu- 
ropa, não  podes^eni  acompariliar  os  pi'ogressos  da  arte  da 
guerra.  Em  Ceuta,  em  Arzilla  e  em  Tanger  as  lutas  dos 
fronteiros  quasí  (pie  só  reproduziam  a  táctica  peninsular 
dos  séculos  xii  e  xm,  modificada  pelo  uso  das  armas  de 
fogo,  c  liimliula  á  dereza  das  praças,  a  algumas  correrias 
pelos  campos,  e  ás  arramadas  contra  os  aduares.  No 
oriente,  aonde  só  as  esquadras  turcas  offereciam  inimigos 
instmidos,  feriam-se  os  combates  na  máxima  parte  con- 
tra multid^s  mais,  ou  menos  valorosas  individualmente, 
mas  ignorantes  dos  aptrlViçoamentos  modernos,  e  eram 
decididas  em  nosso  favor  pela  superioridade  da  ai  tillieria 
e  da  arcabuzcria.  Depois  das  surriadas  dos  pelouros  as 
espadas  e  os  piques  acabavam  de  romper  as  fileiras  pou- 
co firmes,  investindo-as  em  Ímpetos  furiosos  e  desorde- 
nados. Ooaiidv)  a  iiiiiau  a  (laslella  trouxe  como  consequên- 
cia inevitável  a  invasão  das  nossas  colónias  de  Africa,  do 
Brazil,  e  da  Asia  pelos  inglezes  e  oshoUandezes,  estes  no- 
vos adversários,  amestrados  na  disciplina  das  nações  mi- 
litares, obrigai  aiii  os  portnguezes  em  mais  de  um  recon- 
tro a  deplorarem  o  esqueciuK^nto  das  regras  usuaes  e  os 
inconvenientes  do  arrojo  temerário  ^. 

D.  Sebastião  tinha  mandado  vir  de  Itália  e  de  Flandres 
capitães  e  soldados  práticos  para  instrucção  das  milícias 

*  D.  Francisco  Maiiut  I  de  Mello,  Epanaphora  Trágica.  Na^ifragio 
da  Armada.  Lisboa,  iG7G. 

-  Ibidem. — Luiz  Mendes  de  Vasconcellos,  Arte  }íUitar,  dividida 
<  m  tres  pnrtes,  impressa  no  temio  dc  Alernquer,  na  quinta  de  Mas- 
cote. Anno  1612.  Part.  passim. 


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14  HISTORIA  DE  POIll  UÚAL 

mku  creadas  pela  lei  de  4570.  Mas  a  lição  dos  mestres  apnn 

1^  veitou  pouco.  So  alguns  dos  nossos  ainda  se  lembravam 
da  auliga  inclinagâo  pelas  armas,  o  maior  numero  n5o 
queria  aprender,  embora  Lisboa  em  maio  de  1578,  se- 
gundo aflirma  uma  testemunha  ocular,  parecesse  inteira- 
mente transformada  n'outra  cidade.  Custava  a  romper  nas 
ruas  por  entre  o  concurso  de  gente  militar,  nacional  e  es- 
trangeira, e  a  cada  minuto  se  ouviam  rufar  os  tambores,  e 
se  escutava  o  som  beliicoso  dos  clarins  e  das  trombetas. 
Rodavam  pesadas  carretas  de  artilhería,  e  todos  os  dias 
saíam  ao  campo  muitas  companhias  a  fazerem  exercicio, 
enti  ando  peias  barreiras  as  fumaradas  da  pólvora  e  os  re- 
bombos  das  descargas.  Este  grande  arruido  de  nada  va- 
leu. No  doloroso  episodio  decorrido  até  á  coroação  de 
Filippo  II,  os  troços  de  tropa,  rodeados  de  turmas  infre- 
nes, com  que  o  prior  do  Crato  cuidou  arremedar  a  for- 
mação de  uni  exercito,  desfizeram-se  logo  no  primeiro 
recontro  derrotados  pelos  veteranos  do  duque  de  Alva. 
Seguiu-se  o  silencio  da  occupação,  momentaneamente 
perturbado  pdo  desembarque  em  Gascaes  de  D.  Antonio 
e  dos  inpflezes.  Dilatou-se  depois  a  paz  por  hvgos  annos, 
e  os  portuguezes,  não  combatendo  na  Eui  opa  desde  o 
reinado  de  Alfonso  V,  quasi  quo  olvidaram  até  o  manejo 
das  armas.  Alguns  assaltos  repeilidos,  alguns  cercos,  e 
poucas  pelejas  de  cavallaria  contra  os  mouros  de  Fez  e  de 
Marrocos,  a  continuação  da  guerra  ila  índia,  e  a  defeza 
do  Brazil  constituíam  apenas  a  sua  habilitação  guerreira 
n'uma  epocha,  em  que  a  arte  militar  abria  um  de  seus 
capítulos  mais  instructivos  K 
No  ultimo  quartel  do  século  xm  devemos,  segundo  jú 

1  D.  FnncisGO  Manuel  de  Usiúo,  Eptaui^^hmi  I^ragiea,  Naufra* 
gio  da  Armada.  Edif  de  1676,  pag.  179, 183. 


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DOS  SÉCULOS  XVU  E  xvin  18 

r 

notámos,  as  innovações  introduzidas  por  D.  Diniz  á  Par-  mikii^. 
tida  II  de  AíTonso  o  Sabio,  inaiidada  trasladai'  por  el-rei  ^ 
em  portuguez.  No  tempo  dc  D.  Fernando  e  do  Mestre  de 
Aviz  apr^demos  dos  inglezes  qaanto  eUes  podiam  ensi- 
nar. Nos  ultimos  annos  do  século  xy,  finalmente,  D.  Ma* 
nuel  pautou  quasi  todas  as  reformas  militares  pelas  de 
Fernando  e  Izabal.  Nos  séculos  xvi  e  xvii  a  Ilespanha 
continuou  a  servlr-nos  de  mestra  e  de  modelo,  não  só  por 
ser  uma  das  primeiras,  sexão  a  primeira  potencia  gner- 
reirai  da  epocha,  mas  porque  os  vínculos  de  estreito  pa- 
rentesco no  reinado  de  I).  Joau  III,  c  depois  a  união  pes- 
soal das  coroas  lhe  asseguravam  inconteslavei  niílaencia. 
A  infanteria  hespanhola  ufanava-se  com  a  grande  repu- 
tação conquistada  por  suas  victorías,  e  podia  citar  o  lou- 
vor dos  melhores  capitães.  Os  arcabuzeiros  de  pé  e  de 
Cavallo  tinham  illustrado  as  bandeiras  em  innitos  lan- 
ces, os  homens  de  armas  haviam  medido  com  vantagem 
seus  pesados  esquadrões  com  os  mais  luzidos  esquadrões 
francezes»  emflm,  a  cavallaria  ligeira,  destra  e  infatigável, 
malisava  com  a  italiana,  e  offiiscava  a  alleml.  N3o  era 
para  estranhar,  portanto,  que  os  portuguezes  tomassem 
para  typos  de  imitação  estes  soldados  afamados,  e  cur- 
sassem a  escola  pratica  de  suas  campanhas,  desejosos  de 
Iransportarem  para  a  pátria  as  bases  de  uma  oiganísa- 
ção  quotidianamente  aperfeiçoada  por  generaes  illustres 
e  experimentados  K 

0  terço,  ou  «coronelia»  era  a  unidade  táctica  da  Hes- 
panha  no  século  xvn.  Formado  á  imitação  das  legiões  ro- 
manas, mas  inferior  em  forças,  mesmo  na  Allemanha, 
aonde  já  se  chamava  «regimento»,  nunca  chegara  a  ex- 
ceder o  numero  de  três  mil  homens.  D.  Francisco  Ma- 

1  D.  Francisco  Maimél  de  HeUo,  Ejpanu^pkora  JHgiea, 


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HISTOBU  DE  POBTVGAL 

Maida  nuel  de  Mello  affirma»  que  os  terços  em  1627  nunca  pas^ 

saram  de  mil  soldados,  e  cuida  que  d 'este  numero  se  llies 
derivou  o  nome.  A  Ordenança,  anies  de  1GÍ2,  prescre\ia 
que  elles  não  contassem  menos  de  tres  mil  praças,  divi- 
didas em  companhias  de  trezentos  homens,  preceito  di* 
ctado  por  cálculos  de  economia,  mas  pôde  dizer-se,  que 
a  transgressão  nasceu  logo  com  a  lei.  Os  i)oríuguezes, 
na  trahquillidade  profunda  de  suas  fronteiras,  e  na  longa 
neutralidade  assegurada  nas  contendas  europeas  desde 
o  reinado  de  D.  João  II  até  ao  de  D.  Sebastião»  atraza- 
ram-se  tanto  das  outras  nações,  que,  se  não  foram  os  ul- 
tliiiijs  a  adoptar  a  mais  perfeita  organisaçãu  da  infanteria, 
ainda  no  derradeiro  quartel  do  século  xvi  a  não  liaviam 
completamente  abraçado.  Oppunham-se  os  costumes»  e 
invocava-se  como  rasão,  que,  limitada  a  guerra  á  con- 
quista da  Asia  e  aos  presidios  africanos,  não  parecia  con- 
veniente mudar  a  primeira  f('>ima.  D.  Sebastião  creou 
terços  nacionaes  e  estran^^oiros  para  a  sua  desditosa  ex- 
pedição. Foram  as  armas  inglezas  e  holiandezas»  que  tor- 
nando, senão  inútil,  pelo  menos  assás  perigoso  o  valor 
desordenado  da  antiga  nulicia,  forçaram  os  capitães  por- 
tuguezes  a  approximarem-se  das  regras  geralmente  se- 
guidas K 

Desde  o  começo  do  século  xtii  até  â  acclama(ão  de 

D.  João  IV  formaram-se  alguns  terços  regulares,  espe- 
cialiiieiite  na  ultima  década  do  governo  de  Castelia.  Mas 
nunca  existiu  o  que  na  linguagem  da  epocha  se  chamava 
cpé  firme  de  exercito»»  e  hoje  dizemos  cexercitQ  perma- 
nente». Recrutavam-se  as  companhias,  e  compunham-se 
as  «coronelias»,  conforme  as  necessidades  e  as  occasiues, 
poi  èm  os  costumes,  os  apuros  da  fazenda,  e,  mais  que  tu- 

i  D.  Francisco  ISamuA  de  Mello,  Bpampkora  Trastea. 


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DOS  SÉCULOS  XYll  £  XViU 


17 


do,  o  ciúme  da  curte  deMadrid,  nuiica  adiniltiram  acreação  MUd» 
de  corpos  em  separado  das  ordenanças  locaes.  Suppõe-se,  ^ 
qm  Gaspar  de  Sousa  e  D.  Jorge  Mascarenhas»  marquez 
de  M ontalvãOy  foram  os  mestres  de  campo  dos  primeiros 
terços  formados  em  Portogal.  Depois,  o  archiduque  Al- 
berto, lembi  ado  da  nação,  que  tinha  governado  cinco  an- 
nos,  pediu  a  Filippe  111  um  corpo  de  soldados  purlugue- 
2eSy  tão  util,  asseverava  elle,  á  defeza  dos^Estados,  como 
á  gioria  do  reino.  D.  João  de  Menezes  commandou  o  ter- 
ço, que  se  organlsou  então,  e  fallecen  em  Flandres,  sue- 
cedendo-lhe  no  posto  Diogo  Luiz  do  Oliveira,  que  seus 
merecimentos  elevaram  do  posto  de  mestre  de  campo 
aos  altos  cargos  de  conselheiro  de  guerra  e  de  capitão 
general  dos  exércitos  hespaidioes. 

Este  exercicio  assas  restricto  nas  lutas  dos  Paizes  Bai- 
xos, não  era  sufficiente,  comludu,  j[)ara  crear  gente  ades- 
trada, que  nas  esquadras  da  índia  e  do  Brazii  podesse 
oppor-se  aos  hoUandezes,  e  cada  dia  era  mais  notada  a 
íidta  de  boas  tropas.  D.  Antonio  de  Atiiaide,  provido  no 
cargo  vilalicio  de  general  da  armada  portugueza,  propoz- 
se  occorrer  sem  demora  a  este  mal,  e,  alcançada  ordem 
para  recrutar  um  terço  permanente  de  infanteria,  desti- 
nado a  qualquer  lance  repentino  do  mar,  ou  das  posses- 
sões ultramarinas,  apressou  a  sua  organisação.  Esta  força, 
•capitaneada  por  D.  Francisco  de  Almeida,  existiu  até  á 
perda  da  Bahia;  mas  exigindo  a  recuperação  da  capital 
do  Brazil  maior  esforço,  o  governo  decidiu  reforçar  o  an- 
tigo corpo  denominado  da  «Armada»,  ou  antes  substi- 
tui-lo por  outro  novo  denominado  «Terço  de  Soccorro», 
de  que  nomeou  mestre  de  campo  Antonio  Moniz  Bar- 
reto. Terminada  a  empreza,  logo^esqueceram  com  os  cui- 
dados as  prevenções,  e  o  mesmo  desleixo,  talvez  calcu- 
lado, que  deixava  aí)odrecer  os  navios  nos  portos,  tam- 
1010  T  a 


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18 


HISTORIA  DE  PORTUGiU* 


niiicu  bem  deixou  cair  as  amas  das  m3o$  aos  soldados.  Na  sua 
volta  da  America  as  companliias  foram  aquarteladas  cora 

outras  tropas  na  tVn  taleza  de  Cascaes,  e  ja/,eiaiii  <juasá 
desprezadas  e  sem  commandantes  d^âde  IG^O.  As  de- 
serções e  as  licenças  desMcaram-as  por  modo  tal,  que  em 
I6i7  poucos  soldados  contavam  já  ^ 

A  Ordenanra  determinava,  que  o  effectivo  de  cada  ter- 
<;o  fosse  de  tres  mil  liomons,  entrando  no  seu  quadro  mil 
piques,  mil  e  oitocentos  arcabuzeiros,  e  duzentos  mos- 
queteiros. Mas,  conforme  observámos,  a  regra  nUo  se 
/cumpria,  e  os  terços  nunca  excederam  mil  e  duzentas  pra- 
ças, ou,  no  máximo,  ikias  mil.  Cada  <  uuip aiihia  tinha  cento 
e  cincoenta,  ou  duzentos  soldados,  e  segundo  a  antiga 
ordem  de  guerra,  seguida  até  aos  fins  do  século  xvi,  de^ 
via  ser  composta  de  cm  arcabuzeiros,  de  cincoenta  pi- 
ques, e  de  cincoenta  besteiros,  em  corpos  quasi  separa- 
dos,  que  manobravam  e  podi  im  cornhalei  iiidependentes 
uus  dos  outros.  Quando  as  descargas  dos  arcabuzeií-os 
uão  conseguiam  suster  o  inimigo,  os  bésteiros  encurva* 
vam  os  arcos  e  arremessavam  contra  elle  uma  chuva  de 
virotes.  Rotos  os  arcabuzeiros  e  os  bésteiros  ainda  fi- 
cavam os  piques  constituindo  o  núcleo  mais  forte.  Os  olli- 
ciaes  das  companhias  eram  o  capitão,  o  alfereSi  e  o  sar- 
gento, com  oito,  ou  dez  cabos  de  esquadra,  um  capellão, 
um  barbeiro,  um  pifano,  e  dois  tambores.  A  formatura 
mais  usaLla  tazia-se  por  lilás  de  tres,  de  cinco,  de  sete,  do 
novee  de  onze  soldados.  Os  capitães  recebiam  as  urdens 
dos  mestres  de  campo,  e  o  saigento  múr  communicav» 
directamente  as  suas  aos  sargentos  das  companhias,  dan- 
do o  santo  ás  patrulhas  e  sentínellas,  e  collocando-as  nos 
postos.  Em  paiada  os  capitães,  completamente  aima- 

1  D.  Fianciflco  Manuel  de  Mello,  Epanaj^ara  Trágica, 


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nos  SECOU»  xm  E  xvm 


19 


dos,  marchavam  todos  em  umia  linha  na  frente  do  corpo 
com  as  ginetas  (insígnias  do  mando)  nas  mãos»  a  cabeça 

descoberta,  e  as  manoplas  calçadas.  Os  pagens  levavam- 
Ihes  o  morrião.  Em  batalha,  em  vez  da  gineta,  em[)unha- 
vam  a  espada,  ou  o  espontão,  e  embraçavam  rodeUas  de 
aço.  Os  mestres  de  campo  e  os  sargentos  môres  andavam 
a  Cavallo.  Os  ofDdaes  portuguezes  podiam  usar  bandas 
roxas,  preeminência  da  iMÍciiiteria  hespanhola.  Os  toques 
mihtares  mais  repetidos  eram  o  de  «passeio  j>  ,  o  de  «bate* 
na»,  o  de  tretirada»,  o  de  «escaramuça»,  e  o  de  «faxina»  ^ 

Na  infanteria  os  postos  sob  diversas  denominações  re- 
produziam pouco  mais,  ou  menos  as  attribuiçOes  dos 
actuaes.  O  mestre  de  carn[)0  correspondia  ao  moderno 
coronel,  e  o  sargento  mór  quasi  ao  major.  Ao  terço  com- 
pleto cabiam  dez  eapitSes,  dez  alferes,  dez  sargentos,  e 
quarenta  cabos  de  esquadra.  A  proporçlo  das  dififerentes 
armas  entrava  nas  companhias  nas  seguintes  propor- 
ções: cem  cossoletes,  cento  e  oitenta  arcabuzeiros,  e 
vinte  mosqueteiros. 

Os  cossoletes  eram  tidos  na  conta  dos  soldados  mais 
estimados.  Pelejavam  firmes  no  campo,  e  defendiam  as 
inmalhas,  as  trincheiras,  e  as  baterias.  As  outras  tropas 
de  pé  e  de  cavalio  lòrmavam  no  seu  flanco,  ou  na  sua  re- 
taguarda. Usavam  piques,  ou  lanças  muito  compridas,  es^ 
pada,  e  adaga,  e  cobrlam-se  com  peitos  e  espaldares  de  aço, 
escarcellas,  braçaes,  morrião,  e  manoplas.  A  sua  ordem 
de  marcha  era  a  mais  larga  de  todo  u  batalhão  para  terem 
espaço  de  arvorar,  calar,  e  tornear  os  piques  s.em  em- 
baraço. Carregados  de  armas  ofensivas  e  defensivas, 

*  Luiz  Mendes  áe  YaseonceWos,  Arte  MUUar. —  Curiosidades  de 
Gontalo  de  Souta,  Manuscripto  da  bibliotheca  real  da  Ajuda.  Part.  iv 
e  seguintes. 


20 


HISTOBU  BE  PORTUGAL 


Jliucia  todos  OS  seus  movimentos  eram  lentos  e  pesados,  ma- 
nobrando  ao  som  dos  tambores.  Os  piqaes  chamados 

secos,  mais  ligeiramente  armados,  [)orque  apenas  lhes 
resguardava  a  cal)('('a  uma  espécie  de  elmo,  [todiam  ope- 
rar com  maior  promptidão  do  (pe  os  acobertados^  mas 
só  combatiam  no  centro  d'elles  ^ 

Os  arcabuzeiros  reputavam-se  os  soldados  mais  uteis 
depois  dos  [liijues.  A  sua  missão  principal  consistia  em 
sustentarem  os  passos  ásperos  e  diíllceis,  occupando  o 
primeiro  iogar  no  serviço  do  campo»  e  guarnecendo  em 
batalha  as  alas  dos  terços»  oa  das  companhias.  Soldados 
de  tropa  ligeira  não  vestiam  couraça,  e  as  armas  defenr 
sivas,  que  usavam,  r»  duziam-se  ao  morrião.  Cingiam  es- 
pada e  adaga»  e,  aiem  do  arcabuz»  deviam  sempre  andar 
prevenidos  com  pólvora»  balas»  murrSes»  e  frasco  de  es* 
sorvas  a  tiracoUo. 

Consideravam-se  os  mosqueteiros  como  os  menos  no- 
bres de  todos  os  soldados  de  infanteria.  O  peso  do  mos- 
quete não  lhes  consentia  escaramuçarem  e  correrem  o 
campo»  e  só  podiam  prestar  auxilio  efficaz  em  posições 
protegidas  pela  cavallaría»  d'onde  offendessem  o  inimiga 
€om  o  grande  alcance  dos  pelouros,  e  seu  effeito  destrui- 
dor, porque  nenhuma  peça  de  armadura  lhes  resistia.  Nâo 
traziam  amez»  ou  coura»  mas»  alem  da  forquilha»  em  que 
assestavam  o  mosquete»  deviam  trazer  espada»  e  uma 
adaga  capaz  de  cortar  estacas  para  reparos.  Escolhiam-se 
sempre  para  esta  arma  homens  membrudos  e  forçosos, 
aptos  para  carregarem  e  dispararem  com  a  possível  pres- 
teza» parados»  ou  marchando  K 

1  Luiz  Meodes  de  YasconceUos,  Arte  MilUarj  pag.  v.  a 
127  V. 

2  Ibidem»  ibidenu 


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DOS  SÉCULOS  XVU  E  XYIII 


A  cavallaria  dividia-se  cm  companhias  de  cem  solda- 
dos, e  compuoiía-se  de  «homens  de  armas»,  de  «cavai- 
ios  ligeiros»,  de  «arcabuzeiros»,  e  de  «dragões».  Cada 
eompanhia  repartía-se  em  quatro  esquadrões  pequenos 
de  vinte  e  cinco  praças.  Os  oirií  ines  das  companhias  eram 
o  capitão,  o  tenente,  o  alferes,  o  furriel,  e  os  raporaes,  ou 
cabos  de  esquadra.  Suas  attribuições  correspondiam  ás 
que  hoje  exercem  os  militares  investidos  nos  mesmos 
postos.  Os  «homens  de  armas»,  também  chamados  «cou- 
raças», formavam  a  cavalLu  la  [u  ^ad.i,  e  a  patente  de  ca- 
pitão prezava-se  por  mais  nobre,  que  a  de  capitão  de 
«cavallos  ligeiros»,  ou  de  «arcabuzeiros»,  porque  nin- 
guém se  alistava  nas  Aleiras  dos  couraceiros  sem  pri- 
meiro satisfazer  a  rigorosas  provas  de  fidalguia.  Suas  aiw 
mas  defensivas  consistiam  em  um  corpo  de  aço  inteiro, 
meios  braçacs,  meios  coxotes  c  fraldilha,  ou  tonelete,  es- 
pécie de  abas  de  laminas,  que  desciam  até  ao  joelho. 
O  peito  devia  ser  de  fina  tempera  á  prova  de  bala  de 
mosquete,  e  as  outras  peças  lí  prova  de  bala  de  pistola, 
assim  como  a  cellada.  Cingiam  espadas  largas,  agudas  na 
ponta,  próprias  para  talho  c  estocada,  e  traziam  duas 
pistolas  enormes  nas  fundas,  ou  coldres.  Montavam  caval- 
los acobertados  de  ferro,  robustos  e  possantes,  em  seilas 
de  brida  com  grandes  arções  de  aço.  Na  peleja  o  seu 
logar  equivalia  ao  dos  piques  na  infanteria.  Serviam  de 
núcleo  às  forças  da  mesma  arma,  e  só  carregavam  nas 
occasiões  decisivas.  Empregados  na  Allemanha,  na  Fran- 
ça, na  Itália,  e  na  Hespanha,  suas  companhias  de  noventa 
e  cinco  homens  combatiam  de  ordinário  em  dois  esqua- 
drões commandados  pelo  capitão  e  pelo  tenente,  sustenda 
o  Ímpeto  dos  contrários,  rompendo-os,  cobrindo  e  pro- 
tegendo os  terços.  Davam  usuahneitf e  as  cargas  a  trote, 
disparando  uma  após  outra  as  duas  pistolas.  Faziam  de* 


22  UISTOHU  DE  POBTUGAL 

jiiucia  pois  meia  volta,  mettiam  mão  à  espada,  e  vinham  topar 

jjj^  em  cheio  com  os  inimigos*. 

A  cavallaria  ligeira,  quasi  tão  estimada,  era  preferida 
pelos  moços  nobres  e  cobiçosos  de  gloria  por  ser  a  arma, 
que  mais  lances  lhes  proporcionava  para  ostentarem  o  sea 
valor.  Busca vam-se  para  ella  homens  njbustos,  nias  de  pou- 
ca corpulência.  O  serviço  activo,  que  iiies  competia  em 
campanha,  justificava  a  necessidade  d  estas  qualidades.  Os 
«cavalíos  ligeiros»  entravam  nas  descobertas,  nos  ataques 
parciaes  de  vanguarda,  ou  de  retaguarda,  nas  cargas  de 
flanco,  e  escoltavam  os  coaibuius  e  os  parques  de  artiihe- 
ria.  Auxiliares  dos  «homens  de  armas»,  e  munidos  de 
lanças  de  riste,  e  de  espadas,  adagas,  e  estoques  penden- 
tes do  arçSo  da  sella,  usavam  peitos  de  aço  com  espalda- 
res mui  leves,  e  celladas  bn[  i.^unhezas  com  saios  vaíjuci- 
ros  de  mangas  compi  idas  c  estreitas.  Corriam  em  seus 
ginetes  velozes  e  soíli  edores,  e  timbravam  em  supportar 
quasi  insensíveis  as  fadigas  e  as  inclemências  das  estaç5es. 
Em  batalha  investiam  os  ccavallos  ligeiros»  oppostos  e 
os  arcabuzeiros.  Suas  bandeiras  dc  seda  quarteadas  das 
cores,  que  os  capitães  designavam,  só  podiam  trazer  bor- 
dadas as  armas  reaes,  ou  alguma  empreza  commemorar 
tiva  de  feitos  honrosos. 

Os  arcabuzeiros  montados  mereciam  o  conceito  de  se- 
rem US  soldados  la.iis  uu-is.  Empregavam-sc  cm  correr  o 
campo,  escaramuçar  nas  primeiras  linhas  da  vanguarda, 
romper  o  fogo,  e  ameaçar  constantemente  os  flancos  e 
a  retaguarda  dos  inimigos.  O  arcabuz  de  pederneira,  ou 

1  ArUUSitar,  pag.  127  e  128^ — Umu^  ãm  CaoíàÊBria,  pdú  ctm- 
de  GélittÇtí  GwÃào  com  m  mmotaçõ»  do  mndê  dê  Sahugal,  D.  Mo 
MoãemiAiiu,  do  ammAo  de  guerra  de  el-rfl  D.  Afanão  VL  Ma* 
nuscripto  meu,  pag.  i22  a  iS9. 


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DOS  SÉCULOS  xvn  E  xvin  23 

àe  roda,  uma  espada,  e  uma  adaga  eram  as  suas  armas. 
Usavam  a  pólvora  dividida  em  cargas  no  cinto,  e  monta- 
vam em  cavallos  ligeiros  e  de  pouco  preço.  Vieram  as 
<»i:lavinas»  substitui-los,  porém  muilo  depois.  Os  mos- 
quetes, que  apenas  sc  diilerençavam  das  «clavinas»  em 
o  cano  da  arma  ser  mais  curto  e  grosso  e  de  maior  cali- 
bre, carregado  de  bala,  ou  de  cinco  zagalotes,  pouco  se 
general isaram  em  Portugal.  Nas  annotações  ao  tratado 
do  Manejo  da  CamUaria,  do  conde  Gallcaro  Giioldo,  o 
conde  de  Sabugal,  D.  João  Mascarenhas,  escrevendo  já  no 
reinado  de  Afibnso  VI,  diz  que  nunca  vira  mosqueteiros 
nas  guerras  de  Flandres  e  de  Itália,  qualifíca-osde  muito 
dispendiosos,  e  entendei  que  os  airabuzeiros  podiam  des- 
empeniiar  exactamente  ein  campanha  o  serviço  d'elles 

Os  «dragões»,  fmalmente,  que  encontraremos  em  1642 
nas  planicies  do  Alemtejo,  eram  arcabuzeiros  montados, 
<|ue,  todavia,  pelejavam  quasi  sempre,  ou  as  mais  das  ve- 
zes a  pê.  Introduzidos  para  aconipaiihar  a  cavallaria  nas 
emboscadas  e  assaltos  dos  quartéis,  mais  aproveitavam 
DOS  terrenos  planos  e  pouco  accidentados,  do  que  nos  aspe^ 
ros  e  montanhosos.  Os  «homens  de  armas»  costumavam 
antes  levar  os  mosqueteiros  á  gampa,  mas  o  peso,  can- 
Síindo  os  cavallos,  tor^nava  quasi  impossíveis  as  retiradas. 
Os  «di-agões»  na  Uespanha  e  Portugal  formavam  compa- 
nhias soltas,  e  marchavam  em  tropas  com  bandeiras  e 
caixas,  poupando  á  infanteria  grandes  perigos  e  trabalho^ 

\à  cavallaria  o  posto  de  capitão,  apreciado  por  muito 
honroso,  só  se  provia  em  pessoas  de  alta  nobreza,  ou 
em  oiliciaes  práticos  e  distinctos.  Os  capitães  em  campa- 

1  ArU  MilUm*,  fl.  i28  a  130.— Jíai^/o  da  Cavallaria,  pâg.  i22 

2  ttúdem,  fL  idã— Ibidem,  pag.  193,  id5  e  i9& 


HIBTOBIA  DB  PORTUGAL 


noida  oha  votavana  ik>3  conselhos  de  guerra,  quando  não  con- 
corriam  os  mestres  de  campo,  e  da  sua  firmeza  e  Uberali- 
dade  dependia  a  satisfação  e  a  boa  vontade  dos  soldados.  A 

conservação  da  disciplina  tocava  mais  de  perto  aos  tenen- 
tes, aos  quaes  competia  especialmente  expenmentarem  os 
cabos»  6  manterem  a  ordem  no  esquadrão.  O  tenente  ao- 
primeiro  signal  devia  apparecer  na  praça  de  armas,  ea 
instrucção,  tanto  do  manejo  do  eavallo,  como  das  armas» 
constituía  a  parte  mais  pesada  de  suas  obrigações.  Nas 
companhias  de  «atx^abuzeiros»  os  tenentes  dirigiam  ^ 
partidas  soltas  todas  as  entradas  em  paiz  inimigo»  e  rom- 
piam as  escaramuças.  O  posto  de  commissarío  da  ccavaK 
laiia  ligeira»  só  era  conferido  a  oHiciaes  arili<i[os  e  consum- 
mados,  porque  exigia  grande  conliecimento  e  experiência 
da  arma.  Não  [)arece  que  atéao  íimda  primeira  metade  do 
seeulo  XVII  existissem  regimentos  nacionaes  de  cavallaria. 
As  companhias  reunidas  formavam  corpos  denominados 
«troços»,  cominaiidados  pelos  coinmissarios  superiores 
aos  capitães.  Cada  «troço»  tiniia  um  capeilão  e  um  cirur- 
gião. Os  commissarios  nomeavam  dois  ajudantes  appro^ 
vados  pelo  general^. 

Foi  depois  adoptada  a  organisação  regimental  estran- 
geira para  a  cavallaria,  e  aos  commissarios  succede- 
rain  os  coronéis  investidos  na  jurisdicção  civil  e  cri^ 
minai  de  todos  os  pleitos  e  delictos  militares  com  recurso* 
para  o  mestre  de  campo  general  e  para  o  auditor  gmd 
do  exercito.  O  tenente  general  da  cavallaria  occupava  o 
logar  mais  elevado  na  escala  hierarchica  da  arma,  capi- 
taneando todas  as  forças  reunidas»  e  tendo  no  conselho 


1  Regimento  do  que  deve  observar  o  que  tervir  na  cavaUaría,  etc, 
dividido  em  quatorze  capítulos,  inculcando  ser  composto  entre 
e  1645.  Hmuaciipto  meu»  fl.  i29»  m  e  i36. 


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DOS  SRCULOS  Xm  E  XVÍtt  x 

gradoa^So  e  voto  Igaal  ao  dos  mestres  de  campo.  Em  ba- 
talha os  Gommissarios  geraes  mettiam  os  esquadrões  na 

fórma,  e  o  general  passava-llu's  rovistn,  e  collocava-se  á 
sua  frente.  O  furriel  mór  acudia  a  tudo  o  que  respeitava 
ao  alojamento  dos  soldados»  e  ao  reconhecimento  dos  lo- 
garesapropriados  para  quartel,  ou  acampamento.  Sobre  os 
símpllces  furríets  recaiam  as  príncipaes  responsabilidades 
da  administrarão  «las  coiupaiiliia^,  a  expedição  das  livran-' 
ças  aos  assentistas  para  os  fomecjmeutos,  a  verificação  ef- 
iâctiva  dos  homens  da  sua  esquadra,  e  a  vigilância  activa 
sobre  os  commodos  e  bom  tratamento  dos  soldados  ^ 

A  artilheria  desde  os  fins  do  século  xvi  tinha-se  aper- 
feiçoado bastante,  especialmente  do})ais  que  Gustavo 
Adolfo  soubera  attrahir  a  victoria,  operando  na  arte  da 
guerra  uina  verdadeira  revolução*  As  novas  regras  de 
aecesso,  dictadas  por  elle,  e  fundadas  no  principio  da 
enmlação,  a  organisação  de  columnas  de  inian teria  com- 
postas de  dois  regimentos  do  duas  mil  piaras  com  mil 
e  cem  mosquetes  e  novecentos  piques,  e  a  subdivisão 
d'estes  corpos  em  companhias  de  noventa  e  seis  até  du- 
zentos e  vinte  oito  homens  realisaram  nas  condias  das 
tropas  de  pé  uma  profunda  alterarão.  Na  artilheria  fo- 
ram ainda  mais  importantes  as  reformas.  O  rei  da  Suécia 
mandou  construir  canhões  e  carretas,  quepodessem  trans- 
portar-se  com  facilidade  de  um  para  outro  ponto,  e  acabou 
c»m  as  peças  aDemSs,  que  o  próprio  peso  ímmobilisavanas 
posições,  aonde  uma  vez  se  assestavam.  As  inauvações  de 

1  Regimento  do  qvr  (frve  observar  o  que  senur  na  cavallaria.  ctc. 
Manuscripto  meu,  íl  143,  146,  i36  e  i41.  Este  regimento  é  pre- 
cedido do  parecer  e  respostas  de  Joanne  Mendes  de  Vasconcellos 
á(!erca  das  Ordenanças  Militares,  que  de  novo  se  intentava  intio* 
dozir. 


96  nsToniA  m  portdgal 

Hiiku  GustavOy  melhorando  as  que  Maurício  de  Nassau  já  in- 
1^  troduura,  abriram  nova  epocha,  e  serviram  de  luz  aos 

generaes  do  século  de  Luiz  XIV.  Banuiei*  e  Weimar  coii^ 
tiiiuaraiii  na  ^xmrix  dos  trinta  aniius  a  escola  do  rei  da 
Suécia,  e  Tureune»  Coudé  e  Montecuculí  sobresairam^ 
ampliando-lbe  os  príncipios  K  No  período,  que  descre- 
vemos, ainda  se  dividiam  muito  as  opiniões  ácerca  de 
pontos  esseiiciaos.  Atra\essava-sc  a  li  .iiisição  diííicil  de 
conciliar  os  progiessos  realisados  com  a  theoria  e  a 
pratica  dos  mais  insignes  capitães  da  antiguidade.  Luiz 
Mendes  de  Vasconceltos  acompanha,  por  isso,  cada  pre- 
ceito da  sua  Arte  Militar  de  extensas  citações  da  his- 
toria guorreira  da  Grécia  e  de  Roma,  e  depois  d'elle 
.  um  auctor  distincto  não  duvidou  propor  a  formatura 
em  columnas  como  a  ordem  fundamental  e  quasi  eii- 
clusiva.  Por  pouco  se  nlo  viu  toda  a  infantería  crespa  de 
piques  renovando  a  phatange'  macedonica.  A  cavallaría 
continu(ju  ainda  por  muito  tempo,  a  ligeira  a  combater 
parte  em  debandada,  parte  em  massa,  e  a  outra  a  ma- 
nobrar com  incerteza  sem  distinguir  se  a  sua  força  devia 
consistir  no  peso,  ou  na  rapidez  dos  movimentos  K 

A  artilheria  dividia-se  em  peças  de  campanha  e  em 
peças  de  bater.  Os  calibres  das  primeiras  não  passavam 
de  1  a  i±  O  emprego  de  tiros  de  cavallos  em  vez  de  jun- 
tas de  bois,  junto  á  superioridade  adquirida  por  uma  fun- 
dição mais  perfeita,  permittía  aos  canhões  certa  celeridade 
de  movimentos  mui  distante,  comtudo,  da  que  posterior- 
iiiente  alcançai  am.  Nas  baterias  de  cerco  os  calibres  va- 

^  Schiller,  Historia  da  Guerra  dos  Trinta  amm,  liv.  n. — IVa- 
tado  de  Taaiea  por  Luiz  de  Oiiveira  da  Gosta.  Uàm,  i787,  pag> 
111  a  118. 

2  n)idem,  ibidem. 


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DOS  S£CULOS  XVU  £  XVXU 


27 


riavam  de  20  e  30  até  50  e  60,  sem  contar  outros  me-  Miuete 
iioros.  Cada  canhão  de  50  era  servido  por  uin  bombar-  Jj^ 
deiro,  dois  ajudantes,  e  vinte  gastadores.  As  colubrinas 
de  60  disparavam  por  dia  quarenta  tiros»  as  refoTçadas 
entre  vinte  e  cinco  e  sessenta,  os  canhões  entre  sessenta 
e  oitenta,  e  os  sacras,  ou  falcões  dc  6  cento  e  vinte.  Quan- 
do a  artilheria  se  movia  marcliavam  os  gastadores  adiante 
para  concertarem  as  pontes  e  as  estradas.  Os  trens  muito 
complicados  eram  pesadíssimos.  Os  carros  de  munições 
seguiam  atrás  de  cada  secção  de  tres  peças.  Mas  as  con* 
ducções  corriam  sempre  lentas  o  embaraçadas.  As  baga- 
gens, e  com  ellas  os  moços»  creados»  almocreves,  reco- 
veiros» e  mercadores  vinham  na  retaguarda»  assim  como 
es  auditores,  os  municíonaríos,  os  feridos  e  os  doentes» 
os  médicos  e  os  cirurgiões,  protegidos  por  uma  guarda 
de  «arcabuzeiros»  e  uma  força  de  «cavallos  ligeiros». 
As  escoitas  das  bagagens  e  da  artilheria  eram  muitas  ve- 
zes também  compostas  de  mosqueteiros»  mas  os  mosque- 
tes pesavam  tanto,  que  os  soldados  em  marcha  não  podiam 
supporta-los.  O  general  da  artilheria  tinha  a  seu  cargo 
todo  o  serviço  da  arma,  e  expedia»  e  fiscalisava  todas  as 
ordens  que  lhe  eram  relativas  . 

A  administração  militar  ainda  nSo  saíra  dos  rudimentos. 
Os  vivandeiros  eram,  e  por  bastantes  annos  foram  ainda»  os 
fornecedores  quasi  exclusivos  das  tropas.  Para  occorrer 
aos  abusos  os  tenentes  do  mestre  de  campo  presidiam  á 
policia  dos  mercados»  taxando  os  preços»  e  nomeando  os  * 
soldados  incumbidos  da  visita  e  inspecção  dos  vivandei^» 
ros  do  terço»  ou  da  companhia  de  pé,  ou  do  troço»  ou  es- 

1  Luiz  Mendes  de  Vaseoneenos»  ArU  MUitar,  fl.  SM  v.  a  SS7»  e 
HtlS  T.  a  tíSk^BegimBHto  do  que  deve  (jòservar  todo  o  mU^,  He, 
liamneripto  meu,  pag.  141  e  151 


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28  HISTOiUA  DL  PUhlUGAL 

wua  quadrSo  de  cavaUos.  Estes  soldados,  conhecidos  pela  de- 

^  signação  de  «capitães  borracheis  >^ ,  acciiiim lavam  com  esse 
encargo  as  fuiicções  desagratlaveis  de  bater  as  estradas 
a  fim  de  prenderem  os  desertores,  ou  os  que  sc  ausenta- 
vam do  quartel  sem  licença,  de  iígarem  os  soldados  apo- 
leados,  de  atarem  as  mios  e  vendarem  os  olhos  aos  arca- 
buzados, e  de  expulsarem  do  campo  as  mulheres  de  má 
vida.  Crearam-sc  depois  os  logares  de  provedores  geraes 
de  viveres,  coadjuvados  por  commissarios  menores»  e 
commetteu-se-lhes  o  fornecimento  dos  arraiaes,  a  dlreo- 
03o  das  conductas  e  comhoios,  e  a  organisação  dos  depó- 
sitos na  proximidade  das  linhas  de  operações.  Nuvens  de 
íomeiros,  de  magarefes,  de  moleiros,  e  de  regatões  forma- 
vam o  cortejo  doestes  predecessores  dos  modernos  com- 
missariados^ 

Na  táctica  das  ordens  de  batalha  mais  recommendadas 
pouco,  ou  nada  se  tinha  inno\tUÍn.  Os  aucloi  e.^  apontam 
diversas  combinações,  mas  na  realidade  todas  se  redu- 
ziam quasí  exclusivamente  a  duas:  ordem  de  grande 
frente,  ou  parallela,  quando  o  terreno  se  rasgava  largo  & 
espaçoso,  e  ordem  de  grande  fundo,  ou  perpendicular, 
quando  por  sua  estreiteza,  oii  por  muito  accidentado,  elle 
não  consentia  o  desenvolvimento  das  linhas,  oucolumnas. 
As  denominações  então  usadas  de  batalha  de  tquadra  de 
gente»,  e  de  «quadra  de  terreno»,  de  «grande  frentei» 
ou  de  «graiide  fundo»,  dobrada,  ou  redobrada,  pouco  dif- 
feriam  no  essencial  das  duas  formas  modernas,  em  que 
para  maior  clareza  as  classificámos.  Os  generaes  portu- 
gaezes  da  primeira  metade  do  século  xvii  mostravam-se 
muito  inclmados  â  ordem  parallela,  allegando  que  os  exér- 
citos, seguindo-a,  só  podiam  ser  vigorosamente  aggredi- 

1  Arte  mUUar,  fL  n6  t.  e       e  fL  SI8  y.  a  m 


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DOS  SBGULOS  XVU  E  XVm  .  39 


dos  por  um  dos  flancos,  porque  o  inimigo,  se  dividisse  as  míuoí* 
forças  para  investir  por  duas  partes»  necessariamente  se 
bavia  de  enfraquecer  em  ambas.  De  feito,  n'esta  oMem, 

formando  os  piques  o  centro,  cobertos  por  grandes  alas 
áf"  arcabuzeiros,  e  apoiados  [)or  coriH  S  «lo  cuvaliaria  pesa- 
da e  ligeira  nos  ângulos,  e  ijur  coiupaotuas  de  arcabuzei- 
ros montados,  as  columnas  inimigas,  varridas  por  fogos 
cmzados,  á  menor  hesitação,  ou  fraqueza  seriam  logo  ar- 
rojadas nas  pontas  dos  ferros  dos cavallos  ligeiros.  O  maior 
incouveiuenLe  d'esta  ordem  consistia  no  seu  pouco  fundo. 
Diante  de  adversários  mal  armados,  ou  contra  cavaiiaria 
pouco  solida,  como  a  asiática,  ou  a  africana  das  nossas 
conquistas,  n^o  era  de  receiar,  que  um  ataque  bem 
dirigido  a  rompesse,  mas  não  succederia  o  mesmo,  sendo 
acommettida  por  cabos  e  soldados  aguerridos,  e  não  basta- 
riam as  grossas  miangas  de  arcabuzeiros  e  os  corpos  de 
cavaiiaria  para  a  proteger.  A  ordem  perpendicular  em- 
pregãva-se  para  cortar  e  destruir  as  linhas  contrarias. 
Flanqueando  as  columnas  de  piques  com  íllas  também 
profundas  de  arcabuzeiros,  sustentadas  por  esquadrões 
aomerosos,  o  seu  ataque  devia  ser  decisivo,  quando  as 
tropas  unissem  á  firmeza  o  arrojo  necessário  K 

Em  marclia,  ou  em  combate  repartiam-se  os  exércitos 
em  tres  divisões,  vanguarda,  centro  e  retaguarda.  A  ca- 
vaiiaria em  uns  casos  compunha  um  só  corpo,  e  em  ou- 
tros era  distribuída,  segundo  as  drcumstancias  aconse- 
lhavam. Acontecia  o  mesmo  com  a  artilheria.  Mas  a  des- 
peito dos  seus  aperfeiçoamentos  a  conducção  das  peças,  e 
mais  que  tudo  a  dos  parques  de  sitio,  constituía  uma  ope- 
ração diíTicii  6  trabalhosa.  Para  puxar  um  ^basilisco»  de 
3:290  kiiogrammas  de  peso  mettíam-se  dez  tiros  de  caval- 

1  Arte  militar,  fl.  iol  a  iõS  e  fl.  217. 


30  . 


HISTOniA  D£  PORTUGAL 


los,  e  um  trem  completo  de  canhões  pesados  não  exigia 
menos  de  mil  e  oitocentos  K  Os  soldados,  quando  a  urgen* 
eia  do  tempo  o  permittia,  confessavam-se,  e  communga- 
vam  â  missa  da  alva  no  dia  aprasado  para  o  combate.  De< 
pois  as  reservas  distanciavam-se,  as  posições  giiarneciam- 
se,  e  os  geiíeraes  destacavam  as  forças  destinadas  a  in- 
quietar os  flancos  e  a  retaguarda  do  inimigo.  Apenas 
este  se  avistava  saíam  logo  as  tropas  em  passo  cheio 
a  encontra-lo,  e  um  grande  silencio  reinava  nas  fileiras. 

De  súbito  trombetas,  tambores,  e  clarins,  resoando  de 
todos  os  lados,  davam  o  sigaai  de  acommelter.  As  colum» 
nas  e  ós  quadrados  abalavam-se.  O  tiroteio  estrepitava  nas 
partidas  soltas  dos  arcabuzeiros  montados.  Estendia-se 
após,  pela  frente  dos  arcabuzeiros  de  pé,  uma  longa  fila 
de  fogo  tortuosa,  seguida  do  trovão  das  descargas,  e 
grossas  nuvens  de  fumo  enrolâvam-se,  sulcadas  de  relâm- 
pagos incessantes.  Logo  depois  um  estrondo  soturno»  ro- 
lando como  rebombo  de  explosão  subterrânea,  crescia» 
avivava- se,  e  estalava  com  fragor.  O  chão  tremia.  Era  a 
carga  dns  pesados  esquadrões  cmU  n  os  piques,  ou  da 
cavallaria  contra  a  cavaliaria.  A  luta  generalisava-se,  luta 
de  gigantes*  rosto  a  rosto,  peito  a  peito»  em  que  o  terço 
arcava  contra  o  terço,  e  a  companhia  com  a  companhia 
até  um  dos  contendores  cair  prostrado  ^. 

0  modo  por  que  os  postos  eram  conferidos  não  con- 
cordava, em  geral,  com  nenhuma  base  detlnida  e  perman 
nente.  Em  regra,  o  rei  provia  as  companhias  de  ofilciaes» 
ouvindo  o  conselho  de  guerra  sobre  proposta  dos  mes- 
tres de  campo,  mas  em  caniiianlia  os  commissarios,  os 
tenentes  generaes  de  cavaliaria,  e  os  generaes  nomeavam 

1  Arte  Milita)',  fl.  2o7  a  2C0. 
*  Ibitiein. 


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H»  SÉCULOS  XVn  E  \Wl 


at 


os  officiaes  para  os  postos  vagos,  e  os  preceitos  regula- 
dores da  promoção  eram  assás  latos  para  coneederem 
grande  extensão  ao  arbítrio.  Os  commissaríos  geraes  de 

cavallaria  podiam  escolher  para  o  seu  troço  oíTiciaes  de 
confiança,  preenchendo  os  loirares  de  furriéis  móres, 
de  capitães»  de  cirurgião  e  de  capellão.  Consideravam-se 
provisórias  estas  nomeações,  emquanto  o  mestre  de  cam- 
po general,  oa  o  rei  as  não  conOrmava,  ou  não  dependiam 
pela  maior  parte  da  sua  approvação?  Ineliiiàmo-nos  á  pri- 
jueira  liypoliiese.  Os  ajudantes  não  podiam  ser  tirados 
senão  da  classe  dos  tenentes»  e  os  furriéis  móres  das  dos 
alferes,  e  sempre  com  a  clausula  do  respeito  da  antigui- 
dade,  ou  do  merito'*e  da  experiência.  Os  capitães  em  suas 
companhias  designav.iia  os  cabos,  o  furriel,  o  alferes,  e 
o  tenente,  e  o  regimento  militar  prohibia-Uies  colloca- 
rem  n'estes  postos  creados  seus»  ou  pessoas  incapazes, 
cedendo  a  empenhos  de  fidalgos  e  de  freiras,  e  restrín- 
gia-lhes  as  escolhas,  ordenando  (pie  os  iilferes  fossem 
tirados  do  numero  dos  furriéis  mais  nntigos  e  com  me- 
lhor nota,  e  os  furriéis  do  numero  dos  cabos  em  condi* 
ç5es  iguaes  K 

Os  alferes  de  cavallaria  subiam  a  tenentes  por  antigui- 
dade e  por  distincção.  Os  commissai  ios  geraes  eram  pro- 
movidos d'entre  os  capitães  mais  práticos,  qm  houvessem 
commandado  corpos,  ou  figurado  em  acção  honrosa.  I^a 
inbnteria  observavam-se  os  mesmos  principies,  pouca 
mais,  ou  menos.  D.  João  da  Costa,  depois  conde  de  Sou- 
re, em  1641  passou  de  capitão  a  mestre  de  campo  pelo* 
seu  valor.  André  de  Albuquerque  elevou-se  também  de 
capitão  ao  mesmo  posto  por  actos  de  intrepidez.  Para  o 

1  Regimento  de  CavaUm-ia,  manuscripto,  pag.  122, 129, 132,  i34>, 
m  e  141. 


HISTOBIA  DS  PORTUGAL 


Jfilieia  commaiido  das  diiferentes  armas  não  se  requeria  espe-  ^ 
^  cialidade  de  habilitações.  André  de  Albuquerque»  mestre 
de  campo  de  íofaoteria,  foi  nomeado  general  da  artilhe- 

ria,  e  occupou  depois  o  cargo  de  general  da  cavallaria. 
Em  menos  de  dois  annos  1).  João  da  Costa  de  capitão  as- 
cendéra  ao  generaiato,  e  em  menos  de  quatro  André  de 
Albuquerque  alcançára  uma  posição  análoga.  Eram  am- 
bos dignos  d'esta  recompensa,  mas  é  inquestionável  que 
o  systema  abria  ampla  carreira  ao  merecimento  ^  ^ 

Os  fardamentos  uniformes  não  estavam  introduzidos,  e 
os  corpos  ainda  não  se  separavam  pela  diversidade  das  co- 
res e  das  divisas.  Se  as  armas  offensii^s  e  defensivas  eram 
similhantes,  os  trajos  dos  soldados  não  o  eram,  e  a  vista 
buscai  ia  em  vão  iriim  terro,  ou  em  uma  compauliia, 
a  regularidade,  que  tanto  aformoseia  os  regimentos  boje. 
As  casacas  militares,  as  botas,  as  calças,  os  calções,  e  os 
chapéus  não  reproduziam  nenhum  padrão  commum.  Se 
este,  ou  aquelle  fidalgo,  á  maneira  do  duque  de  Bragança, 
D.  Jaime,  queria  levar  o  primor  ao  ponto  de  vestir  de 
cores  iguaes  os  homens,  que  recrutava,  a  milicia  no  seu 
todo  offerecia  a  maior  variedade,  sobresaíndo  em  uns  os 
apuros  e  as  galas,  emquanto  outros  aíHigíam  os  olhos 
com  o  triste  espectáculo  de  sua  mais  que  iiobie  appa- 
rencia.  Os  aventureiros,  ou,  como  diriamos  agora,  os  vo- 
luntários, servindo  por  amor  da  gloria  e  por  patriotismo 
puro,  esmeravam-se  de  ordinário  em  ostentarem  mais  do 
que  podiam.  Os  homens  arrastados  ás  fileiras  pela  vio- 
lência, ou  alistados  por  cul)iça,  consumidas  «as  paí?as» 
em  disperdicíos,  dir-se-ía,  que  timbravam  em  exagerar  a 
miséria,  alardeando  quasi  andrajos  mais  próprios  de  men* 
digos,  do  que  uniformes  de  soldados^ 

1  Portugal  Restaurado,  part.  i,  liv.  vr,  pag.  364,  370  e  420. 

2  O  duque  D.  Jaime  levou  á  conquiâU  de  Azamor  4:000  vassal- 


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BOS  SÉCULOS  XTn  E  XTHI 


33 


No  século  xvn  o  recrutamento  significava  um  dos  maio-  wm, 
res  ílagellos,  com  que  os  governos  podiam  atormentar  as  |^ 
populações,  e  mais  que  tudo  as  ruraes.  Faziam-?e  duas 
espécies  de  levas.  Na  primeira  entravam  os  mancebos  e 
os  homens  em  estado  de  servir,  que  o  desejo  de  mudar 
de  vida,  ou  o  bom  nome  do  capitão  attrahiam.  Na  se- 
gunda fiiriiravam  os  presos  c  violentados,  os  campone- 
zes,  e  os  moradores  obscuros,  que  os  ageutes  subalternos 
colhiam  por  força,  ou  por  artifício  em  suas  redes»  e  ar- 
rastavam depois  acorrentados,  como  escravos,  ou  crimi- 
nosos, ás  praças  de  armas,  aonde  os  corpos  se  organisa- 
vam.  Muitas  vezes  as  famdias  inconsoláveis  seguiam  as 
viaimas»  cortando  o  coração  mais  duro  com  suas  lasti- 
mas e  prantos.  Outras  vezes  a  dor  e  o  resentimento  ar- 
mavam braços  destemidos,  e  as  assuadas  e  os  apupos  re- 
bentavam contra  os  auctores  dos  maiores  abusos.  Nos 
últimos  annos  do  domínio  castelhano  houve  exemplos 
frequentes  de  ambos  os  factos.  D.  João  IV,  modificando 
as  instituições  militares,  se  n^o  atalhou  de  todo,  conse- 
guiu sna^dsar  em  grande  parte  estas  desigualdades  e  in- 
justiças*. 

A  disciplina,  vinculo  hoje  tão  apertado  e  essencial  da 
organisação  dos  corpos,  na  segunda  metade  do  século 
XVI  e  na  primeira  do  século  xvn  era  infringida  e  desaca- 
tada a  cada  momento  por  attentados  collectivos  e  indivl- 
duaes.  As  compauliias,  compostas  quasi  inteiramente  de 
mercenários  convidados  pela  avidez  do  premio,  e  presos 

Jq8  seiífl  ibrdados  á  costa  d'elto  (Mxm  gibOes  e  gonas  de  paim^ 

enms  vennelhas  no  peito  e  eoalíM,^C^romca  de  El-RH  D,Mam^, 

por  DamISo  de  Goe%  parL  m,  cap.  xlvi  e  ZLvn . 

1  D.  Fiandsco  Ibimel  de  MéDo,  Epanaphara  vr,  pag.  451— 

Curto  regia  dei^de  setembro  de  1631  e  Livro  da  correspondência 

desembargo  dopaço^  fl.  9S. 

tom  Y  3 


34  msTORiA  de;  portugal 

«uicia  aos  estantiartos  por  laços  mais  do  qut*  frouxos,  vinga- 
^  vam-se  nas  populações  ineraoes»  saqueando-as,  das  ph- 
vaçSes  causadas  pelo  atrazo  dos  soldos»  negavwu-se  t 
marchar  e  a  combater,  e,  seguras  da  impunidade,  tSo 
hesitavaiii  alé  em  voltâr  as  annas  contra  os  officiaes.  Os 
chefes,  temendo  a  ociosidade,  procuravam  traze-las  sem- 
pre occupadas»  renotando  por  turnos  as  marchas,  as  ma* 
nobras,  e  os  exercícios*  Mas  o  perigo  níSo  estava  só  nos 
soldados.  Os  officiaes,  sujeitos  a  grandes  tentações,  por- 
que os  pagamentos  e  as  despezas  corriam  por  sua^  mãos, 
provocavam  a  desobediência  e  o  odio,  retido  com  pre- 
textos fúteis  parte  do  dinheiro  das  praças,  e  enganando  o 
rei  com  listas  íictteias,  qae  simulavam  um  effeetivo  de 

forças  que  só  cvislia  nas  folhas,  c  que  debalde  se  busca* 
ria  fúra  d  elias. 

£m  1624,  segundo  affirma  um  escriptor,  testemimha 
insuspeita  dos  fáctos,  viviam  os  militares,  como  turcos, 
ferindo,  acutilando,  e  matando  por  peitas,  ou  para  rovlMir. 
Alardeavam  mancebias  publicas,  e  quasi  se  vangloria- 
vam de  serem  tidos  por  devassos  e  traidores.  Aquart&* 
lados  em  Lisboa  sem  mais  serviço,  do  que  as  grârdas, 
sem  real  pelo  atrazo  flos  soldos  e  soeeorros,  pediam  es- 
mola setn  pejo  pelas  ruas  e  portarias  4os  conventos. 
O  govei  no  da  sua  [larte  aggravava  o  escândalo,  vendendo 
as  ginetas  de  capitão  e  as  alabardas  de  sargeuto  aos  cpie 
mais  davam  por  «Hás,  e  âesprezaiMlo  os  Aâlos  e  as  de»^ 
trizes  dos  que  as  Haham  merecMo.  NSb  admínhra  pior 

isso  ver  as  fileiras  cheias  de  officiaes  sem  capacidade  e 
sem  brios.  Os  SdIda(!os  pervertidos  salteavam  os  próprios 
bemfeítores,  e,  ^^ustados  com  os  ladrões  do  pn)ííS6lo« 
aconmettíam  as  4maA^o  mio  4or 4iau  Jiigos»  Matphe- 
ms,  e^«rfwd(tteiiiliètmliMis«M^t»fM 
pelos  pesbuuos  costumes,  se  por  desgraça  dos  hâbitautes 


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DOS  «EOTtos  xvn  E  xm  '  35 


alguns  se  aboletavam  em  soas  moradas,  recompensavas)- 
Hns  a  lienevoleiíeia,  deshoiiranâO'^h6s  as  filhas,  as  irmls, 
m  as  mrtlieres,  e  s^Mmtaiido^ftes  depois  as  adagas  aos 

peitos  coiu  ameaças  de  morte  coegiíim-os  a  calarem-se^ 
Homens  soltos  assim  de  todos  os  laços  moraes  e  de 
taéos  os  re^iellos,  pouco,  ou  nada  podiam  prestar  como 
soHados.  Apesar  ã*islo  nem  esta  mesma  escoria  militar 
qua^  qae  existia  já  em  1639.  As  nr^ncias  politicas  ha- 
viam obrigado  o  condo  duque  a  embarcar  para  o  Braxil, 
Ott  a  e&corporar  nos  terços  da  coroa  as  uitimas  compa- 
líhias.  0»  arsenaes,  qae  do  reinado  de  D.  Sebastião  ainda 
mmawM  fraude  copia  de  armamento,  aohavam-se 
teirameETte  Tasios.  Mais  de  sete  mil  peças  de  artilheria 
tiaham  sido  transportadas  para  llespanlia,  e  só  os  depó- 
sitos de  âoYilba  arrecadavam  mais  de  iioveoentas  bòcas 
de  fogo  com  as  armas  portuguezas  lavradas.  A  guarnição 
castelhana  do  castcSlo  de  lisboa  subia  em  1638  a  mit  e 
oitocentas  praças,  mas  Olivares  em  1640  mandára  sair 
mil  e  trezentas  para  a  Catalunlia.  Os  amiazons  da  torre 
de*8.'J8Íiã0  lia  barra  guardavam  seis  mil  piques  e  mos- 
fMtos'B'imiitosb«rns'de  p€ih^ora.'<0  gabinete  de<Madrid, 
wMomfim  IMf^^'iimainvas9o'!hKBceza,9Dandára|»re* 
ce^er  ae  ■trrol;nnento  das  espingardas,  cpie  houvesse  no 
pâTz,  flistribmr  pelas  camarás  municipaes  arcabuzes  e 
aiosqiieieSy^e-remiir^  adestrar  a -gente  de  cavafllo.  Re-^ 
mémmt  eâla*qpprelienSio  em  >I6S7«  Asniilioias 
kNsaes^^peeflmamitirAein  ^  repelirem  os  exepeieios 
maíícíeSj  ^e  o-govBmo  cuidou- ocwi  algema  vigilância  em 
prover  de  armas  os  togares  mais  expostos. 

mama  ^^emiSk^  se 'adeplaran' providencias  para 

Ltiir-Mendes  dè^ascoiicellos,  Arte  Militar,  í1.  207  v.— Mai"tim 
AfEoQso  de  Miranda,  Tmpo  de  Agora,  part.  ii,  diaiog.  i. 

3. 


36  HISTORIA  D£  PORTUGAL 

Milícia  acudir  á  defeza  das  costas  do  Alí?an'e  e  do  outros  pontos, 
^  reorganisando  as  companluas  de  ai'cabuzeiros  montados, 
ereadas  em  Í6I8|  e  facilitando  a  venda  das  munições  de 
gaerra.  Mas  o  ministro,  menos  assustado  em  1638  com 
aprobaljilidade  de  um  insulto  das  forças  estranízeiras,  re- 
dobrou as  diligencias  para  sangrar  a  população  do  reino 
já  exliausta  com  os  successivos  recrutamentos.  Se  nos 
derradeiros  dias  de  D.  Sebastião  os  maiores  esforços  e 
violências  só  tinham  alcançado  ajmitar  doze  mil  homens 
para  a  ultima  jornada  de  Africa,  não  é  para  espantar,  que 
em  1639,  depois  de  tantas  causas  de  enfraquecimento,  o 
paiz  ainda  sentisse  mais  a  saída  de  poucos  milhares  de  ha- 
bitantes, do  que  lhe  custava  antes  a  emígraçlo  constante 
para  a  índia  e  para  a  Africa.  O  reino  em  1578  estava  já 
tSo  despovoado,  que  Luiz  de  Camões  exclamava: 

Deixas  crear  ás  portas  o  inimigo 

Por  ires  l)uscar  outro  tão  longo 

Com  que  se  despovoe  o  reino  antigo... 

A  princeza  Margarida,  instada  pelos  avisos  da  côrte, 
que  imaginava  fazer  das  pedras  soldados»  ordenára  em 
1639  a  resenha  da  gente  apta  para  pegar  em  armas»  e  só 
encontroa  duz^tos  mil  homais  de  vmte  a  sessenta  an- 
nos  de  idade  em  condições  de  serviço  mais,  ou  menos 
activo!  Haviam  sido  tão  fortes  as  levas  dos  últimos  tem- 
pos» que  depois  da  acclamaçSo  de  D.  João  lY  subiu  a 
quatro  mil  só  o  numero  dos  soldados,  que  se  recolheram 
de  Flandres  e  da  Catalunha,  desertando  das  íileiraá  cas- 
telhanas 

Os  soldos  dos  oflOiciaes  e  os  prets  dos  soldados  toraa- 

^  Menioria  da  disposição  das  armas  castelhanas,  por  Manuel  Ho- 
mem, cap.  XXXIX. 


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DOS  SÉCULOS  XVII  C  XYIII 


37 


vam  a  guerra  onerosa  n^aquella  epoclia  até  para  os  esta- 
dos ricos.  Se  ei-rei  D.  Manuel  em  lol  i  offerecia800  leaes 
ao  melhor  soldado  dos  presídios  de  Africa»  Filippo  iV 
ém  1624  maDdaya  abonar  1 :600  reaes  mensaes  a  cada  um 
dos  da  guarnição  de  Lisboa,  e  em  iiVòS  pagava  1:800  a 
rasão  de  60  réis  por  dia.  Era  costume,  quando  se  alistava 
gente  para  uma  companhia,  adiantar  a  cada  bomem  seis, 
e  oito  prets  completos»  chamados  cpagas»,  equivalentes 
a  10:800  e  a  14:400  reaes.  O  governo  hespanhol  prefe- 
ria, por  isso,  recrutar  os  terços  nos  Açores,  cujos  Iiabi- 
tantes  se  contentavam  cuni  metade  dos  adiantamentos,  e 
com  30  reaes  diários  em  vez  de  60.  Cm  1621  os  soldos 
do  cterço  da  armada»,  de  que  D.  Francisco  de  Almeida 
era  mestre  de  campo,  foram:  para  o  mestre  de  campo, 
4U;000  reaes  mensaes,  para  cada  um  dus  capitães  iá:00O, 
para  cada  um  dos  aííercs  6:000,  para  os  sargentos  3:200, 
para  cada  soldado  i  :%00,  e  para  ada  tambor  2:000. 0  ar- 
mamento custava  muito  caro.  Um  homem  de  armas  das 
companhias  de  ccouraças»,  armado e  prompto,  importava 
iiu  40:000  reaes,  não  incluindo  prets  e  pagas.  No  exer- 
cito liespaniioi  os  capitães  de  cavallaria  recebiinii  [ior  mez 
44:000  reaes,  os  tenentes  20:000,  os  alferes  10:000,  e  os 
soldados  4:000.  Aos  mestres  de  campo  pagavam-se  men- 
salmente 53:000  reaes,  aos  sargentos  mores  26:000  e  aos 
ajudantes  do  terço  10:000.  O  mestre  de  campo  general 
arrecadava  por  anno  4.800:000  reaes,  e  os  generaes  de 
cavallaria  e  de  artilheria  2.400:000.  £m  1644  D.  João  IV 
mandou  pagar  50  reaes  diários  a  cada  homem  da  orde- 
nança, que  se  apresentasse  para  servir  no  exercito,  e  con- 
cedeu aos  generaes,  capitães,  e  alcaides  mores  o  quinto 
das  presas  feitas  aos  castelhanos,  quinto  que  por  antigo 
direito  pertencia  á  corôa.  O  soldo  dos  capitães  de  cavai- 
Urbi  flxou-se  em  lOKXW  reaes  por  mez»  Ao  govemadcNr 


98      HISTOKIA  DE  POiilLGÀL  DOS  SÉCULOS  XMl  £  XVIII 


das  armas  do  Âlemtejo  estabeleceram-se  200:000  reaas 

mensaes,  ao  mestre  de  caniijo  general  160:000,  e  aos  te- 
nentes generaes  da  cavallaria  e  artilhena  80:000.  Exce^ 
{guando  os  oâidaes  subalternos,  estes  soldos  eqpiivaliam 
a  metade  do  que  Tenciam  os  officiaes  gmieraes  castelhar 
nos*. 

Eis  o  estado,  em  que  o  novo  monaicha  acliava  a 
milicia,  e  não  é  para  admirar,  que  D.  João  lY  e  o  cousâr 
lho  de  guerra,  tendo  o  inimigo  ás  portas,  e  «piaii  nada 
apercebido  para  o  rebater,  cedessem  mais  de  uma  vez  em 
segredo  a  dolorosas  apprehensões.  Lev^antaram,  poréin, 
os  ânimos  acima  das  difliciildades,  e  os  maiores  obstácu- 
los recuaram.  Portugal  não  esmoreceu,  e  a  sua  confian^ 
em  Deus  e  na  justiça  da  cansa,  que  defendia,  salvoiM. 
A  Victoria  segue  muitas  vezes  os  temerários. 


1  Tempo  dv  Aijora,  part.  ir,  dialog.  i. — Carta  Bãgta  de  %7  de 
marro  de  i638,  Curiosidades  de  Gonçalo  de  Souta,  maauscripto  da 
bihliotbeca  real  da  Ajuda,  pag.  ÍSO  e  seguintes  íVor?sí7o  de  25 
dp  aqosto  e  Decreto  de  7  de  mtembro  de  1641. —  Carta  RegfaéBÈlè 
dê  jamêin^  d»  iUl  e  Mtará  de  tô  d^  mtenàm  ée  á64S. 


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CAPITULO  U 

MáSINHA  D£  6DEBBA 


Itogressos  TTiririnha  portugncza  até  AITonso  V.  Passagom  do  cabo  ila  Roa  Esperan» 
ça.  —  Grandezas  navacs  dos  reinados  de  D.  Manuel  e  D.  JoSo  111.  Esquadras  dl 
guarda  coála.  Cúov<»ção  de  1553.  —  Perdas  sea^iveU.  Goveruo  de  D.  Sebastião.— 
QAo  ãb  Portugal.  fWppe  U.  EsparaaçM  ilhididiit.  A  invmdvél  amiAda.  D«di*, 
Btção  rápida  nos  reinados  de  Filippe  III  e  Filippe  IV.  Bbstflidadcs  dos  holland»> 
les  e  iflglezes.  Superioridade  marilima  das  duas  naçScs.  Rasão  d'tílla.  —  S4»rviço 
da  nobrczn  nns  nrn.ndas.  tx)nimando*5.  Systenia  errado  da  côrtc  de  Madiid  na  dl- 
ncçio  das  iorça$  uavai)ã  de  Portugal.  Otltsusa^  aos  brios  nacionaes.  —  Expeàiçio 
fcBiMi  IiMifagk>d>Maad»6ia4Mg>Dflm>todocoiid»d»Tor^  AlMlnieBlo 
eoniArto  da  tmm^V  e  do  commercio.  Cauni  priidpaeB.  Mau  estado  dM  coa- 
strncçCes  navaes.  Ppjamcnto  dos  navios.  Armampnto  naval.  Naus,  cirracas,  ga- 
Ip!5p5,  f  Inales.  Opinii^es  de  Thoraé  (^no.  —  Soldos  c  pagas.  Decadência  viaivol  d> 
inarintia  u  !>uâ  uderiondade.  Deíexa  das  praças  do  litoral. 

Aconfigiuraçâo  geograpbica,  a  índole  dos  habitantes»  e 
ag  comHç^s  da  luta  contra  o$  sarracenos  tendiam  a  at* 

trahii  os  portuguezes  para  a  vasta  extensão  do  oceano, 
qiie  lhi3  banha  as  pi  aias.  Ameaçados  pelas  galés  dos  ara- 
bds  coegiiH)s  a  necessidade  a  pelejarem  no  mar  em  de^ 
ftta  das  costas  e  dos  portos.  Os  seus  galeotes  e  mari- 
nheiros eram  tirados  das  vintenas,  em  que  se  dividiam  as 
populações  maritimas.  Esta  uiganisação,  aperfeiçoada  no 
governo  de  D.  João  I,  datava  provavelmente  do  mesmo 
seculOt      viu  a  desmentbmçâo  do  novo  reino  da  corQa 


40 


HISTORIA  PE  PORTUGAL 


uariaba  leoneza.  Os  progressos  navaes  mais  notáveis  íuraiii  pro- 
movidos  por  D.  Diniz,  ao  qual  largos  arnios  de  paz  propor- 
cionaram occasião  propicia  para  assignalar  as  qualidades 
praticas  do  sea  espirito.  O  rei,  creando  o  caiigo  de  almi* 
rante,  e  chamando  para  o  exercer  o  genovcz  Manuel  Pe- 
çanlia,  propoz-se  elevar  ao  maior  praii  de  perfeição,  com- 
pativel  com  a  epocha,  a  armada  porlugueza,  tanlo  em  re- 
ferencia ao  numero  e  força  dos  vasos,  como  em  relação 
á  manobra  e  disciplina  das  tripulações.  A  i)lantaçSo  do 
pinhal  de  Leiria,  se  foi  d  elle,  nasceu  do  mesmo  pensa- 
mento. Sem  arvoredos  seria  quasi  impossivel  então  e  de- 
pois a  construcção  em  larga  escala  de  naus  e  navios  *. 

Os  descobrimentos  do  infante  D.  Henrique  e  os  esfor- 
ços menos  activos  do  reinado  de  Alfonso  Y,  acharam  em 
D.  Joàu  II  liia  digno  eoiiliiiuadoi ,  tanto  na  aptidão,  como 
na  vontade  enei  ^^ica  de  colher  os  resultados,  que  a  em- 
preza  proinettia;  mas  a  fortuna,  severa  com  elle,  esco- 
lheu D.  Manuel  para  lhe  entregar  o  premio  dos  trabalhos 
de  três  geraçQes.  Antes  dos  coromettímentos,  que  imr 
mortalisararn  a  primeira  metade  do  século  xvi,  a  ousa- 
dia dos  nossos  navegadores  já  era  elogiada.  No  tempo  de 
Affonso  IV  e  de  D.  Fernando,  o  nosso  poder  naval  lutava 
sem  inferioridade  com  o  de  Castetia,  emquanto  um  im- 
menso  revez  o  nSo  veiu  attenuar.  Mas  o  verdadeiro  pe- 
ríodo de  florescência  da  marinha  de  í?uerra  de  Portugal 
na  meia  idade  começou  nos  dias  de  D.  João  1.  A  esquadra, 
com  que  saiu  de  Lisboa  para  a  conquista  de  Ceuta,  ex- 
cedeu o  que  todos  os  outros  reis  haviam  tentado  antes. 
Affonso  Y,  seu  neto,  reunindo  para  a  facção  de  Alcácer 

* 

1  D.  PiincÍMO  de  &  Laii^  06r»t  cmflêtmê,  tom.  l  Ihtíeia  JO- 
hn  os  progretM  da  Marinha  Pwrtugf/na  até  prineipitm  do  ãecMh 
tYi,  pag.  453  e  451.— MarÍE,  dialog.  nt,  cap.  i. 


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DOS  SÉCULOS  XVll  E  XVIU 


41 


duzentas  vélas,  e  para  a  de  Arzilla  trezentas  vinte  e  oito,  Mariola 
mostrou  que  a  coròa  dispunha  de  pessoal  e  de  arseuaes 
copiosamente  providos'. 

Depois  que  Vasco  da  Gama  montou  o  €abo  da  Boa  Es- 
perança, as  prosperidades  corri  l  aiu  Ião  rápidas,  que  passa- 
ram ainda  alem  do  que  afiançavam  as  illusões  mais  auda- 
zes. D.  Manuel  não  se  poupou  a  diligencias  para  corres- 
ponder ao  que  o  presente  annunciava«  e  o  porvir  mal 
encobria.  Conhecendo  que  a  grandeza  actual  e  futura  de- 
pendiam do  augmentu  <las  forças  navaes  applicou  toda 
a  attençao  a  proporciona-las  aos  largos  commettimeutos» 
que  traçava.  A  experiência  das  navegações  anteriores  en- 
sínâra  os  constructores  a  melhorarem  o  casco  e  a  arma- 
ção dos  navios  de  guerra  e  dos  vasos  mercantes.  As 
feitorias  creail-is  em  Santarém,  Coimbra,  e  Moncorvo, 
aperfeiçoaiidú  a  labncação,  produziram  amarras  de  qua- 
lidade superior  ás  dos  outros  paizes.  Os  arsenaes  e  as 
officínas  particulares  todos  os  annos  apuravam  grande 
copia  de  armas  In  ancas  e  de  fogo,  espadas,  lanças,  mos- 
quetes, e  arcabuzes.  A  fabi  ica  real  de  Barcarena,  susten- 
tada por  conta  da  fazenda  real»  e  dirigida  por  mestres 
biscainhos»  trabalhava  com  engenhos  movidos  por  forças 
hydraulicas.  As  naus  construiam-se  nos  dois  arsenaes  de 
Lisboa  e  nos  estaleiros  do  i^oilo  e  de  S.  Martinho,  e  as 
madeiras  cor  tavam-se  no  pinhal  de  Leiria  e  nas  matas  da 
coroa.  Nas  duas  capitães  (Lisboa  e  Porto),  em  Aveiro,  e  em 
Vianna  todos  os  mezes  se  lançavam  ao  mar  muitos  navios 
de  commercio.  Toda  a  artílheria  de  bronze,  quasi  a  única 
usada  então,  saía  das  fundições  do  rei  e  dos  partícula- 

*  Duarte  Nunes  de  LeSo,  Chrm\ka$  dos  Reis  D.  Feimanda, 
D.  AffonsolV,  eD.  Affomq  V. —  Severim  de  Faria,  iSoticiag  de  Por- 
tugal,  parL  i,  disc.  ii,  |  15.» 


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41 


HISTORIA  DE  PORTDGÁL 


Unte  res*  Eram  tio  aboDdantes  os  provimentos  de  mar  e  de 

terra,  que  cm  1508,  passando  o  rei  a  Tavira  para  soccor- 
rer  o  castello  de  Ai^illa,  cercado  pelo  rei  de  Fez,  juntou 
em  cmco  dias  um  exercito  de  viate  mi  l^meiis  e  ê^mk- 
barcacQes  precisas  para  o  seu  transporte  ^ 

Alem  das  facções  repentinas,  e  das  frotas  envttdas  i 
índia,  I).  Manuel  sempre  couservou  três  esquadras  acti- 
vas contra  os  corsários  e  piratas»  a  do  estreito,  composta 
de  fiistas  e  caravelas  para  cruzar  nas  aguas  de  Baiiíeria 
e  do  Algarve»  a  das  costas  do  norte  do  reino,  formada  de 
navios  maiores,  e  a  dos  Açores,  que  a  necessidade  o  obri- 
gou depois  a  reforçar.  Os  amplos  privilégios  concedidos 
aos  pilotos»  carpinteiros  de  macliado  e  calafates»  aljonam 
o  zôk)  com  que  protegia  os  oílicios  que  podiam  coadjur 
vzt  o  desenvolvimento  naval.  A  fúndação  em  Í5IB  de 
uma  cadeira  dc  astronomia  na  universidade  de  Couubra, 
regida  pelo  medico  Filippe,  prova  igualmente  que  a  sua 
iniciativa  era  illustrada»  e  aspirava  a  introduzir  todos  os 
progressos»  Applicadas  com  acerto  providencias  tio  iMm 
couecbídas»  nlo  admira  que  o  poder  marítimo  de  Portu- 
gal triplicasse  em  poucos  annos,  o  que  só  para  a  Índia, 
sepmdo  o  calculo  de  um  escriptor  nosso,  partissem  no 
seu  reinado  ââO  velas»  das  quaes  se  perderam.9  á  ida  e 
U  na  vtdta.. 

As  naus  da  carreira  oriental  raras  vexes  excediam  qua- 
trocentas toneladas,  mas  no  ultimo  periodo  do  seu  go- 
verno já  principiavam  a  íabricar-se  galeões  de  mil.  A  ca- 
pituea  da  frota»  que  em       acompanhou  a  inianla 

1  Severiiii  de  Faria,  Notícm  d» hnivgd,  díac  i,  {  14.«»  eu»  | 
IL— Ckwlo»  Memmoã  miUtarei,  tom.  f,  pag.  lB7.---]|aiiUMripto 
dlado  por  Qpiatella^  JMwi^a  JMirMa  Forf^^iMur»  pag.  fM,  no- 
ta.— Goea,  Chrtmiea  de  &»Bn  D.  Jfomtcl»  parL  d,  eap.  ihk. 


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DOS  âKCDLOS  XVn  £  Will 


43 


D.  Beatriz  a  Saboya,  o  galeio  Sãnta  Catharma,  era  does- 
ta lotcirão.  Suppõe  um  indagador  raiDUCioso  em  investi- 
gações históricas,  que  nos  vinte  e  seis  annos  do  reinado 
de  D.  Manael  passaram  de  97i  os  mym  de  guerra  por- 
togueaes^  que  sokaram  os  mares  da  Europa,  da  Africa» 
da  Asia  e  da  America.  Só  para  a  conquista  de  AzamiN*, 
em  se  armaram  em  (juati  u  uiezes  mais  de  400,  en- 
trando os  transportes.  A  frota  com  que  o  conde  de  Ta- 
rouca em  ilSOl  foi  mandado  em  soccorro  dos  veneziaiiqs 
contava  30,  e  a  infeliz  e:q>eâiç9o  de  Mamora,  em  1510» 
fliris  de  200,  dos  quaes  cem  deram  á  costa  com  perda 
de  quatro  mil  homens  *. 

M  governo  de  D.  João  III  subiram  as  forças  navaes  ao 
maior  grau  de  desenvolvimento.  O  commercio  marítimo 
com  a  AÍHca  e  a  Asía  floresceu  mais  activo,  e  o  da  Ame- 
rica principiou  a  en<,Tossar  depois  ila  povoação  do  Brazil. 
Computa\a-se,  tenno  médio,  em  um  njilhrid  de  cruzados 
o  valor  dos  carregamentos  de  cada  uma  das  naus  da  In^ 
dia  á  volta  do  oriente,  e  Joio  Hogo  Linschot  afiOrma,  que 
aigomas  se  recollnam  ainda  mais  ricas.  A  noticia  dos 
grandes  thesouros  transportados  todos  os  annos  a  Lisbua 
ac^endeu  a  cubiça  das  nações  estranhas,  e  aventureiros  ou- 
rados começarson  a  infestar  os  mares  e  as  possessões 
mm  foceis  de  acommetter.  Os  conflictos  e  as  negociap 
4tea  entre  a  nossa  cMe  e  as  de  Londrese  Paris  repeti- 
ram-se,  mas  quasi  sem  resultado.  A  sede  do  lucro  podia 
Duys,  do  que  o  receio  da  repressão,  e  a  audácia  dos  picar 

^  Scverím  de  Faría,.JVolteúu  de  Portugal,  àkc  u,  %  IS.**  Stockr 
ler,  Ensaio  sobre  a  origem  âat  matíiemaika$  em  Portugal^  pag. 
tte  V^-^VmAfAnaportugnezaJoin.  m,  m /!ne.— Jornal  O  Pa- 
norama, Yol.  IV,  anno  1840,  n.«  175,  pag.  2S8.-*-Goe8»  Chrcmca 
ée  EUMei  B<,  Mnmd,  pirt  ni,  oip.  xxnvi  e  xxxzvn.—  Goes, 


44  HISTORIA  DE  PORTUGAL 

Varinha  tas  6  corsarios  cresceu  de  modo,  que  Kl-Rei  e  o  impera- 


dor Carlos  \  ajustaram  em  1552  para  defeza  da  Ilespa- 


nha,  de  Portugal,  e  dos  Açores  uma  convenção  pela  qual 
D.  João  III  se  obrigou  a  armar  vinte  navios  latinos  (fiis- 
tas  e  caravelas),  de  25  a  30  toneladas,  para  gaarda  da 
nossa  costa.  Tres  dev!;iiu  ci  uzar  na  alUira  de  Cascaes, 
quatro  na  da  Atouguia  (porto  ainda  não  entulhado),  qua- 
tro na  de  Caminha^  quatro  na  de  Lagos,  dois  na  de  Villa 
Nova  de  Portimão,  e  tres  na  de  Gezimbra,  ou  Sines»  por  • 
serem  os  logares  que  os  inimigos  insultavam  com  mais 
frequência,  e  que  os  vasos  portuguezes  c  hespanhoes  for- 
çadamente demandavam.  Obrigou-se  também  El-Rei  a 
mandar  quatro  naus,  ou  galeões  a  correrem  a  costa  do 
reino  mais  ao*  mar,  devendo  os  vinte  navios  latinos  re- 
unir-se  em  frotas,  quando  cumprisse.  Alem  d*estas  duas 
esquadras  prometteu  o  governo  de  Lisboa  formar  mais 
outra  de  quatix»  vasos  de  remo  e  de  tres  caravelas  para 
reforçar  os  navios  latinos  no  seu  cruzeiro  se  fosse  neces- 
sário. Todas  estas  embarcações  haviam  de  conservar-se 
no  mar  de  verão  e  de  inverno,  não  entrando  nos  portos 
senão  em  casos  urgentes.  A  armada  de  guarda  co>ta  dos 
Açores  devia  sair  do  Tejo  todos  os  annos  a  10  de  abril 
com  tres  naus  e  sete  caravelas.  Os  navios,  que  seguis- 
sem a  derrota  de  Gabo  Verde,  iGuinè,  da  Malagueta,  da 
Mina,  de  S.  Thomé,  e  do  Brazil,  só  podiam  partir  ereco- 
Iher-se  nas  tres  monções,  de  janeiro,  de  março,  e  de  se- 
tembro 

Esta  distribuição  das  forças  navaes,  alem  de  mui  dis^ 
pendiosa,  peccava  pelo  defeito  de  querer  guardar  os  pon- 
tos de  uma  iiniia  demasiado  extensa,  e  pela  certeza  de 

i  Fflineisco  de  Andnda,  Chrtmiea  âe  El^Rei  D.  João  Hl,  pari 
iv.^Severim  de  Paria,  NoUcku  dê  Boriugal,  díse.  ii,  | 


DOS  SÉCULOS  XVII  £  XVIII  45 

íicar  muito  fraca  em  todos  elles.  Carlos  Y  lomuu  soI)re  si  Maruii 


iiccupar  o  estreito  segundo  o  pedissem  as  noticias  dos 


Iraocezes  e  dos  turcos»  e  euviar  annualmente  no  mez  d6 
abril  dez  navios  bem  armados  aos  Açores,  ter  todo  o  an^ 
no  mna  esquadra  nas  aguas  do  cabo  de  S.  Vicente,  ponto 
^  aonde  tocavam  os  vasos  das  Aritillias  o  do  Perú,  e  sus- 
tentar na  costa  de  Galliza  quatro,  ou  cinco  naus  de  guerra 
para  segurança  e  protecção  dos  portos  ^  O  tratado  de 
1652  mostra  o  poder  marítimo  da  corôa  portogiieza,  po- 
der superior  ao  da  Hespanha,  e  que  excitava  o  ciúme 
dâs  potencias,  depois  elevadas  sobre  as  nossas  ruínas. 
Calcula-se  que  desde  15^2  até  1557  (reinado  de  D.  João 
III),  sairam  de  Lisboa  para  o  oriente  duzentas  e  vinte  e  oi* 
'te  naus  e  vinte*  caravelas.  Todas  as  naus  levavam  a  bor- 
do, alem  dos  petrechos  usuaes,  soldados  de  terra  e  mu- 
nições, e  não  descia  cada  uma  de  50  contos  de  valia, 
Cttstando-nos  portanto  o  domínio  da  índia  só  n'esta  l  arta 
DOS  trinta  e  cinco  annos  de  governo  de  £1-Rei  D.  João 
11:400  contos  réis,  somma  enorme  para  a  epocha.  As 
perdas  eni  naufrágios  e  tormentas  eram  jii  j-s;ís  pesadas. 
A  ida  desappareceram  espedaçadas,  ou  soçobradas  vinte 
e  oito  naus  e  tres  caravelas»  e  á  volta  dezenove,  incluindo 
onze»  tragadas  pelo  mar  com  suas  guarnições  K 

No  reinado  seguinte  a  decadência,  encoberta  nos  nl- 
limos  annos  de  D.  João  III,  principiou  a  manifestar-se. 
Entretanto  a  marinha  na  apparencia  ainda  se  mos- 
trava forte  e  poderosa.  A  regente  D.  Gatharina  de  Áus- 
tria soccorren  o  BrazQ  com  forças  snfBcientes  para 

^  Ftancifloo  de  Aadiada^  OwmuMâêEl-BnD,  Mo  JU,  part  nr.— 
SeraimdeFaria^ifolMfdtiVirfif^a/,  disc.  n,  g  IS.» 

i  Qaintellay  Jbmm  ãa  Marinha  P(yrtitgu$xa,  roem.  m,  tom.  j, 
pag.  9f^^  O  Panorama,  vol.  iv,  n.«  161,  pag.  171  e  172. 


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46  HISTORIA  B£  PORTUGAL 

Marinha  pmrcp^er  3  colonisííção  e  o  commercio,  e  parn  r^peUir  os 
estrangeiros.  Mendo  de  Sá  conseguiu  reunir  uma  esqua- 
dra de  tres  galeOes  e  de  oito  navios,  e,  saindo  da  Bailia, 
expTdsoii  os  franceses  do  Rio  de  laneiro.  Nos  mares 
império  dc  Marrocos  a  nossa  baiiiicira  tremulou  por  ve- 
zes nos  to]H's  (los  mastros  de  numerosas  frotas.  A  deEl- 
Rei,  quando  partiu  em  i578  para  a  desastrosa  expedt{lo 
de  Alcácer,  contava  oitocentas  e  trinta  vélas.  Koventa^ 
sete  naus  montaram  o  cabo  de  Boa  Esperança  nos  vinte 
e  um  annos  da  menoridade  c  do  e^ovci  nn  de  D.  Seba^liào, 
perdendo-se  doze  nas  viagens  de  ida  e  volta,  e  sommando 
4:090  contos  de  réis  pelo  menosa  despeza  do  sett  anmh 
mento  K  Os  dois  annos  do  cardeal  B.  flenríqiie  mais  se 
assimilfiaram  a  um  interregno  inquieto  c  infeliz,  do  que ' 
ao  governo  ordinário  de  mu  soberano  legitimo  e  respei- 
tado. £m  1579  e  1580  saíram  de  Lisboa  para  o  onenie 
nove  naus  e  doas  caravelas,  força  insigmftcante  para'a5 
dfiffienldades  da  Mia.  Paraseformarexadaidéa,  emnCtk 
do,  tfo  que  era  ainda  o  nosso  donimio  n^afqnellas  regiões, 
bastará  notarmos,  que  cm  1*557  o  governador  TPranciscc^ 
Barreto  aprestára  contra  o  Acbem  ainaisfioâeros»«s^ 
qnaAra  qne  tinha' visto  a  Hidia,  portioe  se  cwnpnMia' 
de  vinte  e  cinco  gâle^ies  e  caravelas,  ^e  dez  gtãès,  e  d© 
mais  de  setenta  fustas  e  píeotas,  sem  tsontar  mttitaí^  em- 
barcações ligeiras.  A  chegada  de  D.  Constantino  úe  %rêr 
gança  em       modon  a  itirecçio  itoieada,'eaiiMiO'fle 
Goa  para  Danflto  com  eem^vélas  e  perto  ãel3iOWhomeBfir 
de  armas 

*  BarfMOsa,  Memorias  ãe  El-flei  ^D.  S^n.^tião,  tom.  »,  1ÍT.  íi, 
cap.  III,  e  tuiii.  IV  em  diversos  ipgares.— O  Fanorama/fàí,  iv,n.'»*l6^, 
pag.t8»el89. 

2  Aidem,  ibidem. 


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* 

DOS  SÉCULOS  XVII  £  XVIU  S7 


FIHppe  11  cmgm  a  coroa  da  península  liisiiantca  em  MariniMi 
IS80.  Não  foram  só  os  velhos  terços  do  duque  de  Alba 
e  08  galedes  do  marqnez  de  Saata  €niz  os  que  deddlram 
M  sen  ttvor  o  pleito  da  snccessio.  As  negociações  ee- 
creias  de  D.  Christo\*lo  de  Moura,  ilo  ilnque  de  Ossuna, 
e  de  outros  agentes  tmiiam  cravado  de  oiro  as  armas 
áDs  qoe  podiam  resistir.  ^  outra  parte»  nmítos  portu^ 
goens^ceros»  ymáo  a  monarchia  á  beira  de  sua  oon- 
pleta  mina,  abraçaram  de  boa  fè  a  causa  do  pi^etensor 
castelhano,  sem  arrcditarem  na  sua  legitimidade,  imagi- 
nando que  Portugal  e  a  lles[>antia,  unidos,  foimarim  nm 
tepem,  qoe  o  seiâioríoabsdalo  dos  mares  havia  de  tor^  , 
mr  ivmielvvd.  Esta  iHoáSo  vateo  quasí  tanto  como  oa 
exércitos,  as  armadas,  e  a  corrupção  para  assegurar  o 
throno  a  D.  Filippe,  e  a  Enropa,  q^ie  o  tewie^r  S!tspen<ièr2t 
BO  caminho  da  intervenção,  só  tarde  aendiu,  e  com  au^ 
dios  ineffiea»»  'ao  piior  do  Grato»  refiresentante  pcmeo 
flÒrtMêo  do  pmôpio  daMCioiíaHãade;  O  rei  oathoiíco, 
reaKsado  o  sonho  de  seu  pae,  sif[)|inz  taitfbcm  aberta  a 
e^da  da  nionaíchia  tmrvei^sal ;  mas  a  união,  íjue  nos 
Iinmeiros  «momentos  eomo  que  petríficéra  as  potencias, 
mas  Mnrias,  se  aBnnon  o  domínio  mais  vasto,  que  mu 
íÊíbeÊêm  •poftaríiesejar,  encerrafva  por  isso  «mesmo  peri- 
gos e  fraquezas,  qut^  nma  Índole  f«5»encialmente  praticav 
como  a  de  D.  M^pe,  logo  devia  prever  e  receiar  *. 

Aiè  aqoell&^âia  FertogaA  esCivefa  m,  pas  wia  »  EHiro-' 
AnMMo  pelo  'vínedlo  pessoal  a  tomar  patteiiaas 
gfnerras  da  Wespanhn,  justamente  na  epoclia.  em  quety 
mj  commercio  peirt  deína?iada  extenso  carecia  de  maio- 
res ldr$as  loaiitímas»  vin^    coi)àft>âtido  pelas  mais  beMí^ 

1  Vid.  Historia  ãe  Portugal  nos  séculos  x\ii  e  xviir,  tom.  i,  ii  e 
m,  pasiim. 


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48 

• 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


VttUhâ  cosas  nações  em  um  e  outra hemlspherío.  A  nossa  corôa, " 

iom  ^^^^^  ^'p'*^  '^"^  destinos  próprios  com  os  do  reino  vizi- 
nho, assevera  o  testemunho  insuspeito  de  um  iioiiieni  lia- 
bilitado  para  observar  os  factos,  trazia  no  mar  sem  esforço 
mais  de  quatrocentos  navios  de  alto  bordo  e  de  mil  e  qui- 
nhentas caravelas  e  caravelões,  e  D.  Sebastião,  juntan- 
do oitocentas  e  trinta  vélas  a  fun  de  passar  a  Alcácer,  nlo 
tinha  deixado  desamparadas  as  navegações  da  índia,  de 
S.  Tbomé,  do  firazii,  de  Guiné,  de  Cabo  Verde,  da  Terra 
Nova  e  de  outras  partes  K 

Fili[)pe  II  resolveu  converter  em  utilidade  da  monar- 
chia  ibérica  este  poder,  e  serviu-se  sem  escrúpulo  dos 
navios,  da  artilharia,  das  munições,  e  dos  armamentos  dos 
arsenaes  de  Lisboa  para  a  defeza  das  possessões  hespa- 
nbolas,  ou  em  proveito  de  suas  idéas  de  dominado.  Um 
dos  primeiros  actos  do  rei  depois  da  recepção,  com  que 
a  capital  o  festejou,  foi  convocar  um  grande  conselho  em 
1581  a  que  assistiram  o  duque  de  Alba,  o  marquez  de 
SantaCmz,  Sancho  d'AviIa,  D.  Lopo  de  Figueiroa,  D.  Fran- 
cisco Zapata,  D.  Aflfonso  de  Vargas,  o  prior  mór  D.  Fer- 
iiâíido  de  Toledo,  o  allemão  JeronymoLandron.  e  outros 
officiaes  distinctos,  castelhanos  e  portuguezes,  e  encarre- 
ga-lo de  estudar  e  propor  as  providencias  opportunas 
para  afiançar  a  Portugal  e  á  Hespanha  a  segurança  dos 
portos  e  das  costas,  e  a  conservação  dos  dominios  ultrama- 
rinos. A  resposta  foi,  que  a  base  do  systema  militar  mais 
adequado  devia  ser  a  preferencia  das  armadas  sobre  os 
exércitos,  porque  d*esta  maneira  ficaria  Ei-Rei  senhor  do 
mar  e  da  terra,  dominando  com  suas  esquadras  o  canal  de 
aterra  e  o  estreito  de  Gibraltar,  e  enfreando  todas  as 
ousadias  dos  inimigos.  Prevaleceu  por  pouco  tempo  esta 

1  Tbomé  Cano,  eapitSo  Iraspanhol  qae  eserevea  em  laii. 


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DOS  SÉCULOS  XVII  £  XYIXl 


49 


opinião  attiibuida  á  experiência  do  duque  de  Alba,  e  sem- 
pre contraí  iiK la  |)(ios  acorilecimcntos,  mas  provavolmen- 
íe  D.  Filippo  iembrou-se  d'ella  sete  annos  depois,  quando 
concebeu  a  empreza  da  íovasão  de  Inglaterra  K 

O  governo  hespanhol,  embora  não  podesse  seguir  ri- 
fforosamente  em  tuclos  o^  pontos  o  voto  de  V)S\,  não 
(iei\ou  por  isso  de  reforçai  u  seu  poder  naval,  aprovei- 
tando as  vantagens  e  commodidades  do  porto  de  Lis- 
boa e  de  seus  arsenaes«  Foi  da  babía  do  Tejo,  que  saiu 
em  1581,  aprestada  em  vinte  e  dois  dias,  a  esquadra  de 
vinte  c  sete  vólas  grossas,  capitaneadas  polo  marquez  de 
Santa  Cruz,  para  desbaratar  Stiozzl,  e  aniquilar  as  es- 
peranças do  prior  do  Grato.  Foi  d  elia,  que  partiu  tam- 
bém em  julho  de  158i  a  esquadra  de  cento  e  dez  vélas» 
com  que  o  marquez  conquistou  a  ilha  Terceira.  Foi  ain- 
da nas  aguas  de  Lisboa,  que  Filij  jM;  li  juntou  as  iorças 
eiiiadas  contra  Izabei  de  Inglaterra.  Compuuiia-sô  a 
imncivel  armada  de  dez  esquadras  distinctas»  e  entra- 
vam n'ella  sessenta  e  cinco  galeões,  ou  naus  grossas,  vin- 
te e  cinco  urcas  de  300  a  700  toneladas,  e  dezenove  pa- 
taoiius  de  70  a  100  toneladas.  Alguns  escriptores,  talvez 
fiOtt  eiageraçãOi  elevam  a  cento  e  quarenta  o  numero  de 
vasos  de  guerra. 

Na  esquadra  de  Portugal  figuravam  treze  zavras  e  ga- 
leões, quatro  galés,  quatro  galeaças,  dez  caravelas  gran- 
des, e  dez  faluas.  Sobresaíam  entre  os  nossos  galeões  o 
&  ãiartinh»,  aiyUana  do  duqae  de  Itfedina  Sidónia^  ge- 
Beral  da  «pediQia^  o  S.  Mo  Bapiisiaj  ahmraiite»  o  o 
S.  Matheus j  levando  o  primeiro  1:000  homens  de  pele- 
ja» o  segundo  800,  e  o  ultimo  700.  Guarneciam  a  armada 


*  Jbkoi  ào  Cm^  tom.  i,  cap.  xvu—DUeunoi  <06r«  lo»  commiof 
dê  ín  hOoM,  por  Solis,  tom.  i,  pag.  ilO. 


50 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


vniniui  2:400  peças,  1:500  de  bronze,  mas  a  gente  de  mar  das 

tripulações  não  passava  de  8:051  marinheiros  e  grume- 
tes. A  chusma  das  galés  orçava  por  2:400.  Entre  as  tro- 
pas de  desembarqae  iam  dois  terços  portugaezes  de  1:000 
soldados  cada  um  ^ 

Apesar  dos  esforços  empregados  para  aprestar  e  for- 
necer este  immenso  poder,  o  maior  de  que  houve  noti- 
cia DOS  tempos  modernos,  os  preços  dos  géneros  não  su- 
biram nos  mercados  da  capital,  nem  faltaram  carpinteiros, 
calafates,  e  homens  do  mar  para  tantos  navios,  trípulan- 
do-se  as  cinco  naus  da  carreira  da  índia  e  as  embarca- 
ções dpstiiiãdas  ás  oulias  conquistas,  que  todos  os  an- 
nos  partiam  de  Lisboa,  e  se  calculavam  em  150  pelo 
menos. 

Nos  armã^ns  e  arsenaes  ainda  ficaram  2:300  pe- 
ças de  ai  tilberia,  e  nas  tres  sal;is  de  armas  do  deposito 
da  Kiijeira  inlinito  numero  de  cossuletes,  piques,  lanças, 
arcabuzes  e  mosquetes.  A  armada  saiu  do  Tejo  em  27  de 
maio  de  1588.  A  gue  Izabel  Tudor  lhe  oppoz  não  excedia 
trinta  e  quatro  vasos  de  guerra  da  coròa,  subindo  no  to- 
do com  os  navios  offerecidos  pelos  pai  ticulares  e  corpo- 
rações a  cento  e  setenta,  na  maior  parte  vasos  peque- 
nos, e  por  isso  mui  próprios  para  inquietar  os  hespanhoes 
em  um  canal  estreito,  cheio  de  baixios,  e  sujeito  a  cor- 
rentes variáveis,  grandes  marés,  e  súbitas  mudanças  de 
vento.  Todos  sal  em  como  os  temporaes,  o  receio  das 
embarcações  carregadas  de  matérias  inflamáveis,  e  a  falta 
de  disciplina  e  de  conhecimentos  náuticos  aniquilaram 

1  Conestagio,  l^too  de  J^itpol.— Hérrara,  Gim»  Ubm  dê  Ia  Bit- 
torta  dê  PúHugaL—Atim  do  Ceu,  cap^  xzxv.--Qi]intél]a,  Annaes 
da  Manidia  Poríuguega,  tom,  n,  mem.  iv.— O  Pamrama,  voL  i  da 
X*  serie,  n.*  39,  pag.  306^ 


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DOS  SÉCULOS  XTII  E  XVm 


81 


O  armamento  collossal  com  que  a  Uespanlia,  nâo  só  in-  M&rmhs^ 
tentava  opprímir  a  Gran-Bretanha,  mas  assoberbar  a  Eu-  ^^^^ 
ropa.  De  tantas  vélas  e  esquadras  salvaram-se  apenas 
cincoenta  e  trcs  navios!  A  decadência  damonarchia  da- 
tou (i'aqueHe  dia.  Filippe  II  e  os  seus  successores,  obri- 
gados desde  enlâo  a  porem  de  lado  os  conselhos  do  duque 
de  Alba»  em  vez  de  envidarem  todas  as  diligencias  para 
crear  uma  poderosa  marinha,  capaz  de  proteger  as  coló- 
nias e  o  commercio,  e  de  iuiai  ivim  vantagem  com  a  dos 
inglezes  e  hollandezcs,  concentraram  os  cuidados  nas 
guerras  de  Flandres»  e  depois  nas  de  Itália,  da  Allema- 
nha,  e  de  França»  aonde  só  colheram  revezes»  ou  victo- 
rias  estéreis  K 

A  declinação  da  mariaha  portugueza  seguiu  r  ipida- 
mente  a  bespanhola,  se  não  a  precedeu.  Em  e  em 
1595  as  forças  da  Gran>Bretanha  e  das  províncias  uni- 
das romperam  as  hostilidades  contra  as  nossas  conquis- 
tas. Seus  navios,  mais  bem  construidos  e  aparelhados,  le- 
vavam decidida  vantagem  ás  nossas  pesadas  naus,  e  a 
iMuencia  de  ofOiciaes  e  marinheiros  piaticos  concorriam 
para  lhes  assegurar  a  superioridade.  Os  soldados  e  os 
mados  nunca  serviam  como  marinheiros,  e  os  capitães, 
aproveitando  as  qualidades  dos  navios  e  das  tnpulaçues, 
procuravam  decidir  os  combates  a  tiro  de  canhão.  As 
presas  maritimas  enriqueceram-os  tanto»  e  a  pirataria 
saíu-lhes  tão  rendosa»  que  os  inglezes»  se  dependesse 
d'énes,  desistiriam  de  bom  grado  de  formarem  estabele- 
cimentos permanentes,  contentando-se  com  os  lucros  das 


^  Conostagio,  Vmão  de  PortiujaL — Herrera,  Cinco  l>hriu  de  la  His~ 
torta  de  Portnqal. — Avisos  do  Cexi,  cap.  xxxv.—  tiuiiiíelia, -4/i«a€« 
da  Marinha  Port  ugueza,  toru.  ii,  mem.  iv. —  O  Panorama,  voJ.  i  da 
2.*  serie,  n.*  39,  pag.  306. 


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52 


ilISTOaiA  DE  PORTUGAL 


ibrioitt  caraças  apresadas,  equivalentes  aos  mais  grossos  interes- 

pjjj^  ses  1'uiiHiiLMCiaes*. 

Filippe  lU  instado  pelos  apuros  da  fazenda,  julgara  mais 
económico  unir  em  um  contrato  o  monopólio  da  pimenta 
6  as  construcçues  uavaes,  e  arrenda-los  a  uma  compa- 
nhia de  netrocianles.  Os  resultados  provaiam  depressa 
os  iiicuinviiiiMiles  (.leste  env.tio  calculo.  Os^  coiiUaclado- 
res  íabiicavam  maU  faziam  navios  demasiado  grandes,  e 
mettiam-lhes  maior  carga.  Empregaram  nos  fabricos  ma- 
deiras péssimas,  e  introduziram  a  carena  á  italiana,  isto  é, 
o  luelliodo  de  lombar  os  navios  sobre  barcaças  eiu  vez 
de  os  carenar  em  secco  ^. 

0  atrazo  tornou-se  sensível.  A  antiga  vocação  mariti- 
ma  esmorecida,  e  o  abatimento  do  commercío  desviavam 
da  carreira  naval  os  homens,  que  podiam  honra-la.  O  cos- 
mugi'iipiii)  múr  iiàu  tinha  discípulos,  e  d.t  aiamada  escola 
dos  nossos  pilotos  apenas  se  apontava  um,  ou  outro  ca- 
paz de  continuar  as  tradições  de  dias  mais  felizes.  As  per- 
das em  naufrágios  e  presas  eram  immensas.  Nas  viagens 
da  Asía  no  reinado  de  D.  João  III  tinham-se  perdido  vio- 
le e  oitu  naus  á  ida  e  dezenove  á  volta,  nu  valor  de  8:000 
contos,  e  no  de  i>.  Sebastião  tres  á  ida  e  nove  á  volta,  que 
não  representavam  menos  de  5:100  contos.  No  de  Filip- 
pe II  os  desastres  duplicaram^se.  Sobre  oitenta  e  sete  naus 
naufragaram  liinta  e  duas,  calculadas  em  12:000  contos. 
No  de  Filippe  líí,  em  ^^nte  e  seis  annos,  sp^ruiram  a  car- 
reira da  Índia  cento  vinte  e  quatro  naus  e  galeões,  tre- 
ze urcas  e  seis  caravelas,  elevaodo-se  o  numero  dos  va- 

1  QuíntelU,  Aman  da  Mttimha  Partmgueza,  tom.  v,  rnsm.  vr*— 
Hitíoire  ie$  Voyagei^  tom.  m,  pag.  Panorama,  voL  ir, 
anno  1840. 

2  Ibidem,  ibidem. 


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DOS  SÉCULOS  XVII  E  XVIII 


SOS  píM-(ii(los  011  apresados  a  trinta     dois,  no  \  ;!!(ir  ih;  Marinha 
10:800  contos.  No  governo  de  f ilippe  IV,  finalmente,  de 
quarenta  e  uma  naus  e  dnco  urcas  naufragaram,  ou  ca^ 
ram  em  poder  dos  inimigos,  dezesete,  orçadas  em  3:250 
contos  de  réis  * ! 

A  successão  do  tantos  i  t  vezes  por  tal  niodo  tinha  esmo- 
recido os  portujLíuezrs,  ([iio  ninguém  queria  coinprarna- 
vios,  ou  ouvir  faUar  n'eties.  As  marinhas  ingleza  e  hollan- 
deza  coalhavam  os  mares  de  corsários,  e  insultavam  sem 
receio  os  portos  do  reino  e  das  conquistas.  A  Jíespanha 
ainda  contava  em  1586  mais  de  mil  embnrr.ímes  de  alto 
l)ordo  pertencentes  a  particulares.  Km  Biscaya  havia  200 
empregados  nos  bancos  da  Terra  Nova  nas  pescarias  da 
bsMz  e  do  bacalhau.  Em  I6H  não  existia  d'e]Ies  quasi 
um  uni  CO.  Na  Galli  za  e  nas  Astúrias  mais  de  200  pata- 
chos carregavam  mercadorias  para  Flandres,  Fi  ança,  In- 
glaterra e  Andaluzia.  Em  1811  tinham  desapparecido 
também  quasi  todos.  Em  Portugal,  de  tantos  vasos  mer- 
cantes que  seguiam  as  carreiras  da  Asia  e  da  AfHca,  ]â 
n3o  havia  no  primeiro  qnartel  do  secnlo  xvii  nma  só  nau. 
e  súmente  algumas  caravelíns  pequenas  sulca^  am  o  oct^i- 
no.  Os  prejuízos  dos  armadores  e  negociantes,  causados 
pdas  hostilidades  dos  estrangeiros,  que  percorriam  U- 
TOmente  os  mares  de  Hespanha  e  os  do  mundo,  e  pelos 
embargos  o  vexames  fiscaes,  haviam  acabado  de  destruir 
tudo.  A  corôa  portugueza,  desfaliecida,  não  podia  já  com 
08  encargos  da  união.  As  annadas  de  Gastella  quasi  sem- 
pre ftmdeadas  no  Tejo^proviam*se  â  custa  do  paiz,  rece- 
bendo viveres,  artflheria  e  munições.  Os  sessenta  annos 
de  occupação  da  casa  de  Áustria  custaram  ao  reino  em 

*  Qaintella,  Annae$  da  Matinha  Pcrtttguezas  tom.  r,  mem.  in,  e 
tom.  n,  mem.  iv.—  O  Panorama,  vol.  iv,  J69. 


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54  mSTORU  DE  PORTUGAL 

««riniiâ  navios  perdidos  e  fazendas  tomadas  mais  de  75  milhões 

gttlwa  cruzados,  somma  enorme,  que  até  enfraqueceria  uma 
nação  dn.is  vezes  mais  poderosa.  Os  vasos  mercantes  não 
se  atreviam  a  sair  dos  portos  seuão  escoltados  por  naus 
de  guerra»  e,  estas  vencidas»  ou  maltratadas»  mal  os  pro- 
tegiam contra  os  inimigos.  O  golpe  mais  cruel,  que  pade- 
ceu  a  iiossa  mariiilia,  fui-llie  descarregado  pelo  naiilVapo 
da  anilada  dos  cinco  galeões  e  uma  urca  cuiimiaudada 
em  i6!^6  por  D.  Manuel  de  Menezes.  Esta  serie  constan* 
te  de  infortúnios  fez  com  que  deixássemos  de  ter  na  ín- 
dia as  forças  indispensáveis  para  assegurar  o  respeito  da 
nossa  bandeira,  e  a  defeza  diminuiu  exactamente,  quando 
a  aggressão  se  declarou  mais  activa  K 

A  uniSo  das  duas  corôas,  longe  de  realisar»  portanto» 
as  esperanças  dos  que  a  haviam  saudado  como  precur- 
sora de  uma  era  de  gloria,  justiiicára  as  appreheosôes 
dos  ifiie  em  1581  já  viam  n'c!la,  alem  da  negação  da  in- 
dependência» a  origem  de  immensas  desgraças  e  oppres- 
s5es.  A  perda  da  invencível  armada  abriu  o  desastroso 
período  da  decadência,  e  esta,  aggravada  durante  o  rei- 
nado de  Filippe  II,  precipitou-se  nos  de  Filippe  111  e  de 
Filippe  IV  com  extrema  rapidez.  A  cubiça  intensa,  que 
matava  os  brios,  a  par  do  desalento  e  da  incúria,  foram 
as  causas  príndpaes  do  mal.  A  còrte  de  Madrid  queria 
de  certo  vence-lo,  mas  a  íhiqoeza  própria  tão  lhe  con- 
seutia  iniciativas  enérgicas.  Em  1598  a  armada  de  D.  Je- 
ronymo  Coutinho  não  tinha  ousado  sair,  senão  doze  me- 
zes  depois  da  epocha  aprazada,  detida  pelo  receio  das 
vélas  inglezas»  que  andavam  cruzando  diante  da  barra. 

1  QnintéUa,  Aimaet  da  Marinha  Púrtvffvexa,  tom.  i,  mem.  m,  e 
tom.  n,  mem.  iv.—  O  Panorama,  toI.  iv»  il*  169.— Tbomó  Cano, 
pag.  44  e  4S. 


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DOS  SÉCULOS  XYII  £  XVIU  55 

Em  1606  ò  mesmo  D.  Jeronymo,  seinpre  pouco  afortu-  hhuui 

nado,  era  constrangido  a  suspender  a  viagem,  retido  pelas  ^Jjj^^ 
ameaças  dasmusbollandezas  diante  do  porlo  de  Lisboa  ^ 
Em  1600  a  d^itana  da  esquadra  do  vice-rei  da  índia» 
Àyres  de  SáLdauha»  foi  apresada  na  sua  volta  ao  reino  i 
vista  de  Cezimbra  pelos  corsários.  A  relaxaçSo  das  tripula- 
ções, e  anegligencia  escandalosa  dos  capitães,  haviam  che- 
gado ao  ponto  dos  navios  largarem  sem  esperar  pelos  com- 
mandantes,  succedendo  a  Francisco  Lopes  Carrasco  não 
alcançar  senão  em  Portugal  o  seu  galeão.  João  Pereira 
Corte  Real,  mais  severo,  para  reprimir  as  sublevações 
dos  marinheiros,  teve  de  mandar  pendurar  n  is  \  i  Tgas  dois 
amotinados,  matando  o  terceiro  ás  estocadas.  Em  Í6i8 
uma  írota  de  cinco  vélas,  de  que  \inha  por  capitão  mòr 
D.  Quistovão  de  Noronha,  commetteu  a  covardia  no  ca- 
bo da  Boa  Esperança  de  remir  por  dinheiro  o  dever  de 
pelejar  com  os  inglezes,  e  em  1620  nas  aguas  da  Ericei- 
ra a  nau  Comeição,  cercada  por  dezeseis  navios  turcos» 
TOOU  abrazada  quasi  na  presença  da  armada  da  costa 
mandada  por  D.  Antonio  de  Âlhaíde '  f 

Os  hollandezes  aguardavam  os  nossos  navios  nos  Aço- 
res, ou  á  entrada  dos  portos,  insultavam  as  fortalezas, 
combatiam  e  apresavam  as  naus  de  guerra»  e  locupleta- 
vam-se  com  os  despojos  das  praças  de  Lisboa  e  do  norte 
do  reino.  Os  piratas  do  Riff,  de  Tunís  e  de  Argel  conti- 
nuavam os  saltos  nas  costas  do  paiz,  saqueando  as  vlllas 
iiieriíies,  e  recolhendo-se  carregados  de  captivos  e  de  ri- 
quezas. Em  1618  um  troço  de  turcos  levou  a  audácia  ao 
extimo  de  desembarcar  perto  de  Peniche!  A  rivalidade 

*  Faria  e  Sousa,  Memoría  de  todas  las  Armadas,  etc,  m  Ana 
portuguezãj  tom.  iii,  pag.  548  e  seguinles.— Luiz  de  Figueiredo  Fal- 
cão, lÃvro  da  faxmda  de  Fartugal,  p«g.  194. 

^  IbideiD. 


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56 


HISTOaiÀ  DC  PORTUGAL 


a  dos  siiIkIííos  (las  duas  coroas  estendia-se  aos  marinheiros 
e  oíiiciaes,  e  o  orgulho  nacional  em  muitas  occasiões  le- 
yantou  obstáculos  á  eiecução  das  ordens  da  cdrte.  Os 
portuguezes  preferiam  render-se  opprímidos  pelo  mi- 
mero  a  reconhecerem  a  superioridade  dos  castelhanos, 
aceitando  d^elles  escolta,  ou  protecção.  Os  hespanl  ioos  não 
perdiam  também  lanço  de  lhes  maguar  o  amor  próprio, 
arrogando-se  o  direito  de  visita  a  bordo,  e  exigindo  parai 
a  sua  bandeira  honras,  qae  humilhavam  a  nossa.  Doesta 
mutua  indisposição  nasciam  conflictos  e  discórdias,  e  o 
gabinete  de  Madrid,  em  logar  de  as  atalhar,  parecia  apos- 
tado a  exacerba-las,  ollendendo,  como  por  calculo,  o  de* 
eoro  da  marinha  portuguesa  K 

A  organisação  e  a  disciplina  marítimas  padeciam  com 
estas  rivalidades,  e  ainda  mais  com  a  indifferença  do  go- 
verno hespanhol  em  remunerar  os  serviços  valiosos.  No 
primeiro,  e  mesmo  no  segundo  quartel  do  século  xvn,  a 
marinhagem  embarcava,  parte  violentada,  parte  attrahida 
pelos  prémios,  e  era  toda  composta  de  gente  collecticiae 
alistada  para  as  occasiões,  dispersando-se  apenas  as  via- 
gens tei minavam.  Sem  pratica  do  mar,  sem  esiiirito  de  cor- 
poração, e  sem  verdadeiros  brios,  aquelles  homens  não  po* 
diam  lutar  com  as  equipagens  experimentadas  dos  navios 
hollandezes.  Os  oíOciaes,  sem  habilitações  especiaes,  com- 
mandavam  iiidistinctamente  no  mar,  ou  iia  terra,  correndo 
a  responsabilidade  das  manobras  e  do  governo  náutico  por 
conta  dos  pilotos  e  dos  mestres  das  naus.  Um  elemento 
que,  bem  aproveitado,  deveria  influir  muito  para  o  melhor 
ramento  doestas  péssimas  condições,  seria  o  serviço  da  mo- 
cidade nobre  a  bordo  dos  navios  do  Estado.  Costumava 

1  Fâria  6  Sousá,  Mmoría  de  toda$  ku  Armadas,  ete.,  na  Âtié 
portvgwza.  Um.  in,  pag.  548  e  seguintes.  D.  Francisco  Mannel, 
Bpanafíujra  n.  Naufrágio  da  armada. 


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DOS  SÉCULOS  XV»  E  XVUl 


exercitar-se  antes  nas  guerras  de  Africa,  austera  escola  do  Marinha 
valor  e  das  fadigas,  e  passava  depois  para  as  armadas  da  ^jj^ 
corôa»  cujo  tiroeíDio  habilitou  distíDctos  homens  do  mar. 
IQo  subsistia,  porém,  muito  este  uso  lonvaTel,  ou,  mais 
exacto,  pouco  sobreviveu  á  perda  de  D.  SebastiSo  em  Alcá- 
cer. No  século  XV  nenhum  filho  de  casa  ilhistre  cingia  a  es- 
pada dentro  da  côrte  sciii  primeiro  estrear  as  armas,  ao 
modo  da  antiga  cavallaría,  em  Ceuta,  Arziila,  ou  Tanger,  e 
sem  aprender  os  inrecettos  da  milícia  na  lição  quotidiana  dos 
grandes  capitães.  No  século  xvii  o  interesse  politico  tinha 
miulado  a  fóriua  d'este  noviciado,  que  muitos  haviam  tor-  , 
nado  glorioso. 

Os  reis,  coagidos  pelas  necesstdaães  das  conquitas,  ti- 
nham transferido  as  cartas  chamadas  de  commenda  para  as  . 
denominadas  da  costa  com  o  visivel  intento  de  encami- 
nliarem  o  esforço  dos  cavalleiros  das  ordens  militares, 
(piasi  empregado  exclusivamente  em  Fez  e  Marrocos,  para 
as  emprezas  navaes  da  Asia  e  da  Africa  K  As  idéas  da  e^KH 
cha  favoreciam  esta  Méa,  e  dos  fidalgos,  que  se  propunham 
concorrer  ao  provimento  das  (niiiiiii  iHlíis  vagas,  nenhum 
dsvidava  prestar-se  ao  serviço  continuado  de  cinco  verãos 
nas  armadas,  trocando  por  elles  os  tres  aonos  de  resi- 
dência obrigatória  nas  praças  de  Africa,  exigida  pela  an- 
tiga lei.  Lucravam  na  transferencia.  Se  os  incommodos  e 
o  risco  da  navegação  eram  graiides,  ficava-lhes  livre  em 
conq>ensação  a  maior  parte  do  anno  para  descansarem, 
enquanto  nos  presídios  o  desterro  era  longo  e  completo, 
e  08  trsd)a1hos  eram  permanentes  e  perigosos  ^ 

O  comiuando  das  armadas  concedia-se  de  ordinário  a 

^  Faria  e  Sousa,  Memoria  dê  iodai  las  Armadas,  etc,  na  Atia 
P»tugMêMa,  tom.  nr,  pag.  548  e  seguintes.— D.  Francisco  Manuel, 
Epanaphara  ii,  pag.  190  e  seguintes. 

^  Ibidem. 


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88 


HISTORIA  Diu  1'0RT0GAL 


MtfUia  fidalgos,  qm  as  governavam  por  nomeado  vitalícia,  ou 

por  commissão  aiimial.  I).  Diuiz  estal>i;lecêra  o  cargo 
de  almirante,  cujas  aUribuieões  o  código  affonsiiio  con- 
íirmoii,  prcscrevt  iído  as  ceremoDias  e  formalidades  dá 
posse*  D.  Fernando  depois  separou  em  dois  commandos 
navaes  a  direcção  superior  da  marinha  com  a  creaçSo  do 
lugar  de  capitão  mói  dn  mar,  provido  a  primeira  vez  em 
Gonçalo  Tenreiro.  Parece  que  o  governo  das  galés  conti- 
nuou a  competir  ao  almirante»  e  que  o  dos  navios  de  alto 
bordo  passou  ppra  o  novo  general  do  mar,  cujos  suoces- 
sores  immediatos  no  reinado  de  D.  João  I  foram  Affonso 
Furtado  de  Meiídoiíra  e  depois  Alvaro  Vaz  de  Ahiiada, 
conde  de  Avrancbes,  conservando-se  o  cargo  na  casa  dos 
Almadas  até  ao  tempo  de  Filippo  IL  No  de  Filippe  III  ser- 
viu o  logar  de  capitão  do  mar  D.  Monso  de  Noronha  atè 
justificados  melindres  o  levarem  a  pedii'  a  demissão. 
Succedeu-Ihe  João  Rodrigues  lioxo,  inarjiilieiro  pratico  e 
valente,  mas  já  idoso,  substituído  por  D.  Jeronyino  de 
Ataíde,  mais  denodado  do  que  venturoso.  D.  Jeronymo 
occupou  internamente  o  posto,  cujo  provimento  perpe* 
tuo  recaiu  na  pessoa  de  D.  Antonio  de  Ataíde,  l^rocessado 
perante  o  juizo  dos  cavalleiros  e  o  tribunal  das  ordens 
por  não  haver  soccorrido  a  nau  Canceiçôo  no  seu  combate 
de  tres  dias  contra  os  turcos»  D.  Antonio  alcançou  a  absol- 
vição e  o  titulo  de  conde,  como  reparação,  mas  perdeu  o 
cargo,  conferido  pui  1  ilii»pe  IV  em  1622  a  D.-Manuel  de 
Menezes,  o  qual  em  1623  e  1624  acompanhou  D.  Fradique 
de  Toledo  á  Bahia  na  esquadra  das  duas  corôas.  Era  en- 
tão ahnirante  D.  Francisco  de  Afaneída,  antes  mestre  de 
campo  do  terço  de  infanteria  denominada  da  armada  ^ 

'  1  J).  Fiiincísco  Manuel,  Bpampkúra  n,  pag.  161  e  seguintes. — 
QuinteUa,  Amae$  da  Marinha  PortiÊ^um,  tom.  i  e  n. 


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DOS  SÉCULOS  XVII  E  XVIII 


59 


As  forças  navaes  da  monarchía  hespanhola  divídiam-se  ifMinbft 

desde  o  reinado  de  Carlos  Y  cin  esquadras  diversas,  que 
tomavam  o  nome  dos  reinos  e  províncias,  que  as  susten- 
tavam, ou  dos  vasos  de  guerra  que  as  compunham.  No 
armaméiito  colossal  de  i588  figuravam  as  armadas  de 
Castália,  de  Biscava,  de  Andaluzia,  de  Guiposcoa,  de  Le- 
vante, de  Nápoles,  das  Uracs,  das  Zavi  as  c  Pataclios,  e  das 
duas  de  Portugal  das  galés  e  galeões.  No  governo  de 
Filippe  III  e  de  Fiiippe  1 Y  o  reino  nunca  teve  esquadra  pro- 
priamente sua  por  se  reputar  esta  despeza  desnecessária, 
m  para  evitar  conflíctos  no  mar  entre  o  seu  chefe  e  o  da 
armada  real  de  Castella,  introduzindo-se,  ou  antes  confir- 
mando-se  o  costume  das  frotas  hespanholas  assistirem 
qoasi  sempre  no  porto  de  Lisboa  ás  ordens  do  general  do 
oceano.  Portugal»  quando  as  faeç^^es  de  guerra  o  reque- 
riam, encorporava  alguns  navios  bem  armados  na  es- 
quadra castelhana,  e  essas  vélas  eram  caf  itaneadas  por 
fidalgos  de  elevada  quahdadee  merecimento.  Resultaram 
inconv^entes  d'este  errado  3ystema,  que  o  desleixo  tor- 
nou irremediáveis.  As  armas  navaesdo  paiz,n9ó  tendo  ge- 
neral que  as  governasse,  corriam  quasi  entregues  ao  aca- 
so, e  as  na  LIS,  as  galés,  a  artilheria,  e  os  petrechos  da  coroa, 
desviados  de  seus  destinos,  eram  distrahidos  pelas  ordens 
de  Castella,  que  sem  escrúpulo  se  locupletava  com  ellas, 
como  se  nlSo  pertencessem  a  um  Estado  independente. 
Não  contente  com  as  guarnições  das  fortalezas,  todas  hes- 
panholas, o  gabinete  deMadi  id  lançava-iios  o  freio  da  es- 
tação permanente  de  suas  armadas  no  Tejo,  e,  violando 
os  privilégios  jurados  em  Thomar,  arrancava  aos  por- 
tnguezes  para  o  confiar  de  castelhanos  o  governo  das 
nossas  galés,  acabando  por  unir  esta  armada  com  a  de 
Hespanha  sob  pretexto  de  suppostas  economias.  Olivares 
resuscitou  alguns  annos  depois  a  dignidade  vasiado  titulo 


60 


UISTORIA  D£  PORTUGAL 


de  <ícnpral  das  gnlés,  e  roeomperisou  com  elln  a  D.  Jorçe 
de  Castro,  filho  do  vice-rei  da  índia,  D.  Mai  liiii  AHoriso 
de  Castro»  em  16â5.  Por  morte  d'elle  em  16i5  nomeou 
D.  Affonso  de  Lencastre,  filho  do  duqae  de  Âveiro»  mas 
sem  navios,  porque  a  instituiçKo  iHo  nobre  e  ntíl  das  ga- 
lés de  guarda  costa  continuou  reduzida  a  um  nome  vão*. 

A  estas  rasões  de  desconfiança  e  desgosto  juntou-se 
outra  ainda  mais  grare.  Um  alvará  de  Filippe  III,  expe- 
dido no  governo  do  marquez  de  Alemquer,  ordenára, 
que  a  armada  de  Portugal  usasse  da  sua  antiga  bandeira, 
mas  com  a  condirão  de  a  tomar  visivelmente  distincta  da 
hespanhola.  Sendo  ambas  i  llas  brancas,  sem  mais  adorno, 
timbre,  ou  folhagem,  e  diíferindo  só  nos  escudos  das  ar- 
mas, podiam  confundír-se  facilmente  no  mar.  Obedeces 
o  maniiii  z  de  Alemquer,  e,  lembrado  do  seu  aj)pellido, 
mandou  lanrai*  com  poucn  modéstia  uma  silva  verde  no 
campo  branco  do  estandarte  portuguez.  A  innovaçâo  fe* 
riu  o  amor  próprio  nacional,  e  acabou  de  o  oíTender  o 
alvará  que  regulou  as  preeminências  navaes,  mandando 
que  as  esquadra^  da  nossa  coroa  trouxessem  nos  ralcezes 
estandartes  quadrados  azues,  vermelhos,  ou  de  qualquer 
c6r,  menos  branca,  por  esta  ser  privativa  da  capitana  do 
maih  oceano,  prohibindo  que  as  nossas  naus  içassem  ban- 
deira á  popa,  estabelecendo  que  a  capitana  de  Portugal 
abatesse  a  bandeira  á  de  Caslella,  iiitilulada  por  superio- 
ridade sobre  todas  as  outras  capitanas  «real  de  Castella», 
e  que  nas  salvas,  pharoes,  e  ordens  a  armada  de  Portu- 
gal cedesse  o  primeiro  logar  á  de  Hespanha,  semi  i  c  que 

1  D.  Fianeitto  Manuel,  Epanaphora  it,  pag.  i61  a  164  o  pag. 
167  e  168. — Sobre  a  creaçâo  e  attribuiç^g  dos  cargos  militares  de 
almirante  e  capitão  mór  do  mar  veja-se  a  ordenação  aflbnsina,  liv.  r, 
tiU  Liv  e  Lv. 


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DOS  SÉCULOS  XVU  h  XVUl 


61 


se  encontrasse  com  ella,  ou  que  navegassem  de  conserva,  UêMU 
Este  acto  urúm  todas  as  classes,  e  D.  AíTonso  de  Noro- 
nha,  capitão  mòv  do  mar,  rcputando-o  uma  negação  formal 
da  independência  da  nossa  bandeira^  julgou  mais  digno 
exonerar-se  do  cargo»  do  que  servir  de  executor  a  simi- 
Ihante  disposição.  As  capitanias  da  armada  da  índia»  tanto 
nas  aguas  do  oriente,  como  nas  da  Eur()i>a,  conservaram 
comtudo  a  antiga  preeminência  sobre  a  capitania  e  a  al- 
mirante da  esquadra  de  Portugal,  apesar  do  cargo  de  ge- 
neral do  mar  ser  ramto  mais  elevado  que  o  de  capitlo 
mór  da  viagem  da  índia,  passando  D.  AlTonso  de  Noro- 
nha e  o  conde  xViiloiiio  Telles  do  commando  da  armada 
para  o  vice-reinado  da  Asia.  D.  Francisco  Manuel  de  Mello» 
indagando  os  motivos  d'esta  singularidade,  attribue  o 
uso  recebido  â  circumstancia  das  naus  da  índia  navega- 
rem os  maiores  cahedaes  e  interesses  do  reino  e  da  sua 
principal  conquista,  cuja  guarda  era  tão  imiiortanle,  que 
Aão  devia  admirar  haver-se-lhes  concedido  a  prerogativa 
de  accenderem  pharol  de  noite,  e  das  capitanias  da  índia 
se  mandarem  seguir  pelas  capitanias  e  almirantes  reaes 
de  Pui  Lugal  *. 

Alem  d'(*stas  causas,  que  tanto  concorriam  para  enve- 
Aenar  as  antipathias  entre  os  súbditos  das  duas  coroas, 
IS  i]pieixa3  todos  os  annos  se  exaltavam  contra  a  indolen- 
da  do  governo,  provocadas  peio  espectáculo  do  abati- 
mento da  marinha  e  pela  repetição  dos  desastres.  A  ex- 
pedição da  Bahia  sacudiu  o  turpor  por  um  momento,  mas, 
victoriosas  as  armas  da  mon^rdiia,  como  se  os  trabalhos 
d'aqueUa  corta  campanha  as  Uvessem  desfallecído,  ou 
como  se  não  podesse  haver  nova  occasião  de  as  exercitar, 

1  B.  Frandsco  Mainiel  de         JSpanofhora  Ti^agica  ii,  pag. 
lMaie7epag.tS3e294. 


62 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


Mtóniu  a  administração  iiiiliLar  deixou-se  adormecer  profiinda- 
mente,  e  largou  das  mãos  todos  os  fios  da  vigilância  c  da 
prevenção.  Filippe  IV  para  occorrer  á  defeza  das  costas 
de  CasteUa  e  de  Portugal  e  atalhar  o  perigo  das  invasões 
contentott-se  com  uma  providencia,  que,  em  vez  de  au- 
gmentar  as  forças  navaes  do  reino,  temlia  a  desfalca-las, 
dispondo  que  o  general  dos  galeões  da  prata,  Thomas  de 
La  Respur,  biscainho  e  soldado  pratico,  assistisse  no  porto 
de  Lisboa,  e  juntasse  n*eUe  alguns  navios  de  varias  esqua- 
dras. Chegou  D.  Thomás,  e  de  aecordo  com  o  marquez 
de  Inojosa,  capitão  general  dos  presídios  hespanhoes,  de- 
terminou a  fortificação  da  capital,  obra  mal  traçada  no 
plano  e  mais  do  que  infeliz  na  execução:  Era  opinião  dos 
portuguezes  que  Lisboa»  á  similbança  de  Atbenas,  só  po- 
dia ser  defendida  com  muralhas  de  pau,  estribando  a  sua 
conliança  no  valor  e  numero  dos  vasos  de  guerra. 

D.  Thomás  e  o  marquez  no  principio  mostraram-se  in- 
clinados a  seguir  este  voto,  e  por  suas  ordens  tinham 
sido  construídos  dois  galeões  alterosos,  o  S.  FUippe  e  o 
S.  Thiago,  cujos  capitães,  Ascenso  de  Sequeira  Vasconcel- 
los,  e  João  de  Sousa  Falcão,  conceituados  de  experientes, 
foram  logo  aggregados  com  suas  naus,  guarnecidas  de 
pouca  gente  e  bisonha,  á  armada  de  Respur,  que  a  córte 
simulava  considerar  separada  da  esquadra  do  oceano,  só 
com  a  idéa  de  obrigar  a  nossa  corôa  a  sustenLa-la 

Quando  D.  Manuel  de  Menezes  saiu  em  1626  de  Lis- 
boa para  escoltar  as  £rotas  da  índia  e  da  America  toda  a 
força  dos  navios  de  guerra,  fundeados  no  Tejo,  apenas 
constava  de  poucos  e  desbaratados  vasos,  dos  quaes  o 

^  D.  Francisco  Manuel  de  Mello,  Epanaphora  Trágica  n,  pag.  172 
a  174.— Alvará  de  18  de  junho  de  16ia—lftdt<^  dawdogii», 
tom.  n,  pag.  S99. 


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DOS  SÉCULOS  XVII  E  XVilI 


63 


melhor  era  a  capitaria  da  armada,  que  voltai  a  da  lialaa  em  Mariaha 
14  de  outubro  de  1025.  Seguiam-se  a  nau  Chagas  e  o 
galeão  S.  João,  de  ruim  fabrica  e  péssimo  de  marear, 
chegados  no  anuo  anterior  da  índia,  o  galeio  Santo  in* 
tonio,  muito  defeituoso  e  incapaz  de  viaji^em  longa,  o  {^fa- 
leão  S.  José,  que  recolhêra  destroçado  do  Rrazil,  os  dois 
galeões  novos  S.  TMago  e  S.  Filippe,  e  a  urca  Sanla  Izor 
M,  pequena  embarcação  mal  reputada  dos  mareantes.  A 
estes  oito  vasos,  escassamente  providos  de  artilheria  e  de 
tripulações,  se  reduzia  então  o  poder  de  Portugal.  O  las- 
timoso naufrágio,  que  o  aniquilou,  a  perda  do  galeão  Santa 
Therezãs  fabricado  pelo  afamado  constructor  Bento  Fran- 
cisco» que  por  sua  fortaleza  fizera  a  admiração  de  quan- 
tos o  examinaram,  e  no  qual  pereceram  abrasados  seis- 
centos poriuguezes  na  batalha  do  Canal,  e  por  ultimo  o 
revés  padecido  pela  esquadra  do  conde  da  Torre  nas  aguas 
do  Brazil  acabaram  de  consummar  a  ruina  da  marinha  por- 
togneza,  tão  diversa  já  do  que  fôra  em  melhores  dias  K 

Ao  mesmo  tempo  declinava  o  commercio  de  dia  para 
dia  destruído  pelas  presas  dos  corsários.  ISckj  era  novo 
o  insulto,  porque  datava  dos  reinados  de  D.  João  111  e 
D.  Sebastião,  mas  a  certeza  da  impunidade  espertou  a  ou- 
sadia dos  mímigos.  O  desleixo  das  auctoridades,  como 
que  indifferentes  ás  perdas  enormes,  que  arruinavam  as 
casas  mais  poderosas,  parecia  jusiiiicar  a  espécie  de  cum- 
Iilic&dade  tacita,  que  a  voz  publica  imputava  aos  ministros 
hespanhoes,  na  realidade  só  culpados  de  incúria  e  de  inca- 
pacidade. Filippe  n  em 1503 tinha  lançado  o  imposto  deno- 
minado do  ^consulado»  com  ain  opriação  especial  á  sus- 
tentação dos  navios  incumbidos  da  guarda  da  costa>  e  este 

*  D.  Francisco  Manuel  de  Mello,  Ejjanaj^hora  bellica  iv,  ConfUdo 
é)  Candj  pag.  495  e  569  a  o70. 


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64 


HISTOBU  DE  PORTUGAL 


ibríDha  imposto^  desviado  pelos  seus  successores,  produzia  em 
1607,  arrendado  a  Manuel  Gomes  da  Costa  por  oito  an- 

nos,  5r):000??i000  réis,  alem  de  o:OOOáíOOO  réis  cobrados 
de  cada  nau,  (jue  voltíiva  da  índia.  Em  1020  achava-se  or- 
çado em  80:000<SíOOO  róis.  Esta  contribuição  pesava  toda 
sobre  o  corpo  do  commercio,  elevando-se  a  3  porcento, 
e  ningiiein  se  qui  ixaria  de  a  pagar  se  o  gabinete  de  Ma- 
drid iielo  alvará  de  13  de  fínoreiio  de  1(>02  uão  sup- 
primisse  o  tribunal,  que,  cm  virtude  do  regimento  de  16 
de  junho  de  1593,  íiscalisava  a  rigorosa  applicação  das 
receitas  ás  despezas  marítimas.  Dipois  d*eHe  o  tributo 
arrancado  sem  garantias  e  distraimlu  tiui  *;aslos  diversos 
conNerteu-se  em  veidadeira  oppressão,  aggiavada  pela 
ironia  palpável  dos  contribuintes  verem  desarmados  e 
podres  nos  lodos  do  Tejo  os  cascos  subsidiados  p^a  de- 
feza  dos  seus  cabedaes  M 

Amiiulavam-se,  entretanto,  os  estragos,  e  cresceraia 
os  clamores  de  fórma  que  a  violência  dos  males  forçou  0% 
ministros  a  saírem  da  apathia,  publicando  a  carta  r^a 
de  7  de  março  de  1617,  pela  qual  mandaram  observar 
as  leis  promulgadas  por  D.  Sebastião  acerca  do  armamento 
dos  navios  mercantes^.  Em  virtude  d  elias  as  embarcações 
de  commercio  não  podiam  navegar  sem  montaram  o  lui- 

1  Alvará  de  1593  e  regimento  de  16  de  junho  do  mesmo  ânuo, 
areando  e  refilando  o  noTo  tributo  do  consolado.  — Ahaifi  de  IS 

ícrereiro  de  1602,  que  8ii|^riBiia  o  lribun<'U  e  juizo  do  oarm^ 
JadOw;— *%topM  ehronologica,  tom.  n,  pag.  ^9. — Livro  de  Toim  «  > 
Fasenda  e  Real  Património,  por  Luiz  de  Figueiredo  FalcSo^  pag. 
21.— Fr.  Nicolau  de  OliTeira,  Grandexoi  de  ÍÁthoa,  trat.  n,  pag. 
330,  ediç.  de  1804. 

2  Alvará  de  7  de  março  de  1617.— Leis  de  15  de  dezembro  de 
id57,  regimento  de  3  de  noyembro  de  IS7Í  e  alvará  de  I  de  outn* 
bro  de  1577. 


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DOS  SÉCULOS  XVII  £  XYIU 


65 


mero  de  íjecas  roqueiras  correspondente  ao  numero  de  MarMía 
toneladas  da  sua  arqueação»  e  sem  levarem  os  piques,  ar- 
cabozes,  e  lanças,  de  qae  pela  mesma  proporção  deviam 
carecer  para  resistirem  a  qualquer  assalto.  Filíppe  III,  re- 
novando estes  preceitos,  ordenou  que  o  provedor  dos  ar- 
mazéns e  das  armadas  visitasse  em  Lisboa  os  navios  antes 
da  partida,  e  que  os  juizes  das  alfandegas  os  visitassem 
BOS  outros  portos»  e  não  lhes  concedessem  licença  de  le- 
vantar ferro,  senão  encontrando-os  em  estado  de  poderem 
defender-se.  Regulou  igualmente  «i  ordem  das  esquadras 
mercantes,  determinando  as  eporhas  das  viagens  de  ida 
e  volta,  e  prohibindo  a  saída  dos  portos  do  reino,  ou  das 
C(mqaistas  a  qaalqaer  vâa,  qae  intentasse  partir  separada 
das  ontras  e  fóra  dos  prasos  prescriptos.  Estas  regras, 
que  impunliam  ao  movimento  naval  e  mercante  restricções 
onerosas,  quasi  nunca  eximiam  os  navios  dos  perigos.  Os 
inimigos,  mais  l>em  armados,  e  também  reunidos  em  fro- 
tas, lônham  espera-los  na  altura  dos  Açores,  ou  nas  agaas 
das  costas  africanas  e  do  Brazil,  e  trimnphavam  sem  dif- 
ficuldade  da  sua  resistência. 

Estas  disposições,  suscitadas  de  novo  quatro  annos  de- 
pois, o  qae  prova  a  MU  de  execução,  peccavam  pela  base. 
As  peças  roqawas,  os  berços,  e  os  passamuros,  com  qae 
o  rei  mandava  artilhar  os  navios,  exigiam  bons  officiaes 
de  bombardeiros  e  tripulações  afeitas  ao  trato  das  armas, 
e  quando  as  naus  e  os  galeões  do  estado  fugiam  de  pele- 
jar, como  vimos,  ou  pelejando  ardiam  até  ao  lume  de 
agua,  ou  se  aivmdavam  rotas  de  balas,  não  era  de  crer, 
que  vélas  mercantes  e  marinheiros  bisonhos  se  mostras- 
sem mais  intrépidos,  e  lutassem  com  menos  infelicidade. 
O  que  podia  attenuar  o  mal  seriam  arrojados  feitos  marí- 
tímos,  que  restaurassem  o  prestigio  da  bandeira;  mas  as 
epochas  dos  grandes  lances  tinham  acabado,  e  a  fortuna, 

«HO  T  6 


1 


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mSTOIlIA  DE  PORfUGAL 


Mârinto  daiido-nos  as  costas,  seguia  os  adversaiios  mais  iiâi>eis  e 
aguerridos  *. 

Os  maiiDheiros  e  soldados,  mal  pagos  e  TiolentiAoSt 
fligiam  das  embar6aç?i6S  e  das  companhias,  e  o  rei  ^ia^ae 

coiisliangido  a  renovar  contra  elles  as  [n^nus  da  ordena- 
ção, aggravando-as  coiiíbrme  os  lugares  e  as  occasiões. 
As  armadas  de  Gastetta  e  de  Portugal  deviatt  escoltar  re* 
dprocamente  os  nams  dasdmscoròas,  «ioereeoihesaem 
carregados  das  conquistas^  mas  o  orgulho  dos  portugue^ 
zes,  mais  forte  do  que  u  iíiLei  esse.  fazia  com  que  prefe- 
rissem o  encontro  dos  inimigos  á  protecção  muitas  vezes 
minosa  dos  hespanhoes.  A  Mesa  da  Consciência»  dese- 
jando avíTar  o  costume  salvlar  dos  cavaleiros  das  oirdaDi 
imlitares  preencheran  embnt^Mlos  os  autos  de  serviço 
da  sua  aabiiitarão,  pi  <  iu>z  em  1622  um  regulamento, 
mas  Flkppe  I Y  nâo  o  approvou.  As  nossas  mais  e  galeões» 
a  nossa  artilheiia»  e  o  nosso  amamento,  empregados  naa 
eaapreE»  de  Gastefia,  feltavam  para  aondir  i  defeia  do 

paiz  e  das  possessões.  Ern  103^  a  chusma  da  ultima  galé, 
qut'  ainda  existia  no  porto  de  Lisboa,  foi  mandada  re- 
mar nas  de  Hespanha,  e  as  tninutaes  recebiam  ordem 
de  seirteneiarem  qnasí  snmmriamaiiAe  os  ajmes  para  ^ 
povoarem  de  forçades  os  bancos  das  gstfscasléttieiMS» 
Pilippe  IV,  em  vez  d  estas  [iro\idencias  vexatórias  e  ím* 
leis,  determinasse,  que  o  producto  das  sisas  maiitimas 
e  do  subsidio  do  consulado  tosem  applieadosi  rastau» 
ra^  da  antiga  annada^  costa»  aloançaría  de  carto  ma» 
Ikores  resiidtados.  É  duvidoso,  comtodo,  que  os  apurosdo 
erário  consen^ssm>  qoe  esta  ordem  passasse  do  paj^ei^. 

1  Álvara  ác  17  de  novembro  de  1621. 

2  Ordenação,  li  v.  v,  tit.  xcvn.—  Cartas  regias  de  26  de  maio  de  f  621 
e  de  25  dc  abril  de  1622.— ^Cartas  regias  de  21  de  maio  de  1614,  3 
de  outubro  de  1615^  6^  e  20  de  junho  de  1617  a  de  março  de  iS38. 


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DQS  SBGOM»  XVU  £  XVUl 


67 


As  presas  feitas  pelos  coi  iái  los  e  polas  armadas  iiii-  Mai-w^ 
migas  liãu  constituiam  sós  a  causa  do  grande  desfalleci-  ^jjj^ 
moto  da  Uiarúiha  e  do  coawoôrcio.  Os  nauírj^gios  não 
omorrim  menos  do  que  as  armas  para  nos  atteauarem 
as  forças.  Sendo  as  naus  da  carreira  da  índia  as  embar- 
cações, cm  que  Portu^:il  iiielLia  os  maiores  cubedaes  em 
dialieiro,  amas»  e  gcule  para  receber  em  retorao  as  mer- 
eadorias  4o  anente»  as  perdas»  que  todos  os  aouos  assi- 
goalavam  eslas  vitigeiís,  necessariamente  haviam  de  que* 
brantar  o  reino.  Attribuem  os  escriptores  a  frequência 
das  desastres  a  motivos  diversos,  mas  iodos  concoi dam 
mnfimííài'  €^tre  os  priuclpaes  a  demasiada  grandeza  das 
ttmsje  o  £iiBu  mau  eoucerto,  de  <pe  resultava  não  aguen- 
tmm  o  jnar,  fazarem  agua  quasi  á  saída  dos  portos,  e 
ti  ciLadas  o  occaao,  sunôudo-se  com  ellas  muitos  milhões 
m  valores. 

Hío  r^ÁuadiO  4e  JD.  Maouel  pôde  mais  a  prudência,  do 
qpe  acubisa,  e  a3  naus  da  carreira  nâo  passaram  em  ge- 
lalde  iMIoieladas.  No  governo,  porém*  de  D.  João  III  a 

sede  de  oiro  e  a  avidez  de  acrescentar  o  volume  das  im- 
portações do^  pioductós  asiáticos  levou  o  priocipe  a  fe- 
Cbar  os  oUios  aos  perigos,  auctorisando  a  construcção  de 
de  dOO»  e  de^mniajtQiiQladas.  Queáa-seidupU- 
oar  a  carga  da  pimenta  « transportar  mais  soldados  sem 
âi^gífteuiar  o  íjwmero  dos  vasos.  Os  inconveni^utes  (reste 
Qliifadado  alviji;e  senUram*S(ô  logo.  Abamotaram-se  os 
M9m  4í^{^/^^à0  mwii^  a  ponto  do  convez  Utteral- 
mente  atulhado  ficar  mais  alto,  do  que  o  Castello  de  pôpa, 
e  subia-se  pelas  rumas  de  caixas  como  por  um  monte  aci- 
naa.  Os  cascos,  assiiii  caii  egados,  mal  construidos  de  si, 
e  tomados  quasi  mossiços  com  o  recheio,  não  obedeciam 
ao  Iwe.  Ao  ip^fM*  temipon^l  as  naus  aliavam  as  fazendas 
ao  mar  e  as  mais  felizes  quasi  só  por  milagre  abocavam 


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68  aiSTOlUA  DE  POBTUGAL 

Marinha  a  bam  de  Lisboa.  Nos  annos  de  1591  e  1592  de  dezesete 
navios  de  alto  bordo,  dois  galeões,  duas  naus  novas  e 
uma  caravela  partidas  da  índia,  ao  todo  vinte  e  duas 
embarcações,  só  entraram  no  Tejo  as  naus  S.  Christovão 
e  S.  Pantaleão,  quo  vinham  descarrepfadas  por  serem  ve- 
lhas. Em  1600  navegaram  para  o  oriente  quatorze  naus, 
galeões  e  navios,  e  á  volta  perderam-se  quasi  todos,  ren- 
•  dendo  um  íilippebote  inimigo  um  gale3o  com  metade  da 
tripulação  e  da  artilheria,  que  elle  montava  M 

0  abuso  de  tMubarcar  geníe  de  mais  a  bordo  das  naus 
não  era  menos  funesto.  Os  presídios  da  Asia  não  cessa- 
vam de  pedir  soldados,  e  o  governo,  para  os  soccorr^, 
aceomulâra  700  a  8Ó0  homens  nas  cobertas  e  toldas  dos 
galeões  sem  aitender  á  variedade  dos  climas,  c  ao  iacom- 
modo,  á  immundicie  do  aperto  em  jornada  longa  e  arris- 
cada, e  á  eventualidade  qaasi  certa  das  doenças  e  epide* 
mias.  Os  effeitos  correspondiam.  Nem  dois  terços  dos 
soldados  assim  transportados  chegavam  a  ver  a  índia. 
Caíam  tantos  enfermos  sem  ser  possível  trata-los,  que 
houve  dia  de  duzentos,  e  de  maisl  Estas  perdas,  por  con- 
tinuadas e  excessivas,  sangravam  por  tal  fórma  o  paiz,  que 
a  attençSo  adormecida  dos  poderes  públicos  despertou 
por  fim.  O  consoliiu  dc  D.  Sebastião  discutiu  o  modo  op- 
porluno  de  atalhar  o  damno,  porqiie  nao  se  perdiam  só 
as  naus,  mas  com  elias  as  riquezas,  os  iidaigos,  os  solda- 
dos, os  marinheiros,  e  a  artilheria.  Resolveu  el*rei  orde- 
nar, que  nenhuma  nau  da  índia  fosse  de  mais  de  300  até 

1  S''V''rirn  de  Faria,  Noticias  de  Portugal  Cansas  dos  naufrágios 
das  naus  da  carreira  da  índia,  tom.  u,  disc.  vin. — Allegadon 
en  favor  dr  \a  compania  de  la  índia  oriental  y  comermos  tdtrama- 
rinos,  dc.j  por  Duarte  Gomes  Sollis.  Anuo  de  id28,  pag.  7  e  se- 
guintes. 


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DOS  SÉCULOS  XVll  £  XVilI  69 

450  toneladas.  A  experiência  tinha  mostrado  a  vaiitiigem  Marrnh* 
de  se  construírem  de  menor  porte,  porque  mais  íacilmen- 
te  podiam  apparelhar-se  e  carregar*se»  requerendo  me- 
nos gente  para  a  marcação,  e  despendendo  menos  quando 
invernavam.  Os  íaclos  coníiiiuaí  am  esta  sabia  provisão, 
observada  emquanto  viveu  o  soberano,  que  a  dictára.  Mas 
apenas  elle  desappareceu  tomou  a  cubiça  a  prevalecer, 
e  apodou  de  falsos  os  fondamentos  da  lei.  O  arbítrio 
abraçado  por  Filippo  II  de  contratar  a  fabrica  e  o  concerto 
dos  navios  do  estado,  e  de  arrendar  n  laonopolio  da  pi- 
menta a  particulares  sob  prelcxlo  de  saber  com  verdade 
qual  era  o  rendimento  liquido  da  casa  da  índia»  avivando- 
o  interesse  e  a  fraude,  acabou  de  supprimlr  as  prevenções 
do  reinado  antecedente.  Os  contratadores  acrescentaram 
a  grandeza  dns  naos  a  fim  de  carregarem  maiores  quan- 
tidades de  pimenta,  e  como  o  concerto  e  os  aprestos  dos 
navios  corriam  por  conta  d  elies,  e  saiam  muito  dispen- 
diosos, introduziram  a  carena  á  italiana,  mais  barata,  pq- 
rém  muito  defeituosa 

Repetirani-se  os  antigos  abusos,  tanto  na  lonelagehi  das 
naus  e  no  excessivo  pejamento  da  carga,  como  na  pouca 
segurança  dos  íabricos.  Desde  o  governo  do  rei  catholico 
até  o  de  Filippo  IV  multiplicaram-se  os  naufrágios  \m  for- 
ma, que  de  tres  eaibarcações  vindas  da  índia  raras  ve- 
zes aportavam  duas  a  salvamento*  Este  doloroso  especta- 

1  Begimmío  para  a  ea$a  da  índia,  impresso  no  anno  de  1570, 
ÍL  217. — Severím  de  Faria,  Noticias  de  Portvgal,  tom.  ir,  disc.  * 
Relação  do  naufrágio  da  nau  Santo  Âlherto  n»)  periedo  das  Fontes, 
1893;  do  galeSo  8,  Mo  na  tertxt  do  Natal  em  1552 ;  das  naus  Águia 
e  Garça  em  1589;  da  batalha  e  successo  da  nau  Chagas  em  1591; 
entre  as  ilhas  dos  Açores;  do  galeão  S,  Jhiago  em  Santa  Mena  em 
IfiOS;  da  nau  S,  João  Bajttista  no  cabo  da  Boa  Esperança  em  1622; 
e  da  nau  Senhora  de  Belém,  também  no  cabo  em  1633. 


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70  HISTORIA  DE  PORTUGAL 

Maxmhà  culo  éxaltou  as  queixas,  e  os  liomens  competentes  prova- 
ram,  que  não  era  ás  tormentas  do  cabo  da  Boa  Esperança, 
mas  ao  erro  da  carena  e  da  sobrecarga,  á  má  escolha  das 
madeiras,  e  aos  fabricos  descuidados,  que  se  deviam  \Wr 
putar  os  desastres,  não  existindo  nau  enlao,  que  podesse 
com  mais  de  duas  viagens  da  carreira  da  Asia,  quando  as 
antigas  não  cansavam  com  dez  e  doze.  Por  ultimo  Duarte 
Gomes  Sollis,  escrevendo  em  favor  da  companhia  da  In* 
dia  oriental,  creada  pelo  conde  duque,  demonstrou  em 
duas  allegações,  que  a  causa  pnncii»al  das  perdas  inces- 
santes procedia  das  dimensões  exageradas  dos  vasos  e  da 
cubiça  de  os  abarrotar.  O  conselho  de  Portugal  em  Ma* 
drid  tomou  conhecimento  do  assumpto,  e  convencido  da 
evidencia  propoz,  que  se  executasse  a  lei  de  D.  SebastiSo, 
construindo-se  navios  mais  pequenos.  O  surcesso  justificou 
o  acerto  da  consulta,  porque  as  naus  feitas  em  1633  con- 
cluíram a  viagem  de  ida  em  quatro  mezes  e  meio,  e  a  de 
volta  em  cinco  mezes,  cousa  que  nenhum  dos  grandes 
vasos  alcançara.  Apesar  d'isto  os  officiaes  do  mar  conse- 
guiram logo,  que  se  pozesso  do  parte  a  reforma,  illudindo 
os  ministros,  e  até  alcançaram  auctorisação  para  levanta- 
rem ainda  uma  terceira  coberta  tão  alterosa,  que  enfra- 
quecia o  navio  só  com  o  fim  de  converterem  os  camarotes 
em  can)ara>,  e  dc  disporem  de  mais  largo  espaço  para  o 
negociarem. 

O  governo  advertido  pelos  revezes  intentou  oppor-se 
ainda  a  parte  do  mal,  reprimindo  o  excesso  das  cargas  e 
a  má  arrumarão  d'ellas.  Ponderou  o  embaraço  dos  hr' 

dos  e  caixas  para  os  movimentos  de  ataque  e  deíeza  na- 
val, e  os  obstáculos,  que  o  pejamenlo  suscitava  á  marcação 
nos  temporaes,  e  conheceu  que  d  elies  nascia  abrii  em-sc 
os  cascos,  ou  soçobrarem  com  o  peso.  Mas  as  disposições 
do  alvará  de  20  de  fevereiro  de  1604  encontraram  a  mes- 


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DOS  SÉCULOS  XVU  K  XVIU  7i 

ma  resisLencia,  que  as  clausulas  do  regimento  de  1570Biaiiifcii 
tinham  achado.  A  il<  speito  da  prohibição  terminante  os 
ooQtramestres  contmuuram  a  empachar  á  ida  e  á  volta  o 
eonvez,  a  tolda  do  capitão»  o  casteUo  de  pr6a«  e  a  calca* 
^va  dos  bombardeiros  á  pòpai ,  sem  deixarem  mesmo  a 
praça  indispensável  para  a  artilheri.i  j  ni,^ar.  Os  capitães  in- 
sistiram em  vender  os  seus  «gasalhadus»  (logares  de  que 
podiam  dispor)  aos  mercadores,  arrumando  as  fazendas 
e  as  matalotageDS  pelo  corpo  do  navio»  e  até  as  pipas  da 
aguada  pelas  mesas  da  guarDíçHo,  e  pelo  chapitéa  e  Cas- 
tello de  proa.  Os  pilotos,  mestres,  e  officiaes  faziam  o 
mesmo,  rsào  foram  menos  desprezados  os  preceitos  do 
alvará  em  relação  á  segurança  das  naus  e  ás  commodida- 
des  das  equipagens.  A  cublça  zombava  d'elles*  Era  pro* 
bibido  consentir  pessoa  alguma  na  coberta  da  ponte  deS" 
tinada  aos  agasalhados»  dos  marinln  ii  os  e  grumetes,  e os 
particulares  compravam  sempre  para  seus  fardos  a(juelie 
espaço.  Mandava-se  dar  pendores  ás  naus  apenas  cbegask 
sem  á  índia,  e  que  se  lín^)assem,  e  calafetassem  por  den- 
tro e  por  fóra»  e  ntò  se  fazia  o  menor  caso  da  prevenção  K 
A  sciencia  das  construcçôes  navaes  não  estava  tão  atra- 
zada  como  em  geral  se  cuida.  Tso  lim  do  século  xvi  fabrí- 
cavam-se  navios,  que  já  deixavam  longe  as  modestas  di- 
mensões das  naus,  com  que  Vasco  da  Gama  tinha  montado 
o  cabo  da  Boa  Esperança.  De  feito  a  nau  S.  Gabriel  apenas 
media  1 20  toneladas,  a  S.  Rafael  100,  a  Berrio  50,  e  a  nau 
dos  mantimentos  200.  Desde  o  tempo  de  D.  João  U  tinham 
principiado  a  íazer-se  navios  mais  fortes,  com  mastreação 
mais  bem  entendida,  e  maior  porão  para  viveres  e  aguada^ 
Sabmos,  entretanto,  que  uma  nau  de  1:000  toneladas 
construída  por  este  rei  foi  reputada  uma  verdadeira  ma- 

1  AlvBiá  de  âO  de  íeveieiK)  de  ifiOi. 


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I 


72  HISTORIA  D£  POBTCGAL 

Marinha  ravilbn,  c  que  não  c«iusou  menor  admii  ação  a  idéa  de 
guarnecer  as  caravelas  de  peças  de  grande  calibre  para 
I  disparar  tiros  razantes  ensaiados  primeiro  nas  aguas  de 

Setúbal.  D.  João  suppunha  com  motivo,  que  as  carave- 
las, pequenas  e  ligeiras,  resistiriam  com  vantagem  aos 
vasos  de  nito  Ijordo.  A  balas  de  pequeno  calibre  das 
naus,  porque  no  mar  ainda  se  nuo  usava  de  artilheria  gros- 
sa, passavam  por  alto,  e  as  dos  pequenos  baixeis  feriam 
pelo  contrario  ao  lume  de  agua  os  grandes  cascos,  met- 
tendo-osapique*. 

A  astúcia,  com  que  o  rei  fez  divulfrar,  que  os  navios  re- 
dondos não  podiam  resistir  na  volta  ás  correntes  dos,ma- 
res  da  Mina,  a  íim  de  não  ser  inquietado  pelos  estrangei- 
ros nas  conquistas  africanas,  fundava-se  no  conhecimento 
da  marinha  da  epocha,  c  na  certeza  de  que  nenhum  piloto 
de  fúra  ousari:;  navegar  para  aquellas  paragens  em  navios 
latinos,  ou  semi-latinos.  As  galés  e  caravelas,  por  peque- 
nas, não  podiam  carregar  grandes  pesos,  nem  metter  a 
bordo  tropas,  machinas  de  guerra,  ou  materíaes  de  con- 
strucrão.  Os  navios  redondos,  carraças,  nrcas,  maônas, 
marrilianas,  e  galeões  tinham  pelo  contrario  multo  maior 
capacidade,  e  por  isso  se  consideravam  os  únicos  va- 
sos aptos  para  transportes  volumosos,  motivo  por  que 
D.  João  II  procurava  desvia-los  da  navegação  da  Guiné, 
espalliai;'}()  a  fabula,  de  que  as  correntes  fortíssimas  e  ra* 
pidas  não  se  deixavam  vencer  de  vasos  tão  sujeitos  a  des-  ^ 
cair,  ou  a  garrarem.  De  feito  os  navios  redondos,  de  casco 
corto,  largos  de  fundo,  arredondados  na  pôpa  e  na  prôa, 
quasi  semi-cylíndrícos  por  baixo,  e  com  pouca  quilha  na 
agua  eram  ronceiros,  pesados,  e  lentos  na  manobra,  lu- 

t  Castanheda,  Hktmia  da  índia,  liv.  i,  cap.    pag.  Se7.— Quín- 
iella,  Aimaeê  da  ifonnAa  Portugueza,  Una.  i. 


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BOS  SÉCULOS  XYII  £  XYUI 


73 


tóvam  diílicilmentt'  com  o  mar,  e  mal  podiam  chegár-se  Manniia 
ao  vento,  lluctuaado  quasi  como  bolas  inertes  á  tona  de 
agua  de  um  rio*. 

Pelos  íínts  do  remado  de  D.  Manuel»  e  em  todo  o  tempo 
de  D.  Joio  ni  è  que  as  scíencias  náuticas  e  as  artes  de 
conslriicção  e  de  apparelho  toiiiaiaui  mimi  incremento. 
Âugmentoií-se  a  grandeza  dos  navios,  clevnndo-se  de  400 
a  800  e  a  900  toneladas,  e  depois  a  muito  mais  de  1:000, 
sem  a  força  e  a  estabilidade  dos  cascos,  e  sem  o  panno  e  a 
mastreação  corresponderem  ás  dimensões,  ficando  pelo 
contrario  os  navios  mais  fracos  e  em  peiores  condições  de 
resistii-em  aos  golpes  do  mar  e  aos  tem]:)oraes.  Entre  os 
vasos  redondos,  ikbncados  n'esta  epocba  e  nas  immedia- 
tas,  toinavan[t*se  notáveis  as  carraças,  immensas  naus  que 
lidboa  enviava  ás  índias  orientaes  e  ao  Brazil.  Reputam-se 
hoje  obras  portentosas  os  soLei  bos  vasos  inglezes  e  fran- 
cezes  de  3:000  e  4:000  toneladas,  e  não  queremos  recor- 
dar-nos,  de  que  os  nossos  estaleiros  lançavam  ao  mar  as 
carraças,  que  eram  navios  de  guerra  de  sete  e  oito  cober* 
tas,  com  alojamento  para  dois  mil  homens,  carregando 
9(8:000  kilogranmias,  montando  trinta  c  duas  pecas  de 
bionze,  e  não  podendo  navegar  em  menos  de  dez  braças 
de  agua  de  fundo.  Por  baixo  das  cobertas  passeíava  um 
homem  corpulento  sem  tocar  nos  tectos  com  a  cabeça. 
A  pòpa  e  a  proa,  muito  mais  altas  do  que  o  convez,  for- 
mavam dois  castellos  erguidos  nas  extremidades  da  em- 
barcação, correndo  entre  eiles  um  bailéu,  ou  varanda  vo- 
lante de  dois  andares.  Alem  dos  canhões  grossos,  alguns 

1  Beiende,  Chromca  dêEl-ReiD.JoãoU,  cap.  xxiv,  fl.  13  v.-— 
Nota  XXXV  de  Mr.  Jal,  na  olira  do  Mecído  Tlsoonde  de  Santarém, 
intitahda  Bedureha  tur  tet  déeimvertit  de»  fNiyf  sUué»  ftc r  h  cóle 
mdeníaJe  ^Afriqw  au*d^à  du  cap  Bojador  ou  siède  xv. 


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74 


HISTORIA  DK  POBIUGAL 


dos  quaes  pesavam  48:300  e  22:950  kilogrammas,  asses- 
tavam-se  nas  gáveas,  tão  grandes  que  podiam  caber  nos 
cestos  dez  e  doze  Iiomens,  varias  peças  pequenas.  As  car- 
raças pelo  calculo  deJIir.  Jai  mediam  da  carlinga  ao  con- 
vez  quasi  10  metros  de  altura,  e  de  âvante  e  a  ré  nio 
menos  de  lô"/)  por  causa  do  acastellameiilo 

Não  eram  só  as  carraças  os  únicos  vasos  de  grandes 
proporções.  Gonstniiram-se  também  galeõs  enormes,  e 
ficou  memorável  entre  os  navios  redondos  da  nossa  ma- 
rinha o  famoso  galeão  S.  João,  appeilidado  «bota-fogo» 
pela  quantidade  dos  canliões,  que  o  armavam.  Tinha  cinco 
cobertas  altas,  largas,  e  tão  compridas,  que  tomavam  a  ex- 
tensão de  quasi  duas  vezes  uma  das  maiores  naus  da  ín- 
dia, as  quaes  tinham  quatro  andares.  Na  esquadra,  com 
que  Cados  V  invesliii  Tuiiis  em  V^^XS,  figurava  u;i  divisão 
de  André  Doria  um  navio  redondo  anmenso  considerado 
O  mais  gigantesco  da  Itália,  mas  o  nosso  excedia-o,  e 
as  suas  dimensões  eram  taes,  que  batia  por  dma  de  toda 
a  armada.  Â  tradíçlío  dava-lhe  trezentas  e  sessenta  pecas 
de  bronze  de  todos  os  calibres,  numero  de  certo  exage- 
rado pelos  auctores.  Tinha  quatro  baterias,  a  do  lume  de 
agua  de  peças  reforçadas,  a  de  colubrinas,  a  de  meios  ca- 
nhões, e  a  de  esperas  e  meias  colubrinas.  Na  prôa  e  na 
popa  le\  aiiLavam-se  dois  enormes  castellos  cora  tantas  pe- 
ças, que  pareciam  dois  vulcões,  quando  os  camelos,  os 
pedreiros,  as  meias  esperas,  as  águias,  os  sacres,  os  fal- 
cões, e  os  berços,  vomitavam  torrentes  de  fogo.  Guarne- 
cido por  600  mosqueteiros,  400  soldados  de.  espada  e 
rodella,  e  300  artilheií^os,  levava  pelo  laliiamai  da  prôa 

1  Amuuí  (2a  MmvHka  FwíiÊgmxa,  tom.  t,  pag.  373.-^AiMtlaiiim> 
toi  aos  Quaàn$  Nwm  pelo  sr.  Celestino  Soaiea,  tom.  iv,  pag.  21$ 


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DOS  SÉCULOS  XinH  E  XYIII 


78 


um  esporão,  oa  serra  de  aço  linissimo,  com  que  rompeu 
a  forte  cadeia,  qae  fechava  a  entrada  da  Goieta  K  As  va- 
randas, espécie  de  andaimes,  chamados  bailéus,  toman- 
do ainda  mais  alterosas  as  naus  e  ^^alés,  servinin  [lara  os 
soldados  pelejarem  de  cima  e  os  remeiros  se  ampararem 
debaixo.  Faziam<se  também  arrombadas  de  tábuas  para 
abrigar  os  combatentes  dos  tiros  e  arremessos.  A  parte 
mais  elevada  dos  castellos  denomin»va-se  tchapitéu»,  e 
chamavam-se  «xarelas»  as  redes  de  corda,  (jue  defendiam 
08  bordos  dos  navios  do  assalto  dos  inimigos  ^. 

Entre  os  navios  pequenos  mais  usados  figuravam  as 
liíistas,  baixeis  de  pouco  bordo,  que  navegavam  á  véla  e 
a  remo,  e  as  caravelas,  que  içavam  tres  vélas  lateraes, 
havendo-as  de  cinco  mastros,  aunadas  de  canhões  pedrei- 
ros. Os  caravelões  dos  Açores  encontravam-se  com  fre- 
quência nas  aguas  d^aqueile  archipelago.  O  varínel,  ou 
barínel,  de  que  talvez  o  nome  sobreviva  nos  modernos 
varinos,  foi  a  embarcação  de  r  emo,  que  mais  empregou 
o  infante  D.  Henrique  nos  primei rus  dt'í>cobi  iim  nlos.  As 
caraças  parece  terem  sido  originariamente  fabricadas  em 
Génova,  d'onde  as  adoptámos.  As  charruas  de  pôpa  fe» 
chada  introduzidas  pelos  hollandezes  eram  vasos  de  guer- 
ra, muito  pesados,  e  só  úteis  para  ti  ansportes.  No  século 
x?Ti  chamavam-se  «bichas»  os  pontões,  ou  grandes  bar- 
m  razas,  fortíssimas,  e  capazes  de  montar  seis  bôcas  de 
f<«o  de  grosso  calibre,  o  aproveitavam-se  bastante  na  de- 
feza  dos  portos.  As  cfragatas  Singelas»,  bastante  ligeiras, 

1  Francisco  de  Andrade,  Chromcti  deEI-Reí  D.  Jo«/) ///.  pari.  ni, 
cap.  XV,  fl.  22,  col.  ±* — Memma  das  Armas  Castelhanas,  cap.  xvi, 
pag.  97  e  98. 

'  Gaspar  Kstacio  do  Amaral,  Relações,  (.'itado  por  Moraes. —  Cas" 
lello  Branco,  Memorias  Militares,  tom.  i,  traí.  xxiv. — D.  Francisco 
Manuel  de  Mello^  Epanaphoras,  pag.  55S  e  219. 


76 


HISTORIA  D£  PORTUGAL 


Marinha  com  (Icz  pcças  de  artillicria  somente,  acompanhavam  as 
gj^.  armadas  como  «avisos».  Finalmente  os  Rumbergs,íkd^'ios 
inglezes  de  grande  poder  e  assás  veleiros»  inspiravam  aos 
hespanhoes  grande  receio  pela  superioridade  das  tripula- 
ções e  das  manobras  ^ 

As  galés,  as  galootas,  e  as  galeaças  na  segunda  metade 
do  século  XVI  e  na  primeira  do  xyii,  ainda  não  haviam 
perdido  de  todo  a  importância,  e  só  desappareceram  in- 
,  teiramente  no  principio  do  xvui  século.  Movidas  a  remo 
e  com  vélas  triangulares,  ou  latinas,  antes  da  invenção  da 
pólvora,  e  mesmo  depois,  formavam  a  força  principal  das 
esquadras,  o  dependia  d'ellas  essencialmente  o  êxito  das 
batalhas.  Os  remeiros  trabalhavam  descobertos.  Imagina-» 
ram-se  os  castellos  depôpa  e  de  prôa  guarnecidos  de  sol- 
dados para  os  i»roteger.  Na  construcçâo  das  galés  a  prôa 
constituía  a  parte  mais  forte.  O  beque  terminava  por  um 
talhamar,  ou  esporão  muito  rijo  de  metal.  Tinham  dois 
mastros,  que  se  abatiam,  e  uma  vèla  latina  em  cada  um 
denominada  bastardo.  De  ordinário  oilereciani  capacidade 
para  vinte  e  cinco  e  trinta  liancos  cada  um  com  dois,  ou 
tres  remos,  c  dois  e  tres  liomens  por  cabo  de  remo.  Me- 
diam 44  e  45  metros  de  comprido  as  maiores  com  6,6  de 
bôcae2,â  de  pontal.  Montavam  cinco p(  as,  emaís,  como 
logo  veremos.  Aappellaràu  dos  remus  dava-se  também  o 
nome  de  «palamenta».  Os  da  parte  da  pôpa  diziam-se  de 
voga,  e  os  da  prôa  de  sota-voga. 

As  equipagens,  compostas  de  soldados,  e  de  poucos 
marinheiros  consistiam  mais  que  tudo  nas  chusmas  dos 

1  Gaspar  Estácio  do  Amaral,  Rètaçôes,  citado  por  Moraes. — Caá- 
iello  Branco,  Memoríat  Militarei,  tom.  i,  trat  xxiv.— -D.  Fhuidsco 
Msmuel  de  Mello,  Epant^phoras,  pag.  tSSè  e  219.--Qointe]la,  AntiMi 
da  JfortnAa  Partugnixa,  tom.  I. 


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'  DOS  SÉCULOS  XYII  E  XVni  77 


remos,  até  ao  reinado  de  D.  Affonso  Y,  e  talvez  até  ao  de  umz 

D.  João  II  tirados  das  classes  dos  pescadores  c  barquei- 
ros,  cujas  vintenas  forneciam  as  frutas  de  galeotes,  dando 
de  cada  vinte  um  homem  para  o  serviço  do  mar.  Do  go- 
yemo  de  D.  Manuel  em  diante  foram  empregados  nas 
dracmas  os  captivos  moaros  e  os  presos  sentenciados  a 
trabalhos  públicos.  A  galé  seguia  muito  e  com  violência 
iiicrivel  a  cada  remadura.  Os  forçados  iam  acorrentados 
aos  baacos»  pelo.meio  dos  quaes  circulava  uma  coxia,  por 
onde  o  comitre  passeava,  castigando-os  com  aspereza,  e 
até  acutílando  os  que  desmaiavam  na  peleja.  A  offieiali- 
dade  reduzia-se  ao  capitão,  ao  comitre,  e  ao  sota-comitre, 
que  exerciam  fuiicções  análogas  ás  do  mestre  c  contra- 
mestre das  naus»  O  posto  do  capitão  era  na  pôpa.  Os  sol- 
dos ás  vezes  gnamedam  os  bordos,  mas  o  grosso  da  forca, 
denominado  «taife»,  coUocava-se  á  prôa  para  as  borda- 
gens.  As  galeotas  tinham  um  só  mastro  com  dezeseis  ban- 
cos. As  gaieaças  distmguiam-se  das  galés  por  levantarem 
tres  mastros,  que  não  se  podiam  abater,  e  contarem  trinta 
e  dois  bancos  com  í  92  e  ââ4  forçados  de  remo,  e  tres  ba- 
terias á  prôa,  sendo  a  mais  baixa  de  canh?ies  de  32,  alem 
de  outras  tres  por  banda  armadas  de  peças  de  18.  No 
comprimento  e  na  largura  igualavam  os  maiores  navios, 
e  podiam  levar  mil,  e  mil  e  duzentos  homens  entre  sol- 
dados  e  romeiros.  Assimilhavam-se  a  fortalezas  boiantes. 
As  de  Veneza,  sempre  capitaneadas  por  um  nobre,  de- 
viam acceitar  o  combate,  aindaque  as  provocassem  mais 
de  vinte  galés  turcas  ^ 

No  século  xm  as  fastas  navegavam  com  vinte  e  cinco 
remos,  trinta  soldados,  trinta  remeiros,  e  tres,  ou  quatro 
peças  pequenas,  usualmente  falcões.  As  galés  e  gsdeotas 

A  QunteUa,  A»nm  da  Marinha  Pcrttisitma,  Um>  u 


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« 

78  HBTOBU  m  PMTOGAL 

jtfarinha  ordíoaiiis  eram  do  porto  de  UOO  tooeladas»  e  es  v«m 
Jl^  dMumados  barcagas  trawarn  castelk»  de  madeira  com  da» 

colubrinas  reforçadas.  O  armamento  dos  navios  variava 
muito,  segundo  mo&traiii  os  livros  da  Ârle  Militar,  de  Qi- 
rolamo  CaUiueu  Novarese.  Os  caubDos  mais  grossos mmr 
tavam-fieápôpa,  ápFòa«  e  do  meio  da  coeladodaMiiiiwa 
diaote.  Nas  baterias  de  bembardo  e  eslibonk)  jogaiWQi 
pegas  de  20,  debaixo  da  primeira  coberta  doi^  [ícdi  cuoò 
de  100,  um  dt;  cada  iadu,  ^obre  o  Castello  de  ré  um  câr 
nhão  de  20  oom  sacres  de  li.  P«èas  varandas  (bakonaíftj 
do  cMello  moc^etos  áe  aMga»  e  oa 
3,  Ott  de  6  oomalguBs  eanhões  de  dO.  No  Castello  de  firAa 
faiconetes  de  3,  ou  de  G,  e  mn  de  12.  Nas  {^avias  pelo 
menos  quatro  mosquetes  aa  grande  e  dois  Jia  pequena, 
por  guardas-lemes  dois  pedreiros  de  AOO,  e  poi^  baiMto 
outros  dois.  Finataieiiite  à  prAa  sobre  a  «canMwa  ^iis^ioii» 
nbões  de  20,  oa  duas  aeíAS  ooloMBas.  PreforâHie  a  nv^ 
tilheiia  grossa.  As  colubrinas  da  pròa  aiu  pai  a  ttlcançar  o 
inimigo,  e  as  da  pòpa  assestavam-se  para  cobrii^  as  reli^ 
radas.  As  do  meio  da  AAUibatett  a  iWo  os  cxioinari^s. 
Ite  gaUs  iiMManranae  áprftamacaDbio  deâQ^4aasiQ0<' 
InbrÍBas  por  b^da,  e  ao  cabpesÉaatetOutuasdaas  por  lado 
com  falconeles  de  3.  Nas  pequenas  amuras  ima  passaVrO- 
lanle  de  i6,  e  um  liodroíro  de  3iQ  por  iionda*  JNa  <\^aKi^Ad^ 
da  pâiia  (múim)  um&kii»  4e  ^  «{mm*  h9m  umeam 
de  12»  e  mm  dois«siHdfis.pafla  as  sdiws^ 
X6omé€aDo,  capitão  ordinário  e  ,conaelbeii'o  d3gU6i>ra 

1  Curiosidadeiít  de  Gonçalo  de  Saim,  manuscripto  da  bilOíotht  ca 
'  de  Ajuda. — Girolamo  Gataneo  Novarese,  DeU  u\He  Militar e  lihri  cin- 
que.  T3rescia  1534,  liv.  v.  íl.  16  e  17  e  12  o  13.-0  alvará  de  20  de 
fevereiro  de  1604,  providenciando  sobre  o  annamento  naval,  dis- 
poz  que  as  naus  levnssorn  10  peças  grossas,  5  por  Landa  do  mas- 
tro de  amn^j  .duas  múa&^  ««peca»  m  caatelb  4e  pr<^»  um  por 


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DOS  SÉCULOS  XVil  E  X?III 


79 


4e  Fiippe  Hl,  tratsado  das  conslrucções  navaes  do  sea  Mêm^ 

lampo,  accusava  os  mesti^es  hespanhoes,  italianos  e  por- 
tqguezes,  de  arrarem  as  dim^^isôes,  motivo  por  que  os 
OMfios  ficavam  Bialfi  largos^  oa  estreito»  de  pôpa»  oa  de 
prda  do  qoe  devian  ser,  mais  curtos»  ou  compryos  de 
quilha,  mais  altos,  o«  mais  baixos  de  pontal,  mais  aper- 
tados, nu  abei  tus  de  boca,  coiiipoi  laiido-se  por  i^^u  muito 
mal  imas  veaes»  aão  daiido  outras  pelo  leme  e  véla» 
6  damBdndo  aeaifro  nuiito  fu&de,  o  que  os  eipuuha  a 
psm  rim  na  entrada  das  barras  e  dos  portos.  Uns  joga- 
vam muito,  outros  afocinliavam,  e  em  quasi  todos  se  no- 
tavam grandes  defeitos  na  mastreação  e  nas  ver  gas  entre- 
gHss  aAS  caifiÉtfeiros,  e  labricadas  fóra  de  medida  e  de 
pnfivQio.  àí/mt  dflBlo  os  neesos  oonstmctores  erames- 
tiniirr,  e  ftomraonsie  klrodiuBiido  aperfdçoamentos, 
(|ae  as  outras  nações  depois  receberam  apesar  de  os  es- 
iFanhai^em  no  prinàpio.  Foi  um  d  eiles  lançarem  os  vasos 
do  estaleiro  pela  pòpae  nâo  pela  prôa,  como  quenaouso 
gml,  pm  já  íiiíbmm  m  oosaes  mestnas»  que  o  navio 
ftndeie  enlra  mais  facilmi^e  na  agua  com  os  delgadas  do 
cadaste  e  de  ré,  do  que  com  a  bochecha  da  prôa.  Deveu- 
sstáhee  aindaadivisik)  des  cestos  de  gavia  em  dois  quar« 
leis,  a  éwma^  das  wandas»  eu  jardins  das  pôpas  das 
MB,  «Iam  4o6  ostttades  sebre  gaiagala,  e  as  podas  da 
artãttMfúa  quadradas,  em  vez  de  circulares  ^ 
Os  pre$os  idas  cojusirucçêes  tinham  augmentado  ao  pas- 

Uni^  âlUaOM  pot  «fana  do  «latoHo.  Do  niartro  de  ré  8  ipa^as 
plmm^Ai§m  hmà/^M  itmm  do  capitfa  Ko  cluipitóo  do  cas- 
trilo  éòité  t  Ukík»  padrôro^  e  oufroa  2  sob»  a  xarata  eem  baixo 
na  aleaçora  dos  lioiiibaidein»  como  guardas-Iemes  8  peças  de  gran- 
de «dibre. 

AanUet  com  Uu  regUa  de  ardmtUmg      PQ'  Thooié  Cano  Sevilla» 


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80 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


uarâM  so  que  a  segurança  e  a  perfeito  diminuíra.  No  tempo  de 

CaiiosV  valia  apenas  4:000  ducadusumanaii,  que  em  1611 
custava  1 3:000.  Um  calafate  no  reiiiadu  de  Filippe  III, 
ou  um  carpinteiro,  que  no  tempo  de  seu  avô  se  conten- 
tava com  2  reales  e  meio  de  jornal  pedia  e  14.  Uma 
peça  de  lona  de  Pondavi,  que  em  4566  se  vendia  por  33 
reales,  não  se  cuiiiprava  em  1611  por  12  ducados.  O  quin- 
tal de  enxárcia  de  Flandres  subira  de  2  a  8  ducados.  O? 
fretes  também  iiaviam  quasi  quadruplicado.  No  governo 
do  imperador  pagava-se  por  tonelada  i%  ducados  de 
transporte  e  2  de  premio  de  avarias.  Em  1611  40  du- 
cados de  frete  e  12  de  avarias.  Em  1512  mandava  el-rei  . 
D.  Manuel  satisfazer  a  Lopo  lioiz,  mercador  de  Aveiro, 
300:000  reaes  por  uma  nau  de  250  toneladas  construí- 
da a  raâSo  de  3:000  reaes  a  tonelada,  e  em  1615  Blanuel 
Gallego  e  Manuel  Moreno  Chaves  contratavam  as  naus 
S.  Julião  e  Nossa  Senhora  do  Vemimento,  postas  á  véla, 
por  25:500^^000  réis. 

Em  1626  o  casco  de  um  galeão  de  500  toneladas  com 
mastros  de  traquete,  mastro  grande  de  mesena,  contra- 
mesena,  e  cevadeira,  leme,  canoa,  e  quatro  ancoras  custa- 
va 900^^000  réis,  e  apparelhado  de  tudo,  vergas,  enxárcia, 
velame,  sol)resalentes  com  vinte  peças  de  artilheria,  com 
munições  e  mantimentos  para  110  homens  de  mar  e  160 
de  guerra,  providos  para  seis  mezes,  e  pagos  de  soldo  pelo 
mesmo  praso,  valia  :31:800í5ÍOOO  réis.  O  custo  de  uma 
nau  de  três  cobertas,  prompta,  com  24  peças  de  bronze, 
munições,  e  viveres  para  1 50  marinheiros  e  300  soldados, 
era  orçado  em  48:530^00  réis*  O  soldo  do  mestre  e  do 
piloto  era  de         réis,  o  do  contramestre  e  do  sota 

1611,  fl.  15  e  iò,-^Additamento8  aos  Quadros  Novaes,  pelo  sr.  Ge* 
'  lestíno  Soares,  tom.  iy,  pag.  2S0  e  221. 


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DM  SBGOLOS  XYH  £  XVIll 


81 


piloto  réis,  e  o  do  guardião  20^1000  réis.  O  escri-  nwiatafe 

vau,  o  (li^penseiro  e  o  barbeiro  venciam  S^JOGO  réis,  o  ca- 
pellão  I80OOO  réis,  o  cirurgião  18(^000  róis,  os  carpiu- 
leiros  iléOúQ  réis  cada  lun»  os  calafates  1741000  réis,  e 
o  limoeiro  i£MH)00  réíB.  O  condestavel  da  artiUiería  tiiÁa 
1^80  réis  mensaes,  e  cada  bomhardeiro  Í^OOO  réis. 
Dos  marinheiros  recebia  cada  um  14^800  réis  por  toda 
a  viagem,  0^730  réis  cada  grumete,  e  4^^456  réis  cada 
pagem.  O  capiíão  vencia  de  soldo  lOOvVQOO  réis»  e  cada 
flokhdo  de  infòntería  44KHH)  réis.  O  soldo  do  ataxurante 
em  IQ^i  não  excedia  100  escudos.  Calculava-se  em  réis 
Í2Í00O  o  preço  de  cada  raçKo*. 

Em  1027  a  enxárcia  encommendava-se  nas  comarcas 
de  Saatarem,  de  Coimbra,  e  de  Moncorvo»  mas  a  colheila 
tío  diegava.  O  panno  das  vélas  lavrava-ee  na  terra  da 
Maia,  mas  era  pouco  para  duas  naus.  As  tres  iuodições 
da  coròa  não  podiam  ajíromptar  as  peças  de  bronze  pre- 
cisas para  doze  galeões  e  quatro  naus»  e  os  armazéns  adiar 
m-se  vasios  de  munições»  qoe  iam  C(miprar-se  a  Hs* 
caia.  Â  pólvora  'vínlia*  tambm  de  fóra.  Eram  necessários 
4:920  marinheiros  e  3:!20  soldados,  e  n5o  se  esperava 
recruta-los  em  seis  mezes,  nem  se  contava  apurar  o  di- 
ofaeiíio  mdi^pensavel  para  as  ajudas  de  casto»  soldos,  e 
nmdias.  Esta  dedlaaQio  nio  era  nova.  Em  1906»  saãido 
o  conde  da  Feira  para  a  lndla«com  uma  armada,  perdêra 
quaBi  todos  us  iimn  íos  por  mal  apparelhados  v  tripulados. 
Mlimm  marinbsiros  e  artiUieiros  práticos»  e  no  aperto 
tançomkwndtei  dl^primeim  que  apparadam.  Em  cfih 


^  Thomé  Cano»  ÂrU  para  fatriear  y  apartar  nauSj  eU.,  pag.  43 
•  Ui.— Bibeiío»  Dkiertoffiú  Gknmohgiea,  tom.  v»  pig.  ZUL-^-^Cu* 
nimãÊdmdê^ót^éMoma,  ptg.  W  «  iei;*H>M«Us»  íImmm 
dd  Marinha  Portugmza,  tom.  11,  part  i,  pag,  M  e  M. 

ffOM  T  6 


9È  UISTOBU  DE  POBTUGAL 

iMate  tras  epochas  uma  nau  portugaeza  defendia-se  de  tres 

e  de  quatro  naus  inimigas  pelo  valor  do  capitSo  e  das 
guariiivues.  Desde  que  a  gente  costumada  á  vida  mari- 
tima  e  capaz  de  ai&'ontai'  trabalhos  e  tormentas  escas- 
seou, a  honra  da  nossa  bandeira  padeceu  opprobrios*  Os 
doentes,  sem  camas»  sem  remédios,  sem  Ihnpeza,  e  sem 
consolações,  raras  vezes  escapavam  á  morte.  Embarcan- 
do creanras  e  caniiioiíezes  boçaes,  á  forra,  e  amarrados, 
não  era  para  admirar,  que  o  medo  os  paralysasse  aos 
primeiros  tiros.  PromeUeu-se  soldo  por  inteiro  e  maior 
que  o  antigo  aos  bons  marinheiros,  mas  nem  assim  con- 
correram. Em  1638  as  pagas  corriam  tão  alrazadas,  que 
o  governo  nào  achava  capitães,  nem  homens  do  mar  ex- 
perimentados K 

Na  luta  prolongada  contra  os  hoUandezes  os  effeitos 
d'estas  causas  de  inferioridade  cada  dia  se  tornaram  mai^ 
sensíveis.  A  medida  que  elles  progrediam  enriquecidos 
com  os  nossos  despojos,  atrazavam-se  e  decaíam  em  Por- 
tugal as  artes  navaes  privadas  de  estimulo  e  como  cpie 
desamparadas.  Os  navios  dos  Estados  Geraes,  mais  bem 
construídos  e  appareUiados,  mais  razos  e  ligeiros,  melho» 
res  de  bolina  e  com  mais  panno,  qaasi  seiíiiu  e  alcança- 
'  vam  supplantar  os  poi  iuguezes,  que  em  1633  não  tinham 
ainda  mastaréus  de  joanetes,  nem  vélas  de  estáes.  A  ar- 
tilhería  neerlandeza,  de  maior  calibre,  e  servida  por  bom- 
bardeiros hábeis,  e  as  suas  equipagens  compostas  de  mari» 
niieiros  excellentes,  lutavam  com  vantagem  contra  as  nos- 
sas naus,  que  não  podiam  corresponder  com  igualdade  á 
certeza  dos  thros,  nem  á  rapidez  e  perfeição  das  mano- 

1  Curí09idade$  de  Gonçalo  de  Sousa,  pag.  32,  35,  i98  e  160.  — 
Megacion  en  favot*  de  la  cmpama  de  la  índia  ormUU  por  0uarta 
Gomes  SoUia^  pag*  7  t. 


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DOS  SÉCULOS  XVil  £  XVllI  83 

bras,  e  í|ue  sobresaiam  sómente  nas  abordagens  travadas  umm 

corpo  a  corpo*.  Jj^ 

As  perdas  padecidas  nos  sessenta  auiios  da  dunuuavào 
hespanhola,  calculadas  cm  mais  de  oitenta  e  seis  embar- 
cações e  em  mais  de  30:000  contos  da  moeda  da  epocha, 
diminuíram  o  poder  naval  da  coròa  portugueza  em  todos 
os  mares,  que  antes  a  sua  bandeira  assobet  hava.  As  for- 
midáveis forças  marítimas,  que  sustentavam  na  índia  um 
kq^erio  tão  desproporcionado  para  os  nossos  meios,  de* 
dinaram  rapidamente,  ao  passo  que  os  holiandezes  só  no 
espaço  de  nove  annos  (de  4598  a  4607),  mandaram  ao 
oriente  cento  e  treze  navios,  numero  muito  superior  ao 
que  podiamos  oppor-lhes.  Os  vice-reis  e  governadores 
envidaram  esforços  quasi  heróicos  para  susterem  o  col- 
losso  na  quéda,  mas  tudo  se  declarava  contra  nós,  e  as 
proezas  de  Ruy  Freire  de  Andrade  e  de  outros  capitães, 
dignos  continuadores  dos  grandes  feitos  das  primeiras 
epochas,  foram  os  últimos  clarões  degloria,  que  viu  aqueiie 
período  de  tristezas.  Depois  seguíu*se  a  noite  da  deca- 
dência. As  naus  dos  neerlandezes  senhorearam  o  commer- 
cio  da  Asia  e  do  Brazil,  e,  vencedoras  nos  combates,  en- 
grossaram as  riquezas  à  custa  lia  ruiiia  de  Portugal'. 

A  táctica  naval  pouco  havia  progredido  também,  con- 
eorrendo  para  a  atrazar  as  mesmas  causas,  que  tinham 
enfraquecido  a  nossa  marinha  desde  4585*  As  esquadras 
navegavam  em  uma,  ou  em  muitas  columnas,  segundo  o 
numero  dos  vasos.  O  logar  do  general,  ou  do  almirante 
era  no  centro  da  linha  de  marcha,  ou  de  batalha.  A  capi- 
tania trazia  de  dia  bandeira  larga  e  de  noite  pharol  á  pô- 


1  QuiDteUa,  Mnaes  da  Marinha  Portu^za,  tom.  i,  mem.  i.— 
O  Panorama^  vol.  iv. 

2  Uiidem,  ibidem. 


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81 


HlâlOBl  D£  POUTUGÂL 


Marinha  pa.  Os  coml)(>ios  niivegavain  ;i  sotavento,  on  a  barlavento 
jjj^  da  esquadra,  cuiiíoime  as  ciicumstancias.  O  principio 
fundamental  da  estratégia  consistia  no  ataque  em  cortar 
mna  parte  da  Unha  contraria,  rodeando-a  de  forças  supe- 
riores» e  na  defeza  em  tomar  posições,  que  inutílisassan 
aquella  manobra  sabida,  voltando-a  contra  o  inimigo.  Na 
expedição  do  mai*qucz  dc  Santa  Q*uz  aos  Açores  em  1582 
a  Victoria  da  armada  castelhana  nas  aguas  de  Villa  Franca 
do  Campo  foi  devida  â  habíl  applícação,  que  elle  deu  a 
estas  n  as  enlSo  communs.  Strozzi  e  os  francezes  acha- 
vani-s(^  a  barlavento,  e  vinham  arribando  ciii  pupa  soijre 
os  liespanhoes.  Estes,  seguindo  o  bordo  fechados  á  boli- 
na, transpozeram  a  Imba  contraria,  de  modo  que,  virando 
ajudados  do  vento,  ficaram  a  barlavento.  Santa  Cruz  pele- 
java no  centro  a  bordo  do  galeão  S.  Martinho^  que  monta- 
va sessenta  peças  e  oitocentos  arcabuzeiros,  e  tinha  as  ga- 
vias  guarnecidas  de  soldados  e  de  pequenos  canhões.  Nos 
extremos  da  linha  combatiam  algumas  das  suas  melho- 
res naus.  Um  pouco  a  sotavento  estavam  quatro  navios 
de  reserva,  e  ainda  mais  a  sotavento  as  em])arcações  me- 
nores. A  esquadra  de  Filippe  II,  muito  supt  i  loi  em  arti- 
llieria,  soube  aproveitar-se  da  vantagem.  As  baias  das  ba- 
terias e  o  fogo  mergulhante  das  gavias  arrasaram  os  cas- 
cos, a  mastreação,  e  as  guarnições  contrarias*. 

Nas  pelejas,  em  que  entravani  gales,  estas  offereciam 
sempre  a  prôa  a  fim  de  cobriiuMii  os  remeiros,  traziam 
as  velas  carregadas  para  prevenir  incêndios,  e  para  inves- 
th*  de  perto  o  inimigo  mesmo  contra  o  vento.  N^aquellas 
occasiões  os  forçados  remavam  com  extremo  vigor,  espe^ 
cialmente  quando  se  operavam  moviuientos  decisivos.  A 

1  Qnintella,  Ánnae$  âa  Marinha  Pofiugueza,  tom.  t,  mem.  K— 
O  Panorama,  voL  iv. 


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DOS  SfiCOLOS  XVII  fi  tVlII  86 

grande  dextreza  couâistia  em  abalroar  os  conti  arios  em  MamiMi 
lioba  obliqua,  oa  perpendicular  ao  meio  do  costado,  a  fim 
de  lhe  quebrar  os  remos  e  dizimar  as  chamas  descoher^ 

tas  aos  tiros  dos  castellos,  e  para  lanç^-ír  golpes  de  gente 
no  convez.  O  choque  (lo  esporão  ui^rombava  o  casco  das 
galés,  se  as  não  metiiam  a  pique.  Tornavam-se  fáceis  para 
das  as  manobras,  que  os  navios  de  vela  não  ousavam 
arriscar  em  presença  do  inimigo.  Movidas  a  remos  podiam 
chegar-se  ao  vento,  e  loiiiai  a  direcção  mais  favorável.  Os 
navios  redondos,  ou  as  naus,  galeões,  urcas,  e  cai  ícK  as 
pela  âua  construcçâo  torpe  e  defeituosa  moviam-se  e  vi- 
ravam com  grande  trabalho.  Pesadas»  como  verdadeiras 
Gidadellas  boiantes,  e  carrepdos  de  artilheria  desde  as 
gavias  até  á  tolda  e  ás  cobertas,  se  acaso  similhavaui  vol- 
còes  em  irupção,  perdiam,  quando  accommettldos  por 
vasos  mais  leves  e  veleiros»  todas  as  vantagens,  e  oífe* 
reeiam  um  alvo  quasi  immovel  aos  tiros  dos  contrários. 
Aquelles  cascos  curtos  e  alterosos  com  o  tombadilho  e  o 
Castello  de  proa  muito  elev.idos,  com  n  mastro  de  mezeiía 
pouco  maior  que  o  de  uma  lanclia,  aonde  a[)erias  se  en- 
funava uma  velinha  triangular,  com  os  mastros  grande  e 
de  traquete  sem  mastaréus  de  gavia»  e  o^upez  quasi 
tSo  alto  como  o  mastro  do  traquete,  é  daro  que  nio  po- 
diam ter  a  velocidade  precisa  para  nianobrarein  diante  de 
vasos  muito  mais  ligeiros,  mesmo  depois  de  introduzidos 
os  aperfeiçoamentos,  que  no  século  xvn  melhoraram  um 
pouco  assuas  condições  ^ 

•Resta-nos  apontar  succintamente  o  estado,  em  que  se 
achava  a  defeza  maritioia  do  reino.  Até  aos  fins  do  sécu- 
lo XIV  a  enti  ada  do  Tejo  conservou-sc  aberta,  e  D.  Fer- 
nando em  IdSI  teve  de  mandar  recolher  em  Sacavém 

1  Quiiitella,  Antuies,  tom.  i,  ukein.  i. 


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I 


86  HISTORIA  DE  PORTUGAL 

HariDbA  todos  OS  iiavíos  com  as  p6pas  voltadas  ao  rio  guameci- 
guen  a  ^  engenhos  usados  no  seu  tempo,  e  de 

fechar  a  entrada  com  duas  grossas  cadeias  de  ferro  para 

impedir  a  nrmada  castelhana  de  rorl  ir  os  soccorros  a 
Lisboa.  O  mestre  de  Aviz,  advertido  pela  experiência,  es- 
colheu o  sitio,  aonde  as  duas  margens  do  Tejo  se  aper* 
tavam  mais,  e  levantou  na  do  sul  uma  bateria  ao  lume  de 
agua.  É  provável  que  o  seu  plano  fosse  construir  outra  na 
margem  do  norte,  mas  não  chegou  a  realisa-lo,eD.  Duarte 
e  D.  AiTonso  V,  não  se  occuparam  doesta  obra.  D.  João II, 
mais  cuidadoso,  augmentou  o  forte  de  D.  João  I  com  uma 
bateria  alta,  e  determinou  erguer  na  ponta  fronteira  de 
Belém  a  torre  de  S.  Vicente,  cuja  planta  riscara  o  chro- 
nista  Garcia  de  Rezende,  a  fim  de  cruzar-  com  os  d'ella  os 
fogos  da  Torre  Velha  de  Caparica.  A  morte  veiu  atailia-io, 
mas  D.  Manuel  executou  o  risco,  e  o  seu  successor  con- 
cluindo. D.  JoKo  III  convencido  da  necessidade  de  fortifi- 
car tnmbem  a  barra,  traçou  um  mesquinho  forte  sobre 
as  rochas  na  parte  do  norte  da  foz  do  Tejo.  O  desenho 
pareceu  acanhado  á  regência  da  menoridade  de  D.  Sebas- 
tião, desenvolveu-o  niais,  e  fez  a  torre  de  S.  Julião.  Em 
1578  lançaram  os  governadores  do  reino  os  alicerces  da 
de  S.  Lourenço,  então  chamada  da  «Cabeça  Secca»,  e  hoje 
do  «Bugio»,  e  Filippe  II  acabou-a.  D.  João  lY  em  1641 
niandou-a  aperfeiçoar,  coníiando  ao  benedictino  João 
Torriano  os  trabalhos  mais  importantes  K 

Quando  a  esquadra  do  marquez  de  Santa  Chiz,  com* 
binada  com  as  tropas  do  duque  de  Alva,  investiu  a  barra 
em  1580,  a  deíeza  dos  partidários  do  prior  do  Crato  con* 

1  Fernão  Lopes,  Chrontm  de  EJ-Boi  D,  Pedro,  cap.xxvi. — Árchivo 
Pittoresco,  vol.  v,  anao  de  1862,  50,  pag.  233  e  234. — Memoria 
das  Armas  Castelhanas,  cap.  lu,  pag.  16  e  22,  e  cap.  iv,  pag.  23* 


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BOS  SÉCULOS  XVll  £  IVIII  87 

sistin  em  uma  linha  de  navios  muito  juntos,  cstondiíla  por  Maruua 
um  e  outro  lado  da  torre  de  Belém  com  a  fortaleza  no 
centro,  e  alcançando  de  uma  á  coitra  ponta  da  terra,  A 
torre  jogava  com  tres  baterias,  e  as  embarcações  tinham 
os  canhões  assestados  á  proa  em  andares  e  v.u  arulas  de 
madeira.  Na  frente  de  todos  os  vasos  destacava-se  o  im- 
meoso  vulto  do  galeão  Bota  Fogo,  Herrera,  louvando  esta 
ordem  de  batalha,  que  a  venalidade,  e  nio  a  força  tomou 
inútil,  acrescenta,  que  os  portuguezes  se  mostraram  com 
ella  \t  rdadeiros  homens  de  guerra. 

Nos  sessenta  anims  do  governo  hespanhol  algumas  pro- 
videncias se  adoptaram  para  acudir  á  defeza  marítima. 
Ordenou  £L-Rei,  que  se  reparassem  as  fortificações  da 
ilha  de  Santa  Maria,  da  villa  de  Caminha,  e  da  de  Buar* 
cos,  p  que  se  provesse  ;i  segurança  dos  togares  da  costa 
mais  expostos  com  gente,  anuas  e  capitães,  mas  o  me- 
lhor e  mais  forte  escudo  de  nossas  praias  tinham  sido 
sempre  as  amadas  de  guarda  costa,  e  essas  estavam  re- 
duzidas a  um,  ou  dois  cascos  de  galés  podres  e  desarmar 
das,  emquanto  os  hollandezes  insultavam  os  portos,  e 
ameaçavam  a  barra,  e  os  chavecos  dos  piratas  barbares- 
cos  repetiam  os  saltos  e  os  roubos,  matando  e  captivando 
os  moradores   este  grau  de  fraqueza  e  de  declinação 
haixára  o  poder  naval  portuguez,  t2o  opulento  e  invejado 
ainda  em  li>78,  como  provara  a  frota  com  que  D.  Sebas- 
tião passou  a  Africai  Km  menos  de  sessenta  ânuos  tudo 
se  esvaeceu,  e  do  passado  do  grande  século  vivia  sóm^te 
a  memoria  como  accusação  viva  e  tremenda  dos  erros  e 
misérias  do  presente. 

i  Cartas  regias  de  26  de  feTeieíro  e  8  de  maio  de  1818^  de  7  de 
maio  de  1620,  de  2&  de  maio  de  1622  e  de  5  de  agosto  de  1623w^ 
Carta  legia  de  6  de  julho  de  1629. 


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CAPITULO  in 


POSSESSÕES  ULTR.ÍMARIXAS  DA  AFiilCA 
£  DA  ÀMmOA 

t 

Importância  dos  descobnBoeatos  dos  porUigaezes  no  século  iv.  O  iulaiile  D.  íicori* 
RaiAei    tu  ]Mnefcnui(a.  Oj^nHleB  dos  geographot  antigoi  ê  da  meia  ida* 
de  Mbre  a  navigafio  do  AUanlieo.  ^  60  Eanncs.  —  Sagres.  Nom  prapwioi  m 

dias  do  infante  n  nos  rpínado»  d(í  AflTonso  V  e  D.  JoSo  11.  —  Pensamento  religioMi 
politico  e  coiuinercial  das  navegações  porfii?Tiezas.  Systema  dr  rol.-mi^rií  "ío  reral- 
mente  seguido.  —  As  ilhas  da  Madeira  c  Porto  Sanlo.  —  O  arctapelogo  de  Cabo 
fmàt.^àà  tmt  de  Gitad.— O  mpto  da  Mídb.— Ae  ilhaa  deS.  TiMMé  e  Pite- 
dpe.  —  DescobiiaMBto  do  Congo.  Occupaçfio  da  costa  de  Annoia  e  Bengiulla.  — > 
Hostilidades  o  conquistas  dos  hollandpzrs.  Estado  decadente  c  precário  das  pos*  • 
se&sOes  da  Africi  nrcidfntal. —  O  Brazil  e  <tias  npít.nnia-i.  HeseovolvimeoliO  da  li> 
qaen  de  aiguma».  Atrazo  de  outras.  Uau^  geracj»  úc  joraJjsação. 


A  accfio  "verdadeiram^e  europea  do  reino  de  FortiF 

gal  principia  com  as  primeiras  expedições  e  conquistas 
africanas.  O  pequeno  paiz  occidental  desde  esse  iM  iiodo 
todos  os  dias  m&creve  o  nome  no  livro  dos  progressos 
hninaiios,  ergoendo*se  do  berço  guerreiro,  e  saindo  a 
cnutar  os  mares.  Se  até  aquelle  dia  fôra  só  Portugal,  isto 
é,  uma  provim  la  emancipada  da  Hespauha  por  longa  se* 
rie  de  lutas  lieroicas,  depois  da  sua  participação  decisiva 
DOS  acontecimentos,  que  transformaram  a  sociedade,  con» 
Tertethse  em  mu  dos  mais  gloriosos  obreiros  da  eiviiisa* 
ção,  predominando  pela  intellígencia  e  com  o  exemplo 


90 


HISTOBIA  DE  POHTCGAL 


para  o  êxito  da  mais  audaciosa  empreza  a  que  podia  atre- 
ver*se  o  génio  de  uma  nação,  e  gravou  com  o  punho  de 
seus  navegadores  talvez  a  mais  fonnosa  pagina  dos  an- 

iiaes  do  mundo. 

-  Ropresontnnie  do  porvir,  d»M*xnii-s»»  ç^imr  pela  fé,  e, 
apesar  de  tuo  resumido  em  território  e  população,  cou- 
be-lhe  na  historia  o  feito  insigne  de  réalísar  com  seus 
pro(figiosos  commettímentos  a  hypotbese^  de  que,  devas- 
sadas as  solidões  desconhecidas  do  Atlântico,  poderia  pa- 
tentear á  Em  opa  o  caminho  marítimo  das  regiões  orien- 
taes,  hypothese  quasi  geralmente  comhatida. 

Portugal,  o  executor  predestinado  dos  successos,  que 
iniciaram  a  grande  revolução  começada  pelos  descobri- 
mentos, deveu  os  seus  meios  de  acção  ao  poder  naval, 
aperfeiçoado  por  D.  Diniz,  e  á  dilatação  das  relações  com- 
merciaes,  todos  os  annos  ampliadas,  que  famiUahsaram 
os  seus  habitantes  com  os  progressos  náuticos  e  com  as 
temeridades  felizes.  A  frequência  das  nossas  viagens  ás 
costas  africanas  .ilcm  do  estreito  na  primeira  iiiclade  do 
século  XIV  é  um  facto  lioje  averiguado.  Antes  do  aimo  de 
i636 já  as  expedições  haviam  transposto  o  cabo  de  «Nun», 
reputado  a  extrema  baliza  dos  navegadores.  As  vélas  de 
Affonso  IV  descobriram  e  conheceram  as  Canárias  quasf 
um  stíciiló  ;mtes  do  reinado  de  D.  João  1,  cortando  as 
aguas,  que  a  opinião  dos  sábios  e  a  tradição  vulgar  suppu- 
nham  o  sepulchro  de  quantos  se  arriscassem  a  suica4as^. 

1  Memoria  do  académico  Costa  de  Macedo  sobre  as  navegações 
dos  portuguezes,  tom.  vi,  part.  i  das  Memorias  da  Academia  Real  das 
Sdeneias  de  Lisboa.— t)ocumenios  extrahidos  dos  inanuscriptos  au- 
tographos  de  Bocácio,  descobertos  por  Ciampi  na  Bibliotheca  Maglia- 
bectiiana  de  Florenra,  citados  pelo  mesmo  académico  nos  seus  aJ- 
ditamentos  publicados  eui  1835  no  tom.  xi,  part.  ii  das  Memorias 
da  Academia, — Re}  naldo,  ^nn.,  tom.iv,  pag.  211,  col.  2.* 


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1 


DOS  SÉCULOS  X\1I  K  XVIII  9i 

Mas  tentativas  sem  piano,  embora  afortunadas,  pas-  PosMssses 
sam  despercebidas,  e  quasi  nunca  deixam  vestígios. 
O  grande  vulto  do  infknte  D.  Henrique  domina  a  epo- 

cha  ennobrecida  pelos  seus  commettimcníos,  porque  a 
idéa  6  a  prosecuçao  foram  exclusivamente  d'elle.  Gil  Ean- 
nes»  sem  a  fé  e  a  firmeza,  mantidas  em  tantos  annos  do 
esforços  mallc^dos,  nunca  teria  dobrado  o  cabo  Boja- 
dor, e  o  oceano  talvez  continuasse  a  esconder  por  mui- 
to tempo  os  segredos  du  íuturolo  iiilaiite  lutou  com 
fortes  opposiçôes,  e  venceu  obstáculos,  que  teriam  des- 
animado outro  menos  convencido,  ou  menos  resoluto.  O 
risco  e  todos  os  sacríficios  carregaram  sobre  eile.  Ne- 
nhum soberano,  nenhum  particular  poderoso  o  coadju- 
vou, e  nuiica  pensamento  mais  alto  nasceu  flf»  pi^incipios 
tão  modestos.  As  diligencias  vâs  de  muitos  aimos  pare- 
ciam justificar  as  censuras  e  as  murmurações,  que  accu- 
savam  de  inútil  e  de  perigosa  a  carreira  mandada  rom* 
per  por  elle  aos  seus  navios.  Os  ignorantes  diziam  que 
tentava  a  Deus.  Os  doutos  sorriam-se  compadecidos  da 
Chimera  das  navegações  intentadas. 
'D.  Henrique  permaneceu  inabalável.  Tudo  o  contraria- 
va, até  a  estreiteza  dos  meios  pecuniários,  desproporcio- 
nados para  a  vastidão  de  lacs  planos.  Quando  os  encetou 
eia  senhor  da  Covilhã  e  oitavo  governador  e  administra- 
dor da  ordem  de  Gbrii»to,  e  para  os  subsidiar  nâo  pos- 
suía mais»  do  que  as  rendas  do  ducado  e  do  mestrado. 
Depois  as  ilhas  povoadas  pelos  donatários  e  o  commer- 
cio  das  costas  africanas  soccorreram-o  bastante.  Dispondo 
no  começo  de  recursos  relativamente  acanhados  para  um 
feito  colossal,  não  admira  que  os  compatriotas  condem- 
nassem  quasi  como  delírio  a  ousadia  de  o  mpreben- 
der.  Raras  vezes  escapam  á  nota  de  loucos  os  homens» 
que  se  antecipam  ao  século  e  ás  idéas  communs.  A  luz 


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M  BlSTOaiA  D£  POBTUGAL 


foftSMsões  que  o  esclarecia,  era  muiií)  viva,  porém,  para  se  apagar 
jidiiiiiiuih  n  ^  sopro  do  orguliio  scieiíUlico,  ou  dos  «cepticismo  bo- 
çal»  e»  íasistiodo,  foi  ak>  longe  na  senda  rasgada,  que 
deixou  o  caminho  aberto  aos  navegadores  de  D.  Mo  D, 
como  estes  deixaram  entrecerradas  também  as  portas  do 
oriente  a  Vasco  da  Gama  c  a  D.  Maijuel. 

Querem  alguns  que  os  resultados  obtidos  por  D.  Hen- 
nque  fossem  casaaes,  e  unicamente  derivados  de  uma 
snccessão  de  lances  ditosos.  Òutros,  citando  escriptos  e 
vagas  tradições  de  antigos  auclores,  não  duvidaram  ames- 
quinhar-llie  os  esforços.  Damião  de  Goes  refuta  a  le- 
viandade fios  primeiros,  altribuindo  com  motivo  a  um 
pensamento  altumiado  pelo  estudo  a  iniciativa  e  a  conti>  . 
nuação  das  navegações  *,  A  admirado  geral  e  o  applauso 
dos  homens  notáveis  dos  séculos  xv  e  xvi  aLtestam  a 
prioridade  dos  nossos  descobrimentos,  e  respondem  vi- 
ctoriosamente  aos  segundos^.  O  infante»  mandando  seus 
melhores  capitães»  nlio  se  conflava  do  acaso»  e»  sabendo 
o  que  buscava,  dirigia  sempre  em  eq)iríto  a  derrota  até 
ao  termo  desejado. 

Duas  opiniões  dividiram  a  anliguidade  e  os  doutos  nos 
séculos  seguintes^  A  menos  seguida,  invocando  a  aucto- 
ridade  de  historiadores  e  de  geographos  gregos  e  ronuh 
nos,  n3o  só  reputava  exequível,  mas  assás  curta  a  cir» 
cumnavegaçHO  da  Africa.  Pedro  de  Ailly,  pui  cxrmplo, 
fondado  em  um  ti  ecUo  de  Slrabão,  suppuuba  a  eiUremi- 

1  Damiio  de  Goes,  Chrmiia  do  Príncipe  JD»  Mo,  cap.  vii» 
*  Atem  do  testemunlio  dos  capellSes  de  Bettencourt,  do  de  Ga- 
dainosto,  de  Fra  Mauro,  de  Martin  Behaim,  de  Poggio,  de  Manar- 
di,  Bernardo  SOvanus,  Toacanelli,  e  Comines,  temos  ainda  o  de  Bb- 
dró  Marlyr  de  Anghiera  na  ava  carta  a  PompeoioLoBtasemselsin- 
tapo  de  1497,  e  o  de  Vivés,  na  aua  obva  intttitlada  Be  JCtmiKfÊk 
jlfflíftiit,  dedieada  a  D.  Joio  m  em  julho  de  1531. 


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DO»  SÉCULOS  XVII  B  JIVIII  93 

dade  da  península  ibérica  separada  apenas  das  índias  p  ^^^f^^T^et 
oríentaes  por  uma  pequena  distancia  */Rogero  Bacon, 
abraçando  o  voto  de  Aristoteíes  e  de  Séneca,  também 
cuidava  que  o  mar  intci  posto  entre  a  costa  occidental  da 

Hespanha  e  o  orienta  i)0(lei  ia  ser  atravessado  com  vento 
favorável  em  ;il«nins  )lias/A!ferf?any,  astrónomo  do  sécu- 
lo XI,  e  Averroes  no  século  xu  afiançaram  o  mesmo  ^. 
Mas  as  idéas  scientificas  mais  approvadas  asseguravam, 
pelo  contrario,  que  ninguém  alcançaria  montar  o  cabo 
Bdador,  acabando  n'elle  os  limites  da  navegarão  possi- 
ver«Alem  (exclamavam  até  os  pilotos  mais  ousados),  nío 
existe  srente,  nem  povoariln,  e  a  terra  nreiíos.i,  cumo  os 
desertos  da  I.ibia,  descobre-st*  nua  do  liervas  c  arvoredos 
e  requeimada  de  séde.  O  mar  é  tão  baixo,  que  uma  légua 
distante  das  praias  n3o  mede  uma  braça  de  fundo,  e  as 
correntes  precipitam-se  tão  fortes,  que  arrastam  e  tragam 
os  naviosi».  Os  árabes  tinham  posto  o  nome  de  «mar  te- 
nebroso >xa  esta  parte  do  Atlântico,  e  Edresi  ha\ia-a  de- 
scripto  com  as  cores  de  uma  imaginação  assustada.  O  na- 
vio, que  o  navegasse,  colhido  na  escuridão  (dizia  elle), 
seria  afundado  por  vagas  enormes  encapelladas  pelos  fu- 
racões e  tempestades.  Para  maior  espanto,  milhares  de 

t  Estes  andores  enomeiaâos  por  Goes  na  Qmmua  do  Prina^ 
D»  João,  cap.  vn,  estSO  longe  de  representaram  na  iniciativa  dos 
descobrimentos  o  papel,  que  elle  lhes  attribue,  mas  forani  de  certo 
as  fontes  da  opinião  a  que  alludimos.  Alem  da  viagem  de  Menotan 
desde  o  estreito  de  Gibraltar  até  ao  mar  Roxo,  e  do  périplo  da  na* 
▼e§açáo  do  cartaginez  Hanon,  citado  por  Polybio,  Heródoto  apon- 
ta a  qup  Nero,  rei  do  Egj-pto,  commett^ra  aos  phenicios  desde 
o  mar  Roxo  até  a  Hespanha,  e  a  de  Sataspe  ordenada  por  Xentes 
desdn  n  Mediterrâneo  até  pelo  Oceano  ir  tocar  o  promontório,  ou. 
cabo  de  Africa. 

2  Roger  Bacon,  Opus  Majus^^g-àg.  i 83.— Aristóteles,  De  Coelo  ei 
Mundo.  Séneca,  Liv.  v.  De  Natur.  Qttestion. 


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94 


llISTOAIA  DE  PORTUGAL 


^PoàMiiòei  moiislios  líiaiiiilios  tí)rna\.iíii  uiais  liorridas  aíjUfilas  so- 
litiucs.  Ibn-S;n'd,  j  ei)ctiiido  os  mesmos  traços,  citava  as 
fabulosas  estatuas  das  ilhas  de  Khalidat,  e  a  letra  que 
mandava  volver  atrás  os  baixeis 

Os  navegantes  encareciam  na  primeira  metade  do  se* 
culo  XT  os  perigos  da  passagem  do  Bojador,  repetindo  as 
exagerações  dos  geographos  árabes/  Gomes  Eannes  de 
.\zurara,  na  Cluonica  da  Conquista  de  Guiné,  oííci  ece- 
nosum  lestemuiilio  insuspeito  eni  favor  do  que  acatj;imos 
de  expor.  O  infante  D.  lleDrique,  obrigado  a  esforçar  os 
seus  capitães  e  a  combater  a  incredulidade  geral,  dictan- 
do  em  1434  a  Gil  Eannes  as  ínstraccões  da  sua  viagem^ 
dizia-lbe  «que  o  maravilhava  o  temor  notado  em  todos» 

1  Deprehende*»  d'e8tas  opiniGes,  qm  os  árabes  nonca  naviQga- 
ram  o  Anantioo  alem  do  Bojador.  Todo  attesla  a  sua  ignorância  re- 
latíTameiite  a  estes  mares  arados  pelos  navios  portugueses  nos  sé- 
culos xnr  e  xv.  Goiriam  ácerca  d'elles  as  fiabulas  mais  absurdas.  No 
maDUserípto  intitulado  Aíduw'as*2eman,  diz-se,  que  no  Atlântico 
esdslia  a  ilha  de  SalomSo  com  o  corpo  do  rei  cneerrado  dentro  de 
um  Castello  maravilhoso.  Descrcvcm-se  volc^  de  cem  eovados  de 
altura,  peixes  de  dimensões  monstruosas,  animaes  de  formas  e  co- 
res sinj^nilaros.,  f  cidades  fluctuantes.  Era  ali  que  se  viam  os  três 
Ídolos  feitos  por  Abraham,  o  antigo  rei  dos  arab'^>  !iymiarilas,  um 
amarello,  outro  verde,  e  o  terceiro  preto.  Assevera  igualmente  o 
auctor  árabe,  que  appireciam  n'aquelle  mar  muita.s  figuras  e  cas- 
tellos,  que,  emergindo  de  repente  das  aguas,  tornavam  depois  a 
abvsuiar-stí  n'ellas.  Traduc.  de  Mr.  Sloane.  liecherches  sur  la  dé- 
converte  deg  pnys  sur  la  c^é  occidentale  d* Afrique  par  le  vicomta 
dc  Santarém,  l^ans,  1842,  introducçao,  pa^.  ci  e  cn  nota.  A  hypo* 
these  da  communicaçSo  do  Atlântico  com  o  mar  das  índias  lifin 
admittida,  porém,  alem  de  outros,  por  Ládoro  de  Sevilba  no  Ti  ae- 
cuto,  o  no  ZT  por  Pedro  de  Ailly.  Mas  tuíos  esoiplorof^iiuwa^ 
zados  do  que  Eratosthenes,  Hipparco,  e  StiabSo  suppmdiam  o  lí« 
mito  das  tenras  habitadas  muito  áquem  do  i/t  ao  norte  do 
equador. 


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DOS  SÉCULOS  XVil  E  XVIII 


95 


temor  unicamente  filho  das  asserções  de  alguns  mari-  i 
nbdFOS,  que,  fóra  da  carreira  de  Flandres  ,e  de  outros 
portos  frequentados,  não  sabiam  usar  da  carta,  nem  da 

agulha.»  Mas  lutar  contra  a  tonento  das  apprehensões 
era  diílicilimo,  e  multo  mais  quando  escriptores  insignes 
de  todos  os  paizes  concordavam  com  ellas»  e  alguns  as 
encareciam  até  em  suas  obras.  Em  verdade  nenhum  tinha 
Doções  positivas  do  prolongamento  e  dos  contornos  da 
parte  occidental  do  continente  africano  alem  do  Bojador, 
e  suspeita-se  mesmo»  que  os  cosmographos  árabes  nem 
as  Canárias  conheceram  K 

A  maior  gloria  do  infante  consistiu,  pois,  em  oppor  uma 
ioalteravel  constância  sempre  a  tantas  causas  de  desaten- 
to. Estava  .t  rasão  do  seu  lado,  mas  na  espessa  treva  que 
a  todos  encubria  a  realidade,  o  querer  e  o  voto  de  um 
só  homem  tentavam  quasi  o  impossível,  arcando  corpo  a 
corpo  com  os  erros  e  preconceitos  de  muitos  séculos,  e 
com  os  obstáculos  suscitados  pela  imperfeição,  ou  pela 
deficiência  dos  meios  práticos.  O  iiifante  não  ignorava 
fiada  do  que  a  sua  epocha  e  a  antiguidade  sabiam,  mas  o 
que  concorreu  mais  de  certo  para  lhe  arreigar  o  convenci- 
mento foram  as  informações  dos  habitantes  dos  reinos  de 
Fez  e  de  Marrocos.  A  conquista  de  Ceuta,  prologo  da  gran- 
de epocha  dos  descobrimentos,  começara  logo  em  141.) 
a  íaciiitar-lhes  o  caminho.  D*  Henrique,  investido  por  seu 
paa  no  governo  supmor  da  cidade,  alcançou  novas  e  co- 
piosas noções  ácerca  da  disposição  das  costas  e  do  inte- 

^  Azurara,  Chronica  da  Conquista  de  Guitw,  rap.  vii,  viii  e  ix.— 
Edresi,  traduccSo  de  mr.  Jaubert,  tom.  i,  pag.  10. 

*  Joaquim  José  da  Costa  de  Macedo,  Memoria  em  que  se  preten- 
de  promr  que  os  árabes  imo  conheceram  as  Canárias  antes  dos  por- 
tuguezeãj  Memorias  da  Academia  Real  das  Sciencias  de  Lisboa,  2.»  se- 
rie, tooL  I,  pait  u. 


96  HISTORIA  DB  POUTUGAL 

Postessõei  rioF  da  Africa.  Ceuta,  rica  e  mercante,  liavia  de  attrahir, 
iitramarinas  ^  ^^j^j^j^    f^^Q  alguRias  das  caravaDas,  que  atravessu- 

vam  o  Sahará,  e  as  noticias  dos  mouros  viajantes  sobre 
as  zonas  habitadas  do  interior,  nSo  só  desmentiam  em 

muitos  pontos  a  versSo  commnm,  como  desterravam  para 
o  limbo  dos  phantasmas  os  terrores  gerados  na  phaatasia 
dos  geofírniilios  *. 

Esta  luz,  embora  vaga  e  pouco  intensa,  era  suíliciente 
para  esclarecer  os  primeiros  passos,  e  para  aíTirmar  a  um 
espírito  naturalmente  intrépido  e  emprehendedor  o  bom 
resultado  de  seus  desejos.  Devemos  suppor  até,  que  o  in- 
fante se  adiantasse  mesmo,  acreditando  com  os  auetores 
inclinados' á  opinião  da  circumnavegação  da  Africa,  que 
ella,  não  só  era  possível,  mas  relativamente  curla,  wiici- 
dos  os  receios  que  a  tinham  atalhado  até  então.  De  outro 
modo  a  confiança  e  a  tenacidade  do  príncipe  mal  se  expli- 
cam. Para  negar  as  conclusões  dos  cosmographos  mus 
conceituados,  e  arrostar  com  as  repugnancias  geraes,  por 
força  deviam  preponderar  no  seu  animo  argumentos  va* 
llosos,  e  não  instinctos  cegos,  ou  suppostas  revelações  di- 
vinas. Alem  das  paginas  d(?sconheci<las  do  vulgo  dos  sa- 
bedores, D.  Henrique  colheu  seguramente  os  maiores 
estímulos  nas  idéas  religiosas,  tão  ardentes  n'aqueUe  pe^ 
ríodo,  e  nas  Idéas  de  engrandecinkonto  beMdas  com  o 
leite  da  infância  no  seio  de  uma  epocha  beroíca.  Dilatar 
a  fé,  avassallar  os  mares,  e  alargar  até  ás  índias  do  Pwfr 
te  João  o  cuimii»  rcio  portnguez,  eis  de  certo  os  pensa*- 
mentos,  que  mais  deviam  influir  n  aqueiia  grande  alma, 

>  Barros,  DefifJns,  liv.  i,  cap.  ir.  Obras  eompletus  dtí  cardeal  Sa' 
raivãj  tom.  i.  Meuioria  áeerca  do  infante  D.  Henrique  e  do»  dHOO* 
hrinwitos  de  que  cUe  foi  nuctor  no  século  XV. — DamiíU)  de  fiW^ 
Chronica  do  Pi  mcipe  D.  João,  cap.  vn. 


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DOS  SÉCULOS  xvii  E  xvm 


97 


iilomlnaDdo-lbe  de  esperanças,  realísadas  em  parte,  a  es- 
trada que  rasgou.  I 

O  li\TO  das  viagens  de  Marco  Paulo  andava  nas  mãos 
dos  eruditos  portuguezes,  e  o  tratado  De  Fim,  de  Aay- 
anmdo  LuUio,  composto  pelos  fios  do  século  xiv,  grau^ 
geára  acceitaçlío  europea.  Â  primeira  obra  pintava  as  ma- 
raviilias  do  orieiite,  e,  exallauilo  os  thesouros  do  Cathay, 
6  as  opulências  de  Gipango,  espertava  a  cubiça  e  a  ambi- 
ção dos  homens  aventorososíV^a  segunda  o  sábio  malhor- 
quino,  reprovando  como  estéril  e  ruinoso  o  systema  das 
'  cruzadas  maritimas,  propunha  contra  os  sarracenos  um 
plano  mais  hábil  e  rasoavel.  Aconselliava  que  as  armas 
^'chhstãs  a  pouco  e  pouco  os  fossem  rechassando  de  suas 
conquistas  até  os  ^rçarem  a  recolher-se  desbaratados  ao 
ponto  d^onde  haviam  [)artido.  Raymundo  LuUio  lembrava 
para  a  realisação  (feste  projecto  a  tomada  de  Granada,  a 
conquista  de  Ceuta,  e  a  occupaçãu  da  Aírica  sej)tentrional 
até  ao  £g>pto.  D.  João  I  rendeu  Ceuta,  Izabel  a  Catho- 
lica  apoderoa*se  de  Granada  mais  tarde,  e  D.  Henrique, 
combatendo  o  islamismo  nas  posições  mais  avançadas, 
em  Ceuta,  em  Taiiger  e  em  Alcácer,  apontava  ao  mesmo 
tempo  a  seus  navios  os  mares  e  costas  da  Africa  occiden- 
tal  na  idéa  de  abrir  por  elies  a  p^issagem  da  Europa  para 
as  r^ões  descriptas  por  Márco  Paulo,  dotando  Portugal 
com  o  tracto  commerciàl,  então  monopolisado  pela  Itália, 
cujas  reijublicas  eram  a  inveja  das  nações  maritimas. 

A  fortuna  auxiliou-o.  Gil  Kannes  dobrou  o  cabo  Boja- 
dor, e,  desde  esse  feito  appiaudido  pela  Europa  quasi  com 
admirado  igual  á  que  depois  celebrou  a  navegação  de 
Vasco  de  Gama,  uma  serie  de  descobrimentos  veiu  pro- 
var, que  o  luíantc  pelo  seu  arrojo  e  firmeza  soubera  ele- 
var um  pequeno  paiz  ao  maior  grau  de  iulluencia.|Os  vo- 
tos do  príncipe  cumpríram-se  na  melhor  parte.  Dilatou 

TOMO  V  .         '  7 


mmau  de  mitugal 


nuétóOM  a  fé  e  aogmentoa  o  esplendor  da  terra  natal.  Tudo  o  que 
^^^''""^  descobriu,  conquistou,  ou  ajudou  a  conquistar,  foi  por  elle 
generosamente  doado  á  ordem  de  Ghrídto,  não  reservaii- 

do  para  si  senão  o  direito  de  não  descansar,  e  a  gloria  de 
haver  feito  da  sua  pátria  o  berço  da  mais  profunda  revo- 
lução, que  o  mundo  contemplára  desde  a  queda  do  im- 
pério romano.  O  successo  confundiu  os  incrédulos  e  emu- 
deceu os  detractores.  Os  que  mais  haviam  deprimido  a 
eínpreza  converteram'4e  em  apologistas  d*ella.  Os  que  se 
tinham  afastado  nos  dias  de  incerteza  proi)ozeram  a  sua 
cooperação.  Rasgadas  pelo  desengcUio  as  m^voas  qiit'  iol- 
davam  havia  tantos  séculos  os  horisontes,  a  temeridade 
substituiu  os  receios.  Os  projectos  mais  ousados  deram- ' 
se  por  fáceis  desde  que  um  lancé  feliz  venceu  o  impossi* 
vel  imaginário. 

Datam  d'esta  epoclia  os  proí^re^sos  mais  firmes,  e,  por 
assim  dizer,  aorganisação  sK^Lcmalica  dus  descobrimen- 
tos. Fomiou-se  uma  companliia  em  Lagos  sob  a  direcção 
de  D.  Henrique  para  armar  navios  á  sua  custa,  pagando 
ao  príncipe  díireitos  fiscaes  pelas  riquezas  adquiridas.^ 
treitaram-se  as  relações  com  os  catalães  e  os  malhorquí-^ 
nos,  os  melhores  marinheiros  da  epocha.  Seria  n'estG 
período,  que  o  famoso  mestre  Jaques  de  Maioica,  tão 
versado  na  arte  da  navegação  e  na  do  fabrico  dos  instru- 
mentos e  projecção  das  cartas  marítimas  passou  a  Sa- 
gres, chamado  pelo  m£uite,  ou  convidado  pela  esperança 
de  largos  prémios^? 

*  Azurara,  Chronica  de  Guiné ,  cap.  xviii. —  Goes,  Chronica  do 
frmeipe  D.  JoãOj  cap.  viit—  Barros,  Década  i,  liv.  i,  cap.vm. — Duarte 
âilYCoattrihne  ao  livio  de  Uaroo  Paulo  o  engenhoso  úo,  que  sgudou 
iaSná»  a  deMnredâr-w  do  labyrínto  da  i^nonmeia  gúaL  D.  Hsh 
ií%ue  appUcoii»M»  oom  etíxmo  fervor  ao  estudo  da  eoamosraphia 
6  da  aalnuuHDia»  a  aUEÍÍHie-fle*tti0  o  invento  das  cartas  marítimas 


DOS  8EC0L0S  XVH  È  XtfUl 


lloina  sanccionou  o  fiicto,  concedendo  á  corôa  portu- 
gueza  a  possp  perpetua  de  tudo  o  que  desoiibrisse  alem 
do  cabo  Bojador  ^  Sagres  transformou-se  cm  verdadei- 
ro empório  mercantil,  e  os  portos  do  Algarve  foram  visi- 
tados pm*  navios  genovezes,  malhorqninos,  catalleseve* 
nesíanos.  As  viagens  prosegulram  e  adiantaram*se.  As 
télas  portnguezas  tinham  entrado  na  baliia  de  Ar^mim,  e 
passado  alem  do  Hio  Grande  e  da  tcn-a  d^  Gambia  bus- 
cada por  ordem  expressa  de  D.  Hearlque.H)s  estrangei- 
ros acudiram  a  indagar  noticias  doestas  novidades,  que 
faziam  o  assombro  de  todos,  e  carregavam  suas  embar- 
cares de  assucar  fabricado  na  ilha  da  Madeira  (povoada 
pelo  infante),  de  sangue  de  drago,  e  de  outras  mercadorias 
daf?  conquistas,^  Castello  de  Arguim  cresceu  acima  dos 
alicerctís,  e  tornou-se  a  séde  da  feitoria  creada  pat  a  o  coii- 
Iralo  dos  dez  annos  syustado  com  os  árabes,  contrato  que 
fechava  a  todos,  menos  aos  portugueses,  a  commutacão 
dos  productds  d^aquellas  regiões.  V(o  pensamento  do  m\* 
eiador  a  eolonisaçSo  devia  acompanhar  o  descobrimento, 
e  a  ají^ricnUnra  e  o  coírunercio  deviam  animar  o  trabalho 
'los  Giin  ipciis  transplaiitados  para  os  novos  climas.  Quando 
fiUleceu  D.  iienrique  em  3  de  dezembro  de  i460/acha- 
Vam-se  descobertas  as  ilhas  de  Porto  Santo  e  da  Madeira, 
dnco  ilhas  no  arch^elago  dos  Açores,  quatro  no  de  Ga- 
bo Verde,  e  muitas  léguas  de  costano  continente  africano^ 

planas.  Jaques  de  Maiorca  parece  ter  passado  a  Sagres  pdoft  aimot 
de  1437  ou  1438. — Vide  Stocklcr,  Ensaio  Hútorieo  íobre  a  origem  e 

progressos  das  mathematicaa  em  Portuyal. 

1  Bulla  de  Eugénio  IV  couíirniada  pela  do  Nicolau  V,  de  8  dc 
janeiro  de  1450,  e  pelas  dc  Calixto  III,  df^  43  do  marro  de  1455,  e 
dp  Xisto  rv  do  2í  dc  julho  de  i48i.  ArchiTo  nacional,  maç.  35, 
n."  %  da  coiieeção  de  bulias. 

*  Barros,  Demãa  i,  liv.  i. —  Qogs,  Chromca  do  Príncipe  D,  João, 
cap.  vn,  Tiu  e  dl — Azuraia,  Cmquista  de  Guiné,  v 

y. 


■  \ 


iOO 


HI8T0IIIA  DE  POBTUGAL 


PteMttses  Não  cabe  no  assumpto  qiie  nos  j  iropozemos,  nem  mes- 
mo  a  noticia  abreviada  dos  progressos  leaiisados  des- 
de 1434  até  á  data  memorável  assigDalada  peia  viagem 
de  Vasco  da  Gama*  Se  nos  demorámos  a  esboçar  os  exor- 
dios  da  grande  empresa  foi  para  tomar  bem  claros  e  de- 
finidos os  seus  mntivos  e  a  sua  indole.  As  outras  pagi- 
nas, não  meiius  iiii>lructivas,  que  revelaram  á  Europa  a 
existência  de  um  mondo  e  as  novas  sendas  dacívilísação» 
excedem  as  estreitas  proporções  do  nosso  quadro. 

O  infante,  cerrando  para  sempre  os  ollios  em  novem- 
bro de  14G0,  ao  cabo  de  quarenta  aniKJò  tle  iadi^^as  inces- 
isantes^  não  só  levara  ^uas  navegações  até  á  Serra  Leoa, 
mas  deixava  marcado  o  roteiro  para  a  continuação  d'ellas^ 
Affonso  Y,  distrahido  pelas  discórdias  civis,  pelas  suas  ex- 
pedições aus  reinos  de  Fez  e  de  Marrocos,  e  i)ela  «guer- 
ra de  Castella,  mostrou-se  menos  activo  na  t;xpluia(;ão 
dos  mares  e  costas  do  continente  africano*  Apesar  d'isso 
a  viagem  de  Pedro  de  Cintra»  e  o  arrendamento  do  com- 
mercío  das  terras  de  Guiné  por  cinco  annos  (em  i469;,  ' 
a  Fernão  Gomes  coin  a  clausula  expressa  de  descobrir 
em  cada  um  com  léguas,  adiaularam  os  descobruaeatos 
até  ao  cabo  de  Santa  Catharinal  D.  João  ^  foi  mais  longe 
do  que  seu  pae./Politico  avisado  e  adjnmístrador  hábil 
concebeu  a  utilidade  pratica  e  a  grandeza^  dás  idéas  de 
D.  llenricpie,  e  não  iiniipou  diligencias,  nem  despezas para 
apressar  a  sua  t  xccuçào,  e  colher  desde  logo  todas  as  van- 
tagens. Filho  da  grande  escola  naval  d'aquella  epocha  e 
da  anterior»  Diogo  Cam  na  primeira  viagem  achou  o  rio 
Zaire  e  o  Congo ,je  na  segunda  levantou  os  padrões  da 
'corôa  portugueza  junto  do  cabo  Negro.  João  Afionso  de 
Aveiro,  subiu  o  rio  Formoso,  e  viu  as  terras  de  Benin. 
Bartholomeu  Dias,  finahnente,  o  mais  feliz  dos  tres»  pas- 
sando alem  do  cabo  Tormentoso,  chegou  90  rio  do  In- 


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DOS  SÉCULOS  XYII  E  XVUl  lOi 

fante.  O  mais  díílicil  estava  feito.  Restava  o  ultimo  passo,  poimusm 
e  para  esse  não  faltaram  homens  intrépidos,  nem  auxi- 
lios  valiosos  ^ 

Enviára  £1-Rei  ao  mesmo  tempo  outros  descobridores 
ineumbidos  de  \isitarem  por  terra  a  índia  e  os  estados 
do  Preste  João,  de  indagarem  as  probabilidades  da  na- 
vedação  pelo  Atlântico  para  aquellas  regíQes,  de  exami- 
nareiii  os  itinerários  seguidos  pelas  drogas  e  Mercadorias 
asiáticas  encaminhadas  aos  inercndos  do  Mediterrâneo,  e 
de  tomarem  miúda  informação  de  qualquer  passagem 
conhecida  dos  naturaes  da  Africa  para  a  costa  oriental  K 
Foi  por  estes  meios  que  D.  João  adquiriu  o  conheci- 
mento do  interior  da  Africa  e  dos  paizes  banhados  pelo 
Ganges,  e  logrou  dehcar  traçada  e  aberta  a  estrada,  que 
franqueou  ao  seu  successor  o  caniiiiíio  da  India.j  Uma 

1  Barros,  Década  i,  Iít.  ii»  cap.  i  e  ii,  Itv.  ni,cap.  m  e  iv. — Da- 
mião de  Goes,  Chronica  do  Principê  D,  João  Til,  cap.  vni.— •  Garcia 
de  Rezende,  Chrcmea  doê  Valcromt  e  Intigtus  Feitot  de  M^Rei 

D.  João  JI,  cap.  xxiii,  Lxiv  o  cliv. 

2  Resende»  Cbroniea  de  El-Rei  D.  João  lí,  cap.  ul^ Informado  de 

(fue  o  Senegal  corria  por  Tonibuctu  e  Mombarce,  feiras  principaes 
dos  sertões  africnnos,  el-rei  mandou  como  f^ous  emissários  a  Tombu- 
(\\\  ('  Tiií-urol  Pero  de  Evorn  c  Gonrnio  Eannes.  Despachou  depois 
ftoilngo  Uebello,  Pero  Keynel,  c  Joúo  Collaro  a  Maudi-Mansa  um 
dos  mais  poderosos  príncipes  de  Mandinga,  e  expediu  por  ultimo 
pai"a  o  rnesino  lim  Mem  Rodrigues  para  Tombuche  e  Pedro  de  An- 
luniga  para  Toinalla  no  paiz  dos  Fullos.  Rodrigo  Rebello,  João  Lou- 
renço, Vicente  Annes,  e  João  Bispo,  versados  no  uso  das  línguas 
indiarenas,  partiram  por  sua  orilem  para  outras  terms.  Ei-Uei  escre- 
veu ao  senhor  dos  Mosés,  que  suppmiha  vizinho,  ou  vassallo  do 
Preste,  e  enviou  da  Mina  mensageiros  a  Mohamed-beu-Manzugul, 
neto  de  Muçi,  rei  deSongo.— Yide  Barros,  D^eacllto  da  Íttdta.—Ma^ 
ríz,  dialog.  iv,  cap.  D.»Fr.  Luiz  de  Sousa,  KitUnia  de  S.  Domingo*, 
part.  u,  liv.  TI,  cap.  TL — A  missSo  de  JoSo  Peres  da  GoTÍlhS  e  de 
Aflonso  de  Paiva  liga-se  cod^  este  plano  de  infonnaçOes. 


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•  ! 

m  mrOBIA  Di:  P0RTU64l< 

pMWHBes  junta  coinposta  de  afttronomo8e(M>siiK)graplio8di8tíiie^ 
atrtnurtDM  (.Qujp.|j  ^^y^^    noticias,  e&Uidava  os  aporfeiç^yamentos  dos 

instruiiieiitos  náuticos,  o  propunha  os  inventos  mais  ade* 
quados  aos  progre&so^  áà  Dav^agãcàD.  iolo  U,  quando 
a  morte  veiu  interrompe-lo,  começava  a  dispor  tudo  para 
vencer  as  ultimas  difficuldades.  Affirma-se,  que  até  o  re* 
gimentu  que  a  aimatia  liavia  de  seguir  no  descubriaieato 
da  lodia  estava  formado,  e  cré-se  que  Vasco  da  Gama  era 
o  capitão  designado  para  a  eommandar^ 

O  pensamrato  das  navegações  de  D.  Henrique  i&ra  re* 
ligioso  e  politico,  segundo  notámos.  Meditara  alargar  os 
domínios  da  fé,  levando  a  sua  luz  ao  seio  dos  povos  bár- 
baros, e  ao  mesmo  tempo  buscava  pelo  oceano  o  caminho 
mais  curto  para  alcançar  a  fobulosa  Cypcmgo  retratada 
com  tintas  tio  risonhas  por  Marco  Panio,  tomando  dire- 
cto e  exclusivo  para  Pui  tuíjal  o  commercio  da  Asia,  fonte 
da  riqueza  das  principacs  republicas  italianaS4A  alliança 
imaginada  com  o  Preste  João,  senhor  de  mn  reino  pode- 
roso 6  diristSo,  devia  afiançar  auxiliares  importantes  aos 
inimigos  do  islamismo.  As  terras  do  continente  africano 
na  sua  idea  eram  outras  tantas  escalas  para  a  communi- 
cação  da  Europa  com  as  bidias,  outros  tantos  passos  aa 
estrada  trilhada  recentemente,  estrada,  que,  desfeitas  as 
trevas,  que  a  tinham  encoberto,  promettia  Muros  novos 
a  todas  as  nações,  e  a  coroa  do  maior  império,  que  a  am- 
bição podia  sonhar,  ao  pequeno  paiz,  cuja  sorte,  e  cujas 
aspirações  quasi  l  epentinamente  iam  mudar. 

0  infante  e  D.  João  n,  confiados  nas  grandes  esperaor 
ças  da  empreza,  que  o  primeiro  iniciára,  e  o  segundo  pro- 
seguia  com  zelo  infatigável,  assentaram  as  liases  do  sys- 

,  tema  colonial  mais  accommodadas  a  estes  fins. 

1  Reiend«,  Ckromea  de  Bl^Bri  D.  Mo  U,  esp.  ccv. 


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i 


A  povoação  (las  ilhas  com  europeus,  a  creação  de  feb  Powi)«$õei 
tonas  fortificadas  á  beiramar  nas  terras  africanas,  e  o  es- 
tal>eleeimeQto  e  snccessiva  ampliação  das  relações  com* 
merciaes  com  os  sens  habitantes,  foram  os  meios  empre- 
gados nos  noventa  e  cinco  annos  decoií  idos  desde  1425 
até  i520,  epocha  em  que  prevaleceram  absolutamente 
as  idéas  suscitadas  pela  immensa  extensão  tomada  pela 
conquista  oríentâl^  eooperaçlo  do  elemento  religioso 
acompanhou  desde  o  principio  todos  os  esforços,  e  in- 
fluiu muito  no  seu  êxito.  As  igrejas,  as  missões  e  as  so- 
lemnidades  do  culto  catholico,  íallando  ao  coração  e  aos 
sentidos  de  raças  rudes  e  ignorantes»  valeram  tanto»  ou 
mais,  do  que  o  terror  das  armas,  para  estender  pelo  ser* 
tão  a  nossa  anctoridade,  fazendo  o  nosso  poder  respei- 
tado, e  tornando  a  obediência  mais  seguia.  Se  depois  das 
primeiras  décadas  do  governo  da  índia  esquecemos,  ou 
desprezámos  os  princípios,  que  tanto  favoreceram  a  colo- 
da  AíHca,  n3o  devem  deduzir-se  conclusões  pre- 
cipitadas contra  a  capacidade  do  paiz.  Os  reinados  de  Af- 
fonso  e  de  D.  João  II,  e  ainda  mesmo  o  de  D.  Manuel 
respondem  com  os  factos,  e  provam  que  soubemos  admi* 
Distrar,  como  soubemos  descobrir. 

O  systema  de  colonisação  e  de  exploração  das  novas 
possessões  seguido  pelo  infniite,  e  abraçado  por  Aífonso  Y 
e  D.  João  ti,  íoi  simples  e  apropriado  ás  circumstancias. 
D.  Henrique  dividiu  as  terras  descobertas  em  capitanias, 
e  doou-as  aos  primeiros  que  as  haviam  achado,  assegu- 
l  ando-lhes  por  meio  de  privilégios  importantes  uma  i)osse 
lucrativa,  e  íiicilitando-lhes  o  modo  de  altrahirem  cultiva- 
dores, que  fizessem  valer  o  solo  repartido  por  todos.  As 
clausulas  d'esta  distribuição  eram  pouco  onerosas,  toman* 
do  qnasi  sempre  extensivas  aos  colonos,  principalmente 
aos  du  aichipelago  de  Cabo  Verde,  os  preceitos  da  an- 


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* 


104  HISTOBIA  D£  POBTUGAL 

Pos*es8õ€á  tiga  legislação  sobre  as  sesmarias.  A  Madeira  e  Porto  Santo 
iitmiiaríiiaf  aij^ípam  O  exemplo.  O  príncipe  foniiou  na  primeira  duas  ca- 
pitanias, e  concedeu  a  do  Funchal  a  João  Goncalves  Zarco 
da  Camara,  e  a  de  Machico,  a  Tristão  Vaz.  Mediaram  seis 
aÓDOS  (desde  1419  a  1425)  entre  a  epocha  do  descobri- 
mento e  o  começo  dos  trabalhos  niraes.  Os  escrJptores 
attribuem  a  demora  ao  incêndio  ateado  nos  bosques  pelas ' 
queimadas  dos  arroteadores.  Esta  versão  parece-nos  in- 
exacta. O  intervallo  decorrido  explica-se  por  causas  menos 
extraordinárias.  Era  preciso  tempo  para  organisar  os  ele- 
mentos essendaes  da  povoação.  Não  se  inventam  hoje  vil- 
las  e  aldeias,  e  muito  menos  se  inventavam  no  xv  século  . 
O  Funchal  só  foi  elevado  á  categoria  de  villa  em  1451,  e 
á  de  cidade  em  1508,  e  a  Ponta  do  Sol  não  alcançou  os 
fóros  de  villa  senão  em  loOi.  ' 

A  cultura  depressa  prosperou  na  Madeira.  O  infante 
conseguiu  aclímar  a  preciosa  cepa  da  Malvasia  de  Candia 
e  a  canna  sacharina  da  Sicilia,  contratando  mestres  para 
ensinarem  os  processos  do  fabrico  do  assucar.  A  ilha, 
quando  Luiz  de  Cadamosto  a  visitou  em  1455,  contava  já 
quatro  povoações  princif)aes:  Machico.  Santa  Cruz.  Fun- 
chal eCamaT-n  de  Luti  os,  cumi  oitocento.s  Immens  capazes 
de  pegar  em  armas.  Era  fertilissima,  apesar  de  muito  mon- 


1  Os  âU€t(:>rps,  que  referimos,  pintaFii  a  ilha  toda  como  uma  fio- 
resta  pegada,  e  affirmam  que  o  fogo  posto  durára  sete  aniios.  Esta 
immensa  ronfla!;'rnrSo,  se  existisse,  consumiria  arvoredos  m\iito  mais 
extensos,  e  seria  impo^sivel,  que  setenta  e  dois  nniKJS  depois  os  ha- 
bitantes da  ilha  pedii^sein  a  D.  João  II  a  coníinnae-iio  da  mercê  ou- 
torgada i)or  D.  JoSo  I  de  poderem  cortar  lenhas  e  niadeiras  nos 
bosques  para  s*:mi  uso  com  a  reserva  sónienle  dos  cedros  e  teixas. 
(larta  escripta  em  Turres  Vedras  em  7  de  março  de  1493.  D.  Francis- 
co Manuel  de  Mello  na  sua  Epanaphora  Amoj-o&a,  tirada  da  relação  de 
Aleofotado,  duvida  também  do  longo  espaço  attribuido  ao  inceodiop 


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DOS  SÉCULOS  xvu  E  xvni 


10^ 


fanhosa,  e  colhia  mais  âe  S!:4S4  hectolitros  de  trígo,  su- 
bindo a  producção  do  assucar  a  á3:970  kiln^i  ammas,  e 
satisfazendo  a  do  vinho  a  mais  do  que  ao  consumo,  por- 
que se  exportavam  sobras  valiosas.  Achavam-se  estat>e- 
lecidos  na  terra  muitos  homens  ricos.  As  plantações  de 
csnna  doce  alargaram-se,  os  vinhedos  cresceram,  e  a  fa- 
bricaçân  do  assurar  augmentou  a  ponto  de  no  século  se- 
guinte renderem  os  du  eitos  do  quinto  jiagos  ao  mestrado 
da  ordem  de  Ghristo  mais  de  881:280  kilogrammas,  o 
que  snppSe  uma  produc(9o  total  de  mais  de  4*400:000 ^ 
Porto  Santo,  povoada  por  Bartbolomeu  Perestrello,  ca* 
minhou  mais  davagar,  concorrendo  muito  para  isso  a  es- 
cassez das  aguas. 

No  archipelago  dos  Açores  as  capitanias  também  fo- 
ram dadas  aos  descobridores,  e  o  plano  da  povoação  se- 
guiu os  mesmos  passos.  Repartidas  as  terras  por  casaes 
de  colonos  transpm  hidos  do  Algarve  e  de  outras  provin- 
cias»  não  faltaram  esli  angeiros  abastados,  ou  industriosos, 
que  se  quizessem  associar  á  empreza.  A  agricultura  prin- 
cipiou a  florescer,  os  baldios  romperam-se  em  diversas 
partes,  e  as  relações  mercantis  ligaram-se  com  a  metró- 
pole. Entre  os  primeiros  introductores  da  civilisação 
n'aquellas  ilhas  íiguram  por  seus  serviços  o  intrépido  Gon- 
çalo Velho  Cabral,  os  flamengos  Guilherme  Van  de  Gar, 
Jacome  de  Bruges,  Vasco  ijril  Sodré,  Duarte  Barreto,  Pe. 
dro  Barreto  da  Cunha,  e  alguns  outros.  As  diligencias  d'es- 
les  aventureiros  audazes,  e  das  famílias  convocadas  para 
os  coadjuvarem,  adiantaram  t:mto  a  obra  da  colonisação» 
que  as  ilhas  dos  Açores  no  reinado  de  D.  Manuel  já  se  re^ 

1  Navegações  de  Luiz  de  Cadamotiú,  Ramusio,  tom.  I.,  Cordeiro.— 
Hitktria  ifutt/ona,  part.  i,  liv.  m»  cap.  x  a  xnr.  ^  Barros,  Década,  i» 
IVt.  1,  cap.  m. 


iOl 


hmm^  putavsm  um  dos  mais  hellos  florões  da  corôa  do  sobei*a- 
Jínumfm  podia  iiititiilar-se  com  v<'rrlade  senhor  da  roiiquis» 

ta,  navegação  e  cuauuâmo  da  £Uiiopia>  Arábia,  Pérsia 

ejiulia^ 

.  A$  primeiras»  Ubafl  couhaddas  no  archipelago  de  Cabo 
'  Varda  foram  doadaa  por  D.  Affonso  V,  asam  como  aa  da 

Madeira  e  Porto  Santo,  e  as  dos  Açores  ao  infante  D.  Fer- 
imiido,  mi  3  de  dezembro  de  14G0,  comv  oxcliisivo  do 
frafico  e  resgato  na  terra  de  Africa  frouteira.  Paret  e  liaNer 
Biúú  seu  descobridor  o  genovez  Antonio  de  Noile»  porqua 
em  U6i  o  vemos  nomeado  capitão  donatário,  e  incum* 
bido  de  povoar  S*  Thiago  e  S.  Filippe  (depois  chamada 
do  Fo^o).  levando  comsigo  vários  creados  do  Infante  e  aU 
guraas  íaiuilius  do  Algarve.  D.  João  II,  decapitado  o  du- 
que de  Bragança  em  Évora,  fez  doação  ao  íIikiiií'  <h'  Beja 
de  todas  as  íllias  de  Cabo  Verde,  e  D.  Manuel,  quando 
subiu  ao  tbrono  em  1495  encorporou-as  nos  próprios  da 

t  CondeirOb  Hittoria  bwilma,  part  i,  liv.  iv  e  v,  e  part.  n,  liT« 
VI»  Ytt,  ym,  e  dl 

O  primeiro  províia^to  da  capitania  da  Ilha  Tmeiía,  denomi- 
nada de  Jenu  ainda  em  1460  na  doação  de  Affonso  Y,  é  datado  de 
1480,  e  recain  em  Jncome  dn  Uruge;;.  A  de  S.  Miguel  havia  sido 
descoberta  em  i444  por  Gonralo  Velho  Cabral,  commnndndor  do 
Aiiiiourol,  o  mesmo  que  em  1492  achara  a  ilha  de  Santa  Maria. 
1).  Heiunque  recompensou -o  concedendo-lbe  a  capitania  de  ambas. 
O  mais  antigo  povoador  da  ilha  de  S.  Jorge  parece  ter  sido  o  íla- 
íiiengo  Guilhernif  A''andogara  (Van  der  Gar?...)  e  o  da  riraciosn. 
Vasco  Gil  Sodi  L^.  Os  primeiros  colonisadorcs  da  ilha  das  Flores,  fo- 
ram os  castelhanos  Antíío  Vaz  e  Lopo  Vaz,  muito  auxiliados  por 
Van  der  Gar.  As  ilhas  do  Faial  e  do  Pico,  na  opinião  duvidosa  de  al- 
gmis  escriptores,  foram  aehadas.  a  primeira  pelo  commendador  de 
Almouroi,  Velho  Cabral,  e  a  segunda  peio  iilustre  Juz  de  Elira,  do* 
natario  do  Faial.  Náo  reina  menor  incerteza  áeerea  das  verdadeiras 
datas  dos  descobrimentos  nos  Ayores.  Cordeiro,  Histona  Insulana^ 
pari.  II,  liv.  VI,  VII,  vm  e  ix. 


luirúir  Km  1497  dividiu  o  mmo  rei  a  mttam 

em  duas  capitanias,  do  norte  e  do  sul,  doando  a  primeira 
a  Uiugo  Affonso,  cuntador  da  Madeira,  e  a  Beguuda  a  Jor* 
ge  Correia»  casado  com  a  íiiiia  e  herdeira  de  Antooio  de 
NoUe.  Mas  em  i505  só  existia  a  capitania  do  sul»  oa  da  Ri» 
beira  Grande,  eomeçando  as  terras  do  norte  a  ser  distri'' 
buidas  em  sesmarias  e  capellas.  Eramnmitos  e  valiosos  os 
privilégios  dus  capitães  donatários.  Alem  do  exclusivo  do 
sal  e  do  monopólio  dos  moinhos  arrecadavam  para  si  o 
duEimo  de  todas  as  vendas»  e  tinham  o  direito  de  conce*. 
der  as  terras  em  sesmaria  por  cinco  annos,  e  de  as  pas« 
sarem  a  outros  possnidot  es  no  caso  de  não  estarem  i  )- 
veitadas  dentro  d  aquelie  praso.  Apesar  de  tão  largas 
concessões  os  docmnentos  provam»  que  no  século  xvi, 
emquanto  a  povoado  correu  por  conta  dos  donatários, 
que  as  disfructavam  por  uma  vida  em  premio  de  serviços, 
ou  pur  conlialu,  ^unlenle  principiaram  a  colonisai-se  a 
ilha  de  S.  Thíago  e  a  do  Fogo,  cujas  rendas  o  tisco  arre- 
matava. As  outras  apenas  se  utiiisavam  on  pastagens  para 
o  gado  bravo 

As  providencias  dictadas  em  Ki^iO  por  D.  João  IIÍ 
apressaram  a  povoação  daí>  lUia^  de  S.  Nicolau,  da  Roa 
Vista,  de  Maio  e  de  Santo  Antão.  A  carta  regia  de  20  de 
setembro  d'aquelle  anno»  promulgada  para  activar  o  des- 
envolvimento da  populaçKo  e  da  agricultura»  mandou  re- 
partir as  terras  incultas  pelos  po\naílures  assás  abastados 
para  as  poderem  romper  e  lavrar.  Gs  resultados  não  se 
demoraram.  £m  i532  tinha  engrossado  bastante  o  nu- 

*  A  doação  das  ilhas  de  Cabo  Verde  a  D.  Manuel  encontra-se  na 
ciuiuseUftnft  de  D.  Joio  II,  liv.  xxvi,  í1. 7  e  ia.  Os  privilegies  dos 
6»pitfiM  donalaríi»  conitMn  do  livro  das  Ilhas,  fl.  69  v.  e  de  ou* 
iras  docmnentos. 


i08  HISTORIA  DE  PORTUGAL 

% 

PosMssões  mero  dos  colonos,  cresciam  e  avultavam  as  plantações,  e 
atniMiiiias  ^  prosperidade  relativa  já  era  tal,  que  o  rei  impetrou  da 
Santa  Sé  a  erecção  do  bispado  de  Gabo  Verde.  A  impor- 
tância do  trato  de  algumas  das  ilhas,  portos  de  escalenas 
derrotas  das  armadas  da  índia  e  da  America,  convídára 
muitos  mercadores  e  cavalleiros  honrados  do  reino  aes- 
tabelecorpm-se  n'ellas,  a  Rihf  ii  a  tii  aiidê,  elevada  a  ci- 
dade, todos  os  dias  se  ennol)recia  com  «'dificios  novos. 
A  tendência  para  a  (Mni^n  ação  tornou-se  Ião  poderosa, 
que  D.  Manuel  em  Í5i5  prohibiu  a  residência  na  cidade 
aos  fidalgos  e  judeus  sem  prévia  auctorísaolo  da  coròa. 
Filippe  II,  consummada  a  uni3o  pessoal  das  duas  coròas, 
declarou  em  1592  a  ilha  de  S.  Thlago  séde  e  capital  de 
todo  o  archipelago;  mas  esta  mercê  foi  como  o  ultimo 
raio  de  sol  antes  do  occaso.  As  guerras  da  monarchia 
hespanhola  com  as  potencias  marítimas  europeas  cedo 
determinaram  a  longa  serie  de  revezes,  que  forçaram  os 
portuguezes  domiciliados  em  Gabo  Verde  a  recolherem- 
se  á  pátria  arruinados,  e  os  colonos  pretos  a  Aigirem  pa- 
ra os  pontos  do  interior,  ou  a  dispersarem-se  pelas  ribei- 
ras 

Nos  domínios  de  Guiné,  aonde  a  cólon i sacão  e  a  con- 
quista directas  não  eram  possíveis,  o  infante  D.  Henrique 
adoptou  o  systema  de  occupar  com  feitorm  os  logares 
mais  apropriados  á  communicaç^o  dos  POIVr^  interior. 

A  fortaleza  começada  em  Arguim  e  o  cd^ffilo  por  dez 
annus  com  os  seus  hal>itantes  revelam  claramente  esta 
intenção.  As  bases,  em  que  decidm  assentar  a  ex])loração 
das  costas  africanas,  fundavam-se  em  dois  pontos  capi- 

*  Lopes  Lima,  Ensaios  sobre  a  Estatística  duí;  Po.s.st.s.sõc5  Portii- 
Qupzax,  part.  ii,  liv.  i,  cap.  x,  e  part.  ii,  cap.  i  a  ix.  O  bispado  úe 
Cabo  Verde  foi  t  reado  em  3i  de  janeiro  de  ioò'ò  por  Clemente  Vil. 


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DOS  ncuLOS  ivii  £  xvni 


laes.  Exclusi\u  do  IraOco  para  os  seus  navios,  e  paga-  Possessõc* 
mento  de  dii^ítos  assás  devados  de  importaçio  por  parte  "'^^'""'^"^ 
dos  indivíduos  aactorisados  a  seguirem  a  mesma  carrei- 
ra. A  convenção  celebrada  com  os  árabes  de  Argfuim  af- 
lirmava  a  primeira  clausula,  disi  nudo  que  sú  p  uh  ssem 
navegar  no  goUb  de  Guiné  e  fazer  negocio  embarcações 
do  principe,  ou  as  das  pessoas  a  quem  elle  auctorisasse 
com  esse  privilegio,  e  declarando  exduldos  absolutamente 
quaesquer  outros  intermediários  europeus  *.  As  condi- 
ções imiiuslas  á  compaiiliia  de<  Lagos,  creada  em  1444 
para  associar  a  iniciativa  cullecliva  aos  riscos  e  eventua- 
lidades da  empreza  individual»  mostram  o  preço  por  que 
0$  particulares  podiam  obter  o  favor  de  ser  admittidos  a 
participar  das  \aiilagcns  d  aquelle  commercio.  O  arma- 
dor que  punha  no  mar  uma  ou  mais  caravelas  á  sua  cus- 
ta, carregadas  de  mercadorias,  pagava  na  volta  por 
cento  do  valor  total  da  carga.  Sendo  a  caravela  do  infan- 
te e  a  cai^  do  negociante,  metade  do  retomo  pertencia 
ao  principe.  Os  lucros  eram  enormes.  Pessoas  competen- 
tes aliançaram  em  Sagi  es  a  Cadamosto,  que  excediam 
m  e  dez  por  um  K  £m  Arguim  todo  o  resgate  passava 
pela  feitoria  portugueza.  Os  árabes  vinham  trocar  escra* 
vos  pretos  e  oiro  fino  de  Tiber  por  tecidos,  prata,  alqui- 
cés  e  trigo.  Em  1 45»)  orçava  por  700  e  800  annualmente 

0  numero  dos  negros  vendidos.  Antes  do  traíico  ser  as- 
sim regulado  as  nossas  caravelas  entravam  no  golfo  e  as 
tripulações,  desembarcando  de  noite,  assaltavam  as  al- 
deias marítimas,  e  levavam  captivos  os  seus  moradores. 

í  CoUecrão  de  2soticias  para  a  historia  e  geographia  das  nações 
uUramarinaSj  que  vivem  ms  domínios  po riuyuezes, iom.  li,  n.®  1.— 
Navegações  de  Luiz  de  Cadamosto,  cap.  x. 

^bidem,  iom,  u,  n.**  1. — Navegações  de  Luiz  de  CadamstOj  cap. 

1  e  X. 


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vn..^«-r<  Depois  alongaram  estes  saltos  por  toda  a  costa  situada 
iitianwfiaas       ^  cabo  Braoco  e  o  Seoegal^ 

D.  Alfonso  V,  apesar  de  t9o  occnpado  com  a  €<H)((uista 

das  praças  de  Foz  e  de  Marrocos,  mmca  abrhi  uião  de 
todo  dos  descobrimentos,  que  aicançaram  nu  seu  reinado 
até  ao  cabo  de  Santa  Gatharina.  O  contrato  feito  em  no- 
vembro de  1469  com  o  negociante  de  Lisboa  FemUo  Go* 
mes,  docunieuto  imporlaute  [itia  luz  que  lança  sobre  este 
periodo  cortado  de  incertezas,  mostra-nos  as  verdadei- 
ras proporções  attingidas  p^  las  rolacões  de  Portugal  cora 
os  povos  africanos  na  segunda  metade  do  século  xv.  Vé* 
se  por  elle,  rpie  o  commercio  de  Guiné  se  reputava  )â  se- 
guro e  desassombrado  das  hostilidades  dos  primeiros 
annos,  e  que,  pelo  menos,  appareucias  amigáveis  tinham 
substituído  as  aggressões»  com  que  no  principio  as  raças 
barbaras  haviam  repellido  de  suas  praias  os  europeus. 
^  tempo  e  a  frequência  haviam  amansado  a  rebeldia  dos 
ânimos,  e  o  amoi  du  lucio  api»i«*xnn;íi"a  os  mais  esqui- 
vos. As  tribus  do  sertão»  longe  de  fugirem  da  nossa  bau- 
deira,  acudiam  aos  portos,  aonde  ella  tremulava,  prestan- 
do«se  á  convivência  mercantil.  O  movimento  crescéra,  si 
actividade  triplicâra,  e  a  acção  governativa  sentia-se  já 
fraca  e  insufllciente  para  o  reger  e  muito  mais  para  o 
monopolisar*  Carecia  de  meios  para  o  grangear  por  sua 
conta,  e  atê  para  o  fiscalísar  com  a  precisa  vigilância» 

tforanl  estas  ás  rásões,  qiie  determinaram  Èl-Rei  a  ar» 
l^endar  imi'  ciiuui  annos  a  Fernão  Gomes  todo  O  coiiiiit^^f- 
eid,  mèuus  o  resgate  do  marlim,  autenurmeute  contrata- 

i  Collecçãò  de  Hotídat  para  a  kistoriá  e  giograpim  das  naçõe$ 
úUrmnaHnas,  qile  vivem  nos  dominios  poi-tugwsefs  lom.  n,  n.*  1. — 
Àrarara^  ChroniM  dá  Conquitía  d$  Chuné,  cap.  xtix  e  l.  Azurara 
aáMgtira  que  o  numero  dos  n^groB  transportados  a  Portugai  até  ao 
anuo  de  á44S  fAra  de  9St7.  Gap.  lxvi,  pag.  454. 


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Bó§  msúíM  vm  c  tm 


111 


do  com  Maitim  Annes  Boaviagem,  e  menos  o  tracto  da  pomcss»» 
terra  frontejra  a  Cabo  Verde,  privilegiado  para  os  mora- 
dores  das  ilhas,  e  o  do  castello  de  Atigniin,  propriedade 

do  príncipe  herdeiro  D.  Joàu.  luUre  as  condições  dieta* 
das  ao  contratador  figurava  a  clausula,  lielíD.ente  cum- 
pida  por  elle^  de  descobrir  cem  legaas  de  costa  em 
cada  um  dos  cinco  annos.  FemSo  Gomes  foi  zeloso,  e 
dois  annos  depois  enriquecia-se  a  si  e  ao  pai/,,  assentan- 
do por  via  de  seus  navegadores  o  primeiro  resgate  do 
oiro  na  aldeia  de  Summá,  da  qual  passou  para  o  iogar 
da  tMina»,  aonde  D.  João  II  passados  annos  levantou  a 
fortaleza  de  S.  Jorge  *.  Segundo  assegura  o  cbrontsta 
Azul  ara  as  rcluctancias  (1<ks  naluraes  de  Guiné  tinham  co- 
meçado a  abrandar  desde  1448.  A  verdade  é,  que  em 
1455  Gadamosto  encontrou  já  acceito  e  estabelecido  o 
commercio  dos  portagaezes  no  rio  Senegal  e  nas  terras  do 
Budumel,  senhor  da  terra  firme  de  Cabo  Verde.  Mas  estas 
relações  só  depois  é  que  se  estenderam  pai-a  o  sul,  aonde 
os  mandingas  do  rio  Gambia  resistiram  mais.  Em  1460 
todas  as  contrariedades  estavam  desfeitas,  aplanando  a 
boa  vontade  dos  negros  os  caminhos  aos  portuguezes  K 
Os  primeiros  povoadores  das  ilhas  de  Gabo  Verde,  co* 


^  Barros,  Década  i,  liv.  ir,cap.  ii. —  Garcia  de  Rpzfind*.',  Chroni* 
ca  dê  El-Rci  D.  João  U.  O  preço  d'esle  contrato  eram  200:000 
reaes,  quantia  que  hoje  parece  pequena,  mas  que  O  não  era  para 
a  epocha,  mais  que  tudo  correndo  todas  as  despezas  de  exploração 
t  de  navegando  por  conta  do  contratador.  FernSo  Gomes  arrendou 
depois  ao  príncipe  D.  João  o  commerciò  de  Argiiim  por  100:000 
mes.  Ò  reflgatb  do  biro  foi  dèacoberto  por  João  de  Santarém  b 
Pedro  Escovar,  cujos  i^ildtoà  eraill  Martins  Fi^mande^»  de  Lisboa,  é 
AlTaro  Esteres,  de  Lagos. 

2  Azurara,  ChríMká  i$  Gmnê,  cap.  lxxxth  e  xciT^Baitos» 
Década  i^liv.    cap.  n. 


1 


112  HISTORIA  DE  PORTUGAL 

Po«Msa5ei  mo  eni  natural,  fandaram  a$  suas  colónias  nos  portos  de 
"""^^  mar,  aonde  negociavam,  c  d'onde  enviavam  as  carave- 
las á  costa  de  Guiné  para  transportarem  as  turmas  de 
escravos,  que  vinham  arrotear-lhes  as  terras.  O  resgate 
de  todos  os  rios  desde  o  Senegal  até  ao  Metombo  em 
Serra  Leoa  pertencia  exclusivamente  desde  1 400  aos  mo- 
radores de  S.  Thiago,  excepto  a  casa  forte  de  Arguim,  com 
a  obrigação  única  de  armarem  os  navios  na  ilha  e  nunca 
em  outra  parte,  de  só  trocarem  géneros  de  producção  pró- 
pria, e  de  voltarem  com  os  retornos  á  ilha.  a  fim  de  pa- 
garem n'ella  os  direitos  ao  íisco  *.  Engrossou  muilo  e^le 
commercio  no  Senegal,  e  já  rendia  avultados  ganhos  em 
1488,  quando  o  príncipe  jolofo  Behomim  veiu  a  Portu- 
'  gal  supplicar  o  auxilio  de  D.  João  II.  Quiz  o  rei  aprovei- 
tar o  ensejo,  e  mandou  armar  uma  frota  para  o  restituir 
ao  throno,  ordenando  ao  capitão  Pedro  Vaz  da  Cunha 
que  levantasse  na  entrada  do  rio  uma  íeiLoria  fortificada, 
a  qual  teria  assegurado  o  tracto  d'aquella  região,  se  a 
pouca  lealdade  de  Cunha,  assassinando  Behomhu,  não  cor- 
tasse pela  raiz  os  planos  do  soberano  K  Destruídas  suas 
esperanças  no  Senegal  os  habitantes  de  S.  Thiago  no  co- 
meço do  século  XVI  voltaram-separa  os  portos  do  reino  de 
Budumel,  e  frequentaram  especialmente  a  angia  de  Be- 
siguiche,  trocando  [lor  escravos,  courama,  cera,  marfim, 
gomma,  âmbar  e  oiro  grossas  carregações  de  cavalios, 
de  mUho  e  de  legumes. 

£spalharam-se  muitos  d'abi  pelos  rios  de  Gambia, 
de  S.  Domingos,  de  Gasamansa  e  de  Geba,  e  pelo  Rio 

^  Archivo  naeioiml.  Imo  das  iUias.  fl.  %  v. 

>  Ruy  de  Pina,  Cknniea  âe  Et^RH  D.  João  II,  cap.  zxxyii.^ 
Rezende,  Viãae Feito»  de  El-Rei  D,  João  IT, cap.  uexviil— Bam», 
Deeada  i,  lir.  m,  cap.  vi. 


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DOS  SÉCULOS  Wil  K  XVili  ^  113 

Grande.  FamíUarísados  com  a  língua  e  com  os  costumes  posimism 

dos  negios  entranharam-se  ousadamente  {)el()  sertão,  e  fi- 
zeram-se  us  intermediários  únicos  de  todas  as  transacções. 
Esquecidos  do  Deus  de  seus  paes,  e  eugolphados  nos  vi- 
dos e  superstições  dos  cafres»  a  cubiça  apagou-lhes  do 
coraçiSo  até  a  memoria  da  pátria.  Quando,  por  meados  do 
século  XVI,  os  corsários  francezes  e  inglezes  principiaram 
a  visitar  furtivamente  aquelias  costas  foram  estes  liomens, 
sempre  dispostos  a  vender  os  serviços,  os  que  em  tudo 
os  guiaram  K  A  união  a  GasteUa  ainda  aggravou  os  ma- 
les,  e  os  moradores  de  S.  Thiago,  não  podendo  contras- 
tar o  poder  dos  estrangfciros,  deixaram  a  pouco  e  pouco 
o  commercio  do  Sencgambia,  concentrando  todos  as  suas 
especulações  ao  sul  do  cabo  de  Santa  Maria.  Em  1617  já 
osfrancezes  possuíam  uma  fortaleza  no  Senegal,  e  os  fla- 
mengos duas  no  ilhéu  de  Beseguiche,  depois  denominado 
a  iliia  de  Gorée,  e  uma  feitoria  no  porto  Gaspar  junto  do 
Rio  Fresco,  d'onde  expediam  para  o  Recife,  Portudalle,  e 
Joalla  naus  de  mil  toneladas  K 

0  descobrimento  do  resgate  da  Mina  pelas  caravelas 
de  João  de  Santarém  e  Pedro  Escobar  deslumbrou  os 
navegadores  do  reinado  de  Affonso  V.  Nenhum  cuidou 
de  achar  mais  terras  dentro  do  golfo  de  Guiné.  Fernão 
Gmnes  contentou-se  com  alcançar  até  fóra  do  cabo  de 
Santa  Catbarina,  aonde  acabaram  as  quinhentas  léguas 

1  Dava-w  a  estes  homenB  o  nome  de  Lançados,  Tanto  eUea,  co- 
mo seus  desceDdentes,  eram  os  corretores  exclusivos  de  todo  o  coni- 
mercio  com  o  sertSo.  O  padre  Guerreiro  descreve  sua  vida  solta 

como  it.'ual,  ou  peior,  que  a  dos  negros  e  gentios. 

2  André  Alvarez  de  Almada,  Tratado Brtfoe  dos  Rios  de  Guiné  e 
Cabo  Verde,  escripto  em  1594. —  Francisco  de  Azevedo  Coelho,  De$- 
eripçãú  Inédita  da  Costa  de  Guiné  até  Serra  Leoa,  composta  em 
I6á7.  Mannseripto  da  bíbliotheca  luusioiíal  de  Lisboa,  E-d-57. 

DONO  v  8 


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il4  HISTQUà  HK  POrnSAL 

po««e»9«i  do  sen  contrato,  e  qIú>  prestou  mesmo  attao^o  i  nova 
^'   ^   ilha  de  S.  lliomé,  que  apparecôra  alta  e  vestida  de  viçoso 

arvoredo  a  seus  navios,  nem  á  pequena  ilha  de  Anno  Bom 
avistada  por  elles  no  i.^  de  janeiro  de  1471,  ou  á  de 
Santo  Autãa,  depoiâ  chamada  do  Príncipe,  descoberta  m 
mesmo  mei  e  anuo  K  Apesar  de  ser  tão  visitada  aqueUa 
costa  pelas  vèlas  portugueiasestas ilhas  ainda  que  bastante 
próximas  d  elia  jazeram  quasi  esquecidas,  e  £l-Rei  D.  Af- 
fonso  em  tão  pequena  conta  parecia  tê-las,  que  no  tratado 
de  paz  celebrado  comFemando  e  Izabel,  mencionando  ex- 
pressamente a  Madeira  e  Porto  Santo,  os  Açores  e  Gabo 
*  Verde,  nem  ao  menos  as  citou  pelos  seus  nomes,  iodom^ 
do-as  na  desiiornação  geral  das  possessões  ultramarinas 
da  sua  corôa 

D.  João     conhecedor  da  importância  dos  tratos  de 
Gomè  e  dos  da  Mma,  cfuis  em  tndo  continuar  as  grandio* 

sas  idèas  do  iiifaate  D.  Henrique.  Seus  capitães  descobri- 
ram os  reinos  do  Congo  e  de  Benin,  e  iiiu  d  elles,  Bar- 
tholomeu  Dias,  passou  alem  do  cabo  da  Boa  Esperança. 
Ao  mesmo  tempo  lançava  os  fondamentoa  da  povoação 
de  S.  Thomé,  outorgando  aos  colonos  de  loKo  de  Paiva 
o  primen  o  íoral  datado  de  16  de  dezembro  de  i48ò.  Me- 
draram, comtudo,  muito  pouco  a  população  e  a  agricultu- 
ra até  1493,  em  que  a  capitania  da  iiba  foi  dada  a  Alvaro 
de  Caminha;  masauxihado  estepelos filhos  dosjudeua  vio- 
lentamente arrancados  a  sèuspaes,  e  por  alguns  degrada- 
dos, conseguiu  mudar  inteiramente  o  aspecto  da  terra. 
Decorridos  vinte  e  nove  amios,  em  já  S.  Thomé 
possuía  seiscentos,  ou  setecentos  fogoa  alem  dos  indivi- 

1  Barros,  Deeada  i,  Ht.  n,  oap.  u. 

^  Quêán  doBUiifor  éã$  v^iãfiâà  pqHííí$ê  #  diplowMtifín  jRMr* 


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DOS  SÉCULOS  xvu  £  xvm 


il5 


duos  reâdentes  em  mais  de  sessenta  engenlios.  A  pro-  vunm%u 

ducçlío  do  assiicar  niYava  aarmalmente  por  5.852:800  ki- 
logrammas,  e  a  dizima  por  585:^,  apesar  de  ser  indnito 
o  numero  dos  qoe  Dão  a  pagavam  por  inteiro.  O  com- 
merdo  attrahira  muitos  negociantes  portagaeies»  caste- 
Ihfflios,  franceses  e  genovezes 

A  ilha  do  Principe  tambeiii  íloresceu  pela  prosperidade 
de  suas  plantações  de  canna  doce,  cuja  dizima  pertencia 
ao  filho  primogénito  do  rei ;  mas  a  ilha  de  Anno  Bom  per- 
manecea  deserta,  servindo  s6  de  ponto  de  renniSo  para  as 
pescarias  dos  moradores  de  S.  Thomé.  Jorge  de  Mello, 
seu  doiiatariu,  tinha-a  vendido  no  tempo  de  D.  Sebastião 
a  Luiz  de  Almeida,  liahitante  de  S.  Thomé,  que  a  man- 
dára  povoar  por  esenivos  pobrissimos  e  indómitos.  A  de 
F^3o  do  Pó  era  populosa,  porém  só  em  negros  do  contt- 
nente  vizinho,  todos  valorosos,  mas  alguns  ferozes  e  mes- 
mo aiiUiropophagos  2.  Aopuíencia  de  S.  Thomé,  mantida 
em  todo  o  governo  de  D.  João  111,  apesar  das  hostilida- 
des dos  piratas  estrangeiros  só  principiott  a  attenuar-se 
no  reinado  de  sen  neto,  quando  a  ilha,  assaltada  e  saquea- 
da pelos  corsários  francezes  em  1567,  teve  de  reprimir 
sete  annos  depois  a  rebellião  dos  angolares  unidos  aos 
escravos  fugkliços.  Muitas  plantações  caíram  em  ruinas. 
Seus  proprietários  passaram  ao  Brasil  para  salvarem  o 

1  ArchÍTO  nacional,  livro  das  ilhas,  fl.  109,  v.,  111  e  112.— Rezen- 
de, cap.  XXV. —  Ruy  de  Pina,  cap.  lxviti.  S.  Thomé  foi  elevarta  a 
pídarlf»  pela  cnrta  regia  de  2Í  de  abril  de  1535. —  Chanceitaria  dê  Ei- 
Hei  D.  João  III,  liv.  X,  1. 124  v^  e  erigida  em  biapado  pelo  breve 
da  PeuIo  IU  de  3  de  novembro  de  1534.  — Collecçio  de  AÍB(ima< 
para  a  historia  e  geographia  das  nações  íUiramarinas,  tom,  n.  — 
fiagem  de  um  fièoto  pariuguês^  cap.  x  e  xi. 

*  As  ilhas  de  Anno  Bom  e  Fernando  Fé  foram  eedidas  á  Héspa- 
nluk  pela  aflijo  ia«     tratado  de  ife  de  maiço  de  1778. 

s. 


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116 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


FoiMMBct  resto  das  ríqaezas.  Renovaram-se  os  desastres  com  a  do- 
amaarinu  mi^ação  castelhana.  A  capital  devastada  ficou  nas  mSos 

du  almirante  iiollandez  Van  der  Don  no  momento  em  que 
priocipiava  a  respirar  dos  estragos  do  incêndio  de  1585, 
qae  reduzira  a  cinzas  a  maior  parte  dos  edifícios,  e  da 
insurreição  do  negro  Amador»  que  em  semeára  o 
terror  e  o  espanto  por  toda  a  terra.  Os  hollandezes,  senho- 
res do  mar,  desde  os  princípios  do  século  xvn,  tinham-se 
apoderado  successivamente  das  nossas  feitorias  de  Ga- 
bão, do  cabo  de  Lopo  Gonçalves,  de  Fernão  do  Pó,  do. 
Bio  de  El-Rei,  do  Galabar,  do  Rio  Real,  e  de  outros  pon- 
tos importantes  até  rematarem  seus  triumphos  em  1637 
com  a  conquista  da  fortaleza  de  S.  Jorge  da  Mina.  Au- 
gmentou  com  estes  desastres  a  emigração  dos  moradores 
brancos,  e  a  decadência  correu  mais  rápida.  O  mesmo 
aconteceu  no  archipelago  de  Gabo  Verde  epor  causas  idên- 
ticas. Em  S.  Thomé  existiam  apenas  em  1641  uma  cida- 
de meia  erma,  engeniios  desamparados  e  campos  incultos, 
quando  em  outubro  os  neerlandezes  a  invadiram.  O  jugo 
estranho  acabou  o  que  tantos  annos  de  infortúnio  haviam 
preparado  K 

Diogo  Cam,  em  iadi)  como  descobridor  por  l).  João  II, 
achara  em  14b5  a  bòca  do  rio  Zaire,  e,  submdo  por  elle, 
iigára  communicações  com  os  habitantes  das  margens, 
súbditos  do  rei  do  Gongo.  Em  1586  repetiu  a  viagem,  e, 
adiantando-se  pelo  mar,  vratoda  a  costa  de  Angola  e  de 
Beiiguella  até  ao  cabo  Negro.  Bartiiolomeu  Dias,  Yasco 
da  Gama,  Pedro  Alvares  Cabral,  e  os  outros  capitães  das 
armadas,  postos  os  cuidados  e  a  ambição  no  grande 
império  da  Ásia,  não  qnizeram  distrahir-se  com  a  explo- 

1  Rezende,  cap.  xxv.  Archivo  nacionai  livro  das  ilhas,  fl.  84, 86, 87 
e  — Ckorographia  Histórica  das  ilhas  de  S.  IMné,  Príncipe^  An» 
no  Bom  e  FimandoPà,^  Raymando da  Canha  Matou, Porto,  1842. 


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DOS  SÉCULOS  XVU  E  XVUl 


117 


ração  de  uma  das  mais  bellas  regiões  da  Afi  ic.i  occiden-  FtaseMOtat 
tal.  João  AiioDSD  de  Aveiro  (Uíscobriu  em  1486  as  terras 
de  Benin,  situadas  entre  o  Gongo  e  a  Mina,  e  iogq  El-Rei  * 
resolveu  assentar  em  Gató,  que  era  um  dos  portos ,  uma  fei- 
toria para  o  resgate  do  oiro  e  dos  escravos.  Ainsalubri* 
dade  do  cilma  obrigou-o  a  suspende-la,  mas  nem  por  isso 
deixou  de  aíiluir  o  rendoso  trafico  para  a  Mina  quasi  tor- 
nada o  empório  das  relações  d'aquellas  partes.  Aniiiiíidos 
pelas  vantaí?ens,  que  offerecia  o  Congo,  os  moradores  de 
S.  Thome  c  do  Prmcipe  no  século  xvi  estenderam  o  trato 
mercantil  até  Loanda,  e  tanto  o  avultaram»  que  o  rei  do 
Gongo>  vendo  seus  portos  quasi  desamparados,  mandou  . 
tirar  em  1S(48  uma  Inquirição  dos  navios  expedidos  sem 
licença  pelo  feitor  e  oflSciaes  das  duas  ilhas,  e  queixou-se 
á  nossa  côrte  dos  prejuízos.  Seguiram-se  as  prohibições 
d'este  connuercio  clandestino,  a  embaixada  do  rei  de  An- 
gola para  obter  a  sua  continuação,  e  amorto  de  D.  João  111. 
Nos  fins  do  anno  de  1599  ordenou  a  regente  D.  Catbari- 
na  a  Paulo  Dias  de  Novaes,  neto  do  grande  navegador  Bar- 
tholomeu  Dias,  que  partisse  para  Angola  com  instrucçSes 
de  não  Jirmar  as  bases  de  um  tratado,  mas  de  sondar  os 
ânimos  c  de  estudar  a  riqueza  e  as  forças  do  pai^  O  ca- 
pitão correspondeu  ao  encargo,  e  em  1574  [saía  outra 
vez  para  a  barra  do  Coanza  incumbido  da  conquista 
d'aqueUes  vastos  territórios.  Desembarcado  em  Loanda, 
fundou  povoações,  construiu  fortalezas,  e  lutando  sem  re- 
pouso, levou  até  ao  interior  o  respeito  de  suas  armas.  ^ 
Occupadas  as  minas  de  prata  de  Cambambe,  a  victoria 
decisiva  do  anno  dt'  itiò^i  alíirmou  o  dominio  e  a  posse 
da  corôa  portugueza 

i  Beaende,  cap.  cuy.>-Ruy  dePiín,  Cftrontea  dfe  JBI*J?et  D.  João  II 
AtchÍTO  naeional,  Corpo  cbronologico,  pari.  maç.  80,  doe.  106,  e 
maço  IM,  doe.  3.  Inquirição  linda  pelo  rei  de  Gongo.  Gaita  do 


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118 


HI3T(miA  DE  POBTUGAL 


Imitaram-0  os  outros  governadores  com  roais,  ou  tne- 

nos  felicidade.  No  primeiro  qunrtol  do  século  xvii/Ma- 
•  nuel  de  Cerveira  Pereira  juntou  (em  íiHO)  ao  senhorio 
de  Angola  a  conquista  de  Benguella  até  ao  sertão  de  Ga- 
conda.  As  traições  de  Anna  de  Sousa  (a  rainha  Ginga),  e 
as  rebelliões  dos  sovas  não  lograram,  apesar  de  violentas, 
abalar  o  nosso  poâerjiEm  1634  a  província  obedecia  tran- 
quilla,  e  não  receiava,  que  nenhum  regulo,  ou  vassalio 
ousasse  oppor  a  mais  leve  resistência  á  auctoridade  real  *. 
Os  perigos,  que  a  ameaçavam,  não  procediam  da  opposição 
dos  indígenas,  vinham  do  oceanojàsulcado  degrossasnaus 
hollandezas,  cpie  umas  vezes  apresavam  os  navios  á  entrada 
dos  portos,  outras,  approximando-se  muito  das  praias,  lan- 
çavam em  terra  companhias  de  soldados  aguerridos,  como 
os  que  nos  tinham  despojado  de  parte  das  conquistas  de 
Guiné,  e  todos  os  dias  palmo  n  palmo  nos  disputavam  as 
outras. "^N'aquella  epocha  de  aiiciedade  e  de  continuadas 
apprehensões  a  paz  era  quasi  tao  inquieta  e  atribulada 
como  a  guerra.  Os  governadores  de  Angola  e  os  habitan- 
tes, sempre  sobresaltados,  não  tiravam  os  olhos  do  mar, 
receiosos  de  verem  repentinamente  sobre  si  o  Inimigo 
a  cada  hora. 

Appareceu  elle  por  fim,  e  na  occasião  menos  esperada. 
No  dia  24  de  agosto  de  164Í ,  no  momento  em  que  Loanda 
festejava,  cheia  de  regosijo,  a  boa  nova  da  restauração 
da  independência,  foi  avistada  sobre  a  barra  uma  frota 
neerlandeza  de  vinte  vélas  guarnecida  de  tropas  de  des- 
embarque. O  gov^ador,  Pedro  Cesar  de  Menezes,  os 

bispo  de  S.  Thomé  a  El-Rei  D.  Joflo. — Cattàogo  dút  Govemadoret  de 
Angola,  tom.  m  da$  Natídas  para  a  kiUoría  diu  nações  idíramariiias. 

^  Lopes  Lima,  J^motM  dêEtiaiistíea  dat  PonmSesPwrhigwxat 
no  IMramar,  liy.  m,  íntroducçao.— Feo  Cardoso,  UmoHat,  pag.  M 
el71 


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DOB  UDOOUMI  XVD  B  Xm 


119 


capitães,  e  o  povo,  cortados  de  terror,  desampararam  a  pos 
defeza,  despejaram  a  cidade  e  as  fortalezas,  e  recolhe- 
ram-se  is  margens  do  Bengo»  d'onde  alcançaram  com 
trabalho  os  muros  de  Massangano.  Reanimados  com  o 

apoio  dos  neeii-iiiílezes  a  rainha  Ginga,  o  rei  do  Congo,  e 
muitos  sovas  impacientes  e  ofíendidos  romperam  contra 
nós  as  hostiUdades  em  diversas  partes  K  x 

Em  1641  a  decadência  era  pois  completa,  tanto  nas 
ilhas  de  Cabo  Verde,  como  nas  de  S.  Thomé  e  Príncipe, 
e  nas  terras  de  Guiné  e  de  Angola.  Nos  fins  da  primeira 
metade  do  século  x\u  havíamos  pmiido,  ou  viamos  já 
nnminente  a  perda  das  mais  ricas  possessões  da  Africa 
Occidental.  Do  commercio,  que  nos  primeiros  annos  de 
1).  João  JII  enriquecêra  a  coroa,  o  paiz  e  as  colónias,  com- 
mercio (jue  João  de  Barros  considerava  mais  rendoso  do 
que  as  jugadas»  dizimas,  ma&  e  reguengos  dos  campos  de 
Santarém,  sobreviviam  apenas  restos  dispersos  e  assim 
mesno  contestados.  Áqnella  posse  tio  pacifica  que  elle 
encarecia,  fundada  na  obediência  e  no  respeito,  fonte  co- 
piosa de  tliesouio.N  anfendus  sem  ser  preciso  ([ueimar 
uma  escorva,  ou  jogar  uma  lançada,  sucoedéra  o  mais  ar- 
riscado de  todos  os  domínios,  sujeito  ás  incertezas  e  even- 
tualidades de  mna  luta  desigual  K 

A  coionisaçâo  do  Brazil,  intentada  por  D.  João  III,  e  o 
estabelecimento  das  primeiras  feitorias,  tinham  começa- 
do a  aproveitar  para  a  cultura  e  para  a  civilisação  os  vas- 
tos tmitorios  de  Santa  Cruz.  O  tempo,  auxiliado  pela  li* 
herdade  do  solo  e  por  activos  e  pacientes  esforços,  re» 


*  Lopes  Lima,  Ensaios  de  Estatística  das  Possessões  Portuguezas 
no  VUramar,  liv.  iii,  introducçfio. — Feo  (^àoso,  Memorias,  pag.  163 
el7í. 

*  Barros,  Década  i,  liv.  i. 


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HISTORIA  DE  PORTUGAL 


foÊíM»  compensara  com  fructos  copiosos  o  zêlo  do  Irabalho  nas 

iiinnariDM  capitanias,  e  a  côrte,  aininada  pnr  (ao  espe- 

rançosa estreia,  determinara  creai'  iia  Baliia  a  séde  do  jço- 
vemo  central,  e  encarregara  1  homè  de  Sousa  de  lançar 
os  fundamentos  d'elIe.'*Mem  de  Sá,  irmão  do  poeta  Sá  de 
Miranda,  succedendo  a  D.  Duarte  da  Gosta>  cuja  adminis* 
traído  Í6ra  pouco  feliz,  repelliu  os  francezes,  povoou  o 
Rio  de  Janeiro  e  outros  districtos,  e  coadjuvou  com  es- 
clarecido impulso  as  missões  religiosas,  j)ro\  ando  em  to- 
do o  decurso  da  sua  gerência  qualidades  disLinctas  como 
capitão  e  como  organisador.  O  desastre  de  Alcácer  e  a 
unito  das  duas  coròas  interromperam  a  prosperidade  da 
provindal^s  francezes  em  1612  occuparam  o  Maranhão, 
e  só  ires  annos  d^ois  poderam  ser  expulsos  d^elle.  Os 
hollandezes  apoderaram-se  da  Bahia  em  4624,  e,  oijriga- 
dos  a  capitulai",  acomnietleram  [^^'iiaiiiljuco  em  1630, 
fortiíicaiidt»-sc  no  Uecife.  A  perícia  e  a  moderarão  de 
Mauricio  de  Nassau  consolidaram  a  conquista,  e  as  armas 
neerlandezas,  tendo  ameaçado  se|p[unda  vez  a  Bahia,  en- 
traram victoriosas  em  novembro  de  1641  no  MaranhSo. 
  success3o  ilas  guerras  e  a  insistência  dos  revezes  pa- 
ralysaram  o  desenvolvimento  da  agricultura  e  da  riqueza 
lias  localidades  taladas  pelos  inimigos.  Mas  ii;is  oulias, 
distantes  do  lheali  o  da  luta,  os  progiessos  continuaram, 
e  o  firazil  promcttiaem  futuros  próximos  um  engrandeci- 
mento por  tal  modo  notável,  que,  segundo  se  affirma, 
houve  quem  aconselhasse  a  D.  João  IV  em  momentos  de 
crise  o  sacríácio  de  Portugal,  apontando-lhe  a  America 
como  base  inabalável  do  seu  thron(K  e  como  penhor  de 
segurança  pai  a  os  destinos  da  sua  di  nastia  K 

^  Vitoria  GmA  do  Brazil  por  um  soeío  do  instituto  histórico 
do  Brazil,  tom.  i,  secç.  in,  secç.  xi,  secç.  xt,  seeç.  xvm  e  xtx, 
secç.  xxT,  XVI,  xxvn,  xxvni  e  xxix. 


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DOS  SBCULOS  xvii  E  xvm 


Um  rápido  relancear  de  olhos  sobre  as  capítaniás  prin-  vmmt»n 

cipaes  e  sobre  o  seu  estado  iio*s  íins  do  século  xvi  e  no 
pí  jiiií  iro  qnnrtel  do  xvii  nos  iiaí>ilitará  para  darmos  uma 
idóa,  approximadamente  exacta,  do  grau  de  riqueza  rela- 
tiva, que  attiiigira  cada  uma  d  elias.  A  de  Paraiba,  de  re- 
cente ftindação»  apenas  possoia  ainda  um  engenho  de  as- 
sacar, construído  por  conta  da  fazenda  real.  O  contrato 
do  pau  brazíl,  cortado  nas  suas  matas,  rendia  quarenta 
mil  cruzados.  Na  ilha  de  Itamai  acá  liniiclpiava  a  avultar 
a  [íoqueiia  viila  da  Conceição,  moendo  ties  engenlios  a 
caima  nos  rios  e  córregos  próximos  d'ella.  As  tres  capi- 
tanias dos  Ilhéus,  de  Porto  Seguro»  e  do  Espirito  Santo, 
apesar  da  fecundidade  do  torrão  e  da  abundância  das 
correntes  nativas,  pouco  tinham  progredido,  facto  com 
motivo  attribuido  á  falta  de  povoação  simultânea  e  aos 
aN>iilios  das  tribus  selvaí^ens,  quasi  certas  da  impunida- 
de. A  capitania  dos  lilieus,  reduzida  á  vlUa  de  S.  .Toi"ge, 
em  vez  de  quati-ocentos,  ou  quinhentos  colonos  que  re- 
censeára,  já  não  contava  mais  de  cinco^ta,  e  conservava  - 
somente  tres  engenhos  dos  nove  ipe  tmha  possuído.  As 
fazendas  n?ío  se  estendiam  a  mais  de  tres  léguas  pela  or- 
la da  costa  e  de  meia  légua  para  o  sertão.  Adiante  esten- 
diam-se  as  florestas,  asylo  da  barijarie.  Poito  Seguro, 
alem  da  villa  capital  com  cincocnta  famílias,  abrangia  a 
villa  de  Santa  Cruz  com  duas  aldeias  de  indios,  e  as  villas 
de  S.  Matheus  e  de  Santo  André.  Trabalhava  ahi  um  só 
engenho,  o  gado  vaccum  nlo  era  muito,  mas  creava  boas 
manadas  de  egu as,  cavallos  e  jumentos.  Fresca  e  embalsa- 
mai ia  poi  ^raadcs  pomares  de  espinho  exportava  muita 
agua  de  flor  de  laranja.  A  capitania  do  Espirito  Santo,  final- 
mente, a  mais  rica  das  tres,  sustentava  cento  e  cincoenta 
vizinhos,  seis  engenhos  de  assucar,  e  bastante  gado,  e  co- 
meçava a  recommendar-se  pelas  suas  colheitas  de  algo- 


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I 


Possessões  dào.  A  lâvoura  era  quasi  toda  feita  por  gentios  mansos,  e 

iitramannas  ^  ^^yuXím  afiicaoa  Diál  existía  *. 

A  capitania  do  Rio  de  Janeiro,  povoada  por  Mem  de 
Sá,  não  excedia  em  4587  cento  e  cincoenta  colonos  com 
Ires  engenhos  laborados  principalmente  por  Índios,  mas 
depressa  cresceu e  se  al  ti  i:ou  a  área  da  sua  cultura  com  o 
augmento  da  população.  A  de  S.  Vicente  declinava,  fim 
yet  de  aeis  engenhos  ede  seiscentos  vizinhosapenaseraha- 
bitada  por  oitenta  colonos,  tendo  sido  allraluda  parte  dos 
moradores  [)ela  povoação  do  liiu  de  Janeiro,  e  bavendo-a 
despojado  de  muita  da  sua  riqueza  a  cui^iça  dos  últimos  pi-  ^ 
ratas.  Poucos  iiabitantes  mais  encerrava  Santoâ,  e  maUo 
menor  nnmero  a  villa  da  Gonceiç9o  de  Itanhaem.  Em  ambas 
escasseiavam  os  brarof?,  e  ambas  se  queixa vain  dus  estragos 
causados  pelas  excursões  dos  selvagens.  Santo  Amaro 
devia  achar-se  ainda  mais  pobre  e  deserta.  S.  Paulo  de 
Piratininga,  a  teira  mais  povoada  do  districto,  continha 
ella  só  qnasi  mais  de  metade  do  numero  de  habitantes, 
que  existia  em  Santos  e  S.  Vicente.  Os  seus  moradores  já 
n  aquelie  tempo  prezavam  os  exercidos  de  equitação, 
correndo  e  escaramuçando  a  cavallo.  Vestiam  á  moda  an- 
tiga pelotes  de  burel  pardo  e  azul,  e  usavam  petrínas 
compridas,  roupdes  ou  bemeos  sem  capa.  Ceavam  mui- 
tos gados,  e  plantavam  muitas  vinhas  e  arvores  fnictileras*. 

Pernambuco  n^aqueila  epocha  consíderava-se  a  capita- 
nia mais  rendosa  e  adiantada,  e  em  todo  o  Brazil  era  de 
certo  a  única  em  que  se  notavam  o  luxo  e  o  trato  oorte- 
zio:  Contava  mais  de  dois  mil  colonos  e  de  dois  mil  es- 

1  Historia  Geral  do  Brazil,  por  um  sócio  do  instituto  histórico, 
tom.  I,  secç.  xxiii.  —  FerniiO  Cardim,  Cartas,  ediç.  de  1847,  pag. 
21. 

2  Historia  Geral  do  BrazU,  tom.  i,  secç.  xxiii.— Cai  dim,  Cartas, 
pag.  i07. 


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9 


DM  «DLOs  vm  %  vm  its 

cravos,  e  entre  os  seus  habitantes  havia  mais  de  cem  com  Po8s«sâsõ6» 
cíDco,  eito  e  dez  mil  cruzados  de  renda,  laas  tão  prodi-  "^^'^'"^ 
gos»  que,  sendo  avultadissimo  este  rendimento»  assim 
mesmo  se  viam  crivados  de  dívidas  por  causa  do  grande 
numero  de  escravos  de  Guiné,  que  morriam  nas  roças  e 
nas  casasj|fi&  festas  e  os  banquetes  de  muitas  cobei  tas  e 
de  mimosas  tgfoarías  repetiam-se.  Os  homens  não  traja- 
vam senSo  veliudos,  damascos  e  sedas»  e  gastavam  grossas 
quantias  na  compra  de  bellos  cavailos  e  em  os  ajaezar  ri- 
camente. Alem  dos  cavailos,  as  pessoas  abastadas  transpor- 
tavam-se  em  cadeirinhas, em palanquiQS,eemserpeutiaas 
ou  liteiras  feitas  de  rede  e  carregadas  por  dois  homens. 
Só  de  vinhos  do  remo  consumia  a  terra  todos  os  annos 
muitos  mil  cruzados.  Os  moradores  mais  opulentos,  na- 
turaes,  ou  oriundos  da  villa  de  Viaiiiia  do  Minho,  vívímiu 
e^l^íididamente.  O  padre  Fernão  Cardim,  test^unha 
ocular,  cita  com  admiração  os  leitos  de  damasco  carme^ 
sim  franjados  de  oiro  com  bellas  colchas  da  índia,  em  que 
dormiu,  e  as  visitas,  convites  e  brindes  com  que  o  regala- 
ram. Trabalhavam  si  ssinta  p  seis  engenhos,  lavi  ando  aa- 
nualmente  duzentas  mil  airobas  de  assucar,  e  empregan- 
do na  sua  conducção  quarenta  navios  e  mais.  Olinda,  a 
capital,  apontava  com  orgulho  para  a  igreja  matriz  e 
para  o  coUegio  da  companhia  de  Jesus,  aonde  os  mance- 
bos podiam  aprender  latim  e  humanidades.  As  senliui  as 
não  ostentavam  menor  pompa,  e  distrabiam-se  mais  com 
as  recreações  profanas,  do  que  em  exercícios  devotos. 
No  Recife  principiava  a  brotar  a  povoação,  e  já  se  levan- 
tavam alguiis  armazéns.  O  pau  brazil  corria  arrendado 
por  quatro  contos  de  réis  por  anno,  e  o  dizimo  dos  en- 
genhos por  tres  contos  e  seiscentos  mil  réis  ^ 

^  EisUyna  Geral  do  Brasal,  tom.  i,  secç.  xxiu. 


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HISTCMUA  DE  PORTUOAL 


PoM«ssõe$  A  Bahia,  capitania  da  coròa,  não  contava  em  i587  me- 
duamarinas  ^  vlziohos,  dd  Quatro  mil  escTavos  africanos, 

e  de  seis  mil  índios»  e  seus  trinta  e  seis  engenhos  fabrica- 
vam para  cima  de  1 7.551] :600  kiIogramiiia.>  de  assiicar, 
lodo  para  exportação.  Inc  liiia  dezeseis  parochias,  e  mais 
de  quarenta  igrejas  e  capellas.  A  cidade  de  S.  Salvador 
ergoia-se  já  aformoseada  por  bons  edificios,  sobresaindo 
a  sè  e  o  collegio  da  companhia  de  Jesus  com  accommo- 
daçííes  para  sessenta  discípul  os  c  aulas  de  primeiras  le- 
tras, de  humanidades  e  de  thepiogia.  Os  moradores  tra- 
tavam-se  com  abundância»  porém  com  menos  luxo,  do 
que  os  pernambucanos.  Às  casas  enceiravam,  comtudo, 
lK)m  recheio  de  prata  de  serviço,  e  as  mulheres  enfeltavam- 
se  com  jóias  custosas,  vestindo  vasquiuhas  e  saias  de  da- 
masco e  de  selim  *.  Em  geral  as  riquezas  eram  bastante 
desiguaes»  especiabnente  em  Pemanibuco,  na  Bahia  e  no 
Rio,  terras  que  já  negociavam  em  escravaria  africana,  as- 
sociando-se  alguns  senhores  de  engenhos,  e  enviando 
navios  por  sua  couta  ás  locahdades  aonde  ella  se  ven- 
dia mais  barata. 

0  assucar  formava  a  producçSo  principal.  A  totalida- 
de dos  engenhos  ainda  n3o  excedia  cento  e  vinte,  repre- 
sentando cada  um  muitos  Ijraços  e  extensas  plantações 
de  cannaviaes,  de  pastos,  de  matos  e  de  hortados.  Esles 
engenhos  fabricavam  por  anno  setenta  mil  caixas,  ou 
41.126:400  kilogranunas  de  assucar.  O  consumo  an- 
nual  de  géneros  estrangeiros,  expedidos  do  reino,  calcu* 
lava-se  eiu  160  contos,  e  montava  por  isso  a  32  contos  o 
que  lucravam  as  alfandegas  de  Portugal  fechando  os  por- 
tos da  America  ao  commercio  das  outras  nações.  O  Era- 
zil,  portanto,  no  ultimo  quartel  do  século  xvi  já  constituía 

1  Hitíoria  Gerai  do  BrazUj  tom.  i,  secç.  xxiu. 


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DOS  SÉCULOS  xvn  E  xvm  ii5 

uma  das  possessões  mais  importantes  da  nossa  corAa,  e  pmmmmi 

na  primeira  metade  do  século  xvii  era  reputado  como  su- 
perior  em  utilidade  aos  domínios  da  Asia,  porque  não 
eiigia  os  sacrifícios  que  elles  custavam»  acbava-se  mais 
perto  dos  soceorros  da  metrópole»  e  nlo  pareciam  ameaça- 
lo  perigos  tão  próximos.  N'esta  parte  erravam  os  melho- 
res cálculos.  As  armas  hoilandezas  ainda  o  acommelte- 
ram  com  mais  vigor,  do  que  aos  presídios  da  índia,  mas 
a  fortuna  favoreceu-as  menos,  e  ao  cabo  de  longos  esfor- 
ços, Portugal  conservoa  intacta  esta  bella  possessão. 


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> 


CAPITULO  IV 
P08SBSSQES  ULTRAHABINAS  PA  ASU 

Cau&as  K  iuolas  da  declinação  do  Esi ado  da  Índia.  Uades  da  conqubla.  Krroj  e  cor» 
nipção  logo  aos  primeiros  anãos  d'eUa.— Syatemade  occapaçàu.  D.  Frauci^co  de 
Almaida  e  Aibino  de  Albuquerque.— DefeMncto  doa  cuMterei  •  dea  ttMit» 
aottimao  coerreiros.  Eofraqaecunenlo  da  nilieia  de  mar  e  terr».  Saas  rasSw.'- 
Lmo  e  avidez  da  magistratara.  Vtvwl idade  e  delapidações  das  oatras  classes.— 
Os  ^e&idios  de  Airica  desami^uradoâ  por  O.  JfoSo  lU.— Estado  das  praças  do  Hto- 
wJ  d>  Ba»fcawft  ■>  teoalo  nm^-^tsOttti^  4o»  ufilãm  én  ii^Nliiit  m  ImS^ 
Soltm  de  costuinus.  IneeitM»  roabos,  rixas  ehomicidios.  — Martim  AfEniâo  de 
s<?u«  1  Antooio  de  HtU  e  Dioso  Soma.  impaaidade  doe  ttímMn  Mímb.— De* 
cadeocia  de  QeA. 

Explicámos  em  outra  parto  detidamento  a»  eaiiaaa  do 
npdo  eclipse  da  nossa  influenoía  na  Asia.  O  oriente  aem- 
pro  se  vingou  dos  oonqnistadores,  eoTenenando^tties  os 

costumes,  e  quebrando-llies  os  brios.  Suas  delicias  sem- 
pre poderam  mais,  do  que  as  anuas.  Atouteceu  aos  por- 
tuguezes  o  mesmo,  que  oâo  souberam  evitar  os  capitães 
de  Ale&aodre  e  os  proeonauies  romauo^i^  Não  os  cortou 
'    o  fem>,  praatmam-os  os  Yicktt  contraiu^ 

diosó  da  própria  domíDação.  Foram  vencidos  pela  mór- 
bida odosidade  e  pelo  torpor  do  luxo  asiático.  Desvane- 
ceu-se  até  a  sonibra  das  antigas  virtudes,  e  a  memoria 
dos  grandes  vultos,  que  tioi^am  iUusíi4rado  a  co^bíiQi^Ub 


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« 

118  HISIOIIIÂ  DB  P0ETU6AL 

Possessões  atésd  tomou  importuna.  A  espada  era  já  pesada  de  mais 
>uraiDarioas  mtmosas  de  seus  descendeutes.  As  balanças, 

mal  aferidas,  eafé  púnica  dos  chatinssubstitoíramahom^a 
tímbrosa  dos  avós.  Tudo  se  comprava  e  tudo  se  vendia. 

As  audácias  só  appareciam  iia  ('xpuliaçrio  calculada  e  para 
a  fraude.  Dos  perigos,  dus  postos,  aond«  podia  receber- 
se  a  mortê,  fugiam  quasi  todos  sem  pejo,  e,  se  algumas 
excepções  se  notavam  ainda  no  apagado  crepúsculo  d'es- 
tes  dias,  essas  eram  como  que  um  protesto  eloquente 
das  almas  viris  em  nome  do  passado.  Mas  os  delírios  e  as 
devassidões  do  presente,  ou  as  calaram,  ou  passavam 
por  elias  rmdo.  A  consciência,  em  geral^  nem  conhecia  já 
o  remorso*. 

Não  foram,  pois,  só  os  erros  económicos,  apesar  de 
grandes  e  funestos,  os  causadores  do  aniquilamento, 
qqe  tão  depressa  sumiu  na  índia  os  esplendores  sauda- 
dos pela  admiração  da  £uropa.  Concorreram  ainda  para 
isso  muito  mais  os  abusos  e  os  excessos  gerados  da  acção 
corrosiva  da  conquista.  Tudo  se  esgotou  desde  os  mais 
reíiiiados  alvitres  da  prepotência  e  da  intolerância  até  á 
paciência  dos  vencidos.  As  glorias  e  os  prodigios,  que  na 
primeira  metade  do  século  xvi  e  nas  duas  primeiras  dé- 
cadas do  reinado  de  D.  Joio  III  tinham  dourado  aquella 
epopeia  admirável,  encobriam  em  seu  brilho  a  nódoa,  que 
no  futuro  havia  de  esteiider-se  e  offusca-las.  Entre  as  pal- 
mas d'aquelles  triumplius  já  se  escondiam  o.>  vermes,  que 
desde  o  principio  haviam  começado  a  obra  da  destruição. 
Emquanto  os  homens  foram  superiores  ás  cousas  a  fortuna 
correu-nos  risonha  e  iisoujeira,  dilatámos  o  nosso  poder, 

■ 

1  Veja-se  o  que  extensamente  exporemos  sobre  este  assíiimpto 
no  toiíi.  111,  liv.  II,  cap.  iv,  e  no  tom.  iv,  iiv.  vi,  cap.  v  da  Hiítoiia 
de  ForiMgai  nos  Mcuk»  xvu  e  xvui. 


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DOS  SfiCULOS  XV1[  £  XVUl 


avassallámos  os  mares  e  (luíiiiiiaiiins  pt  lo  ipiiior.  (juaíido  Poí^^sòc» 
os  heroes  baixaram  á  estatura  ile  homens  oi  diiiarios,  e  a  ""™'*"™* 
inspiração  das  grandes  epodias  deixou  de  animar  as  em- 
prezas»  baixaram  os  acontecimentos  também,  e  a  hora  da 
expiação  fui  aiiriiinciada  por  estrundosus  revezes. 

Portugal,  repartido  i)ara  taatas  partes  remotas,  não  ti- 
nha braços  para  as  abrarar  a  todas.  Só  o  império  da  Ín- 
dia bastaria  para  desfailecer  tres  nações  maiores,  como 
provou  a  experiência  depois.  A  victoria  cansou-se  de  nos 
seguir.  A  sede  do  oiro,  o  amor  do  fausto  e  dos  deleites, 
a  saciedade  da  gloria,  e  uma  confiança  temerária,  a  par 
da  proíunda  alteração  dos  costumes»  tintiam  transforma- 
do os  netos  dos  antigos  soldados  em  mercadores,  e  os 
presidies  em  antros  de  usuras  e  de  rapinas.  Uma  serie 
não  interrompida  de  prosperidades  gangrenara  os  cora- 
ções, a  facilidade  da  oppressâo  gerara  a  lotcura  do  or- 
gulho, e  a  impunidade  levantára  quasi  altares  ao  crime 
feliz.  A  vontade  despótica  fazia  lei,  e  a  venalidade  cobria 
os  maiores  culpados.  Ao  mesmo  passo  o  vigor  marcial 
altenuava-se,  e  a  religião  do  dever  esmorecia.  O  enthu- 
siasmo,  a  abnegação  e  o  sacrifício  voluntário,  as  li  es  po- 
derosas forças,  que  nos  haviam  tomado  temidos  e  res- 
peitados, se  ainda  esmaltavam  alguns  caracteres,  já  fu- 
giam da  seena,  em  que  tantas  vezes  obraram  prodígios. 
Quando  os  inglezes  e  os  hollandezes  avivaram  a  lula,  o 
livro  do  maravilhoso  poema  estava  encerrado,  e  a  bisto- 
ria  mscrevia  apenas  um  ou  outro  nome  illustre  na  ultima 
pagina  taijada  de  luto.  N3o  exagerámos  as  tintas  do  qua- 
dro, reproduzimos  as  suas  fei0es  como  os  factos  as  re- 
tratam. 

Quatro  idades  distinctas  contou  o  estado  da  Índia  em 
sua  existência.  Na  primeira,  a  da  infância,  occupámos  Goa, 
Malaca  e  Ormuz,  ameaçámos  Adem,  e  assoberbámos  toda 

TOMO  ▼  9 


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190 


HISTORIA  D£  PORTUGAL 


a  costa  lio  Indo  até  ao  Ganges,  dosharatanílo  as  armadas 
turcas,  varrendo  os  mares,  e  senhoreando  os  portos  mais 
importantes  da  fitbiopia,  da  Pérsia  e  da  Arábia.  Na  seguní- 
da,  a  da  addescencia,  novos  territórios  e  novas  cidades 
conquisladas,  ou  cedidas,  alaigaranios  nossos  doniliiios. 
A  bandeira  portugueza  tremula  em  Ceylão  na  costa  áo  nor- 
te, no  litoral  do  Malabar,  e  no  de  Cambaya.  Capitães  fadados 
pela  Victoria  vencem  os  reis  mais  orgulhosos,  o  Çamorim, 
o  Saltão  de  Gambaya,  o  Hydelkal  e  o  Achem.  Os  Rumes  re- 
tiram-se  desbaratados.  Os  lies|>aiilioes  recuam  das  Molu- 
cas.  Bintan,  Mangalor,  Adel,  Paang,  Repellim,  Tidore  e 
mmtas  outras  terras  tremem  assustadas  debaixo  do  peso 
do  seu  braço*  Os  reb  de  Xael,  Viantana,  Adem,  Gacdtem, 
Dolu^  e  Sonda,  o  Sultão  de  €ambâya,  e  o  Hydelkan  humi- 
lhados reconhecem-se  seus  tributai  ios.  Dois  reinados,  o 
de  D.  Manuel  e  o  de  D.  João  Hl,  ao  periodo  relativamente 
emto  de  sessenta  annos^  viram  com  espanto  do  mundo 
ftmdar-se,  crescer  e  prosperar  por  seus  eoamiercios  e 
thesouros  este  império  colossal  ao  qual  o  escriptor  bem 
iníoiiíiado,  ([ue  vamos  seguindo,  attribue  oito  mil  legnas 
de  superfície  c(»n  vinte  e  nove  cidades,  cabeças  de  pro- 
víncia, muitas  povoações  opulentas,  e  trinta  e  tres  reis 
vassadlos  K 

A  minoridadc  e  o  •jfoverno  de  D.  Sebastião  abrange- 
ram a  idade  perfeita  da  conquista.  N  estes  vinte  e  uni  an- 
nos  já  ella  se  mostra  mais  inclinada  a  conservar,  do  que  a 
adquirir/ mas  apesar  d'issa  ainda  levanta  fortalezas  eain- 

se  ergue  para  pelejar  contra  a  liga  dos  priadpes  con- 
jurados, lutando  victoriosa  contra  o  Hydelkan  em  (ioa, 
contra  iSisam  Moluk  em  Chans,  contra  o  Çamorim  em 

1  Relação  do  Novo  Caminho  da  Índia  a  Portugal^  pelo  padre  Mi-* 
nuel  Godinho,  liv.  único,  eap.  i.  Lisboa  í6ô8l 


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D06  SEGOLOS  XVH  E  XVin 


131 


Ghale,  e  contra  o  Achem  em  Malaca.  Pate,  Pemba»  Qui-  votmom 
lere  e  o  Mcmomotapa  jui  am  a  paa  e  confessam-se  sujei- 

tos.  As  nossas  naus  e  fustas  cobrem  os  mares,  tomam  ^ 
lotlos  os  |);issos,  e  nas  Maldivns,  nas  costas  do  Malabar,  | 
ou  Jias  aguas  <la  Arábia  iiâo  coiiccdein  li  tígwa  aus  inimi- 
gos da  fé.  O  nome  portuguez  gela  de  terror  i^s  povos 
asiáticos.  Os  nossos  navios  voltam  do  Japão  carregados  \ 
de  prata  e  da  China  pejados  de  seda,  de  aimiscar,  e  de  ' 
oiro.  O  cravo  das  Molucas,  a  maça  e  a  no!&  de  Sonda,  a 
canella  de  Ceylão,  as  pérolas  de  Manar,  os  diamantes  de 
Mussuipaiaii,  os  rubis  do  Pegíi,  o  bcjoini  do  Achem,  a 
teca  e  os  couros  de  Cochim,  o  gengibre  e  a  pimenta  do  ; 
JMalabar,  a  camphora  deBonieo,  o  anil,  o  lacre  e  as  rou- 
pas de  Cambaya,  o  incenso  de  Cachem,  os  cavatios  da  - 
Arábia,  e  mil  outras  drogas  e  precioaidadea  ía^em  de  I^is- 
boa  a  primeira  capital  da  epoch^  e  povoanvo  Tejode  vé- 
las  do  todas  as  nações.  Mas  a  fraqueza  e  a  ladiga  eram  já 
visivri.<.  A  iicronlia  do  oi^iente  circulava  nas  veias  do 
Estado.  As  apparencias  mcutiam.  Debaixo  da  purpura  in- 
vejada manavam  das  feridas  occnltas  o  pns  e  o  sangue.  Sf* 
milhante  a  Augusto  o  imperró  da  Asia  tingia  as  faces  e  enfei- 
tava os  membros  entrevados  para  disfarçar  a  agonia. 
NComeçou  esta  em  1600,  ou  pouco  antes.  Slo  notáveis 
as  phrases,  em  ([ue  a  descicve  u  padre  Manoel  Ciodinho. 
aí\M  dru,  diz  elie,  o  estado  da  Índia  de  repente  a  vista 
das  aimadas,  soldados  e  capitães,  que  senhoreavam  an- 
tes os  mareSy  perdeu  o  oovir  que  suas  frotas  pelejaram, 
que  a  conquista  continuava,  e  que  os  inimigos  fugiam... 
Perdeu  o  gosto  das  »rmas,  da  léma,  e  dos  perigos.  Esta- 
va tão  velho,  (|ue,  se  não  acabava  de  expirar,  era  por 
não  achar  se[)ultura  pcira  sna  grandeza.  De  gigante  tor- 
nou-se  pigmeu».  De  íeilo,  se  em  1064  o  vice-reinado  da 
Índia  só  comprehendia  Goa,  Macau,  Chaul,  Baçaim,  Da- 


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132  HISTORIA  D£  POBTUGAL 

»  mau,  Diti,  Moçambique  e  Moinljaça,  relíquias  bem  peque- 
nas  de  tão  grande  corpo,  as  perdas  em  Í641  apesar  de 
mui  extensas  e  sensíveis,  ainda  não  imham  chegado  tão 
longe..  Todo  desabava,  ou  vadUava,  porém,  e  não  era  pre- 
cisa grande  penetração  para  conhecer,  que  D.  JoSo.IY  su- 
bira ao  throno  para  assistir  ás  exéquias  do  antigo  poder 
da  sua  corôa  na  Asia.  Aproveitando-se  do  aperto  das  cir- 
comstandas,  vendo  Portugal  a  braços  com  a  guerra  de 
Gastella,  e  seguros  de  que  não  poderia  soccorrer  a  tempo 
as  possessões  da  índia,  os  hollandezes  redobraram  os  es- 
forços, e  de  conquista  em  conquista,  de  região  em  região, 
expuisaram-nos  dos  presídios  e  íeitorias  mais  importan- 
tes, fazendo-se  senhores  exdusivos  do  commercio  e  dos 
mares,  sobre  os  quaes  havíamos  reinado  quasi  por  um  sé- 
culo sem  competidores  europeus  *. 

A  successlo  de  tantos  iníortunios  ferira  mortalmente 
todas  as  fontes  de  riqueza  do  paiz,  riqueza  artiiiciai,  e  iir- 
mada  em  bases  falsas,  como  mostrámos  em  outra  parte. 
Desde  que  as  armadas  estrangeiras  romperam  o  bloqueio, 
com  que  fechávamos  os  mares  e  os  mercados  africanos  e 
asiáticos  a  todas  as  nações,  a  prospei  idade  mercantil  co- 
meçou a  declinar.  Cada  nau  rendida,  abrasada  ou  nau- 
fragada, cada  feitoria  tomada,  cada  presidio  arrancado  ao 
domínio  portugnez  significava  uma  perda  irreparável,  em 
, força  effectiva,  e  em  capitães.  A  repetição  dos  desastres 
provocou  o  amquilamento.  No  caminho  da  ruina,  desde 
que  se  escorrega  pelo  predpido,  a  perda  accelera-se,  e  o 
mal  toma-se  irremediável.  A  entrega  de  Queixome  e  de 
Ormuz  em  1622,  a  invasão  das  Molucas,  e  as  inquietações 

1  Rdação  do  Nàw  Caminho  âa  Mêcl  aPortugàl,  liv.  unico,  eap.  i. — 
Hiiímr»  du  Coameree  de  totdes  lei  naHms,  par  H.  Seherer,  tom.  n.— 
Let  HaUandois, 


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DOS  fiE€fJLOS  XVU  E  XVDl 


133 


de  Ceylão  foram  os  symptomas  precursores  da  decadenci  a ,  Possessõw 
que  em  pouco  mais  de  quarenta  annos  deixou  demolido  ''^^'''''^ 
o  vasto  império  de  D.  Manuel  e  de  D.  João  IO. 

Vendo-nos  recuar  vencidos,  os  povos  e  os  régulos,  que 
a  coacção  dn  t(ínior  retinham  submissos,  vuUai  am-separa 
.os  Inglezes  e  para  os  hollandezes,  e,  alliados  com  elles» 
apressaram  a  destruição  dos  antigos  dominadores.  Apraça 
de  Lisboa  declinou.  Deserdada  do  monopólio  do  grosso 
trato  das  mercadorias  da  Índia  viu  passar  para  as  cidades 
maritimas  da  Ilollanda  e  da  Inglaterra  os  lucros  quasi  fa- 
bulosos, que  alimentavam  a  sua  opulência.  Desde  o  pri- 
meiro quartel  do  século  xvu  pôde  dizer-se  que  Portugal 
não  fez  senão,  prolongar  a  sua  agonia\Nos  últimos  vinte 
annos  da  dominação  castelhana  as  possessões  ultramari- 
nas quasi  que  só  represefitaram  na  sua  existência  encar- 
gos e  sacrílicios  muito  superiores  ás  faculdades  ^ 

Os  rendimentos  das  colónias,  íx)sto  que  avultados,  já 
não  cobriam  nos  últimos  vinte  annos  anteriores  á  restaura- 
rão as  sonnnas  exigidas  para  a  sua  conservação  e  defeza. 
Os  diíeitos  arièmatados,  segundo  o  systema  da  epocha, 
a  contratadores  particulares  qrçavam  em  todas  as  posses- 
sões da  Africa  occidental  por  94  contos*.  O  senborio  de 
Portugal  ainda  contava  no  Estado  da  índia  doze  cidades 
e  trinta  e  Ires  viUas  com  fortalezas,  ou  baluartes  guarne- 
cidos, alem  de  intinitas  aldeias,  e  o  producto  de  todas  as 
alfandegas  e  feitorias  não  descia  de  d90  contos^  O  Brazil 


*  Historia  de  Portugal  nos  secuios  xvii  e  xvui,  tom.  m,  iiv.  iii, 
cap.  I  a  V,  e  tom.  iv^  liv.  v,  cap.  v. 

-  As  ilhas  de  Cabo  Verde  e  parte  de  Guine  andavam  arrenda- 
das ein  1620  por  Í  4  contos.  A  Miria  rendia  40  contos  termo  mé- 
dio, a  iilia  de  S.  Thoiné  fôra  contratada  por  14  contos,  e  o  Congo, 
Adra  e  Angola  por  20. 

'  É  as.sás  curiosa  a  nota  do  rendimento  das  aiíandega&  e  feito* 


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I 


íd(k  HISTORIA  OE  POaXUGAL 

PesftMsoes  rendiií,  termo  médio,  iiiai  ;)i  cnnios,  rdopois  da  conquista 
dtnmtnm*  Maianlião  e  (lo  Hio  das  Amazuiias  devia  valer  muito 
mais^  A  receita  total,  avaliada  sem  exageração,  subia, 
pois^  a  538  contos,  pouco  menos  de  um  terço  da  receita 
geral  do  reino,  que  em  1620  não  excelia  4.744:OOO^ÍOOQ 
léis".  Míis  ns  despezas  l  íMinrrid.is  j/.ii  .i  .  ni  doiniiiiiK  tão 
largos,  diversos  e  remotos  maiitei'  a  aucloridade  e  o  res- 
peito da  nossa  coroa  absorviam  todos  os  ânuos  quantias 
muito  superiores.  A  administração  civil,  ècclesiastica  e 
militar  de  Gabo  Verde,  S.  Thomé  e  Angola  custava  anr 

■ 

na»  de  alguns  dos  pontos  mais  importantes  sujeitos  n'aqueUe  esta- 
do ao  nomo  domínio.  Na  Aiirica  oriental  a  fortaleza  de  Sofala,  a 
que  estava  annexa  á  de  Moçambique,  produzia  para  a  corda  12  con- 
tos^ e  a  de  Mombaça  3,  ao.  passo  que  os  lucros  dos  capitães  da  pri- 
meira podiam  produzir  no  tríennío  80  contos,  e  os  dos  capitães  da 
segunda  12.  A  cidade  de  Goa  com  as  rendas  c  fóros  da  ilha  e  das 
teiras  de  Salseto  e  Bardez  calculava-se  que  valia  120.  A  alfandega 
de  Ormuz  rendia  70:6004000  réis  e  a  de  Diu  70:{i00|;000  réis. 
Dam<o  rendia  18:600WX)  réis,  Baçaím  37:S0OilO0O  réis,  Ghaul 
9:6OOi0OOO  réis,  Cochím  6  contos,  Malaca  31:200|i000  réis,Ceylão  12 
contos,  as  Molucas  15  contos,  Mascate  12  contos,  Meliapor  4:800JK)00 
réis,  Onor  e  O)ulâo  4:800^000  réis  cada  uma  e  Solor  4:5001000 
réis.— Vide  Livro  dai  Grandezas  de  Lisboa,  por  Nicolau  de  Oli- 
vera, trat.  ix,,cap.  nr.  O  Livro  de  Toda  a  Fazenda  e  Real  Patrrrn- 
nto  do  Betno  de  Portugal,  por  Luiz  de  Figueiredo  FalcSo,  pag.  119 
e  125,  varia  ]i'estes  algarismos,  porque  nos  dá  o  mesmo  quadro, 
mas  referido  aos  primeiros  annos  do  século  xvit. 

1  Ibidem,  ibidem. 

2  Fr.  Nicolau  de  Oliveira  computa  a  receita  total  das  colónias  em 
637:705^570  réis,  comprehendendo  os  rendimentos  dos' mestrados 
das  tres  ordens  militares  no  reino,  os  da  ilha  da  Madeira  (26:621 ijíOOO 
réis),  e  os  das  ilhas  dos  Açores  (27  contos).  Deduzidas  estas  quantias 
a  receita  das  possessões  propriamente  ditas  nSo  excedia  573:999i0IOOO 
réis,  e  avaliando  em  35  contos  as  quebras  de  algumas  rendas,  cal- 
culo mais  do  que  modesto,  teremos  os  538  contos,  em  que  orçámos 
no  tâáo  toda  a  renda  dos  nossos  domínios  ultramarinos. 


i.  kjui^uu  oy  Google 


vos  tsiCDLOS  xm  B  um  m 

noalmente  29  contos*,  as  armadas  e  as  fortalezas  da  índia  Posscssses 
consumiam  todos  os  rendimentos,  e  a  guerra  contra  os 
hollandezes  devorava  no  BrazU  o  dobro,  ou  mais.  do  que 

a  possessão  ))i  ()(luzia^.  Os  encargos  ordinários  ariuuaes 
elevavam-se  íi  473  contos,  mas  os  extraordinários,  con- 
stantes, e  de  dia  para  dia  mais  onerosos,  muitas  vezes  du- 
plicai  am  e  triplicai  am  estes  algarismos.  Combatidos  por 
inimigos  aguerridos  e  poderosos  a  um  tempo  na  Ásia»  na  . 
Africa  e  na  America>  cada  esforço  mais  violento  para  os 
repellir,  ou  o  menor  lapso  de  negligencia,  que  os  deixasse 
adiantai ,  iiii[)ortava  iim  sacriíicio,  com  que  não  podíamos, 
ou  uma  perda,  que  nos  diminuía  os  brios,  e  oiíuscava  o 
prestigio. 

Notámos  que  as  origens  da  corrupção,  que  tanto  apres^ 
sou  a  mina  do  nosso  poder  no  oriente»  logo  principiaram 
a  manifestar  a  sua  influencia  nefasta  desde  os  primeiros 
tempos.  O  vice-rel  D.  Francisco  de  Almeida,  escrevendo 

a  el-rei  D.  Manuel,  traçava  os  lineamentos  da  physiono- 
mia  (la  índia  portugueza  com  lajíis  tãn  sovoro.  que  só  nos  - 
devemos  admirar,  de  que  a  dissolução  caminhasse  com 
menos  rapidez,  do  que  na  realidade  se  adiantou.  Os  maus 
conselhos  da  côrte  concorriam  para  isso.  Â  gente  do  mar 
e  parte  dos  soldados  pelejavam  qua^  nus  e  descobertos. 
Os  soldos  e  as  mercês  promettidas  corriam  com  grande 
alrazo,  e  a  descuniiança  de  não  serem  pagos  das  dividas, 

1  A  adaúoistinçfio  das  ilhas  de  Cabo  Verde  custava  i  corôa  an- 
nualmente  7  contos,  a  de  S.  Tbomó  5:400|000iéis,  e  ade  Angok 

e  Benguella  17:OG0|;t)65  réis. 

2  As  despezas  do  rslado  n.i  ilhadaMadeira  subiam  a  Ds^OOi&OOO, 
o  nos  Açores  a  15:(iií0iíKXK)  k-ís.  Os  tres  presídios  de  CfMila.  T:uiger  c 
Magazão  exigiam  annnalmeiitc  93  contos,  a  saber,  Ceuta  :á4,  Tan- 
gn-  o  Mnzagíío  A  fnrtahv.a  de  Arguim  doada  ao  conde  de 
Atouguia  oão  pesava  sobre  a  fazenda. 


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i36 


HISTORIA  m  P0RTD6AL 


Po«MuQ6c  OU  remunerados  dos  serviços  era  geral  em  todos.  O  rei 
iiiramtiiBâs  despachava  em  Lisboa  para  os  melhores  ofQcios  homens 
novos,  e  deixa ui  sem  premiu  us  ([ue  aleijados  das  feri- 
das mais  careciam  de  descanso  honroso.  Estas  injustiças 
'  relativas  ulceravam  os  ânimos,  e  quebravam  as  vontades 
mais  intrépidas  a  uns,  em  quanto  excitavam  em  outros  o 
desejo  e  o  propósito  de  se  indemiiisarem  por  suas  mãos. 
Muitos  capitães  já  se  entregavam  com  tal  cubica  ao  trato 
mercantil»  comprando  e  vendendo,  que  desamparavam  as 
naus»  e  esqueciam  todas  as  obrigações.  Os  soldados»  alem 
de  poucos  e  descontentes,  quasi  desarmados,  queixavam- 
se,  porque  viam  dar  aos  recemchugados  do  reino  o  que 
elles  tinham  ganho  á  ponta  das  lanças*.  Havia  muitas  bai- 
xas por  doença,  c  os  sãos,  dizia  D.  Francisco  de  Almeida» 
andavam  desfallecidos  do  sangue»  da  idade»  da  vida,  e  com 
o  espirito  cansado,  mais  que  tudo  da  ingratidão,  com  que 
se  viam  des{)rczados.  Era  esta  em  1508  a  verdadeira  ima- 
gem dos  homens,  e  das  cousas,  desciipta  pelo  primeiro 
•  vice-rei,  caracter  probo  e  cavalheiroso,  que  os  erros  do 
príncipe  e  a  devassidão  incipiente  dos  súbditos  magoavam 
profundamente.  Gincoenta  annos  depois,  se  D.  Francisco 
de  Almeida  podesse  resuscitar,  e  ver  por>eus  olhos  os  ter- 
ríveis estragos  da  gangrena  social»  é  provável,  que  sua 
penna  ainda  corresse  mais  áspera»  que  a  de  D.  João  de  Cas- 
tro» censor  tão  honrado  e  tão  pouco  attendido  como  elle*. 

^  Lendas  da  índia,  por  Gaâpar  Correia»  tom.  i,  part  ii,  pag.  916. — 
D.  Francisoo  de  Alaieida  acrescentava,  que  taparia,  se  podesse,  os 
buiacos  por  onde  se  nos  ia  mais  o  vento,  e  nota,  que  os  militares 
da  índia  de  aborrecidos  desejavam  passar  a  oatras  terras,  devendo- 
se-lhes  já  até  janeiro  de  i508  cem  mil  cruzados. 

2  Ibidem,  ibidem,  pag.  9i8  e  9i9.  D.  Jofio  de  Castro  na  sua  cor- 
respondência soltava  ainda  censoras  mais  acres,  do  qae  D.  Fhmdaeo 
de  Almeida. 


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DOS  SÉCULOS  xvn  £  xvm 


i37 


Nos  conselhos  celebrados  em  Lisboa  discutiii-se  repeti- 
lias  vezes  qual  era  o  systema  de  cooquistamais  accommo- 
dado  ás  forças  do  reino»  e  mais  apto  para  conservarmos 
e  dilatarmos  o  monopólio  commerelal,  e  parece  qne.  se 
preferia  o  da  fundação  de  presídios  em  todos  os  logares 
que  na  índia  podessera  ser  occiipados  como  chaves  da 
navegação,  ou  como  empórios  mercantis.  Pelo  menos  é 
o  que  se  deprehende  das  ordens  dictadas  por  D.  Manuel 
em  4505  a  D.  Francisco  de  Almeida,  nomeado  vice-rei, 
inani  l/i  lido,  que,  apenas  chegado  ao  seu  governo,  elle  pro- 
curasse construir  com  toda  a  diligencia  fortalezas  em  Go- 
ciiim,  Cananor,  Quiloa  e  Angediva,  nomeando  logo  os 
capitães,  que  as  haviam  de  defender,  e  estabelecendo  o 
soldo,  que  devia  ser  pago  a  mil  e  quinhentos  homens  de 
armas,  duzentos  ])uíiii)ardeiros,  e  quatrocentos  homens 
do  mar  destinados  a  formarem  a  guarnição  permanente 
dos  novos  dominios.  Entre  estes  soldados  quiz  el-rei,  que 
fossem  quatrocentos  indivíduos  com  moradia  na  sua  casa 
e  como  taes  inscríptos  nos  seus  livros.  Os  vencimentos 
olierecidos  mm  avultados  em  relação  á  epocha,  e  con- 
sistiam em  tres  cruzados  ^e  soldo,  e  tres  quintaes  de  pi- 
menta livres  de  direitos  por  um  anno,  e  em  um  cruzado 
para  rações  por  mez  a  cada  lança.  Os  capitães  das  forta- 
lezas só  podiam  começar  a  vencer  depois  d'ellas  concluí- 
das e  cerradas.  Partiram  com  os  officiaes,  que  as  haviam 
de  guardar,  os  feitores,  almoxarifes,  e  escrivães  encarre- 
gados pela  fazenda  real  do  tracto  e  fiscalisaçâo  das  mer- 
cadorias^. 

D.  Francisco  de  Almeida,  avisado  pela  experiência,  re- 
provava o  systema,  que  as  ordens  da  corte  tanto  recom- 
meudavam.  Tratando  da  fortaleza,  que  D.  Manuel  queria 

■ 

1  Ltndoê  da  hêiã,  toOL  f,  part.  ii,  pag.  530  e  531. 


138 


UISTQRIA  DE  PORTUOAL 


PoMMtgw  sem  demoi  a  levantada  em  Coiilâo  em  1í)08,  expunha  sem 
*  disfarce,  el-rei  (|u«iitus  mais  piesidios  contasse  mais 
íraco  íicaria,  {«orqae  todaaibrça  da  coroa  n  aquellas  par- 
tes devia  consistir  em  armadas  e  em  gente  marítima.  Se 
não  formos  poderosos  no  mar(dízia  elle)  tudo  será  logo  con- 
tra  ni'»s  s(M>r<M  de  Cochim  quizesse  mostrar-se  desleal 
seria  dcbliuidu,  ponjuc  as  guerras  passadas  erani  cora 
Jjestas,  e  as  qm}  temos  affora  «ão  com  venezianos  e  tur- 
cos'». Âffonso  de  Albuquerque  seguiu  politica  diversa  e 
parecer  contrario.  O  seu  pensamento  era  ftandar  um  gran- 
de impriiít.  e  nsseiilar-lhe  solKl.uiiciitt'  os  alicerces  em 
padrastos,  que  ao  mesmo  tempo  servissem  de  freio  aos 
inimigos,  de  escala  segura  aos  nossos  navios,  e  de  em- 
pórios ao  nosso  commercio.  A  escolha  da  cidade  de  Goa 
para  cabeça  do  novo  estado,  e  a  tomada  de  Ormuz  e  de 
Malai  a,  [lontos  essfiiciars  para  alinneza  do  senhoiio  mer- 
caalile  miiilar,  allestani  a  sua  elevada  capacidade  como  ca- 
pitão 6  como  conquistador.  Os  successores  exageraram, 
porém,  a  idéa  inicial,  e  multiplicaram  sem  vantagem  as 
fortalezas,  que,  mal  providas  e  exf)Ostas.ise  tornavam, 
quasi  venlndeirus  fiirrars  scni  niais  pivstiiiio,  doijue  exi- 
girem avultada  despeza  e  grande  peida  de  fama,  quando 
alguma  era  rendida.  Calculava-se  em  4:000  pardáqso  que 
se  gastava  em  cada  uma  d^ellas  sem  proveito,  e  os  votos 
mais  auctorisados  sustentavam  a  necessidade  de  airazar 
o  maior  numei  o,  concentrando  as  guarnições  nas  pi  aças, 
que  por  sua  posição  mei'eciam  e  juslií içavam  os  sacrifí- 
cios, como  eram  Mombaça,  Mascate,  Moçambique^  Sofaia, 
Ormuz,  Diu,  Malaca,  e  algumas  outras'. 

1 '  íjmãm  da  índia,  por  Gaspar  Correia,  tom.  part.  ii,  pag.  906. — 
Diogo  do  Couto,  Saldado  Pratico,  dialog.  i,  pag.  144. 
^  Ibidem,  Ibidem. 


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1 


DOS  SÉCULOS  &VU  E  XVIII  189 

D.  Francisco  de  Almeida  tinha  rasHo.  Era  só  nas  arma-  fnmmm 

das  victoriosDs.  i\m  o  nosso  doininio  pndi;!  lii  iiiar-se.  Á 
boa  dislribuioru)  das  loi  ças  navaos  loraivi  di  viuos  os  maio- 
res progressos  da  conquista,  e  á  superioridade  das  tripu- 
lações as  victorias  repetidas,  que  a  dilataram.  No  governo 
de  Nuno  da  Cunha  ainda  cruzava  os  mares  da  costa  dò 
Malabar  uma  grossa  esquadra,  e  outra  assás  forte  todos  os 
annos  visitava  o  estreito.  As  nossas  vélas  nunca  cessa- 
vam de  guerrear  as  praias  e  as  aguas  de  ( luuhaya. p'essa 
epocha  os  rendimentos  d(^  todo  o  estado  ( calnnlanos  em 
mais  de  :á40  contos  em  dezembro  de  1611  i)or  Couto), 
n&o  excediam  iâ8  contos,  c  apesar  disso  todas  as  despe- 
zas  eram  pontualmente  satisfeitas.  Depois  os  gastos  das 
armadas  no  mar  subiram  a  sommas  muito  elevadas,  e  as- 
sim  mesmo  raras  vezes  saíam  os  navios  a  tempo,  porque 
os  estaleiros  e  os  arsenaes  se  arliavani  \asios,  e  indo  vi- 
nha de  fóra,  mantimentos,  veiame,  inarÍnlieiro>  o  oj)('ra- 
rios.  Os  vasos  apodreciam  mezes  e  annos  á  espera  de  i'a- 
bríco,  e  entretanto  os  ofiiciaes venciam  como  se  estivessem 
empregados  em  commis^o  activa*.  Outros  ofiiciaes  sem 
serviços  pediam  e  obtinham  commandos  de  galés,  e  se 
passavam  um  verão  nas  estações  do  norte  no  outro  só 
queriam  as  da  costa  do  Malabar. 

A  obodípncia  e  a  disciplina  tnmavam-se  por  cousas  vãs, 
e  cada  um  íazia  com  plena  impunidade  o  que  o  interesse 
lhe  aconselhava.  N  esse  meia  tempo  folgavam  os  piratas 
malaios,  apresando-nos  por  anno  vinte  e  trinta  embarca- 
ções. A  vida  militar  no  antigo  tempo  era  muito  differente. 
Os  soldados  e  os  marinheiros  sómentc  descansavam  nos 
tres  mozes  de  inverno,  e  n>sses  liilavaiii  com  a  lonie.  A 
bordo  o  seu  regalo  consistia  em  um  prato  de  arroz  compei- 

1  Diogo  áo  Couto,  Soiâado  praUeo,  dialog.  ii,  pag.  46, 47, 83  e  84. 


.  ^    .d  by  Google 


140 


HISTORIA  DB  PORTUGAL 


pMaaaases  xe  salgado,  doitmam  DOS  baocos  dasftistas  descobertos  á 
iitramaiiDu  ^jj^yg  g     g^j^  ^  bebiam  agua  dos  tanques  corrompida. 

Nos  dias  de  (l(?c;idencia,  o  menor  cavalleiro  cobria-se  de 
oiro  (!  de  velludo,  o  rodoava-se  pagens.  Os  peões  hu- 
mildes aspiravam  a  tratar-se  quasi  á  lei  da  nobreza,  to- 
dos fugiam  dos  trabalhos,  e  todos  se  queixavam  da  menor 
contrariedade  como  de  um  vexame  atroz*. 

Os  chefes  das  famílias  illustres  ainda  mandavam  os  fí* 
lhos  e  os  irmãos  para  o  serviço  da  índia,  mas  esta  gente 
fidalga  entregava-se  mais  aos  deleites  e  jogos  de  cannas, 
do  que  aos  exercicios  militares.  Cuidava  muito  em  luzir 
pela  pompa  das  calças  imperiaes  de  seda,  mersacotas  e  ca- 
pas de  escarlata,  e  muito  pouco  pela  escolha  de  boas  armas 
defensivas  e  offensivas.  Cada  um  ao  sair  de  casa  recebia 
para  suas  despezas  300  ou  400  cruzados,  ajuda  de  custo 
que  outí  'ora  se  nâo  pagava  senão  a  cavalleiros  nobres  e  en- 
canecidos nas  armas.  Estes  exemplos  desanimavam.uns,  e 
animavam  esperanças  atrevidas  em  outros, Quasi  ninguém 
se  queria  embarcar  como  soldado,  e  os  poucos,  que  iiavia, 
por  todos  os  modos  procuravam  ficar  em  terra^.  Em 
1616,  já  existia  grande  falta  de  bombardeiros  e  de  mari- 
nheiros, e  para  a  supprir  chamavam-se  os  naturaes  da 
terra  menos  destros  e  valentes,  do  que  exigiam  os  lances 
sempre  proxmios  e  arriscai  los  dií  pelejar  com  europeus. 
O  governo  promovia  o  alistamento  de  bons  bombardeiros 
,  e  marinheiros  portugaezes,  attrahindo-os  com  favores,  e 
ordenando  aos  vice-reis,  que  nos  provimentos  dos  logares 
declarassem  os  serviços  e  qualidades  dos  nomeados,  mas 
quasi  nenhum  se  apresentava;  e,  não  colhendo  fructo  das 
promessas,  determinou  em  1G20,  que  se  recrutasse  um 

1.  Soldado  Pratíeo,  dialog.  i,  pag.  135  e  141. 

*  IKogo  do  Couto,  Soldado  Praiieo,  dialog.  u,  pag.  38  e  39. 


DOS  SÉCULOS  XVU  E  XVUI  14i 

soldado  em  cada  freguezia  do  reino,  a  fim  de  partir  na  Pwsesrtit 
monção  seguinte  para  a  Índia,  correndo  a  sua  conducção 
por  conta  das  camarás  municipaes.  As  violências  pratica- 
das peies  execatoresy  tanto  no  alistamento  forçado»  como 
no  transporte,  foram  todavia  taes,  que  o  clamor  dos  po- 
vos obrigou  o  soberano  a  abrir  uma  syndicancia  áci^rca 
do  numero  da  gente  pedida,  da  embarcada,  e  da  que  lor-  . 
nàra  a  ser  reconduzida  por  inútil  e  incapaz  para  suas  ter- 
ras*. 

A  matrícula  dos  soldados  para  a  índia,  quando  as  fac- 
ções de  guerra  das  mi  niadas  se  interrompiam  só  nus  me- 
zes  de  inverno,  não  inscrevia  mais  de  á:GOO,  ou  3:000  ho- 
mens. Km  1611  o  numero  dos  soldados  arrolados  já  subia 
a  15:000^  e  depois  elevou-se  a  .  17:000»  repartidos  por 
fortalezas,  cidades,  villas  e  castellos,  levantados  em  toga- 
res inimigos,  e  muitos  d^elles  povoados  pelos  filhos  e  os 
netos  dos  primeu  os  íundadores.  Esta  disseminação  im- 
prudente de  forças  era  uma  cansa  constante  de  perigos  e 
desfallecimentos.  Parte  d'esta  gente  com  bens  de  raiz  e 
grande  rendimento  vivia  mais  à  maneira  aàãitíca  do  que 
á  eur«  i]  it'ia,  e,  recebendo  soldo  pelos  livros  do  assenta- 
uiento  militar,  raras  vezes  se  apresentava  para  entrar  em 
campanha.  El-rei  D.  Sebastião,  no  primeiro  governo  de 
D.  Luiz  de  Athaide*  intentou  atalhar  o  mal,  mandando 
que  os  soldados  servissem  em  bandeiras,  e  que  se  lhes 
nomeassem  capitães  austeros  e  disciplinadores.  Uma  das 
rasões  aliegadas  em  favor  da  contmuação  d'aqueile  estado  * 

\ 

1  Carta  i^ia  de  3  de  oatobio  de  Í816. — Livro  da  Corrmpondm' 
cia  do  Desembarco  âo  Paço,  fL  35S.— Carta  regia  de  8  de  novembio 
de  1619^  Uv.  I,  das  Protiedee  e  PrtoUegm  da  Camara  de  Coimbra, 
fl.  2770.— Carta  regia  de  20  de  maio  de  1620.— Livro  da  Corre*- 
INMidmeia  âo  Detembargo  do  Paço,  ÍL  225.  . 


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Hl 


mmau  db  poriogal 


wmmam  de  verdadeira  anarcKia  era,  que  as  tropas  unidas  em  eom- 
iUf«wnMf  pguijjjig^  roubariam  os  povos,  saqueariam  as  cidades,  e 

lualicariaiii  tuiia  a  espécie  de  violências,  lísla  rerm  iiia 
mo  prevaleceu,  conitudo,  e  deiilro  de  poucu  leuipo  o 
desl^xo  e  a  incúria  tomaram  proporções  assustadoras^ 
Os  herpes  da  corrupção  estenderam-se  a  todos  e  a  tudo. 

Se  os  soldados  passeavam  o  Inverno  em  Goa,  e,  apenas 
cliei:n\.i  o  ViTãi»,  se  eseoiítli.iiii  p.iia  nãu  einhaiTar,  não 
liaveiido  quem  pelejasse  e  soccurresse  as  fortalezas,  os  U- 
dalgos  só  punliam  os  olhos  no  interesse,  e  não  cuidavam 
senlo  em  se  enriquecer.  As  tentações  sobravam.  Os 
tíapitles  de  Ormuz  nos  tres  annos  n3o  tiravam  nunca 
dogovtjnio  iiieíius  de  300:000  mil  [lardáos,  os  de  Malaca 
iOOiUOO,  os  de  Diu  e  Cliaul  70:000  e  80:000,  o  os  de 
Mascate  igual  quantia.  Uma  viagem  do  Japão  calculava- 
se  que  podia  render  entre  70:000  e  80:000  pardáos^.  Na 
índia  só  o  Estado  era  pobre.  E,  entretanto,  como  observa 
um  esci  iptor  da  epodia,  com  tantos  tliesiMii-os  i  aiicailos 
por  meios  lícitos  e  ilUcitos»  poucos  medravam  m  vemo, 
sendo  raro&  os  morgados  e  as  casas  feitas  com  elles  1 É  por- 
que a  prodigalidade  se  encarregava  de  desbaratar  depressa 
o  (|ut'  a  culiira  ajuiiíáia  ra[)idamente,  aliopelando  leis  e 
devei  es.  Quando  o  império  florescia  os  costumes  não  cor- 
riam tão  soltos,  e  os  homens  entre<ravam-se  menos  aos 
prazeres  e  ás  sensualidades.  Nenhum  fidalgo  moço  osten- 
tava de  senhor  poderoso,  tendo  casa  e  cavallo.  Pelo  con- 

•  liario  |)Ousa\aiii  aos  cinco  e  seis  com  um  lidiiliío  velho 
sem  mais  |)t)m[>a,  do  que  um  j>agem  e  um  cieado.  Os 
soldados  moravam  também  aos  cinco  e  seis  em  casas  tér- 
reas de  pequena  renda,  possuíam  apenas  duas  capas»  co- 

1  Diogo  do  Couto,  Soldado  Pratico,  dialog.  ii,  pag.  'S3. 

2  Ibidem,  dialog.  i,  p^g,  i57,  «a4»  pirdào  orçava  por  'M^  reaes. 


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TM  sficuLos  xvn  E  xvin 


miam  a  ração,  que  lhes  davam  os  capíties,  e  assim  que 

se  armava  qudl([atír  navio  acudiam  a  gaamece-lo.  Nos 
dias  de  decadência  vesliam-se  como  ruíiães,  trajando 
calções  de  velludo,  espadas  douradas,  c  trancas  e  pasâa- 
manes  ricos»  e  zombando  da  severidade  dos  anftigos  sol- 
dados, que  nunca  largavam  os  saios  de  ^aiingio  pardo,  os 
gibões  da  aiesnia  leia,  as  couras  golpeadas,  as  goi  t  as  de 
Milão,  e  as  espadas  curtas  em  talabartes  de  anta^ 

A  magistratura  não  d^clinára  menos.  Os  juizes,  nomea- 
dos por  empenhos,  eram  na  maior  parte  estudantes  aca- 
bados de  formar  na  universidade  sem  sciencia,  sem  au- 
ctun<la*le,  e  sem  pralica  dos  negócios.  Em  vez  dos  trajos 
compusios,  próprios  do  cargo,  suas  gaias  feriam  os  olhos. 
Calças  recamadas,  capotes  ornados  de  barras  louçãs,  es- 
padas douradas,  cavallos  guarnecidos  de  jaezes  soberbos, 
muitos  lacaios  adiante,  e  muitos  pagens  atrás,  mais  os  fa- 
ziam parecer  embaixadores,  do  que  juizes  de  iinia  rela- 
ção. Os  etTeitos  correspondiam.  £m  terras  conquistadas 
e  rodeadas  de  inimigos,  aonde  era  necessário  trazer  sem- 
pre a  espada  na  mão,  concorria  maior  affiuencía  de  gente 
aos  pretórios  e  audiências,  do  que  ás  armadas.  Os  magis- 
trados, em  vez  de  timbrarem  na  austeridade  e  rigor  dos 
costumes»  usavam  e  abusavam  dos  cargosr^Suas  varas, 
que  não  deveriam  torcer-se,  andavam  tão  delgadas,  que 
se  dobravam  com  a  peita  de  um  rubim,  ou  de  um  dia- 
mante, e  se  inclinavam  alé  ao  chão  cuni  o  [leso  de  dadi- 
vas mais  fíírtes  como  alcatifas,  colchas,  louras  da  Chiua, 
e  outros  brindes  valiosos.  A  relação  custava  vinte  mil  cru- 
zados aonuaes,  e  a  justiça  admoiistrava-se  muito  peior, 
do  que  no  tempo,  em  que  um  Ouvidor  Geral,  um  Ghan* 
ccller,  tí  um  Juiz  dos  Feitos  coiriam  com  lodos  os  pro- 


1  Dkgo  do  Couto,  Soldado  Pratm,  duiq^  i»  pag.  á40  e  i4«, 


144  HISTORIA  DE  i^OBTUGÂL 

FMMiisas  cessos.  Âs  demandas  compravam-se,  e  um  verdadeiro 

exercito  de  escrivães,  e  de  procuradores  sugava  a  sub- 
stancia dos  iníelizcs  coegidos  a  defenderem  seus  direitos 
perante  os  trlbunaes^ 

0  deplorável  alvitre  adoptado  em  1615  pelo  governo 
de  Filip[>e  III  de  p6r  quasi  em  hasta  publica  o  provimento 
das  capitanias  e  dos  cargos  triennaes  acabou  de  accelerar  a 
acção  dissolvente  da  corrupção,  que  não  carecia  de  novos 
estímulos  para  campear  infrene  e  arrogante.  Propozeram* 
se  em  toda  a  parte  como  licitadores  os  que  estavam  de 
posse  dos  iogares,  mas  os  excessos  e  o  escândalo  brada- 
ram tão  alto,  que  a  côrte,  decoí  ridos  pouco  mais  de  dois 
annos,  foi  obrigada  a  deferir  aos  clamores  e  queixas  ge- 
raes,  revogando  esta  mais  do  que  imprudente  disposiç^ 
Dilatar  a  preço  de  contractos  onerosos  os  poderes  dos  ca* 
pitães,  tornando-os  verdadeiros  procônsules,  e  fechando 
de  lodo  as  poi  las  ao  mérito  e  á  emulação,  equivalia  a  ven- 
der os  súbditos  como  rebanhos  á  avidez  dos  especulado- 
res. Quando  o  rei  tinha  de  prohibir  aos  capitães,  que 
tirassem  das  fortalezas  a  artílhería,  as  armas,  e  as  mu- 
nições jiidi>j)eiisaveis  para  a  sua  defeza,  porque  mui- 
tas se  acijavaui  quasi  desarmadas,  era  mais  do  que  sin- 
gular vender-lhes  quasi  a  perpetuidade  dos  caiigos,  que 
serviam  com  tão  pouco  escrúpulo  ^  Nos  armazéns  da  ci- 
dade e  da  Ribeira  de  Goa  nlo  se  respeitavam  mais  os  di- 
reitos da  corôa.  Mastros,  vergas,  enxárcias,  cadernaes, 

1  IMogo  do  Goutp^  Soidado  Pratieos  dialog.  i,  pag.  97,  iOO  e 
lOi. 

2  Antonio  Bocarro,  tom.  i,  Década  i,  cap.  Lxxxvm,  pag.  362  e  366. 
Edição  da  Academia  Real  das  Sciencias  de  Lisboa. — Alvará  de  5  de 
abril  de  1818. — Arckko  Nacional^  liv.  in  de  leis,  fl.  91  e  115  v. — 
Avião  do  1.*  de  dezembro  de  1621. 


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DOS  SEGUROS  XV li  E  XViil  14ti 

vélas,  lonas,  e  artilfaería  de  bronze  e  de  ferro  saíam  sob  pohi»««m 

pretexto  de  empréstimo,  e  nunca  eram  ifstituidos^  «ifa"»™»* 

NHo  ei  a  para  admirar  no  meio  de  taes  dilapidações,  que 
nos  momentos  de  aperto  tudo  faltasse,  homens,  armamen- 
tos, navios  e  apparelbos!  Já  no  tempo  de  D.  João  lU  se 
deploravam  factos  quasi  similhantes.  O  governo,  apesar 
do  recheio  dos  arsenaes  do  reino,  teve  de  mandar  vir  em 
1549  de  Flandres-tres  mil  eossoletes  com  braçaes,  escar- 
cellas,  goijaes  e  celadas,  e  tres  mil  arcabuzes  de  Bolie- 
mia,  talvez  para  acudir  ás  necessidades  da  índia.  Foi  em  24 
de  novembro  d'este  mesmo  anno,  justamente,  que  a  còrte 
decidiu  entregar  Ârzilla  ao  rei  de  Belez,  Muley  Âbu-Aça» 
ordenando  qae  a  guarnição  da  praça,  composta  de  qui- 
nhentos soldados  e  de  sessenta  cavalleiros»  se  reunisse  á 
de  Tanger.  Em  4550,  ArziUa,  a  gloriosa  conquista  de 
AíTonso  Y,  já  se  achava  evacuada  e  desmantelada .  A  ra- 
são  doeste  acto.  se\  í  i  aniente  esíianhado  poi'  todos  os  que 
ainda  não  haviam  esquecido  os  sentimentos  cavalbeirosos 
de  outras  epocbas,  fôra  a  urgência  de  diminuir  as  despe- 
zas  militares  aggravadas  pelos  excessivos  gastos  da  Asia  e 
da  colonisaçSo  do  Brazil,  então  principiada.  Saflm  e  Aza- 
mor  tinham  sido  também  desamparadas  e  arrazadas.  Al- 
cácer participara  da  mesma  sorte*. 

O  esladu  das  praças  do  litoi  al  da  Barberia,  que  a  corôa 
poriugueza  ainda  conservava  no  século  xvii,  assimilliava- 
se  ao  de  muitas  fortalezas  nossas  da  Aftica  oocidental  e 


1  Carto  regia  de  aliríl  de  i6Í7.--.4fvfttt»  IVactò^ 
il.  m 

^  QointeUa»  Amuiet  da  MariiUia  Portuguesaj  tom.  i,  pag.  372^ — 
áfime»  dê  D.  João  IH,  por  Fr.  Luiz  de  Sousa,  Iíy.  n,  cap.  ii,  pag.  354 
e  356.— Coita  de  EUR»  D.  João  m  a  Lmrenço  Pirtt  dê  Tmmra 
datada  d$%dê  junho  de  i550,  liv.  m  de  Lourenço  Pires  de  Távora 
nas  memorias  e  documentos  juntos  ao  texto  dos  Ànnaes  dê  D.  João  Uf* 

IMO  V  10 


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I 


i46  IU3T0«U  I^fi  l»0«TUGAL 

vmmum  da  India\  Em  Mazagão  ateiou-se  em  novembro  de  1623 
iMnnftmti  epidemia  cruel,  piuvocada  pelo  trigo  podre  en\  laiio 
de  Lisboa,  e  seguiu-se  uma  fome  aiuda  mais  assoladora. 
Não  havia  médicos,  oem  boticas.  A  moitaadade  foi  im- 
mensa.  As  quintas  e  hortas  plantadas  junto  dqs  muros  da 
vil  la  e  cercadas  de  altas  paredes  serviam  «de  abrigo  aos 
mouros,  qne  viiiiiaiu  acommette-la,  e  foi  necessano  um  al- 
vará de  âl*rei  para  o  abuso  terminar.  Km  Ceuta  subleva* 
ram-ae  os  moradores,  praticaram  grandes  desatinos,  e 
ousaram  attentar  até  contra  a  vida  do  governador  D.  Fra»» 
cisco  (ití  Almeida.  Os  religiosos  entraram  nos  tumullos,  e 
alguns  d  eiies  foram  apoutadus  como  dignos  de  castigo*. 
£m  toda  a  parte  lavrava  a  mesma  corrupção  inanifestaik 
por  symptomas  andogos.  As  leis  ião  eram  temidas,  nem 
respeitadas.  Os  deveres  mais  sagrados  escameclam-se 
com  irrisão,  e  o  interesse  pe^^ual  em  a  verdadeira  o  única 
norma  do  procedimento  de  todos! 

Os  direitos  da  corda  não  mereciam  mais  respeito  aos 
capUSes  das  fortalezas,  do  que  os  dos  particulares.  Se  filo 
duvidavam  espoliar  os  mercadores,  arrancando-lhes  parte 
cias  lazeiulas,  encen  aji<  io-os  em  cárceres  privados  i)ara  os 
obrigarem  a  resgatar-se,  e  mven4ando  md  vexames,  zom- 
bavam com  igual  desassombro  das  leis  e  de  suas  prohibi- 
(ões,  quando  a  cobiça  os  convidava  a  infrmgí-las.  O  com- 
mercio  da  canella  de  Ceylào  constituia  estanco  real,  e  só 
o  Estado  a  podia  negociar.  Em  1619  o  capitão  geral  da 
ilha  tomava  para  si  e  para  seus  protegidos  mais  de  nove 
mil  quintaes  sem  pagar  nada  por  alies  ao  fisco.iNão  con* 

im— Alvaii  de  29  d»  aelembro  de  I6S1,  Mv.  m  de  leis  i.  117.— 
Qurfai       de  31  de  outnbfo  de  ie38.--iiiBro  ds  Cmretpfmãmím 


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DOS  SÉCULOS  xvn  E  xvm  147 

tm^  com  este  abuso  cobrava  e  mettia  em  si  os  impostos  Possessões 
da  fazenda,  e  coegia  o  vedor  a  levantar  mSo  d'elles.  Em  ^^^"""^ 
1615  parte  da  seda  do  presente  do  rei  da  Pérsia  sumiu- 

se  nas  mãos  venaes  dos  que  deviam  responder  por  ella, 
e  a  de\  assa  tirada  contra  os  culpados  serviu  só  de  Loi  iiar 
mais  estrondíèso  o  escândalo.  Os  excessos  tocai  am  um  tal 
grau  de  desenfreamento»  que  o  governo»  em  i627»  para 
tíSo  cruzar  de  todo  os  braços,  mandou  abrir  um  inquérito 
sobre  os  crimes  e  pecoados  mais  notáveis  commettidos 
na  índia,  e  encarregou  o  desembargador  Paulo  Rebello» 
ouvidor  gcial,  de  o  dirigir  e  continuar'. 

Se  a  devassa  fosse  mais,  do  que  uma  ameaça,  Paulo  Re- 
bello  teria  por  certo  laigo  campo  para  exercer  a  severi- 
dade, e  todas  as  cadeias  e  troncos  não  chegariam  para  en- 
carcerar os  criminoso^.  A  avareza,  a  luxuria  e  a  soberba 
campeavam  desenfreadas,  rindo-se  dos  tribunaes  e  da  re- 
pressão. Os  fsfrandes  e  poderosos  roubavam,  assolavam  e' 
t\ I  iiinisavam  pobres  e  os  iicquenos,  tanto  gentios  e 
riiuuros,  como  chiislàos,  reduzindo-os  a  tal  excesso  de 
miséria,  que  se  vendiam-  uns  aos  outros  e  aos  illiios,  e 
(pie  muitos  fugiam  e  renegavam  a  fé  para  não  se  verem 
nas  masmorras,  padecendo  fones,  a&oiitas  e  tormen- 
tos, ou  por  não  poderem  pagar  os  tributos  e  extorsões, 
com  que  os  opprlmiam  os  senhores  das  aldeias  e  as  au- 
ctoridades  devor:i  1  1-  de  cubiça.  Alem  d'estas  violeucias, 
os  ricos  e  os  prepotciites  não  pagavam  o  trabalho  aos  oííi- 
ciaes  mecbanicos,  os  devedores  ludibriavam  os  que  lhes 
tinbam  vendido,  ou  emprestado,  e  os  fâmulos  e  captivos 
eram  maltratados  com  tanta  crueldade,  que  á  menor  falta, 
ou  descuido  correspondiam  supplícios  dolorosos  e  priva- 
ções  barbaras.  Os  herdeiros  não  satisfaziam  os  legados 

1  Oàrta  re^ia  de  ti  de  jnarço  de  16^7. 

10. 


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148 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


Possessões  pios  (los  parentes  e  <los  amigos  fallecidos,  e  gastavam 
lar^ramente  com  íeiticeiías  e  adivinhos,  poiquf  lhes  li- 
sonjeavam a  avidez  com  íalsos  prognósticos.  Finalmente 
o  íateresse  caooQisado  e  a  perfídia  applaudida  inspiravam 
mil  baixezas,  que  escureciam  o  nome,  o  credito  e  a  glo- 
ria, que  os  anli^^os  portuguezes  haviam  gi  angcado^ 

A  soltura  doò  cubluíaes  corria  sem  temor  de  Deus,  nem 
respeito  das  leis  humanas.  Casados,  solteiros,  velhos  e 
mancebos,  grandes  e  pequenos»  lodos  desbonravam  sem 
pejo  casadas,  viuvas  e  donzellas,  violentandoumas,  e  se- 
duzindo outras  com  tladivas  e  promessas.  Os  escândalos 
não  paravam,  nem  se  continham  diante  dos  vínculos  mais 
sagrados.  Primas,  irmàs,  e  até  filhas  eram  todos  os  dias 
vlctímas  da  sensualidade  bestial  dos  que  deveriam  ser 
os  seus  protectores.  As  excommunhões,  os  interdictos  e 
as  penas  pecuniárias  leriam  debalde.  Os  culpados  fugiam 
das  igrejas  e  dos  sacramentos,  faziam  gala  dos  viclos  mais 
hediondos,  e  espantavam  atè  a  devassidão  asiática  com 
seus  excessos^À  consciência  endurecida  desprezava  aber- 
tamente os  preceitos  salutares,  fundamento  das  socieda* 
des  civilisadas.  Os  bandos,  as  rixas,  e  mesmo  as  guerras 
civis  nasciam  com  lacilidade  d  este  estado  anarchico,  e 
duravam  dois,  tres  e  quatro  annos.  As  lutas  pessoaes  e 
os  recontros  entre  os  cabeças  dos  bandos  e  os  homens  de 
suas  facções  eram  ifuasi  quotidianas,  morrendo  muitos,  e 
caindo  com  frequência  varados  das  balas  velhos,  meni- 
n(js  e  mulheres  estranhos  ás  contendas.  A  inquietação  e 
a  falta  de  segurança  roubavam  ás  famílias  o  socego.  Tre- 

1  Relação  da  mais  extraordinária,  aãmxrax>d,  e  kattmota  tor* 
menta  de  vento. . . «  que  snceedeu  na  hdia  orienkd  na  cidade  de 
Baeam  e  Prieto  na  era  de  1618  aos  i7  do  mez  de  maio*  lia- 
boa.  anno  1619. 


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DOS  SBGULOS  XVII  B  IVIH 


149 


miam  todos,  porque  a  morte  podia  alcança-los  de  repente  Possessões 
e  momentaneamente.  A  justiça  sem  ac^^o  e  sem  força  ^^^'^ 
cruzava  os  braços.  O  fòro  inviolável  das  casas  mais  vene- 
radas rompiã-se  todos  os  dias  sem  a  menor  considera- 
ção*. 

Nem  a  idade,  rifiii  o  sexo.  iif^ni  a  jerarcliia  podiam  sal- 
\  ar  qualquer  pessoa  de  uma  injuria  publica.  Osarruadores, 
tocando  matracas  e  soltando  apupos,  vomitavam  doestos, 
calumnias  e  blasphemías  contra  as  reputações  mais  res- 
peitadas. As  ruas  e  praças,  convertidas  em  theatros  de 
combates  e  varridas  de  pelouros,  raras  vezes  deixavam 
de  a])parecer  ensanguentadas,  e  o  terror  era  tanto,  que 
os  cadáveres  e  os  corpos  dos  feridos  jaziam  muito  tempo 
sem  sepultura,  ou  sem  soccorros.  As  igrejas  e  os  t(  mplos. 
nlo  serviam  de  asylo,  porque  mesmo  dentro  d  elles  es- 
padanava o  sangue  e  se  disparavam  espingardas.  Em 
Bombaibi  traVou-se  uma  briga  dentro  da  igreja  de 
S.  Francisco  no  dia  da  festa  do  parlroeiro,  em  que  pere- 
ceram quatro,  ou  cinco  pessoas,  íicaram  feridas  muitas,  e 
as  balas  partiram  imagens  e  romperam  retábulos.  Em  Ca- 
lejanana,  ilha  de  Salsete,  succedeu  o  mesmo.  Em  Baçaim 
os  assassinos  emboscavam-se  debaixo  dos  alpendres  dos 
conventos  e  ameaçavam  os  frades.  Os  caminhos  para  os 
templos  cobríram-se  de  herva,  e  os  ministros  de  Deus 
eram  tão  mal  tratados  como  os  seculares.  Não  poucos  sa- 
cerdotes e  religiosos,  chamados  a  falsa  fé  para  confissões, 
acabavam  na  ponta  dos  ferros  de  uma  espera  por  terem 

1  RelafSo  da  nutii  esiraordinaria,  admirável  e  lastimosa  tormenia 
de  vento. . . .  que  tueeedeu  na  índia  oriental  na  cidade  de  Baçaim  e 
$pv  districto  na  era  de  1618  aos  i7  do  mez  de  maio.  Lisboa,  aimo 
i619.  Esta  curiosa  noticia  encerra  miúdas  particularidades  sobre  a 
corrupção  e  desenfreamento  dos  costumes  dos  portuguezes  da  índia 
na  primeira  metade  do  século  xvii. 


.  y  1.  ^  .  y  Google 


130  HISTORIA.  DE  POKTIT.AL 

Possessões  estranhado  os  vícios  e  a  ímmoralidade.  Em  S.  Thomé  de 
atrainatiiuis  ji^iijpQj.^  quando  saia  o  Sacramento  um  tiro  prostrou  o 

irmão  que  levava  uma  das  varas  do  pallio,  e  o  bispo  es- 
capou milagrosamente  a  outro  tiro.  estando  a  rosar  no 
seu  oraloiio.  Em  No^^Mpatan  caiu  um  homem  tres[»assado 
de  estocadas  oo  altar  mór  aos  pés  do  prelado.  Em  Chaul 
entraram  soldados  amotinados  na  igreja  da  Madre  de  Deus 
para  matarem  o  capitão  da  cidade  e  o  vedor  da  fazenda, 
que  ali  ouviam  a  missa  U  ^ 

Este  quadro  tragado  com  tintas  verdadeiras  por  teste- 
munhas bem  informadns  representa-nos  a  coirupção  e  o 
envilecimeíitií  dos  earaciei  es,  e  retrata-nos  as  feições  dos 
costumes  soltos  e  desregrados  d'aquelles  dias  de  deca- 
dência e  de  miséria.  As  sementes  venenosas  haviam  sido 
lançadas  â  terra  e  tinham  germinado  muito  antes,  e  no  se- 
>  culo  xvn  as  más  paixões  colhiam  os  fractos.  A  uma  so- 
ciedade assim  gangrenada  não  era  para  admirar  que  fal; 
lassem  todos  os  brios  e  toda  a  acção  enérgica.  Incapaz  de 
qualquer  sentimento  elevado,  a  necessidade  de  affirmar  a 
própria  existência  a  preço  de  sacriíicios  devia  exceder  o 
seu  esforço,  e,  G<MToida  pelos  vícios,  havia  de  assusta-la 
imenos  o  suicídio  do  que  a  resistência.  Os  inimigos  sou- 
beram aproveitar  estas  disposições  funestas,  e  a  ruína  do 
império,  precipitando-se,  provou  até  onde  podiam  alcan- 
çar os  resultados  d  elias. 

E  entretanto  o  triste  espectáculo,  que  descrevemos, 
datava  de  longe,  como  dissemos,  e  quasi  desde  o  começo 
escurecéra  as  epochas  mais  gloriosas.  O  colosso  teve  sem- 
pre pés  de  barro.  As  correspondências  de  D.  Francisco 

1  Relação  da  mais  exÊraordimria,  admiravd  e  lastimosa  tor- 
menta de  vento  quê  entre  as  memoráveis  succedeu  na  índia  oriental, 
na  cidade  de  Baçaim  e  sm  difitrieto,  na  era  de  1618,  aos  17  do  mez 
de  maiio.  Líaboa,  aimo  1619. 


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D06  sffcoLos  xvn  c  xvm 


151 


de  Almeida,  de  Affonso  de  Âlbuqoerque,  e  de  D.  João  de  Po^^o..n,, 
Castro,  dos  treis  maiores  iiomens  qae  viu  talvez  a  Ásia  por-  ^^"^'"^ 
tugueza  no  século  xvi,  provam  assás  com  que  magoa  e 
com  que  dolorosos  presenlimentos  elles  já  apontavam  os 
primeiros  symptomas  do  mal,  e  os  advertiam  a  D.  Ma* 
nuel  e  a  D.  João  IIK  Em  nm  varão  distincto,  Mar- 
tini Alfonso  de  Sousa,  no  logar  eminente  de  governador 
da  índia,  achava  tão  natural  apropríar-se  das  riquezas  ex- 
torquidas, que  escrevia  a  el-rei  desassombradamente,  que 
não  duvidára  acceitar  do  Idal*Kan,  em  premio  de  uma  de- 
cisão dada  em  favor  d  elle  20:000  pardans,  dos  quaes 
empreirára  10:000  em  uma  joia  para  sua  iiiulher,  e  10:0(K) 
em  um  hanquote.  De?cobrindo-lhe  um  sorvo  mouro  do 
desditoso  Meale  o  lhesouro  de  seu  amo,  que  subia  a 
500:000  pardaus,  Martim  Affonso  apossou-se  d'elle,  en- 
viou 300:000  pardaus  a  D.  loão  m  t para  ajuda  do  casa- 
mento da  infanta»,  e  tomou  para  si  30:000,  mandados  a 
sua  esposa,  «por  ser  justo  (dizia  ao  soberano)  ficar  com 
'  parte  quem  podéra  liaver  o  todo»*. 

Quaiulu  o  primeiro  magistrado  do  estado  se  mostrava 
tão  pouco  escrupuloso,  não  era  para  espantar  que  os  fidal- 
gos e  cavalleiros  seguissem  os  maus  exemplos,  talassem 
as  capitanias,  açoutassem  os  .mares  como  piratas,  e  oc- 
cupassem,  e  até  conquistassem  territórios  e  reinos  para 
si,  ou  alistassem  companhias  numerosas  de  portuguezes 


i  O  pleito  decidido  por  Martim  Affonso  era  entre  o  Idal-Kan  e 
Me)ile,  e  versava  sobre  o  senhorio  dèBalegate.  O  goveroadordA  ín- 
dia confessa  ter  esperado  para  reaolver  qoe  om  d'e]le8  levasse  a  me- 
lhor. O  Idal-Kan  comprou  o  voto  a  seu  favc|pr  pda  cessSo  das  Ter- 
ras firmes  de  Goa  e  20:000  pardaus  para  Martim  Affonso!  Dos 
fíOO:00{J  do  lhesouro  áe  Moale,  70.000  pagaram  a  traição  do  mouro, 
e  130:(XI0  as  dividas  de  el-rei.  Annaes  de  D.  João  Ul,  Memoriai 
e  DocumefUos,  pag.  413  e 


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152 


H1:>TURU  DE  FOHTUGAL 


posàtesôes  pai;i  sí-r  vinMii  os  rogiilos  o  os  piiucipes  da  Asia  como 
iiinnaiafts  ;jijxiliares,  vendendo-lliíís  u  saiif^^ue  e  a  esf)a(la  a  peso  de 
oiro.  Antonio  de  Faria,  o  ousado  aveiituieiro  tantas  ve- 
zes citado  no  livro  das  Peregrinações  de  Fernão  Mendes 
Pinto,  representa  um  dos  typos  mais  acabados  d'aqueUas 
existências  animadas  de  ardor  f(^nl,  e  devoradas  de  cubi- 
ca insaciável,  tão  insensíveis  ás  ameaças  dos  periiros  o  da 
morte,  como  aos  melindres  da  li  ura  e  aos  viu  iii  )s  do 
dever.  Irmão  do  capitão  da  fortaleza  de  Malaca,  e  rouhadf) 
peio  corsário  Go^ja-Hacem,  jurára  segui-lo  até  o  destruir, 
e  cumprira  a  promessa  depois  de  uma  longa  serie  de  com- 
bates, de  expedições  e  de  naufrágios.  Recebido  na  coló- 
nia portugueza  de  Nmg-Pó  (Liampó)  (^m  trínmphu,  como 
ura  heroe,  não  duvidára  conceber  e  executar  logo  depois 
o  projecto  de  despojar  os  sepulchros  íins  reis  da  China,  o, 
submergido  nas  aguas  da  enseada  de  iNanquim,  ahi  vira 
terminada  uma  carreira,  que  suas  qualidades  teriam  po- 
dido tomar  utii  e  gloriosa,  se  melbor  direcção  Ibe  hou- 
vera guiado  os  passos  ^ 

Diogo  Soares  de  Albergaria,  outro  aventureiro  illus- 
tre,  mas  ávido,  cruel  e  sensual,  crescera  tanto  em  hon- 
ras e  [írosperidades  no  serviço  dos  asiáticos,  que  chegára 
a  obter  o  titulo  de  irmão  ( k  el-rei,  o  maior  que  o  Pegu po- 
dia conferir,  com  200:0(MVcruzados  de  renda  e  o  com- 
mando  de  800:000  homens\eguiu-se  uma  quéda  tão  sú- 
bita e  despenhada  qfuanto  íòra  rápida  e  deslumbrante  a 
elevação.  O  rapto  de  uma  rapariga  formosa,  aggravado  pela 
trágica  morte  do  pae  e  do  noivo,  concitando  um  grande  tu- 
multo, tomara  proporções  assustadoras.  Despertou  a  jus- 
tiça, já  menos  parcial  em  seu  favor,  e  por  sentença  do  mo- 
narcha  o  criminoso  foi  entregue  á  vindicta  popular.  Diogo 

I  FernSo  Mendes  Piíilo,  Peregrinações,  cap.  m,  ix  e  uaax. 


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DOS  SÉCULOS  XVII  E  XVIII 


183 


Soares  expiou  em  poucos  momentos  as  atrocidades  de  fmmhm 

muitos  aiiíio>  \  m™™! 

As  façanhas  de  Salvador  Ribeiro  de  Sousa  e  de  Filippe 
de  Brito  Mcote  no  mar  e  em  terra  na  fortaleza  de  Sinam 
contra  o  poder  do  rei  de  Arracan  e  de  seus  aliiados,  e  as 
victorias  navaes  de  Sebastião  Gonçalves  Tibau  teriam  me- 
recido seguramente  os  louvores  de  Camões,  se  o  grande 
poeta  não  houvesse  fechado  os  olhos,  qii^indo  principiára 
a  anoitecer  sobre  os  destinos  da  pátria^.  Estes  e  outros 
homens  notáveis,  que  a  séde  de  riquezas  e  a  ambi^^o  de 
honras  levára  ás  mais  remotas  regiões,  trocando  a  defeza 
(la  baiideira  de  Portugal  pelo  serviço  de  príncipes  estra- 
nhos e  quasi  sempre  perMos,  realisaram  prodígios  de 
valor,  realçados  por  admiráveis  rasgos  de  temeridade, 
mas  de  ordinário  sempre  maculados  com  violências  e 
cruéis  extorsões.  Salva  uma,  ou  outra  excepção  rara,  a 
maior  parte  eram  provas  vivas  do  grau  de  insolência  e  de 
impunidade,  que  ousavam  attingir  os  attentados  felizes. 

Quando  os  membros  do  vasto  império  começavam  a 
deslocar-se  enfraquecidos,  não  era  para  admirar,  que  a 
cabeça  também  revelasse  symptomas  claros  de  desfalleci- 
cimeiilo.  Goa,  que  Allonso  de  Albuquerque  escolhera  para 
séde  do  novo  estado,  desde  1510  até  ao  anno  de  1571, 
Qão  tinha  cessado  de  se  engrandecer.  Principiou  então  a 
declinação  a  tomar*se  visivel,\oncorrendo  para  isso  a 
peste,  (jue  no  anno  antecedente  ceifára  grande  numero  de 
iuiLiilantes,  e  o  cltco,  em  que  logo  depois  a  esti-eitou 
o  exercito  do  Idai-Kan.  Restaurada  das  maiores  perdas, 
nunca  mais  reassumiu,  comtudo,  a  antiga  opulência,  e  no 
século  xvn  a  sua  população  christã  Hão  excedia  150  mil 

^  Fernão  Mendes  Pinto,  Peregrinaçôe»,  cap.  cxci  e  cxcn. 
2  Antonio  Bocano^  tom.  i,  Beeadas  cap.  xvna  e  xxx  a  xam» 
6  c»p.  icvn  e  xcvm. 


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i 


m  fttstoKkk  HE  MrrvoAL 

pow«,5c«  almas,  podendo  os  estrangeiros  f[ue  a  habitavam,  indios, 
iitrmMnws  mouros  6  baoíanes,  subir  a  30:000.  As  casas  (»rincipaes 
eram  vastas,  mas  nlo  altas,  e  todas  rodeadas  de  jardins 
espaçosos.  O  governo  consentia  aos  indivíduos,  que  nSo 

prolcssavam  o  cwWi)  f;i(h()lico  a  i  csidíMicia  na  ridade.  com 
prohihifâo  fxpresiia,  porém,  do  exorcicin  pui>li( o  da  sua 
i-eiigião.  Estas  restricções  limitaram  muito  a  frequência, 
e  Goa  estava  longe  de  poder  equiparar-se  a  qualquer  das 
grandes  cidades  mercantis  da  índia.  O  bloqueio,  em  que 
os  hoUandezes  em  1603  a  apertaram,  acabou  de  determi» 
nar  a  decadência,  que  todavia  só  se  fez  sensível  verda- 
deiramente bastantes  annos  depois,,  quando  os  inimi}Tos, 
qiiasi  ^efitiorcs  do  mar,  altrahiram  a  si  o  coiiiniciciu  em 
l)rojuizo  dos  i>orluguezes.  Desde  p>se  dia,  a  pobreza  es- 
tendeu-se  eom  tanta  rapidez  a  todas  as  ciasses,  que  as  pes- 
soas, que  seis  annos  antes  possuíam  rendimentos  no  valor 
dç  2KX)0  coròas,  víram-se  reduzidas  a  mendigar  secreta- 
mente. Os  edifícios  mais  notados  pelos  escriptores  dos 
seculo>  XVI  e  xvii,  como  monumentos,  eram  a  cathedral. 
o  palácio  do  arcebispo,  que  llie  ficava  conliguo,  o  paço 
dos  vice-reis,  iiojc  um  montão  de  ruínas,  a  casa  do  se- 
nado, o  palácio  da  inquisição^  e  o  hospital.  Sob  a  domina- 
Clo  mussulmana  ostentára  a  cidade  mesquitas  e  paços, 
cujos  vestígios  existiam  ainda  em  1583.  A  tristeza  entrou 
de  mãos  dadas  com  a  miséria,  e  despovoou  as  sete  pa- 
rochias,  em  cfue  Goa  se  dividia,  convertendo  em  luto  e 
desconforto  as  pompas  e  os  thesouros,  (pic  poi'  tanto 
tempo  symbolisarim  as  páreas  de  todas  as  regiões  do 
oriente  ^ 

t  Bnsqvejo  Histórico  de  Goa,  pelo  j-everendo  r>ot1inrau  dc  Kln- 
guen,  trailu/ifío  o  ndditado  pnio  sr.  Manuel  Vict^nte  de  Abreu.  Nova 
Goa,  i8o8,  18  c  13. — Quadros  Históricos  dê  Goa,  pclo  ar.  Cae- 
tano Barreto  Miranda.  Margão,  1863,  caderneta  t.* 


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-j 


I 


DOS  SÉCULOS  XVn  E  XVHI  15o 

Chegadas  as  cousas  a  estes  termos»  e  assignalada  por  Possessões 
larga  serie  de  perdas  e  revezes  a  declinação,  o  império 

da  Asia  tornnu-stí  um  encapfío  oneroso  muito  superior 
aos  recursos  de  Portugal,  suscitando-se  já  n'essa  eporlm 
duvidas  acerca  da  conveniência  de  insistirmos  em  guer- 
ras e  sacriâcios,  qae  nos  esgotavam.  A  velha  (piestâo  da 
prefereDCia  da  conquista  de  Africa  volveu  á  téia  dos  de- 
bates. Diogo  do  Couto  e  Luiz  Mendes  deVasconcellos,  o 
primeiro  em  i611,  e  o  segundo  em  1608,  discutiram  os 
dois  pontos,  cada  qual  [nn-  seu  aspecto,  com  grande  co- 
pin  de  rasões  e  de  noticias,  combati  mio  (^outo  em  favor 
da  Índia,  e  provando  Vasconcellos  que  elia  nos  desfalle- 
cia^  Ambos  discorriam  com  acerto.  Minados  os  mono- 
pólios, que  nos  tinham  enriquecido,  e  devassadas  pelos 
estrangeiros  as  aguas  e  os  territórios,  aonde  fòra  quasi 
por  um  século  exclusivo  o  nosso  dominio,  as  condições 
haviam  mudado,  e  era  evidente,  que  nos  faltavam  osmeiòs 
necessários  para  o  sustentar!  Por  outro  Indo  a  exiiedição 
mallograda  em  1578  mostrara  claramente  o  que  devía- 
mos esperar  da  luta  com  os  mouros  de  Fez  e  de  Marro- 
cos, luta  em  que  o  sangue  vertido  nunca  podia  alcançar 
compensação.  Mas  podíamos  largar  os  presídios  africa- 
nos e  muitos  dos  asiáticos,  sem  acabarmos  de  aniqui- 
lar a  reputarão  das  mi  mas  da  monarchia,  e  sem  oilus- 
carmos  a  sn  i  gluna  ?  A  necessidade,  mais  do  que  os 
brios,  impunha,  pois,  a  obrigação  dolorosa  de  defender 
a  herança  do  passado,  e  de  a  defender  com  a  àpprehen- 
slKo  da  inutilidade  do  esforço.  Os  resultados  não  podiam  ' 
ser  outros  do  que  foram.  O  nosso  tempo  acabava,  e  a 
hora  de  cedermos  o  passo  a  obreiros  mais  activos  tinha 
soado. 

1  Couto,  Soldado  Pratico^  dialog.  r,  pag.       152  e  161.— Vas- 
concdlofi,  Sitío  de  lÀsboa,  ediç.  de  17S6,  pag.  19,  dO,  64  e  7d. 


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LIVRO  m 

PARTE  Vm 


I 


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LIVRO  VIII 


FOSCAS  MOAAES 

« 

CAPITULO  I 

A  idéa  religiosa  uma  das  causas  dos  descobrímeolos.  introducção  do  chrisliaaisnio  no 
«diiiMUso  •  tami  ira*  de  GiteT«rd»  •  «i  iH»  de  S.  fhon*.  Oi  ninos  d»  , 

COD^  e  de  Angola.  S«rvi(Oft  e  ambição  d»  conpftahia  d«  Josus.  —  Africa  ortealal. 

Jp^uilas.  Missionarioí  da  ordmi  do  S.  Domingos.  —  O  Bnizil.  Entiuila  dos  primei* 
ros  iiààvei  n\  armada  de  Tliomé  do  Soasa.  GoUegio  da  Bahia.  Missões.  Catechese 
•  oi|[amsa(ão  dai  tíêÊÚ»  ds  índiM.— QMalOei  itbr»  a.  VÊmâfáH  dos  geotiot. 
Providencias  gcvemiiiivas.  Fiiis  particulares  da  sociedade.  —  SapentíçOes  e  costu- 
mei dos  africanos.  Pouco  fruclo  das  missões  entre  elles. — Systena  seguido  pelos 
nússiooarios  no  £razil.  DociUdadâ  dos  índios.  Frofiifida  cocnK^o  da  aoeiedada. 
BasOes  d'eUa  a  «nas  coosoqaeociaa. 

A  idèa  doa  descobrímeiitos  fò&  sòpolitkaeiuer- 
cantil,  Gomo  observámos.  O  infante  D.  Henrique,  devas* 

saiido  os  mares,  |)ropuiilia-so  igualmente  dilatar  a  fé,  e 
estender  a  sua  íuz  as  regiões  afogadat»  nas  lievus  da  ido- 
latria, ou  do  islâmico.  O  seu  fim  era  uuir  a  pi-opagai^ão 
mm  extensa  da  lei  de  Christo  com  o  engrandecimaoio  da 
monaFcbia.  Affooso  V  e  D.  João  U  obedeemm  ao  wmnt^ 
pnncôúo»  e,  dobrado  o  cabo  da  Boa  Espamca»  paten- 
teado o  novo  caminbo  do  oriente,  I>.  Mann^  e  seus  sne- 
cessores  sempre  tinham  procm  ad*)  íDiiciliar  iio  impuiia 
fiindado  a  tão  graiiil»^  dislaucia  da  jiati  la  o  zélo  da  divulga- 
do da&  verdades  religioeas  ootu  os  ^ft^r^sii  BMinrtanofí 


160  HISTORIA  DE  PORTUGAL 

MiiiOM  e  commerciaes.  Entre  os  qiisodios  gloriosos  da  conquista 
a  palavra  de  Deus,  especialmente  nos  sertões  aíHcanos 
e  nas  florestas  virgens  da  America,  abrira  pelo  menos  tan- 
tas vezes  a  estrada,  como  a  lança  e  o  air;iluiz.  An  lado,  e 
com  frequência  adiante  dos  capitães  v  dus  sul(l;nli)>.  que 
a  ferro  e  fogo  iam  levantando  os  padrões  da  occupação,  e 
erguendo  as  muralhas  dos  presídios,  caminhavam  os  ar- 
roteadores  da  dvilisacio,  os  núncios  do  fúturo,  os  mis- 
sionários, armados  unicamente  da  eloquência  do  exemplo 
e  da  persuasão,  e.  quando  mais  tarde,  os  dias  de  prospe- 
ridade se  trucaram  fielos  dias  de  iníoi  luiiiu,  só  a  ciuz  al- 
çada por  suas  mãos  íicou  de  pé  para  suster  em  muitas  par- 
tes a  dominação  vacillante,  ou  para  conservar  em  outras 
pela  firmeza  das  crenças  de  longos  annos  a  memoria  dos 
que  a  sorte  da  guerra  arrojára  para  longe,  não  sobrevi- 
vendo d^aquelle  poder  soberbo  e  arrogante  s^ão  a  tra- 
dição do  valor  dos  que  o  haviam  sustentado,  os  vestigios 
Duiica  apagados  da  lingua  fallada  por  elles,  e  a  saudade 
dos  sacerdotes,  que  primeiro  haviam  aberto  os  olhos  da 
ahna  a  tantas  populações  soltas  de  todos  os  vínculos  da 
religião  e  da  mond  até  á  vinda  d'eUes.  . 

  ac^o  combinada  da  doutrina  e  das  armas,  aplanando 
as  difficuldades  debaixo  dos  passos  dos  descobridores, 
assegurou  o  estabelecimento  da  nossa  influencia,  consoli- 
dando-a  melhor,  do  (pie  a  força  so  píir  si  lograi  ia  faze-lo. 
A  obediência»  tomada  mais  iacii  e  prompta  pela  suavidade  , 
dos  costumes,  e  a  confiança  ainda  mais  efiãcaz,  do  que  a 
violência,  approximaram  os  vencidos  dos  vencedores,  e 
a  pouco  e  pouco  applacaram  as  reluctancias.  Intentando 
avivar  alguns  dos  traços  capitães  d'este  quadro,  mais  in- 
structivo  e  fecundo,  do  que  a  l  inlin  a  épica  dos  cercos  o 
batalhas,  não  encobriremos  as  sombras,  que  o  maiul.i- 
ram  em  diversos  logares;  mas  justos  e  imparciaes  com  u 


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DOS  SÉCULOS  XVII  £  XVUt  i6i 

passado,  não  cederemos  Umbem  a  paixões  momeota-  MtM&w 
neas,  negando  os  serviços  prestados  pelas  corporações 
religiosas,  e,  mais  que  todas,  pela  companhia  de  Jesus. 

A  semente  lançada  por  ella  foi  tão  proliíica,  que  resistiu 
aos  séculos,  porque  a  fé  amda  lioje  florece  em  muitas  par- 
tes transformadas  pelos  seus  trabalhos.  Desabaram  os 
impérios»  succederam-se  os  invasores,  mudaram  as  in-  ' 
stitnições,  caiu  a  poderosa  sociedade  fiilminada  pelo  Va- 
ticano e  pelos  reis»  mas  os  sulcos  profímdos  lavrados  por 
ella  e  regados  com  o  sangue  dos  seus  martyres  n9o  se 
arrasaram,  mas  o  nome  de  Christo  e  a  lei  de  amor  e  fra- 
ternidade, ensinada  pelos  padres,  vivem  lioje,  como  vi- 
viam ha  quatro  séculos,  no  coração  de  milhares  de  cren- 
tes, e  são  a  esperança  e  a  consolação  de  outros  obreiros. 
Abafada  entre  espinhos  e  açoutada  pelo  sopro  das  perse- 
guições, a  vinha  do  Senhor,  plantada  no  século  xvi  pelos 
novos  apóstolos  no  meio  do  orgulho  de  seitas  hostis  e 
do  odio  implacável  das  idolatrias  intolerantes,  existe 
ajiula,  e  coIh  i>>e  de  folhas  e  de  íructos! 

Os  povoadores,  mandados  pelo  infante  D.  Fernando, 
para  colonisarem  algumas  das  ilhas  do  arcbipelago  de 
Gabo  Verde,  foram  os  primeiros  catechistas  n'aquella 
região  antes  deserta,  e  ammada  a  pouco  e  pouco  pela 
cultura.  Os  negros  arrancados  do  continente  vizinho,  diz 
João  de  Barros,  mais  vinham  receber  a  salvação,  du  que 
o  captiveiro,  plirase  elegante,  mas  pouco  em  harmonia 
com  a  verdade.  De  certo,  mal  chegavam,  recebiam  logo 
o  baptismo,  mas  que  doutrina  para  se  confirmarem  na 
cr^ça  podiam  aprender  dos  que  só  punham  os  olhos  no 
interesse  que  seus  braços  robustos  promettiam,  desbra- 
vando e  arando  a  terra?  Arrastados  dos  sitios,  aonde  ti- 
nham visto  a  luz,  sem  educação,  e  moderada  apenas  pela 
coacção  do  ton  or  a  bruteza  da  indoie,  não  devemos  sup- 

TOMO  T  11 


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HISTOEU  BE  POKTUGAL 


MiuBM  por,  que  as  iicQes  da  lei  evangélica,  dictadas  qaasi  ao  aca- 
so, fhictíficassein  muito  em  almas  agrestes,  ulceradas 

pela  escravidio,  cegas  dos  erros  e  abuâões  da  supersti- 
ção gentílica,  e  obcecadas  pelas  praticas  da  feitiçaria  boçal, 
que  ainda  hoje  enreda  os  seus  descendentes.  Ciiristãos 
dc  norae,  estes  neopliytos  untam  ás  falsas  exterioridades 
*  catbolicas  todas  as  torpezas  de  seus  ritos  absurdos  e  de 
suas  indmaçOes  sensoaes. 

Acudiram  da  proifiucia  do  Algarve  alguns  fr«des  finan- 
dscanos,  chamados  para  extirparem  as  más  bervas  da 
seara  nascente,  e  depois  d'elles  outros  sacerdotes  con- 
correi aiii  tamh(»m  a  ])astorear  o  rebauiio,  que  ía  e^n  cres- 
cimento, mas  pouco  melhorado.  Por  íim,  no  reinado  ^e 
D.  João  Ili,  em  153â,  Giemeute  YU  elevou  esta  duristan- 
dade  a  bispado,  assignatido4he  por  ôrcumscrípçâo  todo 
oarchipelago  com  trezeutas  e  dncoenta  léguas  de  terra  fir» 
me  desde  o  rio  Gambia  até  ao  cabo  das  Palmas,  e  recom- 
mendando  a  el-rei  o  seu  primeiro  prelado  Braz  Neto,  se- 
gundo o  estylo  da  chancellaria  i'omana.  Braz  Neto  não 
cbegou,  comtudo,  a  tomar  posse,  e  o  primeiro  bispo  que 
se  assentou  n'aqueUa  cadeira  foi  D.  Francisco  da 
Qm,  provido  «m  Mas,  se  o  zélo  dos  pr^os  era 
gratiite,  maiores  foram  ainda  as  difficuldades  oom  que  ti- 
veram do  liitnr,  e  as  necessidades  espirituaes,  tanto  das 
illias,  como  da  costa  de  (juinc  todos  os  annos  soccorrida 
por  visitadores  incumbidos  de  levarem  as  consolações 
religiosas  aos  christãos  do  Rio  de  S.  Domingos  e  do  ^ 
Grande.  Os  tuctos  doesta  visita  annual,  nullos,  aui|uasi 
miUos»  confome  attesta  um  escriptor  dos  fins  do  ae- 

í  Cédula  consist  e  bulia  Pro  excellenti  prceeminentia  de  31  de 
janeiro  de  e  a  bulia  (jre08  Dominici  de  25  de  agosto  de  1536, 
I  a.*>  Aiofaive  síqíqmI,  na^  â84e  Imttu  jl*  iS  e  maç»  ii  a.*  ft. 


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w»  «GDU»  jya  E  una  m 

coio  XVI,  o|o  con^spoDderam  ás.espennças»  e  as  b(m  mm 
crenças  esmoreeeram  em  vez  de  8e  dilatarem^  Em  1604 
tomou  a  companhia  de  Jesus  isobre  seus  hombros  maíft 

esta  empreza,  c  o  i)a(lre  Balthazar  liaiíeira  partiu  com 
dois  .<()ei()s,  os  padres  Maimei  de  Barros  e  Manuel  Fernan- 
des, munidos  de  instrucções  adequadas. 

0  padre  Fernande»  faliecea  kigp,  ma»  Baitfaaiar  Bar*  * 
reira  nlo  perdeu  o  animo,  e  nos  amioi  .seguinte»  pereiír» 
rea  a  costa  de  Serra  LeÔa.  Mk)  consta,  porém,  que  os  pa-* 
dree  íizessefn  mlie^lo  em  S.  Tbiago»  ou  em  outra  iUia,  e 
sómerite  s^'  apontam  vestígios  da  casa,  que  llies  Diandou 
construir  Sebastião  Fernandes  em  Bigudá.  Em  1623 
eram  já  notáveis  os  abusos,  e  uma  junta  consultava  ao 
goveroo  o  modo  de  os  prevenir  na  admmistratfio  doba- 
ptísmo  aos  negro*  aduttoe  de  Gabo  Vente  e  de  Guiné, 
assim  como  a  urgência  de  attender  oom  pro^dencía 
prompta  á  resjdeacia  dos  jesuítas  em  Cacèeu,  instando 
pela  oppoii  unidade  de  se  conferirem  poderes  inquisito- 
riaes  a  um  eoiesiastioo  incumbido  de  syndicar  e  de  punir 
os  deiictos  uii^âíús  à  iunsdio^  do  santo  officio.  Quasi 
ao  mesmo  tempo  ordenava  a  caria  rogta  de  â  de  joiiao  de 
1024,  que  nas  licenças  concedidas  aos  padi^  da  compa- 
idiia  para  novas  londações  nas  iUias  do  archi pélago  e  em 
Caclieu  se  inserisse  a  clausula,  de  que  nunca  podesstan 
Uerdar  \>fiíb  de  raiz.  Tres  annos  (le])Oii>  um  ducreto,  ex- 
pedido em  25  de  novembro  de  1627,  ordenava  que  los- 
sem  conciliados  os  jesuítas  ácerca  do  modo  pratico  de 
se  foodarqn  nas  universidades  de  Portugal  seminários 
bem  povoados  de  negros  da  costa  de  Africa  para  eUes, 
depois  de  habilitados  com  os  estudos  theologicos,  saírem 

1  And]  é  Alvai^es  de  Almada,  IMmio  bum  dm  rim  de  GmÊé  4 
Cãbo  Verde  eeaipto  l£í94. 

il. 


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m 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


Minsos  a  missionar»  julgando-os  mais  aptos,  do  (juo  quaesquer 
outros,  para  resistirem  ao  clima,  e  mais  próprios  para  ex- 
plicarem a  palavra  de  Deas  aos  seus  compatriotas.  Todos 
estes  esforços  aproveitaram  pouco,  e  desde  1641  a  costa 

de  Guiiió  não  tornou  a  ver  a  roupeta  dos  padres  da  com- 
panhia, pouco  affeiroados  a  liocarem  os  Iriumphos  ro- 
Ihidos  na  Asia  pelos  trabalhos  obscuros  de  uma  pregação 
quasi  estéril  nos  sertões  africanos  ^ 

Em  S.  Thomé  causas  diversas  produziram  efieitos 
quasi  análogos.  Golonísada  principalmente  por  judeus  e 
por  negros  idolatras,  ou  mahomelanos,  alem  dos  degre- 
dados, a  ilha  sempre  se  resentiu  da  influencia  d'este  nú- 
cleo, tanto  nas  crenças,  como  nos  costumes.  Embora  os 
hebreus  portuguezes  fossem  lavados  nas  aguas  do  baptis- 
mo antes  de  deixarem  o  Tejo»  assim  como  os  pretos  apenas 
diegavam  á  povoação,  os  antigos  erros,  mais  poderosos 
do  que  a  voca^o  forçada,  tomavam  mais  certa  a  dissimu- 
lação (lo  que  sinceras  as  novas  crenças,  hiutilisando  as 
dihgeucias  dos  sacerdotes,  que  acompanharam  Alvaro  de 
Caminha  em  1493,  e  dos  missionários  eremitas  de  Santo 
Agostinho,  (jue  partiram  de  Lisboa  em  1500  com  Fernão 
de  Mello,  e  fundaram  um  mosteiro  da  sua  ordem.  Cres- 
ceu rapidamente  a  população,  e  augmentou  com  ella  a 
christandade  em  S.  Thomé  e  nas  ilhas  do  Príncipe  e  de 
Anno  Bom,  amas,  como  observa  um  escriptor  nosso, 
n'aquella  seara  avultaram  sempre  o  joio  do  judaísmo,  os 
espmhos  das  superstições  gentílicas,  e  a  íei  rugem  dos  ví- 
cios e  devassidões».  D.  João  III  no  seu  ardor  devoto  con- 
vocou mais  obreiros,  e  impetrada  de  Clemente  VU  a 

i  Lopps  Lim.i,  Etnaios  snhre  n  Estatística  (í«.s  Posspí^sõf'.^  Portu- 
(juezm  dú  Ultramar,  liv.  i.  cap.  vii. — lÀoro  da  Correspondência  da 
Mesa  da  Consciência,  11.  130. 


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DOS  SÉCULOS  XVII  E  XVIII 


bulia  de  erecrão.  obteve  em  janeiro  de  1533  o  novo  bis-  rnsoa 
pado,  qne  Paulo  III  confirmou  em  3  de  novembro  de 
1S34,  bispado»  cuja  círcumscrip^o  extensíssima  compre- 
hemlia  os  reinos  do  Congo  e  de  Angola  com  centenares 
de  léguas  de  circuito,  e  que  foi  deciai  íkío  siiffrafraneo  do 
arcebispado  do  Funchal  até  ao  anno  de  1550.  Erigido  em 
1595  o  bispado  do  Gongo  e  Angola  por  Clemente  VIU,  o 
districto  do  de  S.  Thomé  na  terra  firme  ficou  limitado  ás^ 
missões  do  Gabão,  Benim,  Oére,  Dahomé  e  Accará,  mis- 
sões eventiiaes  e  do  pouca  utilidade  entre  povos  bi  uiu:os, 
e,  alem  d'isso,  pouco  ajudadas  da  uncção  dos  padres,  que 
ás  cultivaram,  e  que  não  foram  feUzes  n'elias.  Os  desre- 
gramentos, que  a  igr<  j  i  intentava  combater,  permanece- 
ram. Os  colonos  brancos  e  pardos,  raça  abastardeada, 
indolente  e  corroiiipuici,  cuntinuaram  a  viver  atolados  no 
lodaçal  da  ci  apula  e  da  dissolução  mais  íeias  ainda  pelas 
exteriondades  e  arremedilhos  beatos  com  que  se  co-. 
bríam.  Os  pretos,  constituindo  já  entUo  a  parte  mais 
numerosa  da  poitulaçâo,  dad(js  á  embriaguez  e  á  ociosi- 
dade, fugiam  do  trabalho,  e  detestavam  os  senhores, 
ameaçando-lhes  constantemente  a  vida  e  a  segurança, 
como  provou  em  1594  a  rebellilo  do  caudilbo  Amador. 

Os  descobrimentos  dos  navegadores  de  D.  Joiio  n  fo- 
ram seguidos  logo  de  tentativas  para  introduzir  a  religião 
catholica  em  algumas  das  terras  vistas  por  elles.  A  famosa 
baixada  do  Congo,  convertida  e  baptisada  em  Portu- 
gal, e  a  enviatura  de  Gonçalo  de  Sousa  ao  reino  africano, 
acompanhado  de  tres  frades  dominicos  e  de  architectos 
incumbidos  de  construirem  uma  iíjreja,  f(  n  mam  um  dos 
episódios  mais  notáveis  do  governo  do  príncipe,  que  en- 
tão regia  os  destinos  do  paiz.  O  cbrístianismo,  encon- 
trando no  soberano  e  nobreza  do  Congo  disposições  fa- 
voráveis, diííundiu-sc  çom  iacilidade,  e  em  breves  aimos 


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166  HISTORIA  DE  PORTUGAL 


iBiritat  domíDOu  a  cOite  e  as  pessoas  princápaes  K  Em  1596  Cle- 
mente VIU,  pela  buUa  Super  Specula  de  20  de  maio, 

desmembrando  o  bispado  de  S.  Thomé,  creon  a  nova 
diocese  do  Congo,  e  os  profrrossos  do  cullo  cfiiiliíiUfii  ãm 
a  couliiniar  as  esperanças  aliançadas  desde  o  começo. 
Mas  em  Angola  a  propagação  da  fé  adiou  maiores  obstá- 
culos. O  biapo  de  S.  Thomé,  D.  Fr.  Gaspar  Cam,  escre- 
via em  30  de  fevereiro  de  1560,  muito  duvidoso  da  con- 
versSo  d'aquellas  gentes,  se  el«rei  lhes  nBo  concedesse 
em  premio  a  faculdade  de  negociarem  directamente  cora 
S.  Thomé.  Apesar  d  isso  dizia,  que  os  padres  da  compa- 
nhia estavam  decididos  a  partir  por  lhes  parecer  que 
n'esta  occaaião  Deoa  os  cbamava^ 

De  feito  resolveram  os  jesuítas  acceitar  a  nova  missão  e 
cultiva-la»  entrando  em  Angola  com  o  primeiro  governa- 
dor Paulo  Dias  de  Novaes*  Mostrou-se  o  povo  más  dis- 
posto a  ouvi-los,  do  que  supi)unham,  poi  qoe  a  sua  cnm- 
municaçãu  com  os  habitantes  do  Congo  já  tinlia  aplanado 
os  caminhos.  Ao  mesmo  tempo  os  clérigos  embarcados 
na  armada  de  Pauio  Dias  levantavam  no  morro  de  S.  Pau- 
lo, boje  cbamado  de  S.  Miguel,  a  parochia  de  Nossa  Se- 
nhora da  Guia.  A  palavra  dos  missionários  da  companhia 
operou  em  Loanda  e  seos  arredores  bastantes  conver- 
sões, elevandu-se  a  christandade  em  toda  esta  região  em 

'  1  Cédula  consiai  de  31  de  janeiro  de  1533,  Ho^  Sonetiumut.— 
Bblla  de  Paulo  m,  Aequim  repnUmvr  de  3  de  noTembro  de  1534. 
Foi  Ben  primeiío  Inspo  B.  Diogo  OrÚt  deVilliegas.  Arehivo  Nado- 
nal,  maços  de  bulias,  n.«'  13  e  17,  30  e  33.  A  desmembraygQ  do 
Gongo  e  Angola  (i'este  bispado  foi  feita  pela  buUa  Super  Speãila  de 
SO^ipaio  de  1595. 

*  Itézende,  Chroniea deEl-Rei  D.  João  II.  Archivo  Nacional.  Corpó 
Ghronologíeo,  part  h  maç»  10&,  doe.  l^,^B¥lUartm  CoUec$io,  ete., 
pag.  m 


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DOS  SÉCULOS  XVU  £  XVIIi 


167 


algum  tempo  a  20:000  almas.  As  amas  do  goveniador,  WMm 
felizes  e  audazes,  subjugaram  os  sovas  do  rei  de  Ángola, 

mas  o  pequeno  poder  dos  portu^mezes  e  a  demora  dos 
soccorros  aniinai  ain  as  rel)elliões  dos  mais  atrevidos,  e, 
morto  Paulo  de  Novaes  em  1589,  a  lastimosa  derrota  do 
seu  successor  perto  das  margens  do  rio  Lucaia  anoullou 
em  grande  parte  as  vantagens  ganhas  á  casta  de  tantos 
satríficios.  O  governo  de  Lisboa  despertou  por  fim»  e  em 
1592  uma  esquadra,  transportando  quatrocentos  bomen^ 
de  ariiias  i)  cincoenta  cavallos,  commandados  pelo  novo 
governador  D.  Francisco  de  Almeida,  fez  crear  novo 
alento  aos  nossos,  na  idéa  de  que  este  poderoso  auxilio 
lhes  abonaria  prompta  e  completa  desforra  dos  revezes. 
A  má  vontade  dos  jesuitas  sacrífícoú,  porém,  o  êxito  da 
guerra  á  satisfaço  dos  seus  resentimentos  K 

A  Gompanbia,  ao  passo  que  rasgava  nos  sertões  as  sen- 
das da  civilisação  christã,  não  se  esquecia  de  grangear  ao 
mesmo  tempo  para  si  os  interesses  mundanos,  servindo- 
se  da  auctoridade  espiritual  para  altrahir  exclusivamente 
os  povos  conquistados,  para  attenuar  a  auctoridade  da 
corda  portugueza,  e  para  avultar  aos  olhos  d*eUes,  quasí 
como  soberana,  a  sua  protecção.  Explorando  com  a  des- 
treza usual  os  costumes  locaes,  acceltou  dos  sovas,  sujei- 
tos, a  obediência  eflecliva  a  ijuo  dava  jus  o  titulo  de 
«amo»,  e  valeu-se  da  conOanra,  que  os  negros  deiiosita- 
vam  nos  seus  missionários,  para  alargar  sem  ruido  esta 
absorpçâo  pacifica,  declarando-se  junto  do  governador 
activa  defensora  dos  que  imploravam  a  sua  benevolência, 
e  usando  de  todos  os  meios  para  os  convencer,  de  que 
nenhuma  voz  seria  mais  attendida.  Paulo  Dias,  melhor  ca- 

^  Lopes  Lima,  Ensaio  sobre  a  Estatística  das  Posseaõtí  PortM- 
(fuexas  do  UUrwMir,  liv.  ui,  introducçSo,  pag.  dl  a  xvm. 


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168 


IIISTORU  OE  POKTUGAL 


iiímom  pitão,  (lo  que  politico,  caiu  no  laco,  e  desejoso  de  recom- 
pensar os  serviçus  dos  padres  annuiu  ás  petições  dos  so- 
vas, e  repartiu-os  pelos  padres,  pelos  capitães  e  pelas 
pessoas  distíDCtas.  A  corte  de  Madrid,  avisada  do  artificio, 
viu  os  perigos  da  nova  theocracia.  N3o  era  precisa  na 
realidade  muito  aguda  penetração  para  rcceiar,  pelo  me- 
nos, que  os  jesuítas  aspirassem  mn  dia  ao  domínio  iilil 
de  Angola,  como  por  um  plano  símilhante  usurparam  o 
do  Uraguay^  Verdadeiros  senhores  dos  sovas,  que  só 
os  conheciam  a  elles,  e  que  para  tudo  invocavam  a  sua 
valios;]  innuencia,  e,  tendo  sabido  conciliar  alliados  zelosos 
/lOs  capitães  e  nos  liumens  de  valia,  contemplados  com  a 
sociedade  no  despojo,  não  admira,  que  os  padres,  domi- 
nados pela  idèa  de  colherem  os  melhores  fructos  da  con- 
quista, oppozessem  ás  ordens  de  que  D.  Francisco  era 
executor  uma  vi<?orosa  resistência,  tão  bem  succedidt, 
que  Almeida,  assustado  e  desgostoso,  larguu  das  mãos 
as  rédeas  do  poder,  e  embarcou  quasi  fugitivo  para  o 
Brazil^ 

Desde  este  dia  a  tutela,  que  a  sodedade  de  Jesus  que- 
ria exercer  n'aquella  região  longiqua,  aílinnadapelo  trium- 
pho,  estendeu-se  a  tudo  e  a  todos,  e  em  muitas  occasiões 
governou  mais,  do  que  os  ministros  do  rei.  Embora 
tivesse;  sido  coegida  a  abdicar,  a  soberania  dos  sovas,  o 
seu  predominio  padeceu  pouco,  e,  coberta  com  as  armas 
espirituaes,  as  mais  fortes  d  aquella  epocha,  e  com  a 
affeição  dos  povos,  o  seu  apoio  tomou-se  tão  necessário  ás 
auctoridades,  que,  para  o  obterem,  n^o  pozeram  limites 

1  Fernio  Guerreiro,  Relação  do  Amo  dê  1605,  pag.  i06  e  126. 

'  Lopes  Lima,  Emab  M6r«  a  Eãiaiuêiea  da»  Poueitõ^  Portu- 
guBZa»  do  VUramar,  Uv.  nr,  cap.  vil — Gneneiío,  RBlaçm  Anud 
do  quê  fêMerm  09  padres  da  camfaiMk  dê  Jètm,  1005. 


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DOS  SÉCULOS  XVII  £  XVUI  160 

ás  condescendências.  O  clero  secular,  posloque  já  iiu-  M«8d«s 
meroso.  não  ousava  competir  comos  padres,  nem  mettia 
a  mão  nos  negócios  públicos.  Só  no  anno  de  i604  é  que 
os  religiosos  da  ordem  terceira  da  penitencia  trilharam 
as  praias  de  Ângola  e  fundaram  no  extremo  meridional 
de  Loanda  um  convento  sob  a  invocação  de  S.  José. 
Obedientes,  modestos  e  cuidadosos  empregaram-se  cora 
zéio  nas  missões,  emquanto  o  bispo  D.  Fr.  Simão  Masca- 
renhas, lutando  vinte  e  dois  annos  depois  com  a  altiva 
isençlo  dos  jesoitas,  lhes  descarregava  o  primeiro  gol- 
pe, transferindo  para  a  capital  da  província  a  sé  de  Santa 
Cruz  do  Congo,  provendo  as  parochias  existentes  em  pres- 
byteros  da  sua  escolha,  e  creando  outras  também  depen- 
dentes da  jurisdição  episcopal,  A  sociedade,  ferida  no 
poder  e  no  amor  próprio,  desistiu  desde  entUo  de  missio- 
nar, e  dedicou-se  a  trabalhar  para  si,  enviando  todos  os 
annos  um  navio  e  dois  patachos  ao  resgate  dos  escravos 
edasmercadorias,  e  desfructando  sem  fadiga  o  privilegio, 
que  a  eximia  em  toda  a  parte  do  pagamento  de  direitos  ao 
fisco.  O  governo,  para  acudir  â  falta  de  obrmros  evangé- 
licos mandou  era  1627  fundar  ura  seminário  no  Gongo, 
aonde  fossem  doutrinados  doze  moços  naturaes  da  terra, 
e  ordenou,  que  se  advertisse  aos  superiores  da  companhia 
a  obriga($3o,  que  os  religiosos  residentes  em  Ângola  ti- 
nham de  penetrarem  no  sertão,  e  de  se  occuparem  da  con- 
versão das  almas 

Na  Africa  oriental  floresceram  mais  os  serviços  da  com- 
panhia. Em  1560  saíram  de  Goa  os  primeiros  jesuítas 
destinados  áquellas  regíQes,  e,  apóstolos  emartyres,  dei- 
xaram assellado  com  o  sangue  do  seu  chefe,  Gonçalo  da 

» 

1  Lopes  lima.  Carta  Regia  de  3  de  junho  de  I627.*-Í4e»v  do 
BfgUto  da  Meta  da  Omidateía»  fl.  63,  v. 


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0 


m  mBTOMA  BB  rarmAt 

MMMi  ^veira,  o  testemunho  gloiioso  da  sua  fé  nos  domínios  do 
Monomotapa.  Nove  annos  depois  outros  religiosos  do  mes- 
mo instituto  seguiram  Francisco  Barreto  na  expedição  do 

descobrimento  e  conquista  das  minas.  e.  eutrando  á  som- 
bra (las  armas  portiiguezasemRios  dcSena,  reduziam-osá 
obediência  com  a  doutrina,  como  os  conquistadores  com  a 
espada.  Em  1577  já  tinha  concorrido  outra  ordem  a  tomar 
parte  na  coDverS&o  d'aquellas  gentilidades.  Foi  a  dosdomi- 
nicos.  Aconselhados  por  D.  Luix  de  Athaidenasua  ida  para 
a  índia  construíram  em  Moçambique  uma  casa  para  cura 
6  agasalho  dos  padres,  que  passavam  do  reino  para  a 
Ásia,  e.  concluída  a  obra,  occupou-se  em  allumiar  as  tre- 
vas, em  que  viviam  submergidos  os  cafres  da  terra  firme. 
O  novo  convento  recebeu  o  nome  de  Nossa  Senhora  do 
Rosario,  e  foi  acoeito  em  1579  pelo  capitulo  provincial 
de  Lisboa. 

Cresceu  o  numero  dos  que  o  habitaram,  e  deram  co- 
meço ás  suas  peregrinações  pelo  interior,  subindo  a  cor- 
rente do  Zambeze  até  ao  Monomotapa  K  Em  1580  passou  a 
SoíalaFr.  João  Madeira,  e  auxiliado  por  outros  pregado- 
res do  mesmo  habito,  ainda  levou  mais  longe  a  palavra  de 
Deus.  Os  missionários  da  casa  de  Moçambique  edificaram 
em  Sena  a  igreja  de  Santa  Gatharina,  e  em  Tete  um  tem- 
plo dedicado  a  S.Thiago,  e  instituíram  confrarias,  assim 
como  em  Sofala  e  em  outras  partes.  Finalmente,  alongan- 
do-se  pelo  sertão,  pastorearam  as  igrejas  abertas  nas  fei- 
ras de  Luanse,  Massa pa  e  Manica,  e  estenderam  a  pré- 
gaçSo  até  á  ilha  de  Madagáscar,  aonde  faUeceu  de  doença 
Fr.  Jo9o  de  8.  Thomás.  £m  Manica  nos  principies  do 

1  Bordalo,  Eníiatos  de  Estatistica  das  Posspí^sões  Portuffuezas  m 
Ultramar^  serie  2.*,  liv.  iv,  cap.  ix,  —  Hislorin  de  S.  Domingos, 
part.  ui  e  iy,  por  Fr.  Luiz  de  Sousa  e  Fr.  itucas  de  Santa  Catharina, 


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DOS  SÉCULOS  xvn  E  vm 


171 


seealo  xvn  existiam  tres  parochias,  e  os  irigaríos  da  or-  im« 
dem  de  S.  Domingos  alcançaram  as  feiras  de  Gbipíríviri, 

Mixonga,  Ongoe,  Umba,  Dhipangura,  Matura,  e  outros 
logares.  Mais  tnrde,  flcsgraradamonte,  os  apostolus  con- 
verteram-se  em  uegociantes,  e  escanilalisaram  a  sua  lei 
e  a  morai,  escravlsando  cafres,  mercadejando  no  sertão, 
e  lavrando  cúm  avidez  os  terrenos  pingues,  qoe  pos* 
saiam  ^  O  contacto  das  riquezas  empanon-lhes  o  lastre 
das  antigas  virtudes.  O  papa  Pauto  V  separou  em  4612 1 
ilha  de  Moçambique  e  toda  a  cosia  oriental  da  Africa 
desde  o  cabo  Guardafu  até  ao  da  Boa  Esperança  do  ar- 
cebispado de  Goa  pela  bulia  In  Supereminenti  de  21  de 
janeiro,  e  creou  uma  nova  prelazia,  de  que  foi  primeiro 
administrador  ecciesiastico  D.  Fr.  Domingos  Torrado,  bis* 
podeSalé^ 

Mas  aonde  a  actividade  da  companhia  de  Jesus  desco- 
briu thealro  mais  amplo  e  accomiiiodado  a  suas  aspira- 
ções foi  na  America.  As  cíipitanias  povoadas  iio  roinado 
de  D.  João  III  princi[)iavam  a  prosperai".  Em  volta  d  ellas 
dilatavam-se  grandes  extensões  baldias,  que  a  vontade 
perseverante,  coadjuvada  pelos  auxílios  indispensáveis 
podia  ir  convertendo  successivamente  em  terras  producti- 
vas.  A  beira  dos  immensos  rios  e  na  orla  das  florestas  im- 
penetráveis existiam  aldeias  de  Índios,  que  a  Ijoa  douíi  iiia 
devia  trazer  ao  redil  da  igreja,  e  que  de  puis  de  domados 
podiam  oiferecer  milhares  de  braços  á  lavoura  e  á  in- 
dustria. Os  primeiros  jesuítas,  que  visitaram  o  Brazll, 
Nóbrega  e  Anchieta,  ainda  não  advogavam  as  idéas  de 
liberdade  depois  sustentadas  pelos  homens  eminentes  da 

i  Bordalo,  Ensaio$  wobte  Oi  PmmSa  Fortiu^uauu  do  Uitra- 
mút,  «ene  2.*,  liv.  tf,  eap.  ix. 
*  n»dem,  ibidam. 


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HISTORIA  D£  PORTUGAL 


MiMOas  sociedade,  e  entendiam  que  os  colonos  só  por  meio  da 
guerra  poderiam  alcançar  do  .í^enliu  o  rcspiMlo,  n  sore^Mi 
6  segurança  do  suas  propriedades,  não  tiavendo  outro 
caminho  para  levar  ao  seio  dos  matos  a  luz  do  evangelho 
senSo  o  que  as  armas  e  a  força  consegníssem  romper.  Os 
Índios,  dizia  Anchieta,  mais  por  medo,  do  que  por  amor, 
se  hão  (](»  n^mir.  Nol)i'eí,'a  notava,  (jueagente  bruta,  en- 
tregue ao  seu  alvedrio,  resistiria  á  palavra  e  ao  exem- 
plo^ e  lembrava  que  não  se  colhéra  mais  fructo  dos  tra- 
balhos anteriores,  do  que  o  baptismo  de  algumas  creanças 
innocentes.  Estas  opiniões  manifestadas  vm  15o9  e  1561 
variaram  com  as  circumslancias.  Decorridos  aiinos  os 
casulstas  do  instituto  defendei  am  a  these  opposta,  talvez 
menos  em  nome  da  humanidade,  do  que  em  proveito  da 
politica  pessoal,  disfarçada  com  rasões  eloquentes  e  ge- 
nerosas 

0  padre  Manuel  da  Nóbrega  e  seus  companheiros  na 
missão  do  Brazil  vieram  na  armada  de  Thomé  de  Sousa 
com  ordem  de  fundar  na  Bahia  nm  coUegio,  e  de  appli- 
carem  todos  os  esforços  á  propagação  da  fé.  Aportaram 
em  29  de  março  de  154í)  ás  praias  americanas,  o,  em- 
pregando os  meios  próprios  para  exaltar  os  sentidos, 
começaram  a  visitaras  aldeias  em  procissão,  de  cruz  al- 
çada entoando  cânticos.  A  musica  rendeu-lhes  mais  cora- 
ções, do  que  a  palavra.  Ao  encanto  d'estas  melodias  novas 
e  maravilhosas  p.ii  ci  rllas  as  solidões  alpestres  abriram- 
se,  e  muitos  índios  vieram  unir-se  ao  cortejo  dos  missio- 
nários. Aproveitando  a  conversação  dos  convertidos  o 

1  Hislaría  Gmil  do  BrasU,  por  um  sócio  do  Instituto  Histórico, 
tom.  I,  secç.  xf.—Anme$  do  Rio  de  Janeòro,  6.*,  g.<»  e  57.» — Pri- 
meira carta  de  Nóbrega  eacripta  na  Bahia,  Bibliotheca  Pobllca  de 
Eroro. 


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DOS  SÉCULOS  IVn  B  XVHI  173 

padre  João  de  Aspicnelta  Navarro  estudou  a  sua  língua  mímow 
com  assiduidade,  e,  reduzindo-a  ás  regras  grammaticaes, 
habilitou-se  parà  prègar  ii'ella  aos  naturaes.  O  padre  Nó- 
brega, não  menos  z.eloso,  mongera\aos'colonos,  e  devia 
dirigir  a  escola,  aoude  seus  lUlios  aprenderam.  O  collegio, 
elevado  em  um  dos  logares  mais  formosos  da  cidade,  pro- 
mettia  pateutear-lhes  em  breve  as  portas  das  aulas. 
Nóbrega  apenas  chegaram  da  Europa  mais  obreiros  cui- 
dou logo  em  os  espalhar  por  toda  a  província,  estabele- 
cendo por  via  d'elles  notícias  e  relaçQes  mais  frequentes 
entre  as  villas  e  povoações,  para  avivar  os  sentimentos  de 
fraternidade  entre  os  habitantes  das  diversas  capitanias. 
Navarro  foi  mandado  para  Porto  Seguro  com  os  irmãos 
Francisco  Pires  e  Vicente  Rodrigues.  AlTonso  Braz  e  Si- 
mão Gonçalves  partiram  para  o  Espirito  Santo.  O  padre 
Manuel  de  Paiva,  depois  de  uma  curta  excursão  aos  Ilhéus, 
voltou  a  tomar  conta  do  collegio  da  Bahia,  emquanto  Nó- 
brega VI  Si  lava  as  capitanias  do  sul 

Kstcs  serviços  prestados  á  civilisação  e  á  unidade  bra- 
ziteira  ibram  seguidos  de  outros  não  menos  valiosos.  A 
côrto  olhava  attenta  para  os  progressos  da  colónia  por 
tanto  tempo  esquecida,  e  em  1550  impetrou  da  Santa 
Sé  a  creação  do  bispado  dá  Bahia,  separando  da  diocese 
do  Funchal  todas  as  terras  da  America  para  as  sujeitar  á 
jurisdicção  da  nova  mitra.  Julio  111  annuiu,  v.  a  bulia  Su- 
per Specula  de  25  de  fevereiro  de  1550  satisfez  os  dese- 
jos de  el-rei  e  os  votos  d'aquellas  christandades.  Pero 
Fernandes  Sardinha,  theologo  conhecido  no  reuio,  foi 
eleito  e  confirmado  bispo,  e  em  outubro  de  1551  estava 
na  Bahia.  Prudente  e  moderado  nlo  quiz  encetar  con- 
tra os  abusos  reformas  ruidosas,  julgando  mais  util  des- 

1  Historia  Geral  do  BraxU,  tom.  i,  seeç.  xv. 


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mmilll  DB  FOSfOffiAL 


Mkuèm  siauilar,  do  que  punir.  Cuidou  de  elevar  peio  exemplo 
as  fiueções  ecdesiastkas,  tratoa  de  revestir  da  maior 
poQij^  afi  solemnidades  do  culto,  e  confiou  ao  governa* 
dor  a  submissíSo  dos  índios,  seguro  (afilnnava  elle)  de 

que  s<3  o  feiTu  não  lavrasse  os  sulcos,  nunca  aquella  terra 
.  brava  abraçaria  a  semente.  Esta  idéa  era  tanibeni,  corao 
vimos,  a  dos  padres  Nóbrega  e  Aiicbieta,  que  o  bispo 
ouvia  e  consultava.  O  govenK)  da  metrópole,  informado 
da  a»i6tenda  dos  fesuitas  nos  differentes  distnctos,  e  dos 
mais  fiuctQg  da  sim  catecbese»  recommendou-os  em  ler- 
mos iionposos,  n$o$6a  Hem  de  Sá,  como  aos  vereadores 
e  procuradores  da  cidade  de  S.  Salvador,  e  tanto  a  au- 
ctoridade  -liiuiina  da  província,  como  o  .senado  ac cede- 
ram com  prazer,  porque  o?  religiosos  \)ov  suas  virtudes 
tiataaiii  grangeado  a  veneração  e  a  estima  geral  K 

liem  de  Sá  farcKceu  as  missões,  e  o  nomfiro  d*eUas 
no  seu  tempo  clie^u  a  dee  na  distancia  de  dose  kguas 
para  os  differentes  lados  da  Baliía  até  Gamamú,  e  havia 
riiissão  que  não  cuíilava  menos  de  cinco  mil  neopliylos.  Na 
aldeia  do  Espirito  Santo  só  n  um  dia  se  bapii-Hi  uii  tre- 
zentos quarenta  e  sete.  As  oonviersões  em  outros  loga- 
ras  aobíram  a  alguns  miliiares*  As  escolas  muito  6ie- 
(foeiítadas»  porque  algmaas  ensinavam  trezentas  e  mais 
croancas,  concorriam  ^ara  os  progressos  do  chrístíaDls^ 
mo.  As  missões,  ao  que  parece,  estavam  lambem  sujeitas 
n<j  temporal  aos  j  vidres  sol)  as  -apparencias  do  tíoverno 
domestico  4e  uma  espeae     alcaide»  ou  meiriubo  mdio. 

1  Historia  Geral  do  Bi'azU,  secç.  xvitr,  xvi. — Mera  de  Sá  para 

siibmetter  os  indios  reunia-os  cm  grandes  pogúlliacs  ás  ordens  de 
UJTI  principal  da  raça  d'clles,  e  a^rrregava-ihes  parochos  jesuítas. 
Quatro,  ou  cinco  tabas,  ou  aldeias  constituíam  uma  só  missíto.  Fun- 
daram-se  então  a  de  S.  Paulo  sobre  O  rio  Vermeilio,  do  Espiíito 
Santo  no  rio  Joaone, «  ooteas. 


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DOS  âEGIHX)S  Xm  Ik  XVIII 


Para  lisonjear  os  naturaes,  bastava  promettei -lhes  a  posse  mímím 
de  uni  iidiica  k  adeia)  e  a  de  um  pclíuiriiiho.  Nos  colle- 
gios  da  compautua  a  iingua  tupi  e^Uuiavâ^âe  methodica- 
mente»  e  os  saoeniotos  haiMlilavam-«e  para  « laliar.  Itom 
de  Sá  conseguira  suboiétter  o  gentio,  nus  esta  parle  da 
sua  gerência,  seodo  bastante  árdua,  podia  dizcr-se  ainda 
a  menos  diiiicil.  Restava  o  essciidal,  e  esse  consistia  em 
assentar  as  bases  do  systeiaaittais  provciloso  de  o  gover- 
aar,  lornaodiH)  utii  a  si  e  ao  eatadk»»  Devia  adiuilir-oa  o 
l^cipío  da  servídio»  e  4»iiS6olir  que  os  colonos  se  ro- 
sarcissem  dos  ix^rigos  e  despezas  passadas  com  o  (l  ai^a- 
Hk)  dos  indigeiías  apnsioiiaiios?  Este  me<u  €uiiie<  ara  a 
^vaieoer  taciiamente  m  hvml  Os  iasuitas  oppozer amr 
ae»  poite*  e  os  irtíNuiaes  do  reino»  convencidos  pelos 
seas  âiigusMitos»  dedararann-fle  em  kvor  d'«Ues.  Os  co- 
lonos pediam  braços  mais  baratos,  do  *  i  iie  os  dos  escravos 
vendidos  e  transporlados  por  alto  [)i't?ço  das  praias  aiii- 
ciAis.  Os  i)adres  oomlMitiam  pela  libeidade»  mvocaado 

solidas  e  im^oadims,  •  esámB  uns  e  «nutoos  a  * 
oôrle  oio  saiiia  iBoilas  veaesdecidír-fieeas  saasreaolii- 
ções  se  contradiziam  muitas  vezes.  A  ver  dado  era,  que  os 
iadiús  livres  das  aideias,  missões  da  companhia,  im- 
ames  e  protegidas  contra  ds,  vioieociaá  eximias,  lâo 
passavam  de  oervos  dia£ui(ado6,  iralMifasiMio  como  tees» 
tanto  nos  coliegios,  ^nmo  rm  iems  transfanoadas  «a 
ro(*^s  e  engenhos.  As  tarefas,  couitudo,  eram,  suaves  a 
admeoiação  «ibundante  e  sadia  ^ 

A  oôrle  contínnava  a  èesilar.  llepois  «leéiawerdncre- 
tado  em  1570,  que  os  índios  nioiNNieriam  mt  redoiidos 
a  captiveiro,  promulgou  em  1587  a  lei  de  2â  de  agosto, 
restrictiva  já  do  principio  absoluto  da  liberdade.  Diversas 

1  Hittoria  Girai  do  BnuU,  seeç.  iix. 


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176 


RISTOBU  UB  P0ATV6AL 


MiuQfl»  provideocias  se  succederam  ainda,  mas  fluctuando  sempre 
entre  as  condusões  das  duas  opiniões  extremas.  A  in- 
fluencia dos  jesuitas  predominava  visivelmente  em  Lis- 
boa nos  conselhos  do  rei,  e  no  Brazíl  pela  considerado 

dos  serviços  prestados.  As  mercês  repetiam-se,  e  lodos  os 
favores  pareciam  poucos  para  os  recompensai'.  A  sua 
auctoridade  era  mais  positiva  e  efficaz,  do  que  a  do  gover- 
nador. A  companhia  de  Jesus,  contraria  a  todos  os  arbí- 
trios» com  que  se  havia  conformado  por  necessidade  no 
tempo  de  Mem  de  Sâ  e  de  seus  successores  sobre  este 
assumpto,  alcançou  do  governo  de  Madrid,  pelo  valimento 
dos  seus  agentes,  a  publicação  da  lei  de  1  i  úí)  novembro 
de  le^95,  que  só  mandava  reputar  juslas  as  gueiras  feitas 
em  virtude  de  provisões  regias,  e  por  conseguinte  só  le- 
gítimos prisioneiros  os  indios  captivados  n'eUas.  O  moti- 
vo da  lei  era  prevenh*  o  abusos  das  incursões  violentas 
intentadas  unicamente  com  o  fim  de  fazer  escravos  no 
sertão,  abuso  cruel  e  assolador,  que  fora  origem  de  gran- 
des atrocidades.  Mas  este  primeiro  passo  não  contentou 
ainda  os  padres,  e  em  5  de  junho  d(;  160o  e  em  4  de  março 
de  1608  declarou  a  corôa  por  uma  vez  forros  e  livres  os 
Índios»  considerando  iUegal  em  todos  os  casos  o  seu  ca- 
ptiveiro»  claustQa  que  a  lei  de  30  de  julho  de  1609  con- 
signou explicitamente  e  de  um  modo  terminante,  espe- 
cificando em  tudo  iguaes  aos  colonos  mesmo  os  que 
vivesseui  como  gentios  fieis  a  seus  ritos  e  superstições, 
e  estabelecendo  que  os  jesuitas  fossem  os  seus  curado- 
res sempre  ouvidos  peio  governo  locai  no  que  respeitasse 
ao  seu  regimen  e  directo  K 

* 

1  Archivo  Nacional  liv.  i  de  leis  de  157G  a  1012,  ll.  168  e 
lÍT.  II  de  leis  de  im  até  im,  il.  30.— Jíútona  Geral  do  BrazU, 
secç.  xzv. 


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DOS  SÉCULOS  xvn  E  XVIU  177 

Esta  Victoria  resolveu  o  pleito,  mas  peccoo  provável-  m 

mente  por  decisiva  de  mais.  O  governador  Diogo  Botelho 
não  duvi(l;ira  lutar  contra  a  influencia  da  (ompauhia, 
arremessaridii-lhe  a  luva.  Botelho  reprovava  o  syslenia 
da  separação  dos  indios  em  aldeias  suas,  adoptado  pelos 
padres,  e  preferia  o  meio>  a  seu  ver  menos  contingente^ 
de  os  arrancar  das  tabas»  e  aggremia-^los  aos  povoados 
para  serem  distribuídos  pelos  colonos.  As  provisões  de 
5  de  junho  de  1605  e  de  4  de  março  de  1608  vieram 
atar-lhe  as  m^os,  mantendo  as  disposições  da  lei  d('  1 587 ,  e 
depressa  expiou  a  ousadia,  sendo  obrigado  a  recuiher-se 
ao  reino  antes  da  chegada  do  seu  successor,  como  já  acon^ 
tecêra  em  Ângela  a  D.  Francisco  de  Almeida.  A  derrota 
publica  do  primeiro  magistrado  da  colónia  redundou  em 
augmento  de  poder  para  os  jesuítas,  e  a  questSo  dos 
Índios  assumiu  proporções  maiores,  do  (jue  a  prudência  • 
aconselhava.  O  /jf  ntin  amparado  negava-se  a  todo  o  tra- 
balho, mesmo  propondo  os  proprietários  contratos  van- 
tojosos  de  pagamento,  ou  de  soldada,  e  só  se  prestava  a 
lavrar  as  fazendas  dos  padres,  cujos  productos  affluiam  ao 
mercado  mais  baratos,  porque  n9o  era  possível  concorrer 
com  os  seus  preços,  custando  aos  outros  quasi  o  dobro  a 
exploração  agrícola  K 

A  camará  de  S.  Paulo  requereu,  que  fosse  peí  mittidu 
aos  moradores  alugarem  os  braços  dos  índios  das  aldeias. 
O  governador  deferiu-lhe,  mas  os  índios,  protegidos  pelos 
missionários,  quebravam  as  promessas,  e  não  havia  modo 
de  os  coagir.  Nas  outras  capitanias  succedía  o  mesmo, 
e  os  colonos,  carecendo  de  trabalhadores  para  as  roças 
e  para  a  lavra  minas,  adopLaiam  o  alvitie  dcorga- 
nisareni  bandeiras  de  guerra,  e  de  entrarem  com  ellas 


1  HiMoria  Geral  do  BrazU,  secç.  xxv. 

TOM  T 


9 


m  HISTORIA  DE  POBTUGAL 

mmm  pelo  sertSo,  prendendo  os  gentios  muito  longe  e  fóra  da 
jQiiBdifi(j9o  da  sociedade  da  Jesus.  Simiihante  estado  nio 
podia,  nem  devia  prolongar-se,  e  a  côrte,  convencida 

d  isso,  promulgou  a  lei  de  10  de  setembro  de  1611,  con- 
ferindo a  apreciação  da  necessidade  das  giierras  a  unia 
junta  sujeita  ao  beneplácito  r'i\)l.  Pai  ece  evideule,  que  o 
zélo  da  liberdade  dos  indíoâ  não  era  o  uoico  motor  do  [)ro- 
eadimento  dos  jesuítas,  e  que  poderosos  interesses  politi- 
eoe  e  mercantis  preponderavam  no  seu  animo.  Sentiores 
das  consciências,  das  vontades,  e  dos  braços  dos  índios, 
pouco  deixavam  nas  aldeias  á  coroa,  e  ainda  muito  menos 
aos  colonos  *. 

Outras  ordens  religiosas  se  tinham  associado  á  obra  ci- 
vilisadora  da  conversão,  de  que  os  jesuítas  foram  com- 
tudo  os  agentes  principaes.  No  governo  de  Manueà  Teiles 
Barreto»  na  epodia  da  çolonisaçlo  da  Parahiba,  os  bene* 

dictinos,  os  capuchos  de  Santo  Antonio,  e  os  carmelitas 

observantes  vieraui  ajudar  os  discípulos  de  Santo  Igna- 
cio. Us  benedictinos,  estabt^lecidos  em  li)8i  na  cidade  de 
S.  Salvador,  fundaram  depois  outra  abbadia  no  liio  de  Ja- 
neiro» e,  estendendo  as  raises  pela  província,  chegaram 
a  contar  sete  abbadias  e  varias  presidências.  Os  capuchos 
ainda|se  diffundiràm  mais.  No  principio  constituiram  uma 
só  província  independente,  mas,  crescendo  em  numero, 
dividiram-se  em  duas.  A  séde  da  pi  iineira  permaneceu 
na  Bahia,  e  a  casa  capitular,  calieça  da  st^gunda,  passou 
para  o  Rio  de  Janeiro.  Os  carmelitas,  introduzidos  no 
mesmo  período,  levantaram  os  primeiros  conventos  em 
Olinda  e  Santos,  e  alcançaram  também  formar  duas  pro* 
víncías,  uma  nas  capitanias  do  sul,  e  a  outra  nas  do  norte. 
Os  carmelitas  calçados  entraram  mais  tarde.  No  começo 

1  Bitíona  Geral  do  Brcaií,  aecç.  xxv. 


.  y  i.u  .  l  y  Google 


DOS  8BCUL0S  XYD  B  119 

do  século  xvn  a  vioba  do  Senhor  na  Amenea  e  m  ou*  mmí 

tras  partes  era  tão  procurada  pelos  frades  e  monges  dos 

diversos  institutos,  que  a  corte  pi-ohibiu  em  4609  a  ftin- 
daçãu  lie  convénios  sem  licença  re^Ma,  e  que  em  10:^4  teve 
de  dictar  as  <  ondições  para  a  cdiíicagão  dos  aovos  mos- 
teiros de  capuchos 

Gs  serviços  d  estes  religiosos  não  eram  todavia  gratuí^ 
tos.  Só  qs  padres  da  companhia  possuíam  mais  de  6  coo* 
tos  certos  de  renda  em  1611.  O  clero  secular  d3o  me* 
recia  menor  protecção.  Em  1008'  o  governo  augmentou 
consideravelnienfe.  não  só  a  doinção  do  bispo,  mas  as 
GOiigi  uas  dos  uuiios  padres,  subindo  esta  vei-ba  da  des- 
pesa publica  amais  de  7:800^0í)(l  réis,  sem  incluir  o  que 
recebiam  alguns  vigários  das  províncias  do  suL  Outra  pro- 
visão dispoz,  que  nos  arrendamentos  dos  dízimos  fossem 
logo  separados  os  subsídios  e  ordinárias  dos  ecclesiasfi- 
cos,  privilegio  injusto  c  odioso-.  FilippelV,  accedendo  á 
petição,  que  lhe  lôra  presente  áceiva  dos  males  padecidos 
pela  capitania  do  Rio  de  Janeiro  no  espiritual  pela  íalta 
de  prelado  próprio,  tanto  porque  entre  ella  e  aBahia  me- 
diavam perto  de  duzentas  léguas  de  distancia,  como  pelo 
perigo  dos  ordinandos  por  essa  rasão  terem  de  ir  ás  pos- 
sessões americanas  da  Hespanha,  alem  de  outros  incon- 
venicíiUiS  não  Mh';,o>  r^raves,  íirdiTiára  em  7  de  ouiubro 
de  ao  marqut  z  de  Casleilo  Ho-lriuo,  seu  embaixador 
em  Roma,  que  imi)eírasse  da  SauLa  Se  a  graça  de  erigir 
a  administração  do  Rio  em  Só  Episcopal,  e  nomeara  bispo 
eleito  a  Lourenço  de  i^endonça,  acrescentando  i;500  cru* 

1  Historia  Geral  do  UrazU,  tom.  i,  socr.  xxil. — ReciiUl  doinsíi' 
tiito  Histórico  do  Brazil,  tom,  u,  p.ng.  43í>. 

2  ibidem,  tom.  i,  secc.  xxv. — Provi  sOo  de  10  ds  novembro  de 
1611. 

11. 


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180 


msrroftu  bb  portuoal 


mÊóm  zados  á  côngrua,  qae  elie  já  percebia  como  admíDístrador 
ecclesiastíco  da  capitama^. 

Os  rápidos  traços,  qae  acabámos  de  lançar  sobre  nm  as- 
sumpto dtí  iíidoie  tão  complexa,  apesar  de  imperfeitos  e 
de  incompletos,  parecem-nos  suíiicientes  para  mostrar, 
que  a  corôa  de  Portugal,  logo  desde  os  primeiros  amios 
do  descobrimeotOy  ou  da  occupacão  das  ilhas  e  continentes 
sajeitos,  effectiva  oa  nominalmente»  ao  seu  domínio,  tra- 
balhou sempre  por  alçar  a  cmz  de  Ghrísto  a  par  da  soa 
bandeira,  e  por  crescer  com  as  paredes  das  igrejas  e  coa- 
ventos  a  pardas  muralhas  dos  presidios.  Se  a  espada  con- 
quistou e  venceu  os  inimigos  armados,  a  palavra  dos  mi- 
.nistros  de  Deus,  enviados  do  reino  nas  esquadras,  ainda 
conquistou  e  venceu  mais  almas,  impondo  ás  populações 
subjugadas,  idolatras,  ou  mahometanas,  o  freio  suave  da 
moral  e  doutrina  evangélicas.  Os  que  por  mal  informa- 
dos accusam  o  padroeiro  de  não  ter  sabido  cumprir  os 
deveres  onerosos  impostos  [)elus  caiifnies,  não  conhecem 
os  factos,  e  desmentem  a  historia.  Os  sertões  e  as  praias 
da  Africa  e  da  America  foram  regados  com  o  sangue  dos 
martyres  das  missões  apostólicas  quasi  tantas  vezes  quan- 
tas os  regou  o  sangue  dos  soldados.  A  companhia  de  Jesus 
rasgou  em  muitas  occasiões  as  primeiras  sendas,  mesmo 
nas  regiões  africanas,  aonde  a  sua  vocação  foi  menos  acti- 
va, i'  no  Brazil  tornou-se  uni  iii>tiiimento  podeioso  de 
civilisação  e  de  unidade.  As  outras  ordens  seguiram-lhe 
os  exemplos,  fim  todas  vaif^es  notáveis  pelas  virtudes, 
pela  abnegação,  e  pela  pureza  da  vid^  e  dos  costumes 
attestaram  o  ardor  da  sua  fè,  e  a  sinceridade  com  que  o 
governo  e  o  paiz  empregaram  os  maiores  esforços  para 
os  coadjuvarem. 

1  Carta  regia  de  %t  de  agosto  de  1640.— iimna  dê  Carta*  Begka 
da  Mna  da  Contctenda,  fl,  168. 


DOS  S£CULOS  XVU  B  ^TD! 


i8i 


A  luta  dos  missionários  com  os  erros  dos  povos  bar-  míssõcs 
baros  correu  em  muitos  legares  prolongada,  e  em  outros 
estéril.  Derramou-se  o  sangue  do&  que  vinham  prégar  o 
perdão  das  offensas,  e  não  poucas  vezes  paixQes  e  cubiças 
sillãs  lançaram  o  fogo  á  seara,  quando  ella  principiava  a 
aitídrar.  O  santo  nome  de  Deus,  falsamente  invocado  por 
homens  de  armas  sedentos  de  oiro,  serviu  para  cobrir  vio- 
lências e  espoliações,  qne,  deshonrando  a  bandeira  por- 
tugueza,  fizeram  odiosos  os  ministros  evangélicos  aos 
olhos  d'aquelles,  que  viam  as  obras  oppostas  ás  palavras. 
Acresciam  ás  difficuldades  quasi  insuperáveis  de  climas  in- 
^ubres  e  de  línguas  ignoradas  os  obstáculos  das  distan- 
cias» e  da  braveza  dos  homens  e  das  selvas.  Em  vários  Ian- . 
ces  os  missionários  aflrontaram  perigos,  e  trabalhos,  que 
excadem  quanto  a  pliantasia  pode  imaginar  de  arris- 
<%ado  e  excessivo.  Desamparados  nas  solidões,  ou  em- 
brenhados nas  florestas,  sem  outro  soccorro  alem  da  fé 
dúbia  dos  goias,  padecendo  fomes  e  misérias»  sentindo  as 
forças  esmorecidas,  e  quebrantadas,  os  religiosos,  só 
com  a  esperança  no  céu,  e  sem  outro  escudo  mais,  que  o 
senthiiento  sublime  do  dever,  cingiam  os  rins,  como  os 
antigos  apóstolos,  e  á  maneira  d'elles  encaminhavam-se 
alegres  para  ò  martjrío,  na  idéa  de  que  a  arvore  plantada 
por  suas  mãos,  embora  pequena  e  enfezada  no  começo, 
mais  tarde  havia  de  erguer-se  forte  e  frondosa,  A  occu- 
paçâo  só  pela  espada  teria  sido  em  muitos  casos  um  acto 
arrojado,  mas  epbemero.  A  conquista  solida  e  durável, 
qne  sobreviveu  aos  revezes,  aos  desastres  e  aos  séculos, 
fd  a  da  doutrina.  A  primeira,  fundada  na  coacção,  apenas 
se  dissijMiu  o  terror,  caiu  logo.  A  segunda,  firmada  no 
affecto  e  na  persuasão,  resistiu  ao  tempo  e  aos  infortúnios, 
ponjne  tinha  as  raízes  no  coração  dos  crentes.  É  por  isso, 
que  a  historia  das  missQes  não  pôde  separar-se  da  fais^ 


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182  HISTORIA  DE  PORTUGAL 

iM«  toría  dos  descobrimentos.  São  doas  paginas  do  mesmo 
poema,  e  omittir  uma  equivalia  n  truncar  a  oult*a. 

A  Africa  foi  para  os  missionários  a  veríla< leira  terra  de 
provarão.  Os  quo  se  entninli:!v;iin  [lelo  sertão,  ctirl-idos 
de  febres  e  dc  fiuligas,  iiãt)  igjnii  av.-im,  <jiie  v\m  «leslíiavar 
n^aqueiles  antros  viciosos  os  es[)iiili;it's  ilo  uma  idolatria 
cega  e  supersticiosa.  As  populações  disseminadas  entre 
o  Zaire  e  o  Cabo  Negro  adoravam  duas  divindades,  ou 
princi[)ios  ()p[)ostos,  a  do  bem,  e  a  do  mal,  mas  seguras 
da  beiíi^^nidade  da  primeira  só  lrenii;iiii  da  segunda,  cu- 
jas II  as  cuidavam  applacar  cuui  oirerendas  e  genuílexões, 
suboi'(lu)ando-lhe,  não  só  os  actos  impor  tantes  da  vida, 
mas  até  os  mais  ordinários  e  domésticos.  Este  deus  torvo 
e  ameaçador  representado  em  fòrma  humana,  e  em  Ído- 
los de  pau  presidia  ás  ceremonias  lascivas  dos  noivados 
(iembamentos),  e  ás  dos  funeraes  (mutambes),  recebendo 
as  primícias  das  colheitas,  e  um  íju^Mlirio  nos  desr)ojos 
da  guerra.  A  outros  idolos  {)eijueírn.;.  consei  vados  nas 
cubatas,  rendia  cada  iarnrlia  um  cullu  super  sticioso,  e  os 
feiticeiros,  denominando-se  seus  interpretes,  e  explo- 
rando a  credulidade  geral,  prophetisavam  o  futuro,  fa- 
ziam coDjm*os  para  propiciar  o  supposto  nume,  e  empre- 
gavam os  feitiços  (mi longos)  contra  as  moléstias  e  no 
descoi)rimenlo  dos  crimes.  Esles  espeL'uh(l>res  conheci- 
dos pelo  nome  popular  de  «(l:ingas»,  c  pr'ivilegiadospelo 
fanatismo,  exerciam  decisiva  iiiQuencia  sobre  os  negócios 
públicos  e  particulares,  decretavam  a  paz  e  a  guerra,  e 
tinham  fechada  nas  mSos  a  vontade  geral.  O  império  do 
cfetichísmo»  derivava-se  do  medo,  da  adulação,  da  in- 
dolência, e  das  inclinações  libidinosas  de  povos  afogados 
na  escuridão  de  espessas  trevas  mnracs  e  intellectuaes. 
As  praticas  supiu^-liciosas,  seí,qi!(l;is  [inr  elles,  não  os 
prendiam,  porque  não  passavam  de  liabitos  macbinaes. 


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DOS  SÉCULOS  XVn  £  XVm  183 

A  essência  do  seu  caracter  era  um  sceptidamo  brutal, 
umas  vezes  quasi  indifferente,  outras  írascivel  e  até  feroz, 

sujeito  á  volubilidade  da  excitação  momentânea  das  pri- 
meiras sensações ^ 

Esta  disposição  de  espirito  ilindiu  a  principio  os  mis- 
sionados. Festejados  pela  novidade,  á  entrada  viam-se 
rodeados  de  neophyíos  ardentes  ua  apparencia,  que  lhes 
pediam  o  baptismo  para  as  creanças  e  os  adultos»  e  logo 
depois  se  intitulavam  cbristãos.  Mas  apenas  viam  satis- 
feito o  seu  desejo,  alcançando  o  feitiço  do  deus  horrij  como 
diziam,  negavam-se  a  todos  os  cxprcicios  doutrinaes,  e 
zombavam  dos  preceitos  (|iu'  os  obrigavam  a  corrigira 
soltura  dos  costumes,  continuando  nas  mancebias,  e  os 
mais  honestos  na  polygamia,  tão  necessária  aos  appetites 
carnaes,  como  indispensável  á  subsistência,  porque  o  tra- 
balho das  mulheres  constituía  entre  elles  a  prinGipal  in- 
dustria. Os  padres  em  vão  Ibes  representavam  o  peccado 
com  as  mais  icías  cores.  A  sua  voz  não  era  escutada,  e  se 
insistiam  sublevavam  a  fúria,  ou  a  vingança  dos  falsos  pe- 
nitentes. Os  cafres  da  África  oriental  se  não  oíTereciam 
maiores  obstáculos,  oppunham  todavia  resisiencia  igual. 
A  mesma  adoração  de  grosseiros  ídolos,  o  mesmo  temor 
do  deus  do  mal,  o  mesmo  respeito  supersticioso  dos  fâti- 
ceiros  e  <le  suas  ahiisues,  tornavam  as  conversões  ao  chris- 
tianisnío  (|uasi  sempre  enganosas.  A  pi  ova  do  maaoey  infu- 
são da  casca  de  certa  arvore,  substituía  as  provas  jurídicas 
do  crime,  ou  dainnocencia,  e  a  vida  dos  accusados  depen- 
dia inteiramente  dos  homens,  que  a  preparavam.  Outros 
delictos  eram  punidos  com  as  penas  de  escravidão,  de  mu- 
tilação, e  de  multas  pagas  ent  pannose  missangas.  Aodo- 

1  Lopes  Lima,  Emmo  9fàr$  a  i^MisUca  úan  ^mUÊim  l^orlii- 
9ttejMu  do  Ultramar,  liy.  ui,  cap.  m 


HISTORIA  DE  POBTDGAL 


MíMfiM  sidade»  u  adultério,  o  roubo  e  a  perlidia  eram,  e  são  os 
vícios  predoniiiiantes  d'esta  raça.  Embora  a  palavra  elo- 
quente dos  rdigiosos  lhes  ensíDasse  as  regras  de  uma  vida 
mais  ajustada,  e  o  exemplo  de  suas  virtudes  argumentasse 
conti-a  a  devassidão  e  o  abuso  da  força,  poucos  se  arre- 
pendiam, p  rhristaos  só  do  nome,  toimnvnm  na  libertina- 
í?em,  misUiiaii(Ío  os  ritos  catliolicos  ann  as  superstições 
gentílicas.  A  propagação  da  fé  nas  missões  da  Airíca  nunca 
produziu,  portanto,  senão  fructos  formosos  no  exterior, 
porém  cheios  de  dnzas  e  de  podridão  por  dentro,  con- 
versões vãs  e  mentirosas,  que  o  numero  apregoou  á  vai- 
datle.  mas  quf  a  civilisação  não  podia  acreitar,  porque  não 
significavam,  fiem  a  conQssão  convida  dos  do^ímas  chris- 
tãos,  nem  o  melhoramento  e  verdadeiraVegeneração  d  esUi 
parte  da  espécie  humana  K 

Na  America  os  resultados  foram  mais  proveitosos,  e  a 
boa  semente  germinou  com  mais  facilidíade.  Os  jesuítas 
acharam  o  segredo  de  attrahir  as  populações.  Deixando 
primeiro  que  o  ferro  e  as  armas  rompessem  as  estradas, 
vieram  atras  como  consoladores  e  como  mestres.  Subju- 
gando os  sentidos  do  gentio  com  as  exterioridades  do  cul- 
to, fallando-lhe  a  suahngua,  e  não  lhe  ferindo  os  costumes 
e  tradições,  os  padres  souberam  ápoderar-se-lbe  da  von- 
tade»  e,  conseguindo  doutrina-lo,  dommaram-lhe  a  con- 
sciência. Valendo-se  até  das  superstições  ^raizadas  para  o 
donieslicai',  declarando-se  protectores  da  sua  liberdade,  e 
lisonjeando-lhe  a  imaginação,  dentro  em  jxmco  assumi- 
ram nas  aldeias  sujeitas  á  sua  cateciiese  a  influencia  de 

*  Ensaio  sobre  a  EstcUistica  das  Possessões  Portwjuezas  do  Ul- 
tramar, liv.  III,  cap.  VII,  e  Mv.  iv,  serie  2.*.  cap.  i. — Vido  t;im}>pru  as 
Décadas  de  Barro»,  Couto,  e  Bocairo,  e  as  obras  dc  Ritter  e  Living- 
âtone. 


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DOS  SÉCULOS  xvn  s  xvm 


185 


um  protectorado  irresistível.  Súbditos  e  discípulos,  os  Missõe8 
índios  viram  tudo  pelos  olhos  da  companhia,  e  tornaram- 
se  instrumentos  dóceis  em  suas  mios.  Uma  palavra,  um 
gesto  dos  padres  levantava,  ou  applacava  as  tempestades. 
A  cultura  rnoral  e  a  tranquillidade  das  capitanias  lucra- 
ram á9  certo  com  este  systema,  mas  o  poder  e  os  inte- 
resses da  sociedade  ainda  ganhai  am  mais.  Mo  lhe  acon* 
teceu  o  mesmo  com  os  colonos  de  origem  europea,  nem 
com  m  escravos  de  raça  africana.  Os  servos  negros  pulu- 
lavam no  Br;i/.iL  A  fertilisação  do  solo  coina  toda,  oii 
quasi  toda  pelo  seu  braço,  niais  robusto,  do  que  o  dos  indí- 
genas. Transportados  do  Utoral  da  Africa  occidentai  e  das 
costas  e  territórios  de  Moçambi<jpie  o  seu  numero  todos  os 
mmos  crescia,  e  com  elle  a  perversão  dos  costumes  ino- 
niinda  pela  lepra  dos  vicios,  do  impudor  e  do  desregi\i- 
inento.  Os  jesuítas  empregavam  nas  roças  e  nos  engenhos 
os  Índios  livres,  e  por  todos  os  modos  directos  e  indh^e- 
ctos  faziam  monopólio  do  seu  trabalho.  Os  proprietá- 
rios qneixavam-se  e  organisavam  guerras  injustas  para 
raptivar  «gentios.  Estas  violências  serviam  só  de  provocai* 
incursões  c  estragos,  mas,  devorados  pela  cubiça,  acha- 
vam todos  os  meios  hcitos  para  a  saciará 

Era  immensa  a  immoralídade  em  toda  a  parte,  e  princi- 
palmente no  Espirito  Santo,  nos  Ilhéus,  em  Itamaracá,  e  na 
Bahia.  Duas  d  estas  colónias  quasise  haviam  convertido  em 
asylos  de  contrabandistas.  Os  degradados  enviados  da  me- 
trópole infiltravam  a  maldade  e  a  corrup^^o  nas  veias  de 
populações  desgraçadamente  já  predispostas  para  as  re^ 
ceber.  Em  algumas  capitanias  do  sul  armavam-se  navios 
(juasi  publicamente  para  negociarem  por  sua  conta  o  pau 
hrazii  com  os  indios  defraudando  a  corôa.  O  capitão  de 

<  Ektona  Qertd  do  BnmU,  iom.  i,  secç.  xnr. 


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186  HISTORIA  DE  PORTUGÂL* 

Mins»  Itamaracâ  concedia  conto  e  protecção  a  todos  os  crimír 
nosos  de  Olinda,  e  varíos  habitantes  do  Espirito  Santo, 
passando  a  Campos,  coUierani  á  traição  um  chefe  gentio, 
0  venderam  n'o  m  seu  riininr  inimitro.  Os  mares  <lo  Bra- 
zil  ap[);if  (M  iam  coalhaciíis  de  cnritrabandislas,  ou  mais  exa- 
cto de  [)irataâ,  que  infamavam  as  costas  com  l  oubos.  Entre 
08  capitães  os  ódios  eram  continuados,  rebentando  em  co- 
moções civis,  que  ás  vezes  duravam  annos,  e  ateiavam  nas 
famílias  discórdias  inextinguíveis.  Os  condemnados,  que  , 
o  reino  expungia,  elemento  funesto  e  dissolvente,  con- 
cuf  riam  em  toda  a  [rrirtc  jinra  cxaceiiiar  os  males,  e  o 
severo  Diinrto  (j  leHio,  escrevendo  a  el-rei,  em  1546,  dizia, 
que  ni  Tilfum  fim  to.  mi  ))em  traziam  á  terra,  esó  muito 
mal.  A  devassidão  corria  t8o  desbragada,  que  os  secula- 
res,  a  até  os  ecclesiasticos  se  nlo  encobriam  para  assas- 
sinar aleivosamente.  Diversos  clérigos  eram  o  exemplo 
vivo  da  ií  religião,  tratando  sem  resguardo  coin  nmlheres 
de  má  iií)ta  e  (lesprezaiido  os  dcvci  essaferdotaes.  Âhonra 
passava  por  uma  palavra  sem  valor,  e  cedia  o  passo  ao  cv- 
nismo,  tanto  em  negócios  públicos,  como  nos  particulares'. 
A  gangrena,  que  minava  os  costumes  desde  o  principio  da 
colonisação,  também  debiiitára  as  forças,  e  esmorecêra  os 
brios.  Engolfados  no  turpor  de  uma  vida  luxuosa,  ou  des- 
regrada, e  subordíiiaudo  todas  as  acções  aos  cálculos  do 
egoísmo  e  da  avareza,  não  admira  <jue  na  liora  do  perigo 
a  voz  do  sacrifício  achasse  inertes  e  surdos  os  que  pri- 
meiro deviam  acudir  á  defeza  da  pátria  e  da  sua  bandeira. 

Emquanto  a  resistência  se  limitou  a  repellir  as  invasões 
dos  aventureiros  ainda  foi  possível  organisa-ia,  mas  desde 
que  a  uniSo  á  Hespanha  provocou  as  hostilidades  das  na- 
ções marítimas,  o  receio  das  armas  estrangeiras  apode- 

1  Hiiltiona  Oeral  do  tírtmils  tom.  t,  secç.  xiv. 


.  y  1.  ^  .  y  Google 


DOS  SECCLOS  XVII  E  XVIII 


117 


roQ-se  do  animo  de  todos.  Temiam  os  inglezes,  os  fran*  iAmm» 
ceze<;,  os  hollandezes,  e  alè  os  turcos  e  os  mouros,  e, 

apesar  (Fisso  não  melhorii\;iiii  as  condições  defensivas, 
nem  adoptavam  as  providem  ias  iiidispriisavcis  para  cas- 
tigar qualquer  insulto.  Quando  a  esquadra  nccrlandeza 
se  approximou  das  praias  da  Bahia  em  16^4,  quinze  na- 
vios fundeados  no  porto  se  renderam,  ou  se  deixaram 
queimar,  fugindo  as  tdpulaçdes  acovardadas,  e  os  mo* 
radores,  em  vez  de  defenderem  a  cidade,  ou  se  retiraram 
para  ns  roças,  ou  abrii  ani  as  poi  ias,  preíer  indo  a  entrega 
vergonhosa  á  luta  e  á  victoria  provnv('l. 

Em  1030,  appareceiído  diante  de  Olinda  Loncq  e  o 
almirante  Adryens,  depois  de  curta  refrega,  um  terror 
pânico  inaudito  decepou  os  braços  aos  habitantes  de  Per- 
nambuco. Acolhendo-se  ao  sertão  com  as  famílias,  sem 
disputarem  a  terra  aos  inimigos,  deram  taes  provas  de 
fraqueza  aos  escravos,  que  muitos  se  lev.iiitaraiu  contra 
elles,  õ  outros  se  passaram  [>ara  os  liollandezes.  iNo  Mara- 
nhão, (inaliuente,  o  governador  Bento  Maciel,  mais preoc- 
cupado  de  grangear  os  interesses  próprios,  do  que  de 
prover  á  segurança  da  capitania,  franqueou  o  passo  á  in- 
vasão de  Lichthardt  em  16&{,  e  desamparado  dos  mora- 
dores, foi  obrigado  a  capitular,  saindo  deportado  para  o 
Kiu  Grande,  aonde  tailecoii  ralado  dc  remorsos* 

Nunca  a  palavra  dc  Deus  e  a  lição  de  exemplos  auste-  • 
ros  tinham  sido  mais  necessárias,  do  que  nestes  dias  de 
dissolução  quasi  irremediável  e  de  profundo  desalento. 
O  corpo  do  estado  desfaltecia,  porque  a  alma  estava  ca- 
ptiva  das  más  paixões.  Vence-las,  libertar  e  retemperar  o 
espirito  dos  povos,  regener-ando-os.  fôra  serviço  igual  de 
certo,  ou  maior,  do  que  chamai*  os  indios  ao  redil  da  igreja ; 


^  Sútona  Geral  do  Brazil,  seoç.  xxvn,  xxviii  e  xxzi. 


i88    HISTOhlA  DE  PORTUGAL  DOS  â£CULOS  XVII  E  XVIU 

iGuSas  mas  a  companhia  de  Jesus,  e  as  ontras  ordens  reUgiosas 
haviam-se  toi  iiadu  iiiiutu  mundanas  para  puderem  íallar 
com  auctoridade»  e  para  sua  mâo  ter  u  vigor  preciso  para 
impor  rm  dique  á  torrente.  Os  soccessores  do  padre 
Nóbrega  olhavam  de  mais  para  a  grossura  da  terra,  e  as 
inspirações,  que  geram  milagres  de  virtude  e  de  pa- 
triotismo, só  vem  do  céu.  Não  estranhemos,  pois,  que  a 
onda  varresse  tudo,  e  que  a  cruz  só  em  mui  })ouGas  par- 
tes se  erguesse  como  signal  de  refugio.  Coube  depois  á 
expiaçião  do  infortúnio  a  obra  gloriosa,  que  s6  ella  podia 
tentar. 


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CAPITULO  U 


MISSÕES  KA  miA,  Cmk  E  JAPlO 

Caracter  civiliaador  da>i  missões.  Habilitações  dos  missioDarios.  Zélo  dos  nosM»  mo- 
Banbas  pda  propagacii»  dà  ft.— As  onhu  nligiosu  u  índia.  Oi  íhmdaauioa» 

os  dominicanos  aos  jMOitas.— Rápidos  progressos  da  companhia  no  oriente.  Vir* 

tades  e  senriços  apfT^toliro"!  Fnnci^íi-o  Xavier.  —  Di^irilHiirSo  tii<;  miíS(Vs 
pelas  ordens  religioàa^.  — Discórdias  dos  franciscanos.  Sua  imporUocia  ua  hisU>> 
fia  do  dtriatiaiibiBO  da  Atia«  <kea(io  da  imHii^ 

tiga  disciplina.— Estado  das  ootras  religiOes.  Systema  repreheosivel  das  eoovw* 
sões  fnrrtr1:is  Imtnoralidadp  gfTal  Knos  dos  jesuítas.  Melhodos  usados  nas 
missTies  orieDlaes.  Hesoltados.  —  Politica  exdasiva  no  Japio  e  na  China.  Péssimas 
eonsequeadas.  —  As  dvistandades  da  Índia  e  o  sea  namaro.  Eicessos  da  ooii^;^- 
nliia  de  Jesus.  Aboaos  das  ontm  ordsDs.  Escândalos  nos  ptilpitos.  Gorrapçio  do 
dero  seeolar. 

Se  i)  qiiadru,  que  acabáiiios  de  traçar  das  missões  per- 
manentes e  temporárias  dii  Afnca  e  do  Biazil,  desenliou 
com  alguma  exactidão  os  progressos  da  obra  iniciada  m» 
fins  do  século  xt,  e  proseguida  com  perseverança  nos 
séculos  xTi  e  xm,  a  pintura  dos  trabalhos  e  conquis- 
tas pacificas  das  missões  da  Âsía  ainda  abraça  propor- 
ções mais  amplas,  e  offerece  resultados  mais  notáveis. 
Mestres,  não  só  da  doutrina  evangélica,  mas  dos  conheci- 
mentos cultivados  na  sua  epuclia,  bastantes  prégadores 
honraram  com  seus  escriptos  o  nome,  o  paiz  e  o  insti- 
tuto. A  geograpbia,  a  linguistica,  a  historia  e  até  as  scien- 
cias  physico-mathematicas  deveram  muito  ás  noticias 


190  HISTORU  DE  PORTUGAL 

Miune»  colligídas  por  elles  em  suas  largas  e  instructivas  pere- 

í,TÍnações.  Operários  intelligontes  e  incansáveis,  a  mesma 
a  mão,  que  ai)i  i;i  ;'is  pojuilaròcs  os  caminhos  «lo  fcUiro, 
semeava  os  beaelicios  da  civilisação.  Se  exleiísas  plan- 
tações de  café  em  Angola  vestem  as  encostas  das  monta- 
nhas, quem  trouxe  primeiro  de  Moka  a  semente,  segundo 
se  cré,  foram  os  jesuítas.  Se  a  Africa  possuiu  varias  arvo- 
res e  arbustos  da  America  do  sul,  como  o  anaiiaz,  a  l)a- 
naneira,  o  yame,  a  pitanga,  a  guava,  e  outras  plantas  exó- 
ticas, íoi  am  os  padres  qae  as  introduziram  igualmente, 
assim  como  diversas  espécies  de  arvores  próprias  para 
cortes,  como  madeiras  de  construcção.  Mo  se  limitando 
á  catechese  e  aos  exercícios  devotos,  sabiam  ser  archi- 
tectos,  eni^oiilieiíos,  artifices,  agricultores,  médicos  e 
obreiros,  acompaniiaiido  a  palavra  com  o  exemplo,  e  a 
theoria  com  a  pratica  *. 

Unindo  o  estudo  das  letras  profanas  á  instrucção  reli- 
giosa, crearam  o  methodo  do  ensino  mutuo,  tão  profícuo 
no  seu  tempo,  e  ainda  hoje  conservado  em  muitas  aulas. 
Traduziram  na  lingua  bunda,  a  iiiais  conhecida  e  ÍJillada 
na  Africa  austral,  os  |)rec(íitos  do  decálogo  e  breves  l  esu- 
mos  doutrinaes,  annotados  com  as  explicações  convenien- 
tes, e  venceram  a  fadiga  ímproba  de  compor  o  dicciona- 
río  e  a  grammatica  da  mesma  lingua,  indispensável  para 
a  correspondência  dos  poi  tu^^uezes  e  dos  europeus  com 
os  indígenas  do  íiloi  al  h  de  grande  parte  dos  sertões.  Na 
America  dedicaram  estorço  igual  á  couversaçuo  da  lingua 
tupi,  e  na  Asia  á  da  lingua  tamul,  universal  nos  vastos  do- 

1  Dr.  Livingstone,  Misswnary  traveis  and  researches  in  MUth 
Africa,  cnp.  :^ix  o  xx.  E^te  testemunho  é  tanto  mais  inguspeito^ 
quanto  o  dr.  Livingstona  nAo  encobre  a  intenção  de  deprimir  os 
portngoMes  muitos  vezes  eom  hem  pouca  Impafcialidade. 


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m 


minios  do  reino  de  AUrsín^ía,  e  aprendi^i-am  us  dialectos  uuijiad 
mais  usados  para  expressaiein  com  segui  an^a  as  idéas 
no  idioma  dos  oeophytos.  A  [)ai'  dog  serviços  inteU6Ctu«68 
na  esphera  económica  e  social  prestaram  poderosos  au* 
xilios  ao  desenvolvimento  da  eolonisaição,  já  concorrendo 
para  o  augmento  da  riqueza  do  solo,  já  ajudando  a  me- 
lhorar as  condições  sanitárias  de  rcgiocs  reputadas  inhos- 
pitas,  e  finalmente  não  omittindo  modo  algum  de  conso- 
lidarem e  de  acrescentarem  pela  sciencia»  pela  satisfação 
das  necessidades  de  maior  vulto,  peia  caridade  desvelada, 
e  pelo  7-élo  de  todos  os  aperfeiçoamentos  a  ( u  cupação  de 
dominios  tão  largos,  Ião  distantes,  e  tão  diversos,  que  a 
espada  sem  a  cruz  não  alcançaria  de  certo  manter,  e  muito 
menos  civiiisar  K 

Votados  aos  sacrifícios,  muitos  caminhavam  com  oa 
olhos  postos  no  marlyrio,  coi  òa  de  sua  laboriosa  carreira 
ímmikA,  e,  desligados  dos  vincuios  mundanos,  a  voz  dos 
SQperíores  era  para  elies  como  a  voz  de  Deus.  Pela  sua 
organisaçlo  a  companhia  de  Jesus  devia  realçar  n^estas 
lutas,  em  que  de  leito  representou  uma  [)arte  principal. 
Milicia  activa  do  callioliciíiiio,  íuiidada  para  siislenlai  a 
soberania  espii  iluai  do  poutiíioado,  adoptou  nas  suas  mis- 
sões, um  systema,  que  até  mereceu  o  applauso  dos  adver- 
sários de  Roma.  Os  geraes,  aproveitando  com  acerto  o 
caracter  e  a  vaiia  aptidão  dos  súbditos,  designavam  a 
cada  uin  o  posto  que  podia  occupar  luLiilior,  e  por  isso 
os  fructos  correspondiam  quasi  sempre  ás  esperanças. 
O  tempo,  as  prosperidades,  e  a  tendência  natmral  de  todos 

1  Exame  doB  wagens  do  dr.  lAfmgaone  pelo  sr.  D.  JoBé  de  La- 
cerda, pag.  21  a  23. — Hisloria  do  Natemtnio,  Vida  b  Mariyrio  do 
Beato  Jo9o  do  BrUo,  oompoela  por  o&a  inuSo  Fenuuido  Pereira  de 
Brito,  «ap.  m. 


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m  HISTORIA  £)£  K>HIGOAL 

ifiMoes  poderes,  porque  a  sociedade  de  lesus  foi  om  poder»  le** 
varam-a  a  abusar  da  sua  força  e  a  esqueeer  as  qualidades 

por  que  se  distinguira.  Trocaram-se  na  Africa,  no  Brazil 
e  na  índia  as  antigas  virtudes  jielas  facilidades,  dando 
origem  aos  erros,. que  ua  dediuação  gerai  dos  homeos  e 
das  cousas  ião  pouparam  mais  a  roupeta  dos  successo- 
res  de  S.  Francisco  Xavier,  do  que  o  habito  dos  filhos  de 
S.  Fi  ancisco.  ou  de  S.  Domingos.  Mas  confundir  sem  dis- 
cernimenlo  os  factos,  apagar  da  meíiitnia  as  recordações 
do  que  praticaram  de  nobre,  fecundo  e  grande,  baixar  só 
a  Tista  para  os  dias  de  tristeza,  em  que,  minado  pela 
corrupção,  pela  cnbiça  e  pela  discórdia  tudo  se  alluia  ou 
vacillava,  seria  t3o  injusto  e  parcial,  como  lançar  o  manto 
sobre  a  nudez  dos  vicios.  e  querer  achar  a  epoclia  dos 
varões  apostólicos  nos  tempos,  que  precederam  e  apres- 
saram o  desmoronamento. 

D.  Manuel,  no  meio  do  jubilo  motivado  pela  chegada 
de  Vasco  da  Gama,  nlo  separou  um  momento  no  plano 
da  occupaçKo  da  índia  a  acçSo  religiosa  do  pensamento 
da  con([viista,  e  logo  no  anno  de  1500  ordenou  a  Pedro 
Alvares  Cabral,  que,  apoitiiiido  a  CalecuL  rMiisiriiiNse 
uma  casa  forte  para  feitoria,  e,  apartada  d'ellã,  uma  igreja 
para  os  írades  da  armada  celebrarem  os  officios  divinos. 
Os  padres,  concluído  e  ornado  o  templo,  disseram  missa 
n'elle  e  confessaram,  e  quando  a  aggressSo  dos  mouros 
obrigou  os  nossos  a  acolherem-se  ás  naus,  dois  saíram 
feridos  da  refrega.  Na  esffuadra  de  D.  Francisco  de  Al- 
meida, primeiro  vice-rei,  foram  também  alguns  frades  e 
assistiram  com  os  capeliães  das  naus  á  solemnidade,  com 
que  se  festejou  a  obra  da  fortaleza  de  QuUoa,  pregando 
mestre  Diogo,  vigário  da  índia.  Em  4509  existia  já  em 
Socotorá  um  pequeno  mosteiro  de  franciscanos,  cujos 
padres  falleceram  todos,  menos  dois,  acommettidos  pelas 


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DOS  SECULtJS  XYII  £  XYilI 


193 


enfermidades  da  terra.  £m  1510  finalmente,  quando  Âf-  mMô» 
fonso  de  Albuquerque  tomou  a  cidade  do  doa,  o  domi- 
nicano Fr.  Rodrigo  Homem  acompanliava-o  eslorçando 
o  zéio  dos  soldados,  e  os  religiosos  íranciscaQOS  mar- 
chavam ao  lado  d'elies,  hasteando  a  cniz  de  Ghrísto. 
Alcançada  a  Victoria,  e  sagrada  a  mesquita  do  Idal-Kaii 
para  o  exercito  ouvir  os  cânticos  de  acção  de  graças, 
doou  o  governador  a  mesquita  aos  frades  de  S.  Francisco 
para  séde  da  sua  residência»  e  abi  se  conservaram  até  ao 
aDDo  de  1521,  em  que  ficou  acabado  o  magnifico  mos- 
teiro, que  el-rei  lhes  mandara  edificar  em  1517  nas  casas, 
que  haviam  sido  do  tanadar  João  Machado,  morto  em 
Pondá  *. 

Os  dominicanos  também  entraram  na  Ásia  com  Albu- 
querque,  mas  foi  s6  em  1548,  que  Fr.-Diogo  Bermudes 

e  doze  religiosos  partiram  para  Goa  em  communidade,  a 
fim  de  levantarem  um  convento.  O  governador  Garcia  de 
Sá  recebeu-os  bem,  concedeu-lbes  chão  para  a  casa,  e. 
abono  jTaté  50:000  cruzados  para  as  despezas.  O  mosteiro 
de  S.  Francisco  tinha  custado  á  corôa  60:000  pardaus,  e 
a  cathedral  20:000,  sem  contar  o  subsidio  jiac^o  a  trinta 
cónegos  e  capellães.  ?í'aqueUa  epocha  jà  a  cidade  tinha 
pelo  menos  quatorze  igrejas  e  ermidas  com  mais  de  cem 
clérigos.  Os  frades  de  S.  Domingos  alcançaram  dentro 
em  pouco  um  rendimento  annual  de  1:500  pardaus.  En- 
tre os  padics  íundadores  citam  os  chronistas  a  Fr.  Fran- 
cisco de  Azevedo,  varão  eminente  em  virtudes  e  letras, 
o  primeiro  mestre  que  ensinou  humanidades  e  theologia 


>  Fr.  Joio  dos  Santos,  Varia  Hitíoria  da  Cbrí$landadê  Oriettíalj 
1ÍT.  n,  cap.  I.  Évora,  1609.— Gaspar  Correia,  Lendas  da  índia, 
tom.  t,  ])ãrL  i,  pag.  186,  part,  n,  pag.  H%  tom.  n,  part  i  e  n, 
paK.  537  e  538. 

10N0  V  13 


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1 


mtom  em  Goa  muitos  annos  antes  de  lidas  em  oatra  aula  ou 
coliegio,  e  Fr.  Gaspar  da  Cruz»  missionário,  que  passou 
a  Gambaya  e  depois  á  China  no  anno  de  1556,  aonde 
convtíiieu  bastantes  almas.  A  onlem  dominicana  con- 
struiu mais  dois  conventos,  um  em  Chaul,  e^o  outro  em 
Gochim  K 

Os  augustinianos  fundaram  na  cidade  a  sua  primeira 
casa  em  4572,  modesta,  porém  sufficiente  para  claustro 

dos  doze  i-eli^iosos  qiic  acompanhavam  o  pa(h^e  Fr.  An- 
tonio da  Paixão,  eleito  provincial.  Em  1597  o  edifício  es- 
tava reediíicado  em  proporções  mais  amplas  sob  a  invo- 
cação de  Nossa  Senhora  da  Graça»  e  pela  posição  e  por 
suas  rendas  era  um  dos  melhores  da  diocese.  O  coliegio 
de  Populo,  creado  em  1602,  destinou-se  â  instrucção 
dos  frades  moços,  pro[)oslos  para  as  missões.  O  convento 
de  Damão,  o  hospício  de  Bombaim,  a  peqnena  casa  de 
Meliapor,  e  o  mosteiro  de  Macau  dependiam  todos  da 
congregação  âlial  de  Goa,  porque  a  ordem  nunca  formou 
província  particular  na  índia.  ^ 

Os  carmelitas  descalços  vieram  depois,  e  estenderam 
as  missões  a  Bagdad  e  á  Pérsia,  não  se  estabelecendo  na 
cidade  senão  em  1607  ou  em  1612.  Os  theatinos,  muito 
pobres,  contentaram-se  com  uma  residência  pequena, 
perto  do  palácio  dos  vice-reis,  e  com  uma  igreja,  também 
pecjuena,  mas  muito  beUa.  Introduzidos  por  melados  do 
XVI  século,  e  quasi  todos  italianos,  elegiam  de  tres  em 
Ires  annos  u  seu  prefeito,  e  roi  f  t's[)ondiam-s«'  cum  o  ge- 
ral da  ordem  em  Roma  por  inlei  venção  da  nunciatm^a  de 
Lisboa.  Os  padres  de  S.  João  de  Deus  e  os  congregados 
de  S.  Fílippe  Nery  foram  os  últimos  transplantados  para 

1  Lendas  da  índia,  tom.  iv,  pari.  i,  cap.  Tf.— Fana  Historia  da 
ChriUandade  Orientalj  cap.  i  e  il 


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•    DOS  SÉCULOS  XVii  £  XWl 


195 


O  oriente,  aonde  os  primeiros  sobresairam  pela  caridade  ubom 

nos  hospitaes  de  Goa,  Damuo,  Diu,  Macau,  (  oulros  loga- 
res.  e  os  segundos  pela  eloquência  no  púlpito  e  pelo  zelo 
no  ensino  da  mocidade  K 

Os  padres  da  companhia  de  Jesus  passaram  á  índia  em 
1543  com  S.  Frandsco  Xavier,  e  hospedaram-se  no  col- 
legio  de  S.  Paulo,  reconstruído  passados  annos.  Em 
1584  é  que  se  ergueu  a  casa  professa  na  parte  inferior  da 
cidade  ligada  com  a  sumptuosa  igreja  du  Bom  Jesus.  Ad- 
quirindo depois  o  coiiegio  de  (Chorão  e  o  de  Rachol  em 
Salsete,  deixaram  as  casas  de  S.  Paulo  e  de  S.  Roque  aos 
r^giosos  inválidos,  e  preferiram  como  sítios  mais  sadios 
e  accommodados  Rachol  para  séde  do  collegio  e  ChorSo 
para  cabeça  do  seminário.  S.  Paulo,  em  1548,  decorrido 
pouco  tempo  desde  a  entrada  dos  primeir  os  jesuítas,  pos- 
suía de  rendas  certas  e  annuaes  mais  de  5:000  pardaus. 
Nenhuma  ordem  prestou  serviços  mais  relevantes  á  fé  e 
á  conquista,  porém  nenhuma  soube  aproveítar-se  melhor 
lambem  das  circumstancias,  nem  collier  IVuclos  mais  co- 
piosos dos  piuiiiios  esforços.  Nos  fins  tio  século  xvj  eni 
quasi  todas  as  còrtes  dos  reinos  opulentos  tinha  alcançado 
entrada.  No  Japão  possuía  tres  casas  na  cidade  principal 
(Meaco),  e  era  respeitada  e  favorecida.  Na  China,  alem 
da  residência  de  Pekim,  ainda  occupava  mais  tres  em  ci- 
dades iiuportantes  do  império.  Eui  Bengala  foi  bem  vista 
do  rei,  e  emliisuaí^a  nicí-ecia  grande  estima.  Nos  estados 
do  Grão  Mogoi  os  padres  não  saíam  do  lado  do  soberano. 

1  Quadros  Hisloricot  de  Goa,  pelo  sr.  Gaetano  Barreto  de  Miran- 
da. Margão,  i863,  cadern.  quadr.  viii. — Bosquejo  Hi^rico  de 
Goa,  pelo  reverendo  Coltineau  de  Kloguen,  vertido  pelo  sr,  Miguel 
YiLL-nto  de  Abreu.  Nova  Goa,  i858,  pag.  Iltia  12& — Lenda»  da 
índia,  tom.  iv,  pari  ii,  cap.  yi,  pag.  670. 

13 


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196 


UlbTOKiA  Dk.  PUiiTUGÂL 


Uutíi»  No  Malabar  o  Samorim  de  Calecut  prezava-os  como  ami- 
gos e  consclheirus.  Em  Travancor,  Porcá,  Danj^^amale,  e 
vários  logai'es  assumiram  posigues  privilegiadas.  Nos  do- 
mínios do  Preste  João  grangearam  muito  conceito.  N'es- 
tas  e  em  outras  partes,  assevera  um  escríptor  bem  infor- 
mado, não  só  cuidavam  dos  interesses  espirituaes,  como 
acudiam  igoalmento  pelos  iiileresses  luíliticos  e  commer- 
ciaes  da  coroa  portuguesa,  procurarido  conserv  ar,  ou  con- 
solidar entre  os  príncipes  e  o  estado  da  índia  as  boas  re- 
lações de  paz  e  amisade.  A  arma  das  conversões  auxiliava 
a  acção  da  conquista  e  a  dilatação  da  fé.  As  gentilidades 
agremiadas  no  redil  da  itrreja  eram  mais  fieis  aos  portu- 
guezes,  do  que  aos  moiKu  chas  uaturaes,  e  nos  paizes  sub- 
jugados a  religião  podia  mais  para  os  conter  na  obediên- 
cia, do  que  a  forçai 

0  nome  de  S.  Francisco  Xavier,  tão  venerado  dos  pe- 
quenos, como  acatado  dos  poderosos,  serviu  mais  á  so- 
ciedade para  iliô  abrii*  os  caminhos,  do  que  os  valimentos 
que  sabia  empregar  para  vencer  as  contrariedades^  Por 
mais  de  nove  annos,  seguindo  na  Asia  os  vestígios  de 
S.  Thomé,  como  facho  sempre  acceso,  elle  e  sen??  compa- 
nlieiros,  liumildes  com  us  pobres,  ri^^^orosos  com  os  ricos 
e  soberbos,  e  sempre  austeros  comsigo,  não  maculando 
nunca  as  mãos  na  grangearia  dos  lucros  mundanos,  tor- 
naram a  sua  roupeta  mais  respeitada,  do  que  a  purpura 
dos  orgulliosos.  No  meio  da  iirniieiísa  cornii)çno,  que  já 
minava  o  vasto  império  de  D.  João  líl  na  índia,  Xavier, 
erguendo  a  cabeça  acima  de  tudo,  flageiiava  a  usura^  a 
avareza  e  as  veniagas,  estranhava  as  rixas  e  as  violências, 
castigava  os  vícios,  e  a  sua  palavra  singela,  como  a  ver- 

1  Fernão  Gaerreiro,  Das  cousas  que  fizeram  ot  padra  da.  com' 
panhia  de  Jetw  nas  partes  da  índia,  Uv.  iii,  cap.  xxxur,  pag.  109. 


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DOS  SÉCULOS  XVII  £  XVIII 


197 


dade,  alomianílo  nonde  as  trevas  se  condonsavam,  caute-  Mi»*õe« 
risava,  como  o  fof^o,  aonde  as  chagas  eram  mais  fundas. 
Perante  o  bello  vulto  d'este  verdadeiro  apostolo,  a  pos- 
teridade inclina-se  reverente.  Primeiro  núncio  da  boa  no- 
va, rodeado  de  creanças  e  de  infelizes,  á  sinnilhança  do 
seu  divino  Mestre,  pregava  do  alto  dos  puipiios,  e  descia 
depois  ás  cbonpanas,  doutrinando,  supplicandu,  reprehen- 
dendo,  e  confortando  de  dia  e  de  noite.  A  morte  foi  digna 
da  vida.  Desfollecido  o  corpo  e  anciosa  a  alma  pelo  re- 
pouso celeste,  expirou  na  ilha  de  Sancliam,  ás  portas  da 
China,  em  uma  cabana  coberta  de  ramos  e  desabrigada, 
com  a  imagem  de  Christo  nos  olhos  e  a  caridade  mais 
ardente  no  coração  e  nos  lábios  K 

Vestindo  os  hábitos  remendados  do  peregrino,  com  a 
vontade  e  o  animo  sempre  ofTerecidos  ao  martyrio,  sus- 
tentava-se  de  esmolas,  fugia  dos  regalos  das  cidades,  do 
fausto  dos  [lalacios,  e  do  applauso  insidioso  dos  abasta-^ 
dos.  Pondo  toda  a  confiança  nas  promessas  do  Senhor, 
entranhava-se  pelas  solidQes,  e,  por  entre  os  juncaes,  ou 
por  liMi  xo  dos  palmares  ía  alegrar  a  aldeia  perdida  no  er- 
mo, piesiando  as  consolações  religiosas  aos  mais  igno- 
rantes, esquecidos  e  desprezados.  Abrasado  no  amor  do 
próximo,  fallava  de  Deus  ás  mulheres,  aos  meninos,  e  aos 
qne  as  outras  castas  rejeitavam  como  fezes.  A  estes  no- 
vos leprosos  da  tyrannia  das  seitas  indianas  cliMiii  iva  fi- 
lhos e  enxugava  o  rosto  banhado  de  lagrnnas,  ensinando- 
Ihescpie  a  terra  não  era  mais  do  que  um  desterro,  e  que 
na  presença  de  Christo  todos  seriam  irmãos.  Esta  fecunda 
palavra,  que  resistiu  mais  do  que  as  grandezas  da  con- 

1  Lucena,  Bittaria  âa  Vida  do  Padre  S,  FraneUeo  Xwaier,  Uv,  z, 
eap.  lY  e  v.  Xavier  íalleceu  em  2  de  desembio  de  com  cin- 
coenta  e  cinco  annos  de  idade  e  mais  de  nove  de  missSo  activa. 


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198 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


MisaSes  quista,  aiTaígou  a  frondosa  arvore  plantada  pela  fé.  Por 
largos  annos,  por  séculos  até,  serviu  a  recordação  das 
virtudes  do  vaião  piedoso  de  escudo  contra  a  adversida- 
de^ ou  de  chave  roilagrosa  aos  qoe  não  podiam  já  imita- 
lo,  para  repellirem  as  aggressOes,  ou  para  tornarem 
accessíveíB  as  entradas  que  o  receio^  ou  as  suspeitas  cer- 
ravam diante  d^elles'. 

Os  proí^ressos  de  S.  Francisco  e  dos  pi  iiii(^ii'ús  iiiissio- 
narios  íoram  rápidos,  e  os  eíTeitos  quasi  prodigiosos.  Em 
pouco  tempo  a  companhia  tomou^se  uma  potencia  no 
oriente.  Alargando  os  ramos  por  toda  a  parte,  tinha  col* 
legíos  em  Salsete  e  em  Diu,  em  Baçaim  e  em  Dam9o, 
casa  professa  em  Goa,  collegios  em  Cliaul,  Malaca  e  Ben- 
gala, em  Ceilão,  Crangaiioi  e  Cochim,  no  reino  do  Pe^ni, 
em  Arima,  Meaco  e  Naogazaki  no  Japão,  em  Pektm  e 
Nankim  na  China,  e  cobria  com  a  sombra  quasi  todos  os 
logares,  aonde  tremulava  a  bandeira  portugueza,  ou 
aonde  qualquer  rasão  politica,  religiosa,  ou  mercantil  atr 
traliia  os  europeus*. 

Nos  primeiros  trinta  annos  depois  da  cunquisla  de  Goa, 
em  que  a  gloria  da  catechese  coube  quasi  exclusivamente 
aos  franciscanos,  os  trabalhos  dos  prégadores  provaram 
o  zêlo  e  a  utilidade  da  sua  palavra  em  oito  baptismos  ge- 
raes,  subindo  o  numero  dos  calechumenos  a  mais  de 
sete  mil  de  diversas  castas  e  differeuLes  seitas,  mas  nas 
regiões  (jue  ainda  não  reconheciam  a  corôa  [luriugueza. 
Fr.  Antonio  do  Casal  prègou  em  Baçaim,  Fr.  Antonio  do 
Parto  nas  terras  do  norte,  Fr.  Jo9o  Loria  e  Fr.  Antonio  de 
S.  Francisco  na  província  do  Decan  no  reino  do  Nisam 
Moluc.  Outros  religiosos  annunciaram  a  palavra  de  Deus 

^  Lucena,  HtOoria  da  Vida  dê  S.  Franemo  Xamer,  passim. 
2  Bo»qnujú  BtÊtoneo  de  Goa,  pag.  115  e  s^giiíiiteB. 


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DOS  SÉCULOS  ÍVU  £  XVIU 


nos  estados  do  Idal-Kan,  em  Cananor,  e  em  Meliapor.  HM» 

Fr.  Xisto  e  Fr.  Francisco  Gallego  em  Cochim  sacrificaram- 
se  pela  íè,  e  em  Cranganor  a  família  real  de  Tanor  rece- 
bia as  aguas  do  baptismo  das  mãos  do  padre  Fr.  Vicente 
de  Lagos.  A  lei  de  Ghristo  foi  chegando  assim  ás  mais 
longínquas  paragens,  eos  padres  da  ordem  Seraphica,  su- 
periores aos  perigos  e  provações  apostólicas,  escrevendo 
eslíi  rormosa  pagina  da  historia  do  christianismo  na  índia, 
não  illusti  ai  ani  só  o  seu  instituto,  coadjuvaram  também 
eíBcazmente  os  primeiros  passos  da  conquista  nas  deca- 
das  immediatas  ao  descobrimento^. 

Em  1543  entraram  os  jesuítas,  seguiram-se  os  domi- 
nicanos, e  successivamente  vieram  os  religiosos  de  outros 
instilutus.  Pareceu  conveiiit  iile  distribuir  jior  cada  or- 
dem as  terras  de  Goa  e  as  regiões  do  oriente  encommen- 
dadas  ao  seu  cuidado.  Coube  a  ilha  de  Goa  aos  filbos  de 
S.  Domingos  e  de  Santo  Ignacio.  A  província  de  Salsete 
pertenceu  aos  últimos,  e  a  de  Bardez  aos  franciscanos. 
Esto  primeiro  periôdo  do  apostolado  foi  na  realidade  o 
mais  fecundo  e  edificante  pelas  virtudes  dos  missionários. 
A  austeridade  dos  pregadores  era  como  um  espelho  sem- 
pre limpo  da  pureza  da  siia  doutrina.  Á  proporção,  que 
augmentava  o  numero  dos  proselytos,  as  communidades 
agrícolas,  rogadas  pelos  padres,  ministravam  os  meios  pe- 
cuniários [lara  levantai  a  igreja  da  aldeia.  Á  conversão 
reuniii-se  a  iiisli-ncerio  ))opnlar,  e  ambas  [íiogrediramsem 
obstáculos.  Principiou,  poi  ênx,  a  ati  ouxar  a  pouco  e  pouco 
a  antiga  rigidez,  e  a  predominar  uma  soltura  de  costumes 
e  de  princípios»  declarada  por  fim  em  relaxarão  aberta. 
Os  franciscanos  da  índia,  confiados  na  robustez  das  for- 
ças, as[)irarani  a  einancipar-se  da  tutela  da  província  de 

^  Quadros  Historim  de  Goa,  quad.  vni. 


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aOO  HISTOBIA  DC  PORTUGAL 

Musses  Portugal.  Ateiavam-se  por  esta  causa  as  paixões  com  a 
resistência,  suscitar.iui-se  (]os|)eitos  e  discor-dins.  e;i  irri- 
tação mauifestou-se  de  parte  a  parte  por  um  lando  pouco 
decoroso.  Mallo^rada  em  1580  a  primeira  teatativa,  tor- 
nou em  4611  a  renascer  o  desejo  da  separação,  e  por  ul- 
timo triumphou  em  1619.  Mas  esta  independência  tâo 
appetecida  foi  uma  victoria  fuiiesl.i.  Desde  esse  dia  a  nova 
provinda  intitulada  de  S.  Thomé  trocou  as  noiíuas  se- 
veras que  a  tinham  engrandecido»  pelo  amor  dos  inte- 
resses mundanos,  a  atoegação  pela  repugnância  aos  sa« 
crificios,  e  a  modéstia  e  a  pobreza  pela  sêdc  de  bens  e 
commodidades  tempo raos.  Os  povos  abraçaram  os  maus 
exemplos,  como  haviam  respeitado  os  bons,  e,  invadidos 
pelos  vícios,  desamparados  da  vigilância  dos  pastores, 
volveram  em  parte  aos  ritos  gentílicos  ^ 

Alem  d'isto  a  separação  não  asserenára  os  ânimos. 
Rebentaram  novas  inquietações,  e  a  iirovincia.  dividida 
em  dous  bandos,  ora  applaudia  a  parcialidade  do  minis- 
tro provmcial,  ora  obedecia  á  facção  do  commissario 
geral,  e  em  1620  era  tão  grande  a  effervescenda,  que  o 
governador  Fernão  de  Albuquerque  não  descobriu  melhor  • 
maneira  de  a  applacar,  senão  unindo  em  um  só  os  dois 
cargos.  A  par  da  kicta  domestica  outra  mais  grave  veiu 
ainda  complicar  tudo,  travada  com  os  prelados  da  metró- 
pole oriental,  lucta  violenta  e  prolongada  quasi  por  dois 
séculos.  O  concilio  tridentino  tinha  prohibido,  que  os  sa- 
cerdotes das  ordens  religiosas  exercessem  as  funcções 
parochiaes.  Quiz  o  arcebispo  D.  Fr.  Aleixo  de  Menezes 
executar  a  letra  dos  cânones  substituindo  os  frades  nas 
parochias  por  clérigos  seculares,  mas  os  franciscanos  re- 

*  Quadros  Históricos  de  Goa,  quad.  vin. —  Ensaio  Histórico  da 
lÀngm  C(mmm,\K^o  «t.  Tainha  Rivara.  Nava  Goa.  iSã8,pag.  20  a  23. 


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DOS  S£CULOS  XTU  £  XVIU 


lOi 


sistiram,  e  o  pleito  snbin  á  decisão  da  côrte,  que  em  1608  Misaôes 
resolveu,  que  as  íreguezias  de  Bardez  continuassem  a 
ser  providas  nos  religiosos  seraphicos.  Esta  decisão  aca- 
bou de  arruinar  as  virtudes  monásticas  da  província  de 
S.  rhomé.  A  ambição,  oorgalho,  os  appetites  mundanos, 
p  a  ociosidade  deram  as  mãos,  e  contnminaram  em  pouco 
tempo  os  claustros  da  ordem.  Notando  a  sua  decadência, 
o  arcebispo  D.  Fr.  Setmstíão  de  S.  Pedro  renovou  em 
1627  o  propósito  de  D.  Fr.  Aleixo,  excluindo  os  frades 
das  parochias  por  descuidados  e  negligentes  em  suas  obri- 
gações, pela  ignorância  da  iingua  do  paiz  na  maior  parte 
d  eiies,  e  pelo  estado  lastimoso  das  clu  istaudades  de  fiar- 
4ez.  Prevaleceram  as  rasties  do  prelado,  e  em  12  de  abril 
de  1628  ordenou  el-rei,  que  os  religiosos  nSo  fossem 
admittidos  ao  officio  parochial  senão  depois  de  approva- 
dos  pelo  ordinário  *. 

Não  terminou,  porém,  ainda  com  esta  resolução  a  con- 
tenda. £m  1629  o  provincial  dos  franciscanos,  aproveitan- 
do a  occorrencia  da  morte  do  arcebispo,  representou  ao 
conde  de  Linliares  emfavor  da  ordem,  queixando-se  do  ri- 
gor com  que  o  prelado  falecido  tratara  os  padres  de  Bardez, 
e  citaodo  a  tres  d^elles  como  mestres  da  língua  do  paiz, 
e  a  outros  tres  como  prégadores  distiuctos.  Acres*- 
centava,  que  os  clérigos  naturaes  nSo  mereciam  respeito 
nem  o  podiam  conciliar,  porque  muitos  traziam  as  ore- 
lhas furadas,  e  só  cuidavam  em  se  locupletarem  a  si  e  aos 
parentes.  O  vice-rei,  inimigo  do  arcebispo  accusado,  con- 
firmou as  asserções  dos  frades  nos  seus  ofiiciosde  18  de 
fevereiro  de  1630,  e  a  còrte  julgou  cortar  o  nó  gordio, 
iiiaudando  (lue  os  religiosos  propostos  para  parochos  fos- 
sem examinados  e  approvados  pelo  vice-rei!  Os  padres 

1  Entah  fíUtorieo  da  lAngua  Coneani,  pag.  S3  a  28. 


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m 


iUSTOBU  £>E  FÚflTUGAL 


ninai»  de  S«  Francisco,  querendo  fortificar  a  sua  causa,  tinham 

allegado  oá  bapt  ismos  geraes  para  que  haviam  concorrido, 
as  novas  fundações  devidas  á  sua  iniciativa,  e  tinham  exal- 
tado o  zelo  com  i{ur  se  apphcavani  ás  missões»  emquanto 
o  arcebispo  D.  Fr.  Sebastião  negava  a  sua  esmola  aos  mi- 
seráveis, maltratava  os  religiosos  na  presença  dos  secu- 
lares, o  jirolegia  clérigos  devassos  e  avarentos,  só  activos 
em  junlar  (Unheiro  para  comprarem  almarcs*.  Os  íran- 
ciscanos,  por  uhimo,  ijuiiiieraram,  ipie  só  nailhadcCey- 
lão  existiam  ciucot^ita  padres  seus,  aos  quaes  se  devia  a 
conversão  de  sessenta  mil  aUnas,  tanto  na  missão  nova 
de  Jafonatapao,  aonde  haviam  baptisado  trinta  mil  pessoas, 
que  pastoreavam  no  distrício  de  Manar  em  sete  i^Tcjas 
mais  de  quinze  ínil  chrislãus,  que  doutrinavam  em  Ceylão 
Ires  christandades  com  mais  de  dois  mil,  c  íinalniente  que 
nas  regiões  do  norte  administravam  dezesete  igrejas  e 
vinte  cinco  mil  proselytos,  prégando  e  ensinando  em 
todas  estas  partes  na  Ungua  do  paíz*. 

Mas  i>.  Braz  de  Castro,  que  succedêra  ao  conde  de  Li- 
iiliiires,  dizendo  só  a  verdade  a  el-rei,  (ihservuu,  que  a 
eiva  idolatra  pei  veitia  os  novos  chrislàos,  cabendo  a 
culpa  do  mal  aos  parochos  religiosos,  mais  dados  ás  com- 
modidades  e  ao  repouso,  do  que  ao  cumprimento  dos 
deveres.  D.  Braz  fallava  fundado  em  factos*  Aquelles  pas- 
tores já  não  pareciam  os  mesmos.  As  igrejas  de  Bardez 
aciiavam-se  quasi  liaiisíoimadas  eui  casas  de  recreação, 
aoade  os  povos  vinham,  não  a  ouvir  as  lições  evangé- 
licas, mas  a  prestarem  serviços  servis,  ou  a  trazerem 
regalos  de  fructas  e  de  aves,  exigidos  como  tributos.  Os 

1  Ensaio  Hktorieo  da  lÀngua  Goneam^  pag.  24  a  28. — Livro  das 
Monções  22,  fl.  440. 

2  ÃÁvro  das  Monções  13,  il.  63. 


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>  DOS  SBGOLOS  x?n  £  xmi 

fieis  achavam  no  reitor,  não  um  pae  desvelado,  mas  um  uu&òm 
seiilior  sempre  dis[)osto  a  i)uni-Ios  ajieiias  discrepavam 
da  sua  voutade.  Nem  os  mortos  se  eximiam  da  prepo- 
tência» porque  nenhum  era  sepultado  se  a  famiUa  pri- 
meiro não  depositava  o  custo  do  enterro.  A  cubiça  do- 
minava tudo.  A  ordinária  do  collegio  dos  Reis  Magos, 
abou  aí  la  ]>elo  íjnvei-no  para  os  or()lirios,  loi  distrahiila  em 
proveito  dos  íamulus  e  dos  |)iolegidos.  Do  donativo  ap- 
plicado  aos  baptismos  geraes  mal  se  gastava  a  terça  parte. 
Às  outras  duas  guardavam-se  nos  cofres  para  acudir  ao 
que  eustamm  em  Homa  os  prelados  da  casa,  Ã  relaxa- 
ção da  disciplina  já  não  podia  ser  excedida.  As  corpora- 
ções e  os  indivíduos  obtinham  da  chancellaria  pontincia 
breves  para  se  subtraliirem  á  jurisdicção  dos  ordiaai  ios,  e 
por  elles  tornavam-se  quasi  independentes  de  facto  da 
soberania  dos  príncipes  K 

£mquanto  a  ordem  seraphica  assim  declinava,  a  de 
Santo  Agostinho  sobresaía  peia  perfeição  da  vida,  dos 
costunies,  e  das  letras'^,  e  os  jesnitas  na  admuiislração 
espirilual  de  Salsete  colhiam  grande  fructo.  Os  carmelitas 
eram  estimados  por  trabaitiarem  com  zôio»  como  todos 
os  que  o9o  podiam  possuir,  ou  disfructar  rendas  na  Âsia> 
e  os  capuchos  observantes  viviam  menos  inquietos  e  mais 
obedientes^.  Por  iiliimo  a  regularidade  do  comportamento 
dos  dominicanos  é-nos  attestada  pelo  teslemimiio  insus- 
peito de  Fernão  de  Albuquerque  em  lUiO,  elogiando  o 
proveito  de  seus  esforços  em  Soior  no  anuo  antecedente^. 

^  Botqwjo  Hiítoria)  de  Goa,  quad.  viii. 

*  Livro  das  Monções^  22  fl.  440.^(]arta  de  FemSo  de  Albu- 
querque, de  14  de  fevereiro  de  1620. 

'  Carta  do  yíce-rei,  de  18  de  fevereiro  de  1690. 

*  lÂtro  das  ííonçSes,  22  fl.  440. 


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204 


HISTORIA  D£  PORTUGAL 


Mútoes  O  ílesejo  dosconqiiiíitadores,  quando  entraram  na  índia, 
seria  reduzir  desde  logo  todos  os  vencidos  á  unidade  do 
culto  catholico.  Deteve-os  a  consideração  da  impossibili- 
dade de  coegír  um  povo  numeroso,  cujas  classes  princi* 
paes  tocavam  elevado  grau  do  civilisacão,  e  cuja  resistência 
podia  vir  a  ser  periffosa.  rusta  de  parte  a  viulencia  romo 
arriscada,  optaram  pelos  meios  indirectos.  Albuquer([ue 
em  1510  concedeu  a  liberdade  de  cuitos,  mas  em  1541  os 
pagodes  das  ilhas  de  Goa  foram  demolidos  e  os  seus  bens 
apropriados  á  sustentação  das  igrejas  e  do  clero.  O  bispo 
Fr.  João  de  Alhuqueniue,  liei  a«4»i'nsamento  de  impor  a 
conversão  ás  gentiiidades,  mandou  apprehender  os  livros 
das  diversas  seitas;  e  destrui-los.  O  primeiro  concilio  pro- 
vincial de  Goa  em  1567,  coberente  com  as  mesmas  idèas, 
ordenou  que  todos  os  domingos  houvesse  pregarão  aos 
infleis  na  lingua  do  i)aiz,  e  o  vice-rei  prescrevfMi,  que  os 
babitantes  da  raça  india  e  idolatras  se  arrolassem  por 
freguezias  para  irem  em  turmas  de  cincoenta  aos  conven- 
tos de  S.  Paulo,  de  S.  Domingos  e  de  S.  Francisco  ouvir 
a  explicação  da  doutrina,  devendo  praticar  outro  tanto 
os  de  Baça im,  Cochim  e  Malaca.  As  primeiras  conslitui- 
çoes  do  arcebispado  de  Goa  tinbam  estabelecido,  que 
nenbum  catechumeno  fosse  baptisado,  senão  depois  de 
instruído  nos  artigos  da  fé,  regra  conOrmada  pelo  segundo 
concilio  celebrado  em  1575,  e  posteriormente  ])elos  con- 
cílios seguintes,  recommendando  todos  como  ponto  es- 
sencial o  ensino  da  doutrina  na  lingua  dos  natnraes  por 
ser  o  modo  opportuno  de  promover  a  diffusão  dos  verda- 
deiros principios  religiosos.  Estes  preceitos  Acaram  quasi 
sempre  em  Icti  a  morta,  ou  foram  sophismados  *. 

1  Decreto  S.^I)ecieto  3.«  da  acçfo  2.%  no  concilio  de  1575. — 
O  ST.  Rivara.  Eníoio  Hkkrieo  da  UnQua  Coneanú 


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DOS  SÉCULOS  XVU  E  XVIU  908 

Apesar  da  cooperação  de  todos  estes  esforços,  e  da  de- 
dicação  dos  missionários  afticanos,  os  progressos  não  cor- 
responderam á  impaciência  dos  devotos,  e  a  população 
christã  vegetava  quasi  submergida  em  um  verdadeiro 
charco  de  corrupção.  Os  maus  exemplos  afugentavam  os 
pagãos,  calumniando  a  virtude  e  a  religião.  Os  idolatras 
apontavam  para  o  espectáculo  da  desmoralisação  trimn- 
phante,  e  condemnavam  a  lei  evangélica  pelos  abusos 
dos  que  a  prevertiam,  e  os  que  a  liaviam  abraçado,  como 
mais  períeita,  volviam  aos  antigos  erros  secretamente^ 
justificando-se  com  os  escândalos  quotidianos  de  que  eram 
testemunhas.  As  casas  achavam-se  quasi  convertidas  em 
lupanares,  o  adultério  e  o  incesto  não  causavam  espanto, 
a  justiça  vendia  sem  rubor  as  sentenças,  e  os  meios  ignó- 
beis passavam  por  lícitos,  uma  vez  que  satisíizessem  a 
cubica  e  a  avareza.  A  usura  reinava  applaudida,,  o  sangue 
corria  inulto  em  rixas  e  homicidios  aleivosos,  e  os  per- 
petradores  vangloriavam-se  dos  crimes  como  se  não  exis- 
tissem tribunaes.  A  dissolução  adiantava-se  tão  ousada, 
que  ouso  dos  sacramentos  como  que  estava  abolido.  Foi  a 
este  pego  insondável  de  misérias  c  de  torpezas,  que 
D.  hniõ  III  enviou  os  primeiros  padres  da  companhia, 
coníiando-ihes  a  reformação  dos  costumes,  e  o  en$ino  e 
apratica  das  virtudes  catholicas.  Para  ser  escutado  no  meio 
dos  rugidos  das  paixões  e  da  surdez  do  endurecimento 
era  preciso  grande  dedicação  evangélica,  constância  su- 
perior a  todas  as  provações,  extrema  austeridade  de  vida, 
que  faltasse  mais  do  que  a  palavra,  e  summa  paciência  unida 
a  muita  força  de  vontade  e  ao  dom  da  persuasão.  S.  Fran- 
cisco Xavier  immortalisou  o  seu  nome  e  a  sua  missão,  en- 
trando no  combate  coberto  d*estas  armas  defina  tempera  K 

^  Quadros  Uiitcricos  de  Goa,  quad.  vui. — S.  Frauciíico  Xavier 


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mSTORIA  BE  POITUGAL 


»M»    Mas  os  seus  saccessores  apartaram-se  muitas  vezes  das 
sendas  trilhadas  por  elle,  e,  olhando  mats  á  vaidade  dos 

eíToitos,  do  que  á  inireza  d.i  nlir;i,  cnpitularam  com  as 
máximas  oppostas  ás  do  veidadciro  fundador  do  insli- 
toto  00  oríenle.  A  ambição  politica,  o  abuso  da  inílueDcia 
adquirida,  e  a  intenção  perseverante  e  pouco  escrupulosa 
de  engrandecer  a  ordem,  attendendo  menos  aos  meios, 
do  que  aosíins,  «mpanarain  na  Asia,  assim  como  na  Aíi  ica 
e  na  America,  o  lustre  dus  serviços  prestados  pela  socie- 
dade, e  tomaram  por  ultimo  odioso  o  seu  predomínio. 
Entre  os  erros  que  mais  avultam  na  direcção  das  conver* 
s?^es  das  gentilidades  da  índia  tres  principalmente  devem 
citar-se  cnnio  Cunestissimos:  —  a  intolerância  systematica, 
o  ciúme  dos  outros  operários  levado  a  um  grau  irritante, 
e  o  monopólio  das  consciências  e  de  todas  as  forças  man- 
tido com  tal  excesso^  que  em  muitas  occasides  não  recuou 
diante  de  nenhuma  consideração. 

No  íTOvenio  de  Francisco  Barreto  (l5o5  a  1558)  é  qne 
a  violciicia  aconselíiada  pelos  jesuitas  principiou  a  em- 
pregar-se,  arrastando  entre  outras  victimas  a  moça  prin- 
ceza,  fdba  do  rei  Meale,  á  pia  baptismal,  prohibindo  aos 
gentios  o  eiercicio  de  seus  ritos  e  ceremonias,  declaraor 
do-u>  iiihalxjis  para  concorrei vni  com  os  clirislãos  aos 
cargos  públicos,  estabelecendo  que  as  mulheres  casadas 
convertidaslíicassem  por  esse  facto  meeiras  nos  bens  do 
casal,  e  dispondo  que  os  orphãos  de  paes  idolatras  fossem 
baplisados  antes  do  uso  de  rasão,  e  entregues  a  tutores 
cliristães.  Estas  atrocidades  não  lu  vnluziíínn  os  resultados, 
que  os  fanáticos  esperavam  colher  d  eites,  c  os  golpes 

chegou  a  Goa  a  8  tle  iiiaio  de  lu'i^^.  < )  ctTcito  de  suas  pn-^jarucs  publi- 
cas foi  flfcisivo.  A  cidade  mudou  de  aspecto,  e  os  pagãos  conimo- 
Yiam-8e  vendo  retratadas  as  verdadeiras  virtudes  cbrístis. 


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DOS  SÉCULOS  XVII  E  XVni  207 

feridos  sobré  os  aflfectos  domésticos,  longe  de  chamar,  litMi 

afastaram  do  seio  da  religião  os  que  reprovavam  simi- 
Ihantes  violências.  A  companhia,  roubando  as  creanças 
do  regaço  materno,  e  opprimindo  seni[)iedade  os  afflictos, 
em  vez  de  i)eDçãosy  só  recebia  maldições.,  desafiando  até 
a  censora  dos  chrísfãos  imparciaes"  e  avisados.  Subiu  á 
rôrte  nma  representação,  pedindo  a  revogação  das  dis- 
posições relativas  ao.^  orphãos,  e  propondo  qiio  só  lhes 
fossem  applicadas,  quando  não  tivessem  mãe,  ou  descen- 
dentes; mas  este  lenitivo  demorado  só  começou  a  sua* 
visar  os  males  em  1677  K 

O  primeiro  protesto  contra  a  provisão  de  Francisco 
liarreto  foi  a  saída  de  muitas  íaniilias  o  a  parnlvsarao  da 
industria  e  do  commercio.  A  resistência  conti  a  as  resolu* 
ções  dos  concílios  mamfestou-se  de  uma  fórma  mais  gra- 
ve, sublevando-se  os  povos  de  Assolná,  e  sendo  preciso 
empunhar  as  armas  para  siiíTocar  a  rebellião  e  impedir 
que  ella  conflaí?ra>si'  os  (iLsliictos  vizinhos.  0?  idolatras 
vencidos  oppozeram  aos  rigores  a  astúcia,  ou  a  iiimeza,  e 
iliudiram  muitas  vezes  a  severidade  dos  preceitos.  D.  Se- 
bastião auctorison  a  coacção  das  consciências,  e,  rogado 
pelos  embaixadores  mouros  para  conceder  aos  gentios  a 
liberdade  do  culto,  incumbiu  da  decisão  o  vice-reiD.  Luiz 
de  Athaide,  ouvidos  os  theologos  de  maior  conceito.  Posta 
n'estes  termos  a  questão,  inutíi  será  acrescentarmos,  que 
foi  resolvida  contra  os  direitos  dos  que  aspiravam  a  ado- 
rar os  deuses  de  seus  paes  desassombrados  de  vexames. 
Os  jesuitas  e  o  an'ehi>iK>  votaram  contra  a  tolerância,  o 
vice-rei  a  lavor,  e  a  maioria  da  junt  !  r  n nvocada  sustentou 
a  provisão  de  I5õ6  nas  terras  de  Saisete,  e  suspendeu^-a 

^  Kmaio  Histór  ico  d<i  Linrjm  Concani  pelo  ST.  Rivara. —  Quadros 
Hmncos  de  Goa,  quad.  viu. 


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HI8T0BU  DE  PORTUOAL 


mu»m  nas  do  norte»  aonde  nunca  passára  de  providencia  quasi 
nominal.  D.  Luiz  de  Athaide  na  conferencia  discutira  o  as- 
sumpto, nSo  só  pelo  aspecto  religioso,  mas  como  politico 

e  couio  adiiiinbUadur.  Kão  tardou  que  os  successos 
justificassem  plenamente  as  suas  upiniues.  Os  mouros,  os 
árabes,  os  arménios»  os  parses»  os  guzarates,  e  os  natu- 
raes  de  Bengala,  de  Siam,  e  do  Pegú,  que  anímayam  o 
trato  marítimo  e  enriqueciam  os  nossos  domínios,  apro- 
veitaram todas  as  occasiões  de  fugirem  d'elles,  adiiii- 
rados  de  verem  o  Deus  dos  cbhstãos  transformado  no 
crè  ou  morre  dos  mussulmanos,  voltaram  para  os  esta- 
dos dos  antigos  dominadores,  que  lhes  afiançavam  ao 
menos  a  tranquillidade  e  a  segurança  de  seus  ritos.  A  mú- 
gração  empobreceu  as  conquistas,  e  os  progressos  do 
chrístianismo  nunca  foram  mais  lentos.  As  perseguições» 
não  só  não  attrabiam  proseiytos  e  amigos  á  igreja  e  aos 
portuguezes,  como  inflammavam  contra  elles  as  antipa- 
thias  e  os  ódios 

A  sociedade  de  Jesus  não  carecia  d'est.is  oppressões 
contrarias  aos  seus  fins.  Jogava  armas  mais  fortes,  e, 
illustrada,  como  era,  não  necessitava  de  compellir  pela 
força,  por(|ue  pudia  muito  mais  com  a  persuasão.  A  ex- 
periência devia  adverti-la.  Emquanto  em  Salsete  os  con- 
versos vinliam  á  pia  luiplismal  quasi  de  lastus  e  cheios 
de  terror,  nas  outras  partes  o  maior  numero  abraçava  o 
evangelho,  convencido  pelos  rasgos  edificantes,  pela  pa- 
lavra eloquente,  pela  pompa  das  ceremonias  religiosas,  e 
pelas  boas  doutrinas  ensinadas  aos  neuph)  los  e  transmit- 
tidas  por  elles.  O  culiegio  da  Santa  Fé,  sustentado  coni 
esmolas  e  com  as  rendas  dos  pagodes  demoUdos,  instruía 

*  Ensaio  Histarico  da  Líw^tía  Cíwcantpelosr.  liivara. —  Quadros 
timluricos  de  Goa,  quadr.  vill. 


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DOS  SÉCULOS  XVII  E  XVltl 


209 


cem  meninos  de  todas  as  naoões  da  Asia,  canarins,  mala- 
bares, cíngalás,  pegús,  malaios,  jaus,  chinas,  abexins  e 
outros,  e  estes,  depois  de  ensinados,  volvendo  á  [iatiia, 
tornavam-se  poderosos  instrumentos  da  propagação  da  fé 
e  auxiliares  activos  dos  pregadores  europeus.  Os  jesuítas 
notando  a  seducçSo  exercida  nas  imaginações  orientaes 
pelas  exteríoridades  do  coito  catholico,  n3o  hesitaram 
em  introduzu*  muitas  praticas  theatraes  nas  solemnidades 
religiosas,  chegando  a  figurar  quadros  vivos  dos  passos 
mais  dolorosos  da  Paixão,  ensaiando  procissões  em  que 
appareciam  Adão  com  a  enxada  ao  hombro,  e  Eva  com  a 
roca  e  a  serpente^  permittíndo  os  cantos  de  loas  com  to- 
ques de  adufes  nos  templos  em  as  noites  de  Natal,  e  sanc- 
cionando  varias  scenas,  que  de  certo  lutavam  com  a  aus- 
teridade da  religião,  mas  que,  exaltando  os  sentidos  das 
multidões  ignorantes,  as  predispunham  para  acceitarem 
mais  facilmente  o  culto  christão  ^. 

A  companhia  não  desprezava  ao  mesmo  tempo  nenhmn 
meio  opportuno  de  dilatar  e  de  fortalecer  emtoda  aparte 
a  sua  influencia. 

No  seminário  da  Santa  Fé,  denominado  a  universidade 
de  Goa,  aberto  em  1556,  os  estudos  abrangiam  tres  cias^ 
ses  de  latinidade»  um  curso  de  philosophia,  e  uma  cadeira* 
demorai.  Depois  addicíonaram-se-lhes  duas  lições  de  theo- 
lo^ia.  Nos  coUegios  de  Rachol  e  de  Chorão,  nos  hospitaes 
de  Siilsele,  Manganor  e  Barcellor,  de  Tunay  no  Japão,  e 
no  de  Tidor,  na  casa  dos  Neophytos,  e  nas  igrejas  das  tre- 
guezias  havia  aulas  de  leitura,  de  escripta  e  de  contas,  e 
ensinava-se  a  tocar  rebeca  e  órgão  para  acompanhamento 
vocal  e  instrumental  das  íímcções  semanaes  das  igrejas. 
Nas  enfermarias  os  padres  recebiam  e  curavam  com  a 


>  Quadros  Hiêtorim  de  Goa,  quAdr.  viu 

TOHO  T 


U 


210 


HISTORIA  DE  PORTUG/LL 


mesma  caridade  os  chrístãos  e  os  gentios.  Distribuindo  a 
instracçlío  ao  povo  nas  escolas,  dontrínando-o  nos  púlpi- 
tos, o  (liri^'ini  lf  IH  ►  110  confessionário,  concentravam  em  mi  ;í.> 
mãos  t(Ml;is  as  forças.  A  imprensa  não  ficou  esquecida. 
Os  prelos  dos  jesuítas  e  uma  fundição  de  typos  para  os 
caracteres  do  abecedario  tamul  e  dos  outros  idiomas 
orientaes  completavam  este  vasto  systema.  Yulgarísando 
o  catecismo  e  os  livros  ascéticos  na  língua  dos  catecume- 
nos,  os  escriptores  da  companhia  sabiam  accommodar 
as  idéas  e  o  estylo  á  capacidade  e  ás  preoccupações  dos 
iddatras.  A  severidade  dos  doutores  cathoUcos  conde- 
mnou  esta  aUiança,  a  seu  ver  monstruosa,  das  verdades 
christSs  com  as  superstições  gentílicas;  mas  os  missioná- 
rios respondiam  que,  para  íiimar  os  primeiros  passos, 
não  havia  outro  caminho  senão  trarísiírir  na  Iiulia  com  os 
preconceitos  sociaes  e  i^ligiosos,  e  na  China  com  as  opi- 
niões acceitas.  Humanisando  a  divindade*  a  fim  de  a  Umt- 
nar  aoeessivel  ás  intelligendas  obscuras,  narravam,  ou 
descreviam  os  traços  principaes  da  religião  por  modo  tal, 
que  os  pagãos  e  os  idolatras  não  vissem  oífendidas  desde 
logo  directamente  suas  cr'enças  enraizadas,  ou  suas  mais 
intimas  aspirações.  Por  este  methodo  contavam  cm  i560 
nas  aldeias  de  Divar,  Batim,  Chorão  e  outras  ilhas  de 
Ckm  mais  de  treze  mil  proselytos.  Em  Salsete  alargaram 
também  as  conquistas,  porém  muito  mais  nos  primeiros 
annos.  povoando  a  proviiicia  de  templos,  de  igi'ejas,  de 
hospícios  e  de  aulas 
.  Estes  serviços  de  immenso  proveito  para  a  religião, 

■ 

1  Quadros  Bi^aricos  de  Goa,  quadc  vfir.  Os  ritos  jesuíticos  da 
China  e  do  Malabar  foram  prohibidos  por  Innocencio  X  em  12  de 
setembro  de  1645,  como  poaco  conformes  com  a  pureza  da  religião 
e  eivados  de  superstições  ge&liiiGas. 


r 


BOS  SÉCULOS  mi  i 


para  o  estado,  e  para  a  cultura  moral  e  intellactual  dae  nmm 

populações  quiz  sejnpre  a  íjociedade  de  Jesus,  que  lhe  fos- 
sem largamente  relniiuidos  em  podei-  e  riquezas  e  em  pri- 
vilégios que  afiiimasseia  a  sua  supâríoridade,  tanto  sobre 
a$  outras  ordeus,  como  sobre  a  própria  goveruação  tem* 
poral  das  christandades.  A  despeito  das  reconuneodaç5es 
de  S.  Fraiicis(  u  Xavier  mustrou-se  na  india  Ião  eubirosa 
de  propriedades  e  de  thesouros,  como  na  Airica  e  na 
America,  e  embora  os  [ladres  mais  prudentes  procuras- 
sem quebrar  os  oUios  â  iaveja  com  as  capas  pBmendadas» 
a  opulência  do  Instituto  já  dava  de  mais  na  vista  e  desa- 
fia\.i  luereeidas  queixavS^  A  aiiilnção,  a  soberba  e  a  in- 
tolerância com  que  na  Uiina  e  no  Japão  a  rompanbia  dis- 
putou as  missões  aos  outros  religiosos,  appellando  até 
para  a  intervenção  dos  maodarins  e  dasauctoridades  gen- 
tílicas, atearam  contra  ella  o  justo  resentímento  dos  of- 
fendidos  e  dos  molestados,  e  deram  margem  a  susj)eit;u  - 
se  a  sinceridade  de  suas  ciencas  e  o  desinteresse  (lu>  >t  us 
8g£orços.  Diziu-se  que  dk  jesuítas  trabalhavam  para  si,  e 
que  inamol;Q*iam  &em  remorso  a  pátria,  se  preciso  fosise, 
6  a  própria  fó  para  manterem  intacto  o  monopólio  da  di-  . 
recção  das  almas  nas  regiões  mais  ricas.  S.  Francisco  Xa- 
vier linlia-ibes  aberto  as  portas  do  Jafião,  pregando  na 
provmcia  de  Bengo.  Os  povos  íestejaram-os,  e  o  governo 
concedeu-lhes  plena  liberdade.  Diligentes,  virtuosos,  e 
humildes,  os  primeiros  missionários  usaram  e  não  abu- 
saram das  circunislancitis  favoi  aveis.  Entraram  os  padi  es 
das  outras  ordens,  a  seara  chegava  para  todos,  mas  o 
ciúme  e  as  pai&ões  dividii  aui-os,  e  as  lutas  dos  domini- 

1  Lucena,  Hktoria  de  S.  Francisco  Xavier^  liv.  x,  cap.  xin.  O 
apostolo  das  índias  l  ocommendava  a  isenríío  dos  iieg"M-ios  seinilares 
para  os  religiosos  atrás  d'e]ies  mo  iom^im  A  metlei-se  uo  i^iuiido. 

14 


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212  msmik  DB  PORTUGAL 

MÍM8M  canos  com  os  frandscanos  e  de  ambos  com  os  jesuítas 
envergonharam  a  igreja,  e  prejudicaram  a  todos  no  con- 
ceito dos  naturaes.  A  avareza  e  o  or<íiillio,  péssimos 
conselheiros,  acabaram  ãv  lhes  l  oubar  as  sympathias.  O 
desejo  de  dominar  e  a  tendência  de  mesclar  enredos  po- 
líticos com  a  acção  religiosa  tomaram-os  suspeitosj  e  exa- 
gerado este  erro  pelas  intrigas  dos  hoUandezes»  os  prín- 
cipes japonezes  chegaram  a  persaadír-se  de  que  á  sombra 
das catecheses  se  urdia  eíTectivamente  um  perifroso  trnma 
para  lhes  alienar  a  íidehdatle  dus  ísulxlitus.  A  resistência 
dos  christâos  indígenas  em  Simabara  acabou  de  os  con- 
firmar n'esta  apprehensão,  e  as  perseguições  mais  cruéis 
cerraram  os  portos  do  Japão  ao  christianismo  e  aos  eu- 
ropeus *. 

Este  revez,  duplamente  funesto,  foi  obra  do  systema 
seguido  pela  companhia  n  aquellas  partes  e  na  China, 
systema  fundado  no  prindpio  odioso  e  pessoal  de  excluir 
quanto  possível  a  cooperação  cj^s  outras  ordens,  e  até  a 
de  Roma  e  do  episcopado,  como  provaram  a  consulta, 
reunida  em  1581  em  Nangasaki  pelo  visitador  Alex, mdi  e 
•  Valignani,  e  o  directório  dictado  ás  missões  do  Jai)ãu. 
Kessa  consulta  deddiu-se,  que  a  concorrência  de  religio- 
sos estranhos  ao  grémio  de  Santo  Ipacio  serviria  só  de 
confiisão  e  de  atrázo  á  nova  igreja,  e  que  a  existência  de 
bispos,  que  não  saíssem  do  seio  do  instituto,  longe  de  a 
auxiliar,  poderia  vir  a  ser  causa  de  pertur!)ações  e  discór- 
dias. Fieis  a  estas  máximas,  cuidaram  os  padres  sempre 
da  iX)nversão  dos  japonezes,  como  de  empreza  exclusiva- 
mente sua»  e  com  tanto  zéio,  que  em  i582  recenseava 

1  Sobre  os  trabalhos  dos  jesuítas  e  outros  religiosos  nas  miss5es 
consultc-se  a  Histoire  Générale  des  Missions  Catholique$  pelo  bariSo 
de  Uenrioiíy  tom.  i,  AmimmeiU,  e  tom.  n. 


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DOS  SÉCULOS  xvn  E  xvin 


213 


aquella  cliristandade  sett  i  *  ntas  mil  almas  com  mais  de  Mia»» 
cincoenta  casas,  muitas  igrejas»  ou  capellas  e  dois  seminá- 
rios. A  embaixada  catholica»  enviada  a  Rom  e  composta 
de  príncipes  e  de  pessoas  nobres,  aportou  ao  Tejo  em 
1584,  e  causou  a  sensação,  que  a  companhia  se  pi  i  )i)ozera 
suscitar,  quando  meditára  esta  demonstração  de  sua  po- 
derosa influencia  K 

No  anno  de  161  i  calculava  um  escríptor  nosso»  que  as 
cbrístandades  de  toda  a  Ihdía  desde  Sofala  até  ao  Jap^o 
subiriam  a  dois  milliões  de  almas,  alem  do  grande  liu- 
mero  das  que  todos  os  dias  acudiam  á  pia  baptismal.  En- 
tretanto já  se  notavam  muitos  abusos  na  conversão  dos 
gentios»  e  até  se  apontavam  quasi  desprezos  da  fé.  Offe- 
reciam-se  prémios  aos  que  abraçassem  a  lei  de  Chrísto, 
e  não  poucos,  recebida  a  recompensa,  renegavam  logo,, 
mercadejando  com  a  consciência.  Forçavam-se  outros» 
depois  de  presos  injustamente»  a  baptisarem-se»  e  as  apos- 
tasias  puniam  a  violência.  O  estado  ecclesiastico  nas  còr- 
tes  de  1562,  representando  á  rainba  regente,  D.  Catha- 
rina  de  Áustria,  pediu  que  não  se  tomasse  a  conceder  o 
menor  premio,  como  prego  da  conversão,  que  não  se  ca- 
ptivasse  ninguém  para  o  fazer  christão  á  força»  e  que  o 
baptismo  se  nlo  administrasse»  senão  depois  de  instruídos 
os  catechumenos  nos  artigos  essenciaes  da  fé.  No  Achem 
dizia-se  a  missa  de  um  modo  indecente,  e  as  ceremonias 
do  culto  ceiebravam-se  com  summa  irreverência.  Succe- 
dia  o  mesmo  em  varías  fortalezas.  Os  jesuítas  possuíam 

1  Padre  Francisco  de  Sonsa»  Oriente  Con^pntiado  1710,  tom.  u, 
eonquisL  iv,  §  ^•-^Ardàvo  Pittoreaeo,  yd.  y»  1862.— iVí«n«Va 
eaiMeada  do  Japão  á  Eunpa. — Breve  compendio  en  que  ee  da 
euenta  do  eetado  qtte  tuoo  la  ig^esia  wmertal  dd  Japon  deede  eus 
princípios  haeta  ol  ano  de  frmto  edeU»  morarei  que  en  dia  hum. 


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HlStORlA  0£  KIATUGAL 


MiisSM  em  Salsete  uma  aldeia  <<Assalaiiã»,  e  castigavam  n'ella 
com  açoutes  e  outras  penas  os  morafloros,  homens  e  mu- 
lheres. Em  Chorão  e  Baadará  tinham  passos  por  oíide  os 
accasaTam  de  desencaminharem  os  direitos  do  fisco,  che- 
gando a  disparar  a  sua  artílheria  contra  os  navios  da  corôa^ 
que  acossavam  os  contrabandistas.  ImputaTam-lhes,  alem 
d'isto,  o  excesso  de  fazerem  sevastaes  e  foí  aes  de  motu- 
proprio  em  Bandará  e  outras  aldeias,  e  de  haverem  frau- 
dado o  estado  com  falsas  aVaiiaçõer^  na  liquidação  dos 
raadhlientos  dos  pagodes  da  província.  A  arrogância  le- 
*  vod  um  d*eUes  ao  arrojo  de  ameaçar  o  vice-ret,  conde  de 
Linhares,  dizendo-lhe,  qtie  os  governadores  costumavam 
'  buscar  os  padres  pai  a  ipie  escrevessem  hem  d>lles  para  a 
côrte.  Em  Tutocurim  promoveram  uma  assuada  de  mil 
gentios  contra  o  capitão  e  o  ouvidor,  e  apearam-os,  su- 
blevando a  terra«  aftigentando  os  pescadores  de  aljofre,  e 
tmtando  o  naíre  de  Madure,  [)ara  romper  o  seu  contrato, 
e  se  apoderar  da  pescaria.  Em  Coulão  oegociavam  usuras 
no  mercado  da  pimenta*  e  era  Malaca,  cinCeylãoe  naC^liina 
ainda  praticavam  jieiores  actos.  O  vice-rei,  depois  de  tra- 
çar d'elles  este  retrato  em  ltía4,  acrescentava,  que,  apesio* 
de  tudo,  no  culto  divino  e  na  conversio  dos  infiéis  todas 
as  otitras  religiões  juntas  nio  obravam  metade 

Osfradfs  de  Santo  Agostinho,  travados  em  vivns  dissen- 
sões coui  os  da  sociedade  de  Jesus,  scFido  coa^ndus  pelo 
vice-rei  a  saírem  com  a  procissão  de  Passos  do  coiiegio  de 
Paulo,  voltaram  as  iras  contra  elle,  e  cobríram-o  de 
doestos  6  ultrages  do  alto  dos  púlpitos  e  na  presença 
dos  idolatras.  Os  jesuítas  mostravam-se  mais  moderados 

1  Couto,  SoMml»  PraUt»,  cKalog.  pa^f.  Í6D.— (?drto<  de  190Sy 
Jfoniammiioê  é»  PrdadM,^lMr9  da$  numçO»,  it*  f9,  IL  79^.— 
GhrMiMl»  4»  Itatoty/ iK»  IS,  pag.  70 1 71. 


« 

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DOS  SÉCULOS  XYII  £  XYIII 


215 


até  com  os  adversários.  O  escândalo  de  injuriar  nos  pnl-  wm^m 

pitos  as  aiictoridades  e  os  partícula!  es  eslava  genera Usa- 
do, e  os  prelados,  remissos  em  o  estranharem,  commet- 
tiam  algumas  vezes  aos  pregadores,  seus  súbditos»  o 
desabafo  da  própria  vingança^.  O  clero  secular  des- 
graçadamente nlo  offerecia  exemplos  mais  edificantes. 
Desde  os  fins  do  xvi  século,  e  principalmente  no  xtii» 
t.iiiíd  as  jerarchias  superiores,  como  as  mais  humildes, 
mereciam  a  nota  de  relaxação,  que  as  feria,  e  o  povo,  já 
contaminado,  acabava  de  se  perder,  seguindo  tão  maus 
guias  espírituaes.  Os  clérigos  de  Goa  e  das  províncias 
obrigavam  os  pobres  a  trabalhar  sem  salário  na  edifica- 
ção dás  igrejas,  espancavam  as  creanças  para  as  força- 
rem a  ouvir  a  doutrina,  fechavam  por  capricho  o  accesso 
das  es(  ulas  publicas,  prohihiam  aos  conversos  abraça- 
.  rem  a  vida  religiosa,  e  vedavam  ao  clero  indígena  a  ad- 
ministração dos  sacramentos,  a  confissão  e  a  predica,  ha- 
vendo extrema  falta  de  sacerdotes.  Mas  estas  culpas  eram 
ainda  veniaes,  comparadas  com  as  de  negar  a  conmiunhlo 
aos  christãos  das  castas  baixas  mesnio  no  leito  da  mor- 
te, de  baptisnr  os  catechunieuos  sem  instrucçâo  religiosa, 
de  negar  a  sepultura  aos  pobres  quando  não  podiam  os 
parentes  pagar  o  funeral,  de  promover  falsas  conversões 
com  violências,  e  de  consentir  nos  templos  ceremonias  e 
abusões  gentílicas '1 


1  Livro  dat  monçikês      i9,  fl.  Gftftmúla  de  Tissuarff, 

1866,  n.»  11,  pag.  310. 

*  Histoire  du  Schisme  Portugais  dans  les  Indes^  par  mr.  dc  Bus- 
sierre.  Paris,  1854.  O  aiiclor  cila  o  Hrrvp  dc  Ahwondrc  VJlj  datado 
de  1658,  breve  que  se  refere  daramenle  a  íaclos  muito  anteriores. 


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i 


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CAPITULO  m 

INSmUGÇÃO  PmiGA 


ImpoUfSo  iojosta  do  atmo  mtellectual  do  reino  ao  gOTerno  hespanhol.  —  O  oiamo 
qiasí  esdosíTaiiuiite  eeeleiiastíco.  Igiioraocia.>-A  nnivcnidade  de  LUMa.  Os 

reinados  de  D.  Ifanod  edeD.  Jo3o  Ilí.  Transferencia  dos  estados  para  Coimbra. 
Lentes  iiaoiDoaes  c  estrangeiro?.— A  ordem  do  S.  Domingos.  Esplendor  da  univer- 
sidade rclVjniKida.  — A  companhia  de  Jesus  em  Portugal.  Opposiçâo  contra  elia. 
Favores  da  curte.  InvasSo  dos  estudos  pela  sociedade.  — As  universidades  deCoim* 
bn  e  de  Ema  no  século  xvi  e  na  iwioieín  metade  do  xvn.  FacnldadM  e  cadeiras. 
Regras  disciplinan  s.  —  Estado  d2  iostracçio.  Freqaoneia  das  anlas.  índole  do  en- 
sino. Efleítoe  da  inflaencia  jesuítica. 

A  declinação  das  sciencias  e  das  letras  na  primeira  me- 
tade do  século  XVII  foi  attribuida  a  um  plano  do  goverao 
bespanbol,  calculado  para  embrutecer  o  povo»  perver- 
tendo o  gosto,  e  envolvendo  insensivelmente  o  paiz  na 
mais  profunda  obscuridade.  Esta  accusação  pecca,  alem 
de  exagerada,  por  injusta.  A  corte  de  Madrid  desejava 
por  certo  reduzir  o  reino  ás  condições  de  suas  outras  pro- 
vindas» mas  nlo  Ibe  oçcorreu  conspirar  para  issp  contra 
a  intelligencia,  viciando  de  propósito  deliberado  os  me- 
thodos  de  ensino.  Os  Filippes  não  são  réus  de  todos  os 
attentados,  que  lhes  imputou  o  resentimento  nacional. 
A  decadência  datava  dos  fins  do  reinado  de  D.  João  III» 
ai^entára  nos  annos  da  minorídade  e  do  governo  de 


m 


HISTOBIA  DE  PORTUGAL 


lusirucçào  D.  Sebastião,  e  nos  dias  do  rei  catliolico  acabou  (!<'  se 
publica  (^^facteiisar  com  mais  vigor.  As  causas,  que  inlUiiiain 
para  amortecer  o  esplendor  da  epocha  de  D.  Manuel,  e 
dos  primeiros  annos  do  reinado  de  seu  filho,  não  depen- 
dia da  vontade  dos  monarchas  castelhanos  atallia-las,  ou 
vence-las.  Eram  mais  íoí  tes  do  que  ella,  e  derívavam-se 
dâ  acção  combinada  das  instituições,  dos  costumes,  e  de 
uma  profunda  alteração  no  caracter  nacional. 

O  marquez  de  Pombal  no  seu  odio  implacável  á  com- 
panhia de  Jesus,  lancando-lhe  as  culpas  do  atrazo  e  da 
immobilidade  dos  estudos,  e  accusando-a  de  haver  sys- 
teiiiaticamente  convertido  a  instrucção  em  instrumento 
de  fms  particulares,  approximou-se  mais  da  verdade, 
postoque  errasse  em  muitos  de  seus  juízos  apaixonados. 
O  exame  imparcial  dos  factos,  sem  aiictorísar  em  toda  a 
extensão  as  censuras  do  ministro.  iiHo  ])óde  absolver  a 
ambiciosa  sociedade  de  uma  i)ai  te  notável  nos  males,  que 
determinaram  a  declinação.  A  direcção  exclusiva,  pes- 
soal e  retrograda  dada  nas  aulas  de  scíencias  e  de  hu- 
manidades ao  es|»irito  das  novas  gerações,  concorreu 
muito  para  accelerar  a  ruina.  A  companhia  desde  que  se 
apoderou  do  ensino,  na  idêa  de  supprimir  todas  as  com- 
petências e  emulações,  e  de  fechar  os  caminhos  a  todas 
as  novidades,  quasi  que  impoz  o  sen  veto  aos  progressos, 
combatendo  e  perseguindo  como  suspeitos,  e  até  como 
perigosos  os  homens,  que  não  se  l  onlormavam  com  as 
suas  doutrinas.  Se  engenhos  applaudidos  ennobreceram 
os  tempos  de  D.  Sebastião,  se  momentos  antes  da  catas- 
trophe  de  Alcácer  o  formoso  astro  de  Gamões  fíilgurou 
ilhnnin  indo  tudo,  íinahnente,  se  as  letras  e  as  artes,  mes- 
mo nos  sessenta  annos  dei  oi-ridos  desde  io80  até  4G40, 
ainda  contaram  cultores  distinctos,  é  porque  o  impulso 
antes  de  inteiramente  paralysado  continuou  a  animar  por 


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U9 


algum  tempo  ainda  os  talentos  privilegiados.  Quando  esta  insuscç** 
força  acabou  de  se  perder  na  distancia,  veiu  a  apathia,  e 
após  ellâ  a  tristeza,  precursora  sabida  do  stíicidid  moral 
D.  Jo9o  III,  tao  elogiado  pela  reforma  da  tinlVersidade, 
colheu  apenas  no  essencial  os  fructos  amadurecidos  em 
etiuclias  mais  felizes,  o  foi  ;i  >u;i  inâo,  guiadn  {>olo  fi*ti?1- 
tismo,  a  (jue  auimllou  pouco  depois  o  movimento  iniciado 
com  tanto  ardor  nos  Uns  do  século  xv,  o  no  começo  do 
XVI,  suffocando-o  com  as  mordaças  da  inquisição  e  da  iii* 
tolerância,  mais  artificiosa,  porém  não  menos  destruidora 
do  monopólio  do  ensino  entregue  aos  jesuitas. 

Os  s.il)ios  e  os  poi^la^,  que  ílorcsceram  em  seus  dias  p 
nos  de  D.  Sebastião,  educados  e  instruidos  na  escola  de 
D.  João  II  e  de  D.  Manuel,  representavam  as  idéas  e  as 
tradições  d^aquelie  período  fecundo  em  Varões  e  feitos 
illustres.  Os  que  tinham  nascido  logo  depois  ainda  se  adia- 
vam hasiautc  próximos  d'el!e  lambem  para  aproveitarem  a 
sua  influencia.  A  renascença  litleraria  crnzou-sc  entre  nós 
com  a  unidade  moparchica,  e  o  predomiuio  d  esta  abafou 
quasi  no  berço  o  que  principiava  a  despotitar  de  vivo,  de 
espontâneo  e  de  originai  nas  manifestações  ídtellectuaes. 
O  iivel  do  poder  absoluto,  i)as$ando>lhe  por  cima»  arrasou 
todas  as  eminências.  No  meiado  do  século  xvi  a  vicíoria 
da  auctoridade  real  era  completa,  e  nenhuma  lesisleií- 
cia  podia  já  contraria-la,  tendo  por  si  os  exemplos  da 
Europa  e  a  acção  constante  dos  factos.  D.  Sebastião^  ar* 
rastando  o  paiz  a  uma  empreza  louca,  e  sepultando  seus 
destinos  em  uma  derrota,  mostrou  o  que  valia  o  governo 
pessoal.  a  sorte  dos  estados  pende  da  vontade 

despótica  do  priricipe,  e  todas  as  responsal>ilitlades  se 
accumulam  sobre  uma  só  cabeça,  o  infortúnio  pôde  de*" 
morar-se»  mas  nunca  deixa  de  castigar  o  orgulho  dos  que 
mandam^  e  a  abdicação  servil  dos  que  obedecem^  AHes* 


Digrtizeij  Ly  <jOOgIe 


* 


220  HISTOBIA  D£  POBTUGAL 

instracçio  panha  de  Carlos  V  humilhada  pelos  desacertos  de  OUvares 
publica  g     Fihppe  iV,  e  a  França  de  Luiz  XIY  aviltada  aos  pés 
.  da  Dubarry  são  provas  evidentes  d'esta  verdade. 

A  instmcção,  ou,  mais  exacto,  o  desenvolvimento  in- 
telleclii;i[,  retratando  com  fidelidade  as  idéas,  os  senti- 
mentos e  as  crenças  dos  povos,  traduz  sempre  o  seu 
verdadeiro  estado.  Muito  antes  das  grandes  revoiuçôes 
tomarem  corpo  e  sacudirem  as  columnas  do  passado»  o 
livro  e  a  palavra  denunciam  o  fogo  encoberto,  e  para  os 
quesafieni  ver,  dao  o  j)riineiro  rebate  da  tempestade,  que 
se  aviziíilia.  As  declamações  eloqueides  de  Rousseau,  as 
linas  ironias  de  Voltaire,  e  a  cruzada  dos  encyclopedistas 
serviram  de  prologo  á  transformação  de  1789.  No  sé- 
culo XVI  quem  observasse  attentamentc  a  direcção  seguida 
nas  escolas,  a  indole  do  ensino  e  as  tendências  dos  escri- 
plos  puhlicados,  não  precisaria  de  grande  esforço  para  ler 
nas  ultimas  paginas  do  reinado  de  D.  João  111  e  nas  da  re- 
gência de  D.  Catbarina  de  Áustria  e  doGardeal  D.  Henrique 
os  desvios  e  desastres  de  D.  Sebastião,  e  a  morte  da  in- 
dependência, íiulaiido,  que  do  velho  Portuijal  só  parecia 
viver  o  nome,  e  que  até  a  esperança,  escondendo  o  rosto, 
fiigia  d'eUe.  A  corrupção  das  letras  acompanhava  a  cor- 
rupção da  sociedade,  e  quando  soou  a  hora  das  prova- 
ções, não  existia  um  só  elemento,  que  não  estivesse  con- 
jurado para  lhe  precipitar  a  quéda.  Exphcando  as  causas 
desta  decadência,  mais  significativa,  se  é  possível,  do 
que  tòdas  as  outras,  como  rasão  do  enfraquecimento  do 
reino,  não  nos  havemos  de  apartar  dos  principies  obser- 
vados nas  diversas  partes  d'este  quadro.  Para  avivar  a 
verdadeira  physionomia  das  cousas  bastai  á  copiarmos  do 
natural  as  suas  principaes  feijões. 

Na  idade  media  pôde  dizer-se,  que  a  instrucção  íôra 
quasi  }oda  ecclesiastica.  As  cathedraes  e  os  mosteiros  ali- 


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BOS  SÉCULOS  xm  £  xvui  m 

mentavain  os  estudos,  a  que  só  concorriam  os  que  se  de-  iMtrQcçíD 
dicavam  á  vida  sacerdotal,  e,  por  excepção,  um  ou  outro 
secular  votado  á  cultura  das  letras.  A  ignorância  constitoia 
a  regra  geral  mesmo  na  classe  do  clero.  Em  1387  o  arce- 
bispo de  Braga  era  obrigado  a  declarar  condição  expressa 
lia  confirmação  da  igreja  de  Ferreiros,  que  o  parodio  sou- 
besse ler,  cousa  que  não  se  reputava  commum,  porque 
em  iâ67  em  uma  escriptura  do  mosteiro  de  Villa  do 
Bispo,  figurando  entre  as  testemunhas  quatro  cónegos  e 
um  capellão,  o  prior  assevera  ler  lavrado  por  seu  punho 
o  documento  por  neiíiium  dos  outros  estar  em  circum- 
staacias  de  o  lazer.  Nos  dias  de  D.  João  1  a  nobreza  an- 
dava ainda  tio  afastada  dos  livros,  que  Duarte  Nunes  cita 
na  sua  chroníca  a  Martim  Monso,  cavalleiro  muito  es- 
forçado e  acceito  a  el-rei,  porque,  fora  do  costume  e  ru- 
dez.i  dos  fidalgos  »lo  seu  tempo,  compozera  um  tratado 
sobr  e  a  discipliua  militar.  O  casamento  do  Mestre  de  A\iz 
com  D.  Filippa  de  Lencastre,  as  relações  mais  activas  da 
nossa  corte  com  a  ingleza,  e  communicações  mais  ani- 
madas entre  as  pessoas  doutas,  modificaram  dentro  de 
alguns  anu  os  (^ste  atrazo,  abrindo  á  luz  já  viva  dos  pro- 
gressos entrada  menos  difficil*. 

Foi  D.  Diniz  o  fundador  da  universidade,  ou  das  escolas 
de  Lisboa,  depois  transferidas  para  Coimbra,  aonde  mes- 
tres chamados  de  outros  reinos  principiai  am  a  ensinai' 
a  graramatica,  as  leis,  os  cânones  e  a  medicina,  apren- 
dendo os  estudantes  a  theologia  nas  aulas  dos  conventos 
de  S.  Francisco  e  de  S.  Domingos.  Monso  IV  protegeu 
os  estudos,  e  D.  Fernando  restítuíu-os  a  Lisboa  na  idéa  de 
vencer  as  repugnancias  dos  professores  estrangeiros  a 

t  Duarte  Nunes,  Chromea  de  M^BH  D,  hão  de  ghnota  memona, 
o  prmekro  d^etíe  nome,  cap.  xcvl 


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m  «mau  PB  fOfmmAL 

insirufíao  lí>ccionar  na  capital  da  Beira.  D.  João  J  encorporou  na 
^^'^  Uiiiveriidade  a  faculdjide  de  tbeologia,  e  o  infante  D.  Hen- 
rique doou^lhe  em  I43i  casas  espaçosas  e  apropriadas, 

com  uma  consignarão  annual  de  doze  niaivos  de  prata, 
tirada  dos  dízimos  da  ordem  de  Cliristo  para  salai  io  do 
Jente  de  prima  de  tbeologia,  subsidiando  igualmente  a 
instituição  das  novas  cadeiras  de  phiiosopbia»  e  também  - 
talvee  a  creaçSo  da  .cadeira  de  arimetbica,  geometria  e 
astrdnomia.  Estes  actos  inculcam  por  parte  dos  sobera- 
nos e  (lus  príncipes  sincerus  desejos  de  promoverem  o  me- 
Uioramento  inteiiectual.  Entrelaiilo,  se^aindo  se  depie- 
hende  de  uma  informação  do  infante  i>.  Pedro  acerca  do 
estado  do  reino,  a  universidade  Já  carecia  de  reforma,  e 
o  duque  de  Coimbra  entre  os  meios  de  a  realisar  pro- 
punha a  fundação  de  dois  colleglos  no  seio  d*ella,  de  cur- 
sos pelo  menos  de  dolsannos  para  a  concessão  dos  graus, 
e  a  adopc^io  dos  metiiodos  e  disciplinas  adoptados  nas  es- 
colas de  l^aris.  O  «regimento  do  estudo  de  Lisboa»,  da- 
tado de  de  julho  de  1471,  tão  curioso  em  suas  dispo- 
sições, significaria  a  annuencia  de  Âifonso  Y  a  alguns  dos 
alvitres  expostos  por  seu  tio  a  El-Rei  D.  Duarte?  A  deca- 
dência da  unlversi<la(le  continuou,  comtiido,  até  ao  anno 
de  1480,0  que  não  era  para  espantar,  estando  disti  aliidos 
osanimoscom  as  inquietações  das  guerras  de  Africa  e  de 
Hespanha,  e  achando-se  os  bons  professores  desviados  da 
regência  das  cadeiras  pela  escassez  de  prémios  e  peta  ín- 
sullioiencia  dos  ordenados 

1  Leitão  Ferreira,  CJu-onoloyiais  da  Universidade  de  Coim- 

bra, anno  1 13!,  n.«»«  616  c  617,  anno  1309,  n/*  206.  --  Ctnaculo,  3^^- 
morias  do  tidpito,  pari.  iii,  appendice.  ?  12.  —  Dissprtaçôes  Chrono' 
?or//ms  por  Jo3o  Pedro  Ribeiro,  loiu.  í,  npix  iidice,  })ag.  380,  c  tom.  lí, 
appfiidico,  pag.  a  267. — ^ííurlz,  Pialogos  de  Varia  Hisluna,  dia- 
logo Y,  cap.  III. 


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DOA  «eCULOS  3LVII  E  XVIII  M 

Apesar  d'i8so  a  erudição  de  alguns  vultos  notáveis  da 

epocli;i.  M'  não  desmenle  as  noticias  dos  chronistas,  nÍo 
justilica  ijor  certo  a  censui^a  do  compit3l<i  obscuridade. 
Para  o  provar  oão  seda  preciso  mais  do  que  apoatannos 
o  nome  dos  monardias  e  dos  homens  eminentes»  que  U* 
lastraram  este  período.  Mas  o  tempo,  em  que  as  boas 
■  artes  lloresau-am  mais,  Ibi  seguramente  o  rciiiadu  de 
D.  Manuel.  Na  erudição  sagrada  e  proíana,  na  jurispru- 
dência, na  medicina»  na  mathematica,  na  hi&toria,  na  poe^ 
sía  e  00  theatro,  em  todos  os  ramos  dos  conhecimentos 
humanos,  emíim,  appareceram  varões  insignes,  que,  hmn- 
hreando  com  os  sábios  dos  paizes  adiantados,  lionraiam 
o  nome  da  pequena  nação  occidentai.  O  rei  não  íavorecia 
as  letras  só  por  ostentação^  presuiva-as  como  um  dos  ilo- 
i^s  da  sua  gloria.  Apenas  sufaiii  ao  throno  dedicou  logo 
os  prím^ros  cuidados  á  reforma  da  universidade  que 
existia  ein  Lisboa  desde  o  governo  de  D.  Fernando.  Con- 
struiu novas  escolas,  aonde  se  ie;isem  as  artes  e  as  scien* 
cias,  e  melhorou  os  estatutos,  ereando  as  cadeiras  de  ves- 
pora  de  theologia  e  de  philosophia  moral  em  1503,  e  no 
anno  de  1518  as  de  astronomia  e  de  sexto  das  decretaes, 
e  augmentando  os  ordenados  e  vantaí^^cns  dos  professores. 
Ao  mesmo  tempo  estimulava  a  arte  typographica,  convi- 
dando o  ailemâo  Joio  Crombenger,  e  privilegiando  em 
150B  os  impressores  estabelecidos  no  reino  com  as  im* 
munidades  concedidas  aos  cavalleiros  da  sua  casa,  uma 
vez  (|ue  provassem  não  serem  muuios,  judeus,  ou  sus- 
peitos de  heresia  K 

« 

*  Notichf!  Chronologicas  da  Universidade  de  Coiinbrat  anno  1518^ 
n."  983. — Mariz,  Diálogos  de  Varia  Historia,  dialog.  v,  cap.  in. — 
Estai  tttos  de  El^Sei  D,  Mmmá  ftj,  eópia  peitoftoeiíte  m  «fohive  da 


HISTORIA  DB  PORTUGAL 


ibitracfiQ    D.  Mo  m  propoz-se  trílbar  a  mesma  estrada,  e  de 

feito  raostrou-se  digno  iniilador  (lo:>  exemplos  de  seu  pae 
na  reforma  da  academia,  cujo  plano  inicial  riscou  desas- 
sombrado e  com  largueza.  Seria  este  o  monumento  único 
talvez  do  sen  goyemo,  se  algans  anoos  depois»  cedendo 
ás  influencias  e  aos  enredos  claustraes,  nlo  pervertesse 
as  idéas  primitivas  e  generosas  para  acanhar  a  nova  or- 
ganisação,  imiiiolando  o  presente  e  o  porvir  ás  exigências 
da  ambição  monacal.  Â  conquista  do  Oriente  tornara  Lis- 
boa uma  cidade  tão  rica  e  agitada,  que  não  parecia  fácil 
conciliar  com  o  seu  ruido  e  movimento  a  quietação  exi- 
gida pela  reflexão  do  estudo.  Entendeu  El-Rei,  por  isso, 
que  devia  mudar  outra  vez  para  Coimbra  a  academia, 
e  para  a  elevar  ao  grau  de  aperfeiçoamento,  que  tinha 
imaginado,  chamou  de  França»  dé  Itália,  de  AUemanha, 
de  Flandres  e  de  Hespanba  os  mestres  mais  conceitua- 
dos, não  se  poupando  a  diligencias  e  despezas.  O  primeiro 
curso  de  artes  foi  lido  por  Diogo  de  Gouveia,  Luiz  Alva- 
res Cabral,  Nicolau  Grouchy,  e  o  dr.  Bordalo.  Para  o  en* 
sino  das  linguas  latina,  grega  e  hebraica  veiu  de  Paris  um 
collegio  inteiro  composto  de  André  de  Gouveia,  princi- 
pal, de  João  da  Costa,  sub-principal,  do  dr.  Fabrício, 
muito  versado  na  erudição  heiienica,  e  do  dr.  Rozerto 
igualmente  louvado  na  hebraica.  Jorge  Bucbanan,  Diogo 
de  Teive,  mestre  Guillaume,  mestre  Patrício,  irmão  de 
Bucbanan,  Arnaud  Fabrice,  mestre Ellie,  mestre  Gonçalo, 
mestre  Pedro  Hí^iriques,  mestre  Antonio  Mendes,  mestre 
Jacques»  e  mestre  Manuel  Tbomás  regiam  as  onze  clas- 
ses, em  que  se  dividia  o  ensino  das  humanidades.  A  ca- 
deira de  rfaetorica  pertenceu  a  mestre  João  Fernandes, 
que  a  professava  em  Salamanca  e  Alcalá.  A  estes  lentes 
succederam  outros  não  menos  doutos,  também  de  Paris. 
Citaremos  apenas  entre  os  muitos  nomes  os  do  dr.  Lopo 


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DOS  SÉCULOS  XTIl  E  XTIII  ti5  - 

(iallego,  de  Jgnacio  de  Moraes,  de  Belchior  Beiliago,  de  iM^humin 
Ândré  de  Rez^de,  de  Gayado  e  de  I^icolâu  Cieonard  K 

Na  faculdade  de  medicíDa  convocou  EI-^Rei  o  dr.  Hen<' 
rique  Coellar  para  a  cadeira  de  prima,  e  o  ioslgne  Thomas 
Rodrigues  pai  a  a  fie  véspera.  Os  drs.  Franco  e  íaiíz  Grego 
explicaram  Avicena  e  Galieno,  e  o  dr.  Pedro  Nunes  ma- 
thematicas.  £m  cânones  as  cadeiras  contaram  varões  igual- 
mente notáveis,  conservando-se  ainda  a  memoria  de  pro- 
fessores t^o  illustres  como  Âspicuelta  Navarro,  Luz  de 
Alarcão,  e  Peruchio  Moigovejo.  Em  jurisprudência  civil 
honrou  a  aula  de  prima  Gonçalo  Vaz  Pinto,  e  a  de  véspera 
Antonio  Soares,  substituídos,  quando  passaram  ao  trilm- 
nal  do  desembargo  do  paço,  pelos  drs.  Fabio  e  Ascanio. 
Por  ultimo  a  faculdade  de  theologia,  não  menos  ennòbre- 
<áda  pela  reputação  dos  lentes,  podia  apontar  com  orgulho 
para  os  drs.  Navarro  Ledesma,  Marcos  Romeu,  e  Monção, 
elogiados  por  seu  vasto  saber  na  Sorbuiia  de  Paris  e  na 
universidade  de  Alcala.  No  principio  as  escolas  de  theo- 
logia,  de  artes  e  de  humanidades  aújriram-se  no  mosteiro 
de  Santa  Cruz,  e  as  das  outras  sciendas  nas  casas  de 
D.  Garcia  de  Almeida  à  porta  de  Balcouce,  d'onde  foram 
transferidas  para  os  Paços  d'El-Rei.  Por  fim,  D.  João  III, 
(X)nvenci(lo,  de  que  mesmo  os  paços  não  oíiereciamespaçx) 
suâiciente,  mandou  ediiicar  o  coUegio  da  rua  da  Sophia, 
e  começaram  n'elle  em  1548  os  exercícios  académicos. 
O  soberano  ainda  não  contente  com  este  vigoroso  impulso, 
dotou  vários  collegios  para  estudantes,  e  destinou  ás  des- 
pezas  da  academia,  alem  dos  bens  que  ella  já  possuia,  os 
rendimentos  das  igrejas  vagas  pela  morte  do  iníãnte  D.  Fer- 
nando, e,  extinguindo  o  priorado  mòr  de  Santa  Cruz, 


1  Noticias  ChronoloQicm  da  Universidade  de  Coimbra,  anno  io37, 
1100,  %riz.  Dialog.    cap.  ui. 


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US  HISTORIA  DB  POBTOOAL 

o  sDCorporoa  a  maioi'  pai  te  de  suas  1 6nda$  na  dotaçio  dos 
estudos»  nomeando  cancellaho  vitalício  o  prior  conven- 
tual do  mosteiro 

Entre  as  ordens  religiosas,  (]ue  mais  coadjuvaram  o  en- 
sino, cumpre  indicarmos  a  de  S.  Domingos  pela  illustra- 
ção  de  muitos  mestres,  e  pr  io  zèlo  coiu  que  todos  se  appli- 
canm  ao  serviço  litterario.£i-Rei  D.  Manuel  tinbafiindado 
um  coUegk)  com  duas  li^s  semanaes  de  theologia,  e  oma 
de  artes  e  de  philosoiíliia.  D.  João  III  1 1  ansferiu-opara  Coim- 
bra sob  a  invocação  de  S.  Thomas.  iSu  convento  de  Lisboa 
as  aíulas  admittiam  seculares,  mas  estes  podiam  estudar 
oom  mais  fiôlidade  em  Nossa  Senhora  da  £scada,  aonde 
dois  lentes,  subsidiados  com  iOCWKKX)  réis  de  esmola,  pa- 
gos pela  rainha  D.  Gatharina  de  Au^ti  i.i,  sua  instituidora, 
faziam  duas  prelecções  publicas  por  semana.  O  fim  da 
creação  d'esta  escola  era  acudir  á  instrucção  dos  clérigos 
pobres.  Eml54Q,  o  definitorio  da  ordem,  alargando  o  qua- 
dro das  disciplinas  nas  aulas  do  convento  de  Lisboa,  con- 
verteu-as  em  nina  espécie  de  universidade.  Km  Santarém 
e  Guimarães  também  havia  estudos,  mais  resumidos,  por- 
que se  limitavam  ao  ensino  da  grammatica  latina  e  da 
theologia  moral'.  D.  João  m,  alem  dos  esforços  emprega- 
dos para  restaurar  o  lustre  das  sdencias,  soccorreu  tam- 
bém com  liberalidade  a  \  ocação  dos  súbditos  no  estran- 
geiro, abonando-lhes  pensões  para  frequentarem  cursos 
em  França  e  em  Hespanha.  Sabemos»  que  o  feitor  de  Flan- 
dres em  1513  pagava  quinze  mizados  annuaes  ao  bacha- 

i  Noticius  Chrondogicas  da  Universidade  de  Coimbra,  n.°  1166 
e  seguintes,  Mariz.  Dialog.     cap.  iii. 

*  Historia  de  S.  Domingos^  part.  i,  liv.  iii,  cap.  xl,  e  part.  i,  liv.  vr, 
cap.  XXXVI.  O  numero  dos  estudantes  em  Nossa  Senhora  da  Escada 
era  de  32.  Pertenciam  12  ao  arcebispado  de  Lisboa  com  12)^000  réis 
por  anno»  e  20  eram  admittidos  livremente  com  15t^000  réis  aanuaes. 


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DOS  fttCDLOS  xvn  E  xim 


rei  Fr.  Diogo  Nogueira  para  continuar  em  Paris  o  curso  iD^tmcçio 
de  theología,  e  que  em  1648  el-rei  dava  trinta  cruzados 
{xn*  anuo  de  esmola  a  Fr.  Duarte  para  se  sustentar  na  Sor- 

bona,  faltando-lhe  dois  annos  para  o  grau  de  iicencjadu 
t  meios  para  as  despezas  dos  actos.  O  grau  de  bacharel, 
mesmo  em  Portugal,  custava  umito  caro,  aiem  de  exigir 
cinco,  ou  sete  annos  de  estudo.  Os  de  doutcM*  e  de  mes-, 
tre  ainda  requeriam  maiores  sacrifícios*. 

Da  universidade  transferida  de  Lisboa  para  Coimbra 
em  1537  foi  primeiro  reitor  D.  Garcia  de  Almeida,  e  to- 
das as  noticias  concordam,  em  que  o  período  immediato 
á  reforma  fôra  dos  mais  fecundos,  tanto  pela  sabedoria  dos 
mestres,  inquestionavelmente  os  primeiros  da  epocha, 
como  pela  gravidade  e  disciplina  das  aulas.  A  ordenação  de 
44  de  janeiro  de  1539  sobi  e  os  creados,  bestas  e  trajos  dos 
estudantes,  e  sobre  as  cousas  que  lhes  ei  aiii  pioiíiliidas, 
mostra  a  vigilância  com  que  o  governo  zelava  a  conser- 
vação dos  costumes  escolares^.  O  verdadeiro  perigo,  en- 
tretanto, dò  douto  estabelecimento,  n3o  consistia  na  sol- 
tura, ou  no  desregramento  dos  alumnos,  facjl  de  conter 
c  rcpruiiii .  Uegciicrado  sob  a  protecção  do  balo  real,  a 


^  DUwria/çues Chromh(jíras,exiraiicU»áoeorpo chronologico. Ar- 
chi  vo  nacional.  Coi-po  cbronoiogi€0,  pari  i,  maç.  S0.Sn.<*  egaTet 

2.*,  maç.  1.",  u.«  21 

'*  D.  Garcia  foi  nomeado  por  uma  provisão  datada  de  i  de  março 
de  4337,  Historia  Genealógica  da  Casa  Real,  tom.  in,  pag.  484. 

A  !pí,  ou  ordenação  dn  irí39  (Leão,  Compil.,  part.  iv,  til.  xvi,  lei, 
17,  íl.  4650)  piuliihia  iios  vestidos  dos  eslndantes  barras  e  debruns 
de  pannos  fiis;id(js.  lianetes  que  não  fossem  redondos,  e  iiiaiidava 
que  os  pelules  e  aljubelas  descessem  ties  dedos  aljaixo  dos  joelhos. 
Prolíiltia  ipiialniontp  icrolpes  o  entretaJhos  nas  caíras,  e  náo  consentia 
besta  de  sella  senão  aos  que  tivessem  200  cruzados  de  renda.  No- 
nhuui  estudante  .podia  trazer  íóra  de  casa  mais  de  um  uioi^o,  ou 
ereaáa 

15. 


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HISTOMA  DE  PORTUGAL 


iMtmoçio  mio  que  se  eskendéra  para  o  levantar»  podia  desvia-lo  do 
bom  caminho,  annullando  os  bons  resultados  da  reforma. 

I).  J(íã«)III,  mais  do  que  devoto,  e  así?ásacanlia»lc)(h^  irilelli- 
gencia,  não  possuía  as  qualidades  iiecessni  ias  para  asse- 
gurar ao  ensino  superior  e  secundário  a  isenção  indispen> 
sável»  e  á  consciência  dos  mestres  e  discípulos  a  liberdade 
essencial  ao  desenvolvimento  das  faculdades  do  espirito. 
Era  de  receiar,  por  isso,  que,  seduzido  por  falsas  appa- 
rencias,  e  incapaz  de  discernir  a  verdade  do  sophisma, 
cedesse  a  vãos  escrúpulos»  e  demolisse  por  um  lado  o 
que  estava  edificando  pelo  outro.  Foi  o  que  succedeu. 
Illaqueaílo  pelas  supplicas  dos  claustros,  e  deslumbrado 
pela  adiiiiiaçâo  das  vu  tiides  e  letra.^  dos  discípulos  de 
Ignacio  de  Loyola,  que  acabavam  dr  entrar  no  reino, 
não  soube  resistir-lhes»  e  a  universidade  foi  sacrificada. 

A  companhia  de  Jesus  já  começava  então  a  alongar  os 
braços,  cora  que  depois  cingiu  dois  mundos.  Approvada 
pelo  papa  em  1540,  e  confirmado  o  seu  estatuto  em  1543, 
não  foi  semdiílicuidade,  que  adiantou  os  primeiros  passos. 
Carlos  V  sempre  se  mostrou  desconfiado  d*ella»  e  m^mo» 
em  Roma,  não  eram  poucos,  nem  obscuros  os  inimigos, 
(fne  a  hostilisavam.  Em  Portugal  lambem  encontrou  forte 
( ^  [  1  *  isição,  e  entre  os  mais  decididos  adversários  de\  eiuos 
apontar  o  cardeal  infante  D.  Henrique,  dep<  »i<  seu  dedicado 
"  defensor.  Quando  el-rei  propoz  em  lo40  em  Ahneirim  se 
conviria  mandar  para  a  índia,  como  missionários,  os  qua- 
tro jesuítas,  que  frequentavam  o  paço,  ou  conserva-los  no 
paiz,  o  inquisidor  íievA  voiort  pela  prompta  saída  dos  pa- 
dres, ajuntando  que  existiam  no  reino  muitas  ordens  re- 
ligiosas e  muitos  pregadores»  ao  passo  que  as  gentilídades 
remotas  careciam  de  padres,  que  as  doutrinassem.  Mas  a 
idêa  de  introduzir  os  novos  religiosos  tinha-se  apoderado 
do  animo  de  D.  João  III.  (lonliei  ía-os  austeros,  soffredo- 


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DOS  SÉCULOS  XVII  E  XVUI  889 


res  e  entbusiastas,  e  por  isso  via  n^elles  os  homens  mais  iMtmc^ 
aptos  para  o  amiliarem  na  empreza  de  extirpar  as  liere- 

sias  e  o  judaísmo.  D.  Galhariiia  de  Áustria,  sua  jmilher, 
aífeclava  igiiaes  sentimentos,  porém  na  realidade  só  se 
decidiu  sinceramente,  depois  de  ouvir  a  Francisco  de 
Borja,  daque  de  Gandia.  Quem  desde  logo  se  declarou 
«.  protector  estrénuo  da  sociedade  foi  o  infante  D.  Luiz,  não 
cessando  de  applaudir  ri^ella  a  imitadora  dos  apóstolos,  e 
de  citar  coru  admirarão  os  varões  illusires,  que  haviam 
deliado  o  mundo  e  as  maiores  espei  aoças  para  confun- 
direm o  orgulho  com  o  espectáculo  da  sua  pobreza,  pe- 
nitencia e  humildade'. 

O  conde  da  Castanheira,  valido  de  el-rei,  os  íidalgos  da 
casa  de  Mascarenhas,  tão  extensa  e  ramificada,  e  D.  João 
de  Lencastre,  neto  de  D.  João  II,  com  alguns  senhores  in- 
fluentes, defendiam  a  causa  dos  discípulos  de  Santo  Igna- 
cio. Não  admira,  portanto,  que  a  opinião  dos  que  deseja- 
vam a  peniianencia  dos  padres  prevalecesse,  e  que  fosse 
necessária  a  intervenção  de  D.  Pedro  Mascai  enlias  para  o 
mestre  Francisco  Xavier  passar  ao  oriente,  ficando  Simão 
Rodrigues  no  reino  incumbido  da  fundação  de  um  coUe- 
gio.  Segniu-se  em  4544  a  doação  do  mosteiro  de  Gar- 
quere,  a  tres  le^íuas  ilr  Lamego,  e  a  creação  do  collegio 
de  Lisboa  no  mosteiro  de  Santo  Antão,  o  velho,  princi- 
piando a  companhia  a  crescer  em  rendas  e  valimento  á 
sombra  da  affeição  dos  soberanos  e  dos  ministros  por 
modo  tal,  que  nas  côrtes  de  4862  o  braço  do  povo,  re- 
trataado-a  sem  favor,  a  accusou  de  cubiçosa  pelo  muito 

*  Ranke,  Historia  do  PuntifiauUt  noa  SectUos  xvi  c  xvii,  liv.  ii, 
§  4." — Baltliíizar  Telles,  Chronica  da  Companhia  de  Jesus  na  Pro- 
vincia  de  Poiiugaljt  liv.  i,  cap.  x,  pag.  49,  n."  5, 8, 9,  e  i,  cap.  x 
e  XL 


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130 


HISTORIA  DE  POETUGAL 


inttmcçio  quB  possilia  6  quo  pedia,  aconselhando  á  rainha  regente, 
que  obrigasse  os  padres  a  viverem  de  esmolas  por  não 
convir  ão  interesse  publico  a  continuação  dos  abusos,  que 
todos  presenceavam.  O  estado  do  povo  até  não  hesitou 
em  propor,  que  a  corôa  lhes  sequestrasse  as  rendas  e  as 
propriedades  ^ 

As  relucLancias  do  cardeal  iníaute  c  do  outras  pessoas 
'  poderosas  íiiiavam-se  na  resi  stencia»  que  os  jesuitas  acha- 
ram em  toda  a  Europa,  quando  se  constituíram.  À  orga- 
nisa^  do  instituto,  calculada  com  grande  acerto  para 
obter  os  resultados,  que  o  fundador  e  seus  successores 
se  tinham  proposto,  excitou  as  suspeitas  e  apprehensões 
de  muitos  homens  notáveis  pela  doutrina,  ou  pela  agudeza 
do  juizo.  Para  estes  o  presente  não  encobria  o  futuro,  e 
as  ostentações  de  austeridade  não  disfarçavam  a  ambição 
inquieta  e  dominadora,  que  annos  depois  veiu  a  ser  a 
feição  característica  da  sociedade.  Melchior  Cano,  em  - 
1545,  D.  João  Martins  Saliceo,  arcebispo  de  Toledo,  em 
155:^,  e  Eustacluo  de  Bellai,  bispo  de  Paris,  em  1554, 
estranhavam  aos  jesuitas  a  usurpação  dos  direitos  espiri- 
tuaes  e  a  má  vontade  contra  as  universidades,  e  diziam, 
que  a  nova  ordem  viera  para  causar  grandes  males,  per- 
turbando a  paz  tld  iuivja,  e  destruindo  em  vez  de  edifi- 
car. O  próprio  Francisco  d(í  Jíorja,  seu  terceiro  ^^eral, 
previa  já  em  1 560,  que,  preoccupada  com  o  estudo  daà 
scieneias,  ella  havia  de  esquecer  o  exercício  das  virtudes, 
e  que  inspirada  pela  amlnção,  havia  de  deixar-se  arrastar 
pelo  orgulho.  «Se  os  olhos  de  nossos  irmãos  (acrescen- 
tava), se  voltarem  para  as  riquezas  e  para  as  grandes  allian- 

1  Balthaxar  Telles,  Ckrtmica  da  Companhia  de  Jesus,  liv.  i,  cap. 
xxziv.— D.  Háimél  de  Menezes,  Chnmka  de  JEI-Aát  D,  SÊèaaUSo, 
pari  I,  cap.  cm,  pag.  278w 


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DOS  smuos  ivn  b  xvni 


çaSy  fazendo  caso  de  mais  das  conveniências  mundanas,  instrucçãn 
possuirão  a  abundância  dos  bens  terrestres,  mas  ficarSo  ^"^^^ 
privados  de  todas  as.qualidades  solidas» 

Na  universidade  de  Coimbra  as  pessoas  seculares  e 
religiosas,  deplorando  a  facilidade,  com  q«e  el-rei  abria 
as  portas  do  reino  e  das  aulas  a  homens  novos  e  desco- 
nhecidos, perguntavam,  que  segredo  tinham  elies  para  atr 
trahirem  com  invenções  e  biocos  os  melhores  estudantes» 
despovoando  as  escolas  da  gente  nobre  e  e8colhida.|Obser- 
vavam,  que  os  moços  mais  turbulentos,  tratados  pelos  je- 
suítas, mudavam  logo  de  condição,  toi n  indo-se  brandos, 
modestos,  e  como  que  alienados  dos  bcníinientos,  e  attri- 
buiam  esta  repentina  transformação  a  artilicios  de  «alum- 
bramento»  e  ás  meditações,  que  os  cfraocfainotes»  (assim 
denominavam  os  padres),  chamavam  «exercidos»,  du- 
rante os  quaes  elles  e  os  alumnos  com  ás  portas  e  janellas 
cerradas  no  meio  de  contiimados  extasis  se  entregavam 
a  visões  e  aiTcljatanientos.  Por  ultimo,  notavam  os  mais 
severos,  que  este  methodo  só  podia  formar  ailucinados 
para  do  seio  das  trevas  da  ignorância  e  com  a  mascara  de 
falsos  boatos  propagarem  embustes  e  heresias,  semeando 
debaixo  da  capa  de  santidade  perigosos  erros.  Estas  of»- 
niões,  em  parte  filhas  da  inveja,  e  em  parte  iiis^ii radas 
pela  emulação,  nâo  careciam,  comtudo,  de  inteiro  íuada- 
mento^. 

O  systema  dos  collegios  da  companhia  firmava-se  na 
pratica  dos  «exercidos»  traçados  por  Jgnado  de  Loyola, 

*  Orlandino,  Historia  da  Companhia  de  Jesm,  liv.  viii  n.°*  45  e 
46. —  Eiistacliio  do  Bellas.  Censura  sobre  a  Instituição  e  Bnlhis  da 
Companhia  de  Jesns.  Anuo  de  15^4. — S.  Francisco  de  Borja,  Carta 
do  mez  de  abril  de  lo60. 

*  Balthazar  Telles,  Historia  da  Companhia  de  Je&us,  liv.  i,  cap. 
xmy,  n.«*  2  e  3,  pag.  173. 


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232  HISTORIA  DB  POBTDGAI^ 

iiwirucçào  B  O  iim  priucipai  (l'elles  era  excitar  a  actividade  iateraa  da 
pabhca  iQ(g||igg||0í  encerrando-a  ao  mesmo  tempo,  e  quasi  agri- 
Ihoando-a  dentro  de  um  estreito  circulo.  Este  systema  nas- 
cera da  experiência  pessoal  do  anctor  e  dos  seus  progres- 
sos espirituaes  até  ao  anuo  de  1548,  em  que  foi  .ippi  uvado 
pelo  papa.  Ignacio  oppondo  á  torrente  discursora,  demons- 
trativa e  polemica  do  protestantismo  um  metliodo  em 
tado  contrario,  porque  unia  á  contemplação  instractiva  e 
rápida  o  desenvolvimento  independente  dos  sentimentos 
religiosos,  n'este  ponto  procurava,  como  em  iiiuitos  ou- 
tros da  sua  regra,  conciliar  a  espontaneidade  das  resolu- 
ções inmiediatas,  e  a  exaltação  interna  com  o  principio 
da  obediência  passiva,  base  de  todo  o  edificio.  Não  sui- 
cidava as  individualidades  para  as  subjugar,  creava-lhes 
como  que  uma  nova  existência,  e  assim  laudilicadas  e 
soltas  das  outras  relações  da  vida  identiiicava  com  o  in- 
stituto os  que  viviam  n'eUei  regendo  uma  só  cabeça  todos 
os  movimentos,  absorvendo  todas  as  vontades,  e  repre- 
sentando todas  forças 

A  acção  dos  «exercícios»  sobre  a  Índole  e  o  es|)ii  ito 
dos  mais  altivos  e  indómitos  era  na  verdade  prodigiosa. 
Um  exemplo  recente  o  havia  attestado.  Leão  Henriques, 
dístincto  por  sangue  e  por  letras,  declamára  com  a  ira 
própria  do  seu  temperamente  fogoso  contra  a  profissão 
de  Luiz  Gonçalves  da  Camara,  seduzido  pelas  exiiorlarões 
de  Pedro  Fabro  em  1544,  e  soltara  contra  os  jesuitas 
queixas  apaixonadas  e  vehementes.  Dois  annos  depois, 
em  1546,  vestia  elle  também  a  roupeta,  e  castigava  em 

1  Ranke,  Hitíoria  do  Pontificado  nos  Seeuhi  m  e  xvn^  liv.  u 
I  1.*'-^Regvla  Saeêtdtíhmí,  %  8.%  iO.*  li.«— Máriaona,  DtMurso 
dê  Um  EwfemUdadot  de  Ui  Companhia  dê  Jnm,  cap.  xi. — ConsHht- 
«toRet  TI,  I  e  VI,  y. 


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DOS  SKGULOS  XfU  E  Xm  933 

si  mesmo  a  cólera,  com  que  tlageilára  o  amigo  e  o  condisci-  instmcçio 
pulo.  Facto  mais  singalar  aindal  Satisfeitos  escrapulosa»  ^^^^ 
mente  os  rigores  do  noviciado»  nSo  duvidou  dar-se  nas 
roas  em  espectáculo,  em  trajos  de  mendigo,  pedindo  es- 
mola. Fez  mais.  Patlecea  som  se  alterar  a  affronta  (1(3 
uma  hofetnr]:],  quando  nos  tenipus  j  iassados  comparava  os 
próprios  ímpetos  á  sanha  do  leâo  numida  asseteado  pelos 
caçadores.  Tríumphos  tão  súbitos,  e  transformações  tHo 
rápidas  no  caracter  de  pessoas  assim  conhecidas  causavam 
geral  espanto,  dilatando  o  império  da  companhia;  e  ro- 
deando-a  de  grandes  sympathias;  Não  socegavaiiK  porém, 
o>  iiiiiiiigos.  Alguns  frades  prégaram  contra  as  mortiíica- 
ções  publicas  dos  Jesuítas,  outros  espalharam  papeis  diffa- 
matorios,  imputando  á  sociedade  idéas  de  rebelliSo  contra 
os  decretos  apostólicos,  e  dispararam  todos  os  tiros  con- 
tra Simão  Rodrigues  por  ser  o  introductor  do  novo  modo 
de  vida,  que  tanto  raaguava  os  mestres  da  universidade. 
O  infante  D.  lienrique,  aproveitando  a  occasião,  mandou 
proceder  a  rigoroso  inquérito,  e  encarregou  o  reitor  de 
Ck»imbra,  Fr.  Diogo  de  Murça,  de  todas  as  indagações. 

'  A  devassa  saiu  favorável  aos  jesuítas,  e  desde  esse  dia 
o  inquisidor  geral  declarou-se  um  dos  seus  mais  fervoro- 
sos protectores.  Abrandaram  as  murmurações,  foram  pu- 
nidos alguns  diiiamadores,  e  acabaram  os  sermões  e  os 
libelios.  Esta  Victoria  alcançada  em  1344,  no  momento 

*  mais  critico,  patenteou  á  companhia  os  caminhos,  que 
trilhou  depois  com  o  apoio  da  côrte,  e  com  a  adhesão 
das  familias  principaes 

A  sociedade  valeu-se  com  summa  destreza  das  vanta- 
gens presentes  para  aplanar  os  caminhos  do  porvir.  O 

* 

1  Baitluizar  Telles,  Chronica  da  Companhia  de  Jesus,  cap.  cxx, 
liv.  II  e  liv.  1,  cap.  xxxiv. 


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» 


BKfOiUk  DE  ramMAL 


iM4raoçio  púlpito,  as  missões,  o  coníessionario,  e  o  ensinu  íoiam 
08  elementos,  de  que  lançou  mão,  e  que  arraigaraiu  a 
soa  iDflueDcia.  Senhora  do  coraçio  dos  reis»  dos  minislros 
e  dos  conselheiros,  inicioa  a  conquista  do  ftituro  pela 
educação  da  mocidade,  e  D.  João  III,  instramento  dodl 
em  suas'  mãos,  ajudou-a  muitu,  (iesviaíulo  e  removendo 
os  obstáculos,  que  podiam  eslorvar-lhe  os  passos.  Simão 
Rodrigues,  em  1542  obteve  as  casas,  que  tinham  ser- 
vido de  geraes  â  universidade  e  estabeleceu  n'ellas  o 
coHegio  de  lesus  composto  de  dea  sócios  Desde  este 
anno  até  ao  de  1554  reinou  emulação  constante  entre  os 
padres  e  os  lentes:  mas  D.  João  III  em  1555  concedeu  a 
Victoria  ao  instituto,  mandando  pela  carta  regia  de  10  de 
setembro,  que  a  direcção  do  coUegio  das  artes  lhes  fosse 
entregue  no  1  de  outubro  com  toda  a  mobília,  pratas,  e 
accessoríos.  r«oube  ao  dr.  Diogo  de  Teíve  a  execução  da 
ordem,  prologo  das  providencias  meditadas  para  assegu- 
rar o  i)redamiiiio  dos  jesuítas.  Dois  annos  depois,  em  4557, 
uma  provisão  real,  desprezando  as  representações  da 
umveraidade,  isentou  o  coilegio  das«  escolas  menores 
da  juri8dic$3o  do  reitor,  e  em  it{64  e  1505  D.  Sebas-  ^ 
tião,  confirmando  e  ampliando  esta  mercê,  desacatava 
as  attribuições  e  o  decoro  das  auctoridades  superiores 
da  Academia.  Os  padres  uào  coutenles  ainda  com  estas 
graças  excessivas  conseguiram  pelo  .alvará  de  â  de  ja- 
neiro de  156%  que  aos  seus  religiosos  examinados  do 
coUegio  de  Coimbra  se  conferissem  os  graus  sem  obri- 
gação de  juramento  e  ^fi'atuitamente,  e  no  caso  de  lhes 
não  serem  (  oníV-ndos  ordenava,  (|ue  fossem  lidos  [>ara 
todos  os  eOeitos  como  graduados.  Outro  alvará,  datado 
de  13  de  agosto  de  1561,  prescreveu,  que  nenhum  estu- 

1  Vide  OB  anctores  citados. 


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I 

DOS  mooum  xm  k  xvni  s» 

dante  passasse  a  ouvir  caaones,  oa  leis»  sem  apresentar  iuítmiíq 
€6rtid3k>  do  collegio  das  artes,  e  em  5  de  aetrâbro  do 
mesmo  amio  uma  carta  regfia  encorporou  o  collegio  na 

universidade,  delermiaaudu  (iuc  o  seu  conservador  o 
fosse  tamhem  das  escolas  menores.  Por  ultimo,  em  31  de 
março  de  Í5d8,  uma  provisão  determinou,  queosindivi-* 
duos  expulsos  da  companhia  não  podessem  ser^designa^* 
dos  para  eiaminadores  dos  bacharéis,  ou  dos  licenceados, 
nem  entrassem  nos  actos  públicos,  ou  concorressem  ás 
cadeiras.  Os  effeitos  d'estas  concessões  exorbitantes  não 
se  demoraram.  A  academia  foi  invadida  pela  sociedade 
de  Jesus,  os  ignorantes  sairam  preferidos  aos  alumnos 
demérito,  os  jesuítas,  senhores  dos  exames  preparatórios» 
iipuderarani-sc  das  chaves,  que  alti  iam  as  portais  do  en- 
sino superior,  e  os  lentes  e  professores  adversos  ao  in- 
stituto, quer  estrangeiros,  quer  nacionaes,  notados  de  he- 
resia, ou  de  pouco  firmes  na  fé,  tiveram  de  inclinar  a 
cabeça,  receiosos  de  que  a  perseguição  se  tomasse  mais 
severa  K 

■ 

Tres  jesuítas,  intimamente  ligados,  como  a  vigorosa 
constituição  da  companhia  sabia  uni-los,  dominavam  o 
anUno  de  D.  Gatharina  de  Áustria,  do  cardeal  infanie 

D.  Henrique,  e  de  el-rei  D.  Sebastião.  Eram  os  confesso- 
res dos  tres  príncipes,  os  padres  Miffuel  de  Torres,  Leão 
Henriques,  e Luiz  Gonçalves  da  Gamara.  Não  admira,  ^e 
*  auiiliados  por  elles  seus  irmãos  avassallasam  Coimbra. 
Em  15$B  o  cardeal  D.  Henrique  dera  mais  um  passo  de- 
cisivo em  favor  d'elles,  impetrando  de  Uonia  a  creação 
de  uma  universidade  em  Évora,  dirigida  por  mestres  e 
superiores  da  companhia.  A  bulia  de  18  de  setembro 

1  Deduogão  Chixmolo^ica,  par 1. 1,  div.  xi,  §1  58.«,  60.°,  SS.»,  99.« 
eiOO. 


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236  HISTOBIA  DE  POBTOGAL 

Tostracçio  d'aquelle  anno  auctoiisou  a  Amdação  da  nova  academia, 
emula  de  Coimbra  no  ensino  de  todas  as  disciplinas,  me- 
nos as  sciendas  medicas  e  o  direito  civil,  e  revestida  do 
direito  de  conferir  os  í?raus  de  bacharel,  de  licenceado, 
de  mestre  e  de  doutor,  com  as  cerenionias  e  pompas 
usuaes.  Outra  bulia  de  i3  de  abril  de  1559  dotou  a  uni- 
versidade eborense  com  os  mais  largos  privilégios  e  mu* 
niu-a  de  amplíssimos  poderes.  O  infante  destinára  gros- 
sas rendas  para  a  sua  sustentação,  e  foimára  os  quadros 
das  íaculdades  e  das  classes  com  grande  osteutação.  Qua- 
tro lentes  regiam  as  cadeiras  de  theologia  escolástica  e  de 
escríptura  sagrada.  O  curso  de  artes  contava  quatro  pro- 
fessores, o  de  rhetorícadois,  o  de  humanidades  dois,  e  o 
de  irramuiatica  quatro.  O  cancellario  devia  ser  doutorado 
em  theologia.  O  governo  das  escolas  e  a  superintendência 
das  artes  e  das  aulas  inferiores  pertenciam  a  um  prelado, 
que  se  intitulava  prefeito.  D.  Sebastião  pela  sua  provisão 
de  iS62  concedeu  a  esta  academia  os  mesmos  privilégios, 
que  desfructava  a  de  Coimbra.  Um  cullegio,  cujo  reitor 
também  o  era  da  universidade,  foi  creado  com  as  rendas 
necessárias  para  educar  cincoenta  alumnos  com  cem  cru- 
zados de  pensão  annual  cada  um.  Âlem  d'este  estabele- 
cimento teve  ainda  a  universidade  um  hospital  para  o 
tratamento  dos  estudantes  enfermos  *. 

O  desastre  de  Alcácer  e  a  occupaçâo  do  reino  pelas 
tropas  de  Filippo  II  foram  lances  dolorosos  para  o  paiz  e 
para  os  estudos.  A  companhia  de  Jesus  bavía-se  decla- 
rado pelo  rei  catholico,  segura  de  que  elle  contava  por 
sua  pai  te  a  força.  Victuriosas  as  aimas  hespanholas,  co- 
lheu os  iiuctos  da  adbesão.  Ires  magistrados,  grandes 

í  B  iltli  i/ar  Telles,  Chronka  da  Companhia  de  Jesus.  imií.  lí, 
liv.  V,  cãp.  XIX,  xxui,  XXIV  e  xxv. 


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DOS  SÉCULOS  XYn  B  X?IU  937 

devotos  do  instituto,  a  coadjuvaram  com  ardor.  Pedro  instmeçio 
Barbosa,  jurisconsulto  insigue»  elevado  por  D.  Filippe  do  '^'^^ 
tribunal  do  desembargo  do  paço  aos  cargos  importantes 
lio  conselho  de  Porlngal  na  côrte  de  Madrid  e  de  chan- 
ceiler  mór;  Paulo  AUonso,  também  desembargador  do 
paço,  commissario  nomeado  para  votar  na  conferenda 
presidida  pelo  cardeal  Alberto  para  a  reforma  da  univer- 
dade  e  para  a  nova  compilação  das  Ordenações,  e  Antonio 
Pinto,  desembarí?ador  aggravista  e  secretario  da  embai- 
xada de  Lourenço  Pires  de  Távora  em  Roma.  Os  jesuitas» 
auxiliados  por  homens  na  realidade  distinctos  e  influen- 
tes, usaram  e  abusaram  das  cúrcnmstancias.  Os  lentes  e 
professores,  que  se  lhes  tinham  mostradojhostis,  depressa 
se  arrependeram.  Perseguidos  muitos  d'eUes,  por  moti- 
vos políticos  desterrados,  presos  ou  fugidos  da  pátria  ou- 
troSy  expiaram  todos  cruelmente  a  sua  opposição.  Não 
satisfeitos  com  o  silencio  e  com  a  obediência,  obtiveram 
entrada  no  animo  do  visitador  e  reformador  Manuel  de 
Quadros,  incuml)ido  em  1583  de  formar  um  novo  corpo 
de  leis  para  a  universidade,  e  não  foram  de  certo  indiíTe-  •  * 
r^tes  á  escolha  de  D.  Fernando  Martins  Mascarenhas 
para  o  logar  de  reitor,  nem  ao  trabalho  clandestino  dos 
estatutos  forjados  pelo  lente  de  prima  Antonio  Vaz  Ca- 
baço, do  aceordo  com  elle,  trabalho  revisto  em  Madrid 
pelo  bispo  capeilão  mór  D.  Jorge  de  Athaide,  e  pelos 
drs.  Pedro  Barbosa  e  Antonio  Pinto.  Estes  estatutos,* 
publicados  em  i592,  pouco  tempo  vigoraram.  Em  1597, 
cinco  annos  depois,  é  que  o  governo  decretou  o  código 
universitário  que,  permaneceu  em  execução,  com  leves 
alierações  até  á  refonna  do  século  xvm. 
I  Nos  escriptos  da  epocha  do  marquez  de  Pombal  attri- 
bue-se  a  promulgado  d'eUe  aosmanejos  da  sociedade  de 
Jesus,  protegida  por  Barbosa,  Pinto,  Ruy  Lopes  da  Veiga, 


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m 


HISTORIA  DK  PORIUGAL  * 


iMtra«ç«o  pelo  i'eitor  AfTonso  Furtado  de  Mendonça,  e  pelo  [ladie 
pabikn  pi-gmcisco  Soares  Granatense^  Jeote  de  prima  da  cadeira 
da  theologia^  e  acrescenU^se»  que  os  estatutos  de  4592 
ttnharn  sido  suspensos  a  requerimento  dos  padres  da 
companhia,  queixosos  por  elles  diminuíram  as  isenções 
do  collegio  das  aites 

Estes  estatutos,  examinados  com  imparcialidade,  se 
Dio  confirmam  plenamente  as  accusa0es  dos  reformado- 
res do  secolo  xviii»  reyelam,  todavia,  em  varias  partes  o 
cunho  das  idéas  e  tendencfas  conhecidas  da  companhia 
de  Jesus.  Os  ordenados  dos  lentes  diversiflcavani  segundo 
as  faculdades  e  as  cadeiras.  A  iiiais  remunerada  era  de 
prima  de  leis  com  300-^000  réis,  seguia-se  a  de  prima 
de  theologia  com  ^OtOOO  réis,  e  a  de  prima  de  cânones 
com  23(MIO0O  réis.  Em  medicina  os  l^tes  de  prima,  de 
▼espera,  e  de  Avicwia  eram  obrigados  a  vi^tar  o  hospital, 
conno  clinicos.  quatro  mezes  no  anno  cada  um,  desde  as 
seií'  lioras  c  meia  da  manhã  até  ás  oito  e  meia  no  inver- 
no, e  desde  as  seis  e  meia  até  ás  sete  e  meia  no  verão. 
Deviam  correr  todas  as  camas  com  os  estudantes,  dia- 
gnosticarem as  doenças,  e  receitarem  depois,  recebendo 
42ííJOOO  réis  annuaes  por  este  serviço': 
O  quadro  das  cadeiras  era  o  seguinte; 
Em  tlieoiogia: 

1/ cadeira — Prima.  Texto:  explicação  do  Mestre  das 
S$9Umça8, 


*  Barbosa,  Bihliatlieca  hmitann  ,  tom.  ui,  pag.  S60  e  íieguiiites. — 
Catalano  da  Universidade  de  Coimbra,  pelo  reilor  Francisco  Ctor- 
iieiro  de  Figueiredo,  cap.  xu  —  Compmdio  Histórico  doestado  da 
Liuversidadc  de  Coimbra,  pari.  i,  preludio  ii  e  iir. 

2  Estatutos  da  Universidade  de  1597,  tit.  v.  Das  cadeiras  que  ha 
de  haver,  e  o  que  se  ha  de  ler  n'ellas,  e  o  salário  que  téem. 


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m  «CVL08  xvn  b  xvin  m 

á.»  cadeira — Véspera.  Texto :'explicação  daa  íPotIm  de  losuucçio 
S.  Tkomás.  P"*^ 
3.*  cadeirã— Terça.  Texto :  explica^  da  Sagrada  E9- 

criptura, 

líavia  alem  d  esta^  uina  cadeii  a  de  noa  e  três  cadr  ii  as 
menores  em  que  se  liam  a&  doutrioai  de  l>uraiulo,  de 
S.  Thomás  e  de  Gabriel,  e  se  explicavam  oa  textoa  da 
Escríptnra  antiga  e  do  Novo  Testamento. 

Em  cânones  o  curso  abrangia  cinco  cadeiras  e  duas  ca- 
tliednllKiN  ou  cadeiras  menores: 

1.^  cadeira — Prima.  Texto:  Decrotaes, 

â.^  cadeira— Veepero.  Texto:  Deeretoêê. 

3.  *  cadeira — Terça.  Texto:  DecreUus.  i 
4/  cadeira — Noa.  Texto:  Sexto  das  Decretaes, 
5.*  cadeira — Texto:  ClemmUnas. 

1.  *  e  2.*  cathedriihas— Texto:  Deêretaes. 

A  faculdade  de  leis  contava  qaatro  cadeiraa  maiores  • 
qQatro  menores: 

4.  *  cadeira — Prima.  Texto:  explicação  do  Injorciato. 

2.  *  cadeira — Véspera.  Texio:  Digesto  novo. 

3.  *  cadeira — Noa.  Texto:  Tres  Uvros  do  código. 

4.  *  cadeira— Terça.  Texto:  DigeM  velho. 

Em  doas  das  cathedrílhas  lia-se  o  Código,  e  nas  outras 
duas  as  ínstiifitas. 

A  faculdade  de  medicina  tinha  seis  cadeiras: 

i  ^  cadeira — Prima.  Texto:  Tegne  de  Qaleno e  o  hvro 
De  locis  affeetis  nos  primeiros  tres  arnios,  no  quarto  os 
livros  Dê  morho  et  symptomate,  no  quinto  os  écàê  livros 
De  differentiis  febriunij  no  sexto  tres  livros  De  simplicibus. 

2.*  cadeira — Véspera.  Texto:  Aphorimos  de  Hippo- 
eraiu,  nono  livro  de  Aknamor  (pratica),  os  livros  De 
raiione  vktus,  epidemias,  et  prognósticos.  Esta  cadeira 
formava  um  curso  de  cinco  annos. 


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UISTOaiÀ  0E  POftTUGAL 


iuiu-ui^v*»     3.*  cadeiia — Noa.  Toxlo:  aiiatoniia  e  os  livros  de  Ga- 
******  leno  De  usum  pariium.  O  lente,  a  par  da  explicação»  de- 
via daoer  dissecções  particulares  seis  vezes  no  anno  e  ge- 
raes  tres  vezes,  percebendo  por  cada  dissecção  particular 
mil  reaes,  e  por  cada  uma  das  tres  geraes  dois  mil. 

4.*  cadeira — Avicena.  Curso  de  cinco  annos.  Nos  pri- 
meiros a  explicação  versava  sobre  a  Fen  prima  qmrti 
(anatomia  e  pbysiologia)  do  cânon  medecitim  (EUab  el  k<h 
ntnd  p^4UM)  e  a  quarta  prind  (febres),  e  nos  dois  ulti- 
mes sobre  a  secunda  primi  (matéria  medica). 

Em  duas  cadeiras  menores  annexas  ostudavam-se  os 
livros  De  crisibus  et  diebus  critim  de  Galeno  em  dois 
annos»  e  nos  tres  annos  seguintes  os  livros  De  NaturaH- 
bus  FaeultatihuSs  de  puletbus  aã  turtmee,  e  De  inaquaH 
intempérie,  e  ao  mesmo  tempo  os  tratados  De  methodo 
medendi.  De  sangume  emmione,  e  De  tempcramentis  et 
arte  curativa» 

A  cadeira  de  mathematica»  tinstituida  por  ser  uma 
scíencía  importante  ao  bem  commum  dó  reino,  á  nave- 
gação, e  ao  ornamento  da  universidade»,  era  das  menos  * 
bem  retribuídas.  O  lente  vencia  apenas  cincoenta  mil 
reaes  por  anno  com  as  propinas  de  mestre  em  artes,  e 
precedia  os  professores  nlo  regentes,  embora  fosse  mais 
moderno.  Havia  também  uma  cadeira  de  musica  com  duas 
lições  por  dia,  na  ijiial  si'  *>nsiiiava  cantochão,  órgão,  e 
coDtra-ponto.  O  proíessoi'  recebia  cjocoeuta  mil  reaes  por 
anno^ 

0  collegio  das  artes  dividia-se  em  quatro  cursos»  go- 
vernados por  quatro  regentes.  Ás  cadeiras  de  latinidade 

competiam  cem  mil  reaes  de  ordenado  cada  uma  pui  an- 
no, e  ás  de  grego  e  do  iiei>raicu  sessenta  mil.  Os  mestres 

1  fifoimw  dê  1897,  tít  T. 


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DOS  SÉCULOS  xni  G  XVUI  Mi 

das  doas  aulas  de  primeiras  letras  venciam  trinta  mil  Htttmcçio 
reaes  cada  ran  por  anno  *. 

O  provimento  das  cadeiras  vagas  podia  ser  por  oppo- 
siçlo  ou  por  nomeação  regia.  No  primeiro  caso  mandava 
o  reitor  aíiixar  editaes  em  latim  nas  portas  das  escolas, 
declarando  o  concurso  aberto  para  as  pessoas  habilitadas 
nas  caddras  maiores  por  espaço  de  trinta  dias,  nas  me* 
nores  por  espaço  de  vinte,  e  em  algumas  cathedrílhas  só 
por  dez  dias,  e  piovia-as  interinamente  de  substitutos 
idóneos.  A  segunda  hypothese  sò  se  realisava  nas  cadei- 
ras maiores»  quando  o  prelado  da  universidade  por  ata- 
lhar subornos,  ou  por  não  haver  oiq[iositores  sufficientes» 
propunha  a  el-rei  pessoa  apta  para  as  reger  designada 
de  entre  os  lentes,  ou  de  entre  oá  ouvintes.  A  coròa,  pon- 
deradas as  rasões  do  reitor,  conformava-se  com  a  con- 
sulta, ou  mandava  proceder  a  concurso.  EsLe  lazia-se  em 
lições  com  ponto  tirado  á  sorte,  assistindo  todos  os  que 
tmham  voto,  e  os  reitores  graduados  dos  collegíos.  No 
fim  de  cada  iiçUo  argumentavam  os  oppositores,  pagando 
cada  um  mil  reaes  por  argumento.  A  votação  fazia-se 
por  listas,  e  tuniavam  parte  n'clla  ,todos  os  estudantes 
nas  cadeiras  de  theologia  e  de  medicina,  uma  vez  que 
tivessem  frequentado  o  curso  da  faculdade,  os  bacharéis 
em  artes»  e  os  que  haviam  seguido  os  estudos  para  licen- 
ciados. Os  doutores  e  licenciados  nUo  podiam  votar  nas 
cadeiras  das  faculdades  em  que  craiii  ^aaduados.  As  lis- 
tas deitavam-se  dobradas  em  uma  boceta,  e  decidia  a 
maioria  por  cursos.  O  individuo  prôferido  prestava  de- 
pois juramento  e  tomava  posse.  As  aulas  abriam-se  no 
dia  2  de  outubro,  e  encerravam-se  no  fim  de  julho.  As  li- 
^s  nas  cadeiras  de  prima  duravam  hora  e  meia,  e  nas 


1  Estatutos  de  1597,  tit  vi  e  X. 

TOMO  T  16 


Digrtizeij  Ly  <jOOgIe 


iBàtacçMt,  outra&uoia  hora.  Á  saída  os  lentes  ficavam  á&  portas  dâs 
^^"^  geraes  para  respondeFem  ás  duvidas  dos  almanos 

As  regras  disciplinares  prescriptas  nos  estatutos  eram 

severas.  Os  estudantes  deviam  mcn  ai  no  alto  da  cidade, 
e  para  maior  quietação  não  se  consentia  ás  mulheres  de 
flàá  nota  residirem  da  porta  de  Almedina  para  ciaa»  úve* 
rememeasade  neotium  atomno,  oa  encooIraroHi-se  com 
etteem  kigar  suspeito.  Os  estudanles  flão  podiamrusar  de 
armas  defensivas,  ou  offeosivas,  de  dia,  ou  de  noile,  tm 
aulaa  ou  lòra  d'ellas,  nem  seus  creados  apparecerem  arma- 
dos nas  escolas.  Deviam-se  coaíessar  quatro  vezes  por 
aimo.  firam-Uies  protâkiidos  estolos  de  seda  nos  trajos,,  a 
nSo  ser  BOS  ferroa  dos  chapéus^  golas  dos  muaiim  a 
guarnições  das  sotainas,  assim  como  golpes,  ou  entre* 
talhos  da  mesma  téla,  e  botões  ou  fitas  nas  botas  e  sa- 
patos. As  côres  aniarella,  vermelha,  verde  e  alaranjada 
não  deviam  iUgurar  em  seus  vestidos»  sotainas,  calças  ou 
pelotes,  nem  reodaa  e  transinhas  uas  caaiizas.  For  baaa 
das  sotainas  podiam  trazev  meias  calças,  foupiíes  e  ja* 
quetas,  barretes  redondos  ou  de  eantos,  e  capas  sem  car 
pellos  fechados.  Deviam  ouvir  as  lições  descobertos,  e 
não  se  llies  consentiam  bestas  de  sella,  nem  mais  de  um 
moço  paia  os  acompanhar  a  pé^.  Estes  preceitos  nunca 
se  cumpriram,  porém,  na  maior  parte,  e  a  mocidade  ao»> 
demica,  turbulenta  e  maliciosa,  afiBrontava  sem  gratde 
receio  a  comminação  das  muitas,  infringindo-o&  As  rixas 
e  os  arniidos  repetiam-se  com  frequência,  e  por  occasião 
do  perdão  geral  e  da  soltura  dos  presos  hebreus  dos  cár- 
ceres do  santo  oâkio,  os  estudantes  levantaram  maa  mcH 
tim  tâo  assustador,  e  praticaram  taes  excessos,  que  o  gc^ 

1  Estatutos  de  lo97,  tit.  x  e  xi, 

2  Ibidem,  tit,  m,  liv.  iii. 


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DOS  SÉCULOS  XVU  E  XTQI  2^ 

WBQ  mmêm  «sta  alçada  piesídida  por  Httirí^  d»  iMtwyi» 
Scusa,  do  coDsettio  àt  eslaáo.  Por  sn^Hiça  d'áfta  fbn» 

suspensos  os  privilégios  da  universidade  ^ 

A  côrte  castelhana  continuou  a  mostrar-se  inclinada  ás 
pretensões  da  cofl^anhia  de  Jesus  no  reinado  de  Fi- 
Mppe  tIL  O  dMpM'  de  Lema»  iitíBameote  iigado*c€ni  o 
eknm  flob»  qm  a  aaoísade  do»  padre»  d»  Santo  Ignaei* 
podia  ser-lhe  utii  e  fugiu  sempre  de  os  desgostar.  Não 
hesitou  por  isso  em  ordenar,  que  das  rendas  da  universi- 
dade' se  tirassem  cada  aono  três  mil  crueados  para  as 
«biaft  das  classes  de  Itím  e  artes  do  coUegio  de  Coinr 
bra,  reduzindo-os  em  i605  a  dois  mil  cruzados  sómenta^ 
•>MiBitaado  a  tataMéade  daeoD$ignaçriD*»viate  mil\  Os 
CHirsos  de  pbilosophia,  professados  nos  colleí(ios  de  Lis- 
boa, Évora,  (loimbra  e  Bra^a,  aonde  se  liam  cinco  lições 
de  huuanidades,  uma  de  ptiiioso{)tiiav  e  duas  de  aasoè 
fomm,  «ondadn»  levar  em  conta  para  armatancoia  bo»  eSf^ 
tudes  siq)eriores^.  Aos  esládaDtas  d»  aidas  mom 
prohibi«*«e-  a  entrada  da»  fiEKmldades,  emquanto^  nlo  a^ 
cançassciii  a  apj^rovação  dos  mestres  do  collegiu  das  ar- 
tes''. O  ííovenio,  tomando  pretexto  dfeis  inquietações  e 
subâFBOs  «alisados  pela  fónna  do  provinieato  das  cadei- 
ras ásk  iinimeisidade  por  opposIçSo,  aorogoa-se  em  OSS^ 
»es«eflui^  eoBservando  as  líçQes  e  os  argmiient(»spiiblii- 

1  (]arti  regia  de  i7  de  maio  de  1007. — Ímto  vm  da  Suppliea' 

fMO,  fl.  13*  V. 

2  Carta  regia  de  25  de  junlío  de  4604>.— /.írro  ih  registo  da 
Mfim  da  Gamicitneia,  fl.  6jie  Sk^-Caite  regia,  de  24  de  maio  da 

mr>. 

3  Carta  regia  do  anno  de  16iâ.^L(oro  de  Consultas  da  Mesa 
da  Conscietuia^  fl.  90  v. 

*  Gasta  negia  de  8  de  maio  de  IMS.— Ltoro  dé  reffúto  da  Màa 
daConimênaa,fi%Y. 


Digrtizeij  Ly  <jOOgIe 


244 


MSTORIiL  DE  FOBTUOAL 


iDstnicçao  COS  dos  coDGorreQtes,  e  sappiímindo  a  votacíão»  cpie  sob- 
stitoia  pelas  informaçSes  do  prelado  e  do  cancellarío  da 

academia,  do  bi^pM  de  Coimbra  e  do  reitor  do  coUegio 
dos  jesuilas.  A  frequência  era  muito  numerosa,  principal- 
mente nos  cursos  de  direito»  e  a  multidão  dos  bacharéis 
habilitados  com  a  leitura  perante  o  desembargo  do  paço 
muito  superior  aos  cargos,  em  que  podiam  ser  emprega- 
dos. Em  í^i  determinou  el-rei,  para  occorrer  a  este  in- 
conveniente, que  o  tribunal  não  admittisse  ninguém  a  ler 
sem  ordem  expressa,  e  que  nenhuma  judicatura  fosse 
provida  senão  nas  pessoas  mais  aptas,  e  qualificadas  como 
taes^ 

Em  1586,  sendo  reitor  da  universidade  D.  Nuno  de 

Noronha,  filho  do  conde  de  Odemira,  o  collegio  das  artes 
de  Coimbra  representava  um  edifício  sumptuoso,  aonde 
sempre  viviam  doze  theologos  promptos  a  partirem  para 
as  missões  do  oriente  e  do  Brazil,  e  servia  de  seminário 
das  conquistas.  Tinha  onze  aulas  e  vinte  e  um  professo- 
res. A  sala  dos  capellos  era  notável  pela  vastidão  e  pela 
riqueza  dos  tectos  e  dos  ornatos.  Os  estudantes,  que  fre- 
quentavam as  aulas,  excediam  o  numero  de  dois  mil. 
Só  nos  geraes  da  companhia  passavam  de  duzentos,  e  a 
casa  (collegio),  aonde  aprendiam,  possnia  de  renda  mais 
de  quinze  mil  cruzados  K  Em  Í6I5,  vinte  e  nove  annos  de* 
pois,  cursavam  a  academia  quatro  mil  estudantes,  o  dobro 
exactamente  dos  que  existiam  em  1586.  Esta  concorrên- 
cia extrordinaria,  desviando  dos  campos  e  das  outras  pro- 
fissões muitos  mancebos  robustos,  excitava  queixas  e  ap- 
prehensões  quasi  geraes.  As  còrtes  de  4563,  estranhando 

»  Carta  regia  de  3  de  junho  de  1621. — Livro  de  Registo  da  Mesa 
da  Consciência,  fl.  73  v. — Carta  regia  de  29  de  junho  de  1631.— 
Livro  da  Correspondência  do  DenembarffO  do  Paço,  fl.  litô  y. 


biyiiized  by 


4 


DOS  SÉCULOS  XVU  E  XVIU  Í45 

as  avultadas  despezas  do  reinado  de  D.  João  III  com  a  instmcçso 
uíiivppsiddde,  não  duvidaram  supplicarpela  segundn  voz 
do  braço  popular  a  suspensão  d^ella,  pedindo  que  seus 
rendimentos  fossem  applicados  ás  despezas  da  guerra. 
As  côrtes  de  Thomar  nlo  se  inculcaram  também  affectas 
ao  ensino  snperíor,  e  as  de  1641  aconselharam  a  D.  JoSoIV 
a  suspensão  por  cinco  annos  de  todas  as  universidades, 
e  a  apropriação  de  suas  dolaçòes  ao  armamento  do  paiz  *. 

Em  1551  havia  em  Lisboa  34  mestres  primários  (7  de 
grammatica),  2  mestras,  14  aulas  de  dansa,  alem  do  en- 
sino  particular,  e  4  de  esgrima.  Em  1556  aprendiam  a 
ler  e  latim  90  moços  fidalgos,  e  cursavam  as  escolas  21. 
Em  1 620  contava  a  capital  60  mestres  de  primeiras  letras, 
6  de  dansa,  7  de  esgrima,  e  70  de  canto.  Mas  nos  fins  do 
século  XVI  e  em  quasi  todo  o  xvu  a  educação  da  moei- 
dave  corria  pelas  mSos  dos  jesuítas,  que,  segundo  haviam 
notado  já  em  1562  os  procuradores  do  povo,  a  pretexto 
de  ensinarem  de  graça  em  Lisboa  e  nas  outras  terras, 
monopolisaram  de  facto  qnasi  todaainstrucçâo.  Em  1622 
não  baixava  de  240  o  numerei  fios  estudantes  da  univer- 
sidade de  Évora,  e  subia  a  1:800  o  dos  do  collegio  de 
Santo  Ântâo  de  Lisboa.  Cursavam  o  collegio  de  Braga 
mais  de  150.  Estes  algarismos  explicam  a  grande  influen- 
cia da  sociedade,  porque  os  alumuos  pertenciam  na  má- 
xima parte  a  familias  nobres,  ou  a  casas  abastadas  da 
classe  media*.  As  outras  ordens  religiosas,  como  obser- 

1  ÁrdiivoPUiorneOj  vd.  y,  n.*  80,  aiuio  1862. — Privmra  Embai' 
aeaâa  do  JàpSo  á  Europa,  pag.  400,  Museu  Brítannioo,  B.  Sloane, 
a.*  1:010.— D.  lIanuddeHeiie2e8,Cftfwiú»d«£^J{«i).  SèbatHão, 
part.  I,  eap.  cviii.— Capítulos  Geraes  das  cáries  de  Lisboa  celebra- 
das em  28  de  janeiro  de  16&1,  capítulo  do  braço  do  povo  uv  e 

I.XXZ. 

?  ChristovSò  Rodrigues  de  Oliveira,  Sitmmario,  pag.  34.— Fr.  NI- 


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M6    HISTOBIA  DS  PORIVGÂL  DOS  «CCUU»  &VU  £  XVUI 

lartnioçio  váulos,  Umbem  tinham  aulas  e  mestres  elogiados,  mas 
mo  podiam  competir  com  as  do  instituto  de  Jesus,  bem 
doudas»  protegidas  pelo  goveitio  e  p^  aristocracia,  e 
enraiiidas  no  eoocdito  e  dos  costumes  p«bticos.  fim  1625, 
reqwreido  Fr.  Bkardo  de  la  l^ha  para  (lindar  um  coUe- 
gio  de  S.  Duijuíixgos  da  nação  inglesa,  acòrte  não  semos- 
timi  iadíBada  a  fovorece^lo,  ao  passo  que  não  hesilava  «m 
coDoeder  aos  jesuítas  anclorísa^  pfteoa  para  crearem  m 
collegk»  «BI  Etvas»  e  para  escolas  escolas  em  Saatarem, 
apesar  de  tá  existirem  as  dos  doraimcanos  ^ 

Do  que  acahâiaos  de  expor  deprehende-se,  que  a  índole 
geral  do  ensino  se  tomira  quasi^sseocialMiente  ecdôsias- 
tica,  e  que  a  ébíçío  proeniMote,  taalo  aos  estudos  sv^ 
rioreSy  como  nos  preparatórios,  reprodozia  as  ídéas  e 
aspirai^  da  eompanhia  de  Jesus,  a  qual,  pela  impor- 
tância dos  estabelecimentos  liUerarios,  que  re^^a,  pelo 
mmiero  dos  aiumuos,  peia  escolha  dos  compeudios  e  dos 
methodos,  peia  unidade  de  peosameato,  e  pda  acii  vâ<lade 
dos  esforços,  aicançára  era  Portugal  a  realLsa^o  completa 
de  seus  designíos,  assumindo  e  exercendo  nas  universi- 
dades e  collegios  das  terras  prindpaes  uma  verdadeira 
dictadura,  ci4as  respoDsalHiidades  quiz  depois  deoliuar 
emi9o  eaajios  resultados condemuffam mais  tarde  a  sua 
ambicio. 


flolaa  de  Olivein,  Grtmátaa»  ée  láébmL-^RjàaçSo  éãã  FeMm  fu* 
fex  o  CdUffio  da  thtmr$idad$  dê  Évora,  anno  1622. 

1  CartM  resías  de  Í7  d»  jattw  de  im«de  i5de jvUwde  tesO. 


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CAPITULO  IV 
mm  DAS  SGIENOIAS  £  BAS  LBTRAS 


CorrapçSo  do  gosto.  Imitação  clássica  servil.  Decadeocia  das  scicncias.  A  thcologu,  O 
direilo  àrú  e  cauooico,  e  a  medicina.  As  bnmanidadM.— Est«lo  Utterarío.—  A  epo» 
dia  de  D.  Joio  I.  O  geenlo  de  D.  Manoel.  Soa  caltart  adiantada. —611  Vicente  e 
Bernardim  Ribeiro. — A  epopeia  nacional.  Luiz  dc  Camões.— Estacionamenlo  pre* 
cursor  da  drradencin.—  As  sciaicias  na  primeira  metade  do  soculo  xvii.  VarSes  eml« 
uentes.  invasão  do  gongorismo.  —  Poemas  beroicoã  posUirioros  aos  «Lusiadas». 
Poegia  bocoliea.  Rodrtgoes  Loiío.  iPoesia  dramática.  Sua  esterilidade.  Tragieo- 
medias  latinas.  Pateos  das  eaoMdia*.  EMei  Mstovícoe.  BnadM  e  Gauto.  Pro- 
sadores  distinctos. 

Tildo  se  inclinara,  como  vimos,  em  presoiu  a  da  com- 
panhia de  Jesus,  e  até  por  íim  as  resistências  das  corpo- 
rações e  dos  indivíduos  iiiàmi  emmudecido.  Senhora  do 
paço  e  dos  tríbimaes,  e  bem  acceita  do  povo  e  da  nobren» 
havia  assegurado  á  curia  romana  a  obediência  de  Portu- 
gal, sequestrando-o  da:>  lulas  do  pensamento,  que  tanto 
preoccupavam  em  todas  as  nações  as  escolas,  os  reis 
e  os  pontiOces.  Dominando  a  academia  de  Coimbra,  pos- 
suindo em  Évora  uma  universidade  própria,  no  coliegio 
de  Santo  Antão  de~Lisboa  outra  quasi  igual,  e  nas  terras 
principaes  íjymnasios  filiacs  muito  concorridos,  conse- 
guira absorver  as  iníluencias  nioraes,  t»  poi-  via  d  cilas 
uma  acção  politica  quasi  decisiva.  Mas  este  immenso  po- 


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248  HISTORIA  DE  PORTUGAL 

sámm  der,  em  vez  de  se  transformar  em  instnimento  poderoso, 
e  em  força  viva  da  civilisação»  serviu4he  só  par  a  paraly- 

sai  ,  ou  para  mutilar  o  desenvolvimento  intellectual.  Os 
estados  jesuíticos,  rf)ncedcndo  iiiaÍ5  â  fúrma,  do  que  á 
realidade,  atteodendo  mais  aos  accideotes,  do  que  á  es- 
sência das  cousas,  concirnam  sempre  contra  a  indepen- 
dência das  opiniões.  Por  isso  de  soas  aulas  saíram  lati- 
nistas mais  curiosos,  do  que  profundos,  casuístas,  bons 
disputadores,  mas  nada  snlidu-,  argumentadores  argu- 
ciosos,  mas  pouco  firmes  ikis  priucipios.  Eh^gancias  aíle- 
ctadas,  phrasesescoiiiidas,  couceitusrelmadas,  e  extrema 
singolaridade  na  concepção  e  nas  expressões,  eram  as 
prendas  inculcadas  aos  poetas  e  prosadores  por  mestres, 
que  antepunham  esta  espécie  de  esgrima  de  agudezas  e 
trocadiUios  ás  verdadeiras  qualidades  do  estylo  e  do  sa- 
ber. As  obras  pareciam-se  com  os  mudeios.  As  pr-oposi- 
ções  frisavam  pelo  transcendente  obscuro  ado  como 
ponto  culminante  do*sublime.  A  opulência  túmida,  ruido- 
sa e  estéril  condemnava  a  simplicidade  quasi  como  baixe- 
za. As  chímeras  da  philosophia  escolasttco-aristotelica 
achavam  nus  coUegios  da  companhia  campeões  convictos, 
os  paradoxos  aiTiscados  mantenedores  estrénuos,  e  as 
doutrinas  politicas  mais  absolutas,  e  por  vezes  mais  vio- 
lentas e  anarchicas,  apologistas  zelosos  e  vehementes.  Os 
nomes  de  Maríanna,  de  Escobar,  e  de  outros  padres  assi- 
gnalam  todos  os  arrojos  a  que  n^aquella  epocha  podia  atre- 
ver-se  a  audácia  dos  auctores. 

Os  maus  exemplos  formaram  imitadores.  A  semente 
lançada  com  arte  não  morreu  afogada  nos  espinhos.  As 
lições  dos  mestres  corromperam  o  espirito  e  o  gosto  dos 
discípulos,  e  estes,  entrando  na  vida  activa,  inocularam 
sem  escrúpulo  os  defeitos  bebidos  com  o  leite  da  instruc- 
ção.  Nos  alumnos  d  estas  escolas  a  cultura  iuteiiectual 


1 


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DOS  sficcLOS  xvti  £  xvm  249 

er  a  mais  superficial,  do  que  positiva,  a  consciência  mais  scinaiat 
elástica,  do  que  austera,  e  a  devoção  mais  dedicada  ás 
exterioridades  dos  ritos,  do  que  interiormente  alumiada 
por  uma  fé  sincera.  Podiam  mais  n'6Ues  qnasi  sempre  a 
superstição  e  o  fanatismo,  do  que  as  verdadeiras  crenças 
religiosas.  A  sociedade  educou  de  certo  sujeitos,  que  fo- 
ram modelos  de  virtude  e  de  abnegação  na  vida  claus- 
tral,  como  S.  Francisco  Xavier»  mas  não  esqueçámos  tam- 
bém, que  se  levantaram  do  seu  seio  escríptores  e  orado- 
res, que  brilharam  mais  como  estadistas  mundanos,  do 
que  como  relif^iosos  soltos  dos  vínculos  politicos,  e  das 
vaidades  terrenas.  T  diIos  elles,  porém,  quer  fallassera, 
ou  escrevessem  na  língua  de  Horácio»  ou  de  Gamões, 
quer  fossem  professos,  ou  seculares,  embora  possuíssem 
grande  erudição  e  elevados  dotes,  peccavam  em  geral 
pelas  mesmas  exagerações.  A  predilecção  pelas  subtile- 
zas e  pelos  lances  dialécticos,  e  o  abuso  das  citações 
e  das  referencias  depravavam  os  engenhos  apurados 
n'aqueUes  seminários. 

Os  lentes  nas  cadeiras  das  universidades,  os  prégado- 
res  nos  púlpitos,  os  theologus  nas  theses,  os  advogados 
e  os  juizes  nos  tríbunaes  e  no  fòro  oravam,  discutiam, 
arrasoavam,  e  sentenciavam  obedecendo  quasi  sem  ex- 
cepção ao  desejo  de  ostmitarem  originalidade  e  locuções 
amaneiradas.  Uma  carta,  uma  pagina  de  historia,  uma 
lauda  de  versos,  e  uma  scena  trágica,  ou  uma  scena  có- 
mica fundiam-se  nos  mesmos  moldes  invariáveis,  gastos 
á  força  de  uso,  que  mais  estafavam,  do  que  ornavam  os 
assumptos*  Os  resultados  d'estas  perniciosas  tendências 
denuncíaram-se  lenta  e  successivamente,  eivando  os  ta- 
lentos mais  altos  e  as  obras  mais  bem  acabadas.  A  imita- 
ção, introduzida  pela  renascença,  baixando  a  copia  servil, 
escravisou  a  idéa  e  a  forma.  Os  poemas  gregos  e  roma- 


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9 


aso  «BTOflU  DE  POHTDGAI 

MMiMBM^  t3fpos4iáaiirav6Í8  tie  perfeícfio»  foram  iaipostotoom 
íJm  ^^9^^  itiiext^.  A  WMnoia  decKooa,  os  en^nhos  de^ 

i>i  iiuiram-se,  os  horisontes  eocurtaram-se,  e  tudo  dimi- 
nuiu ()r(>()(>rcioíiaiiiit'Tite.  A  ttTIy^iscia»  e  a  «Phenix  Re- 
nascida» representam  em  extremos  oppostos  a  evoiíiçio 
Ulterada  4'est8  |>eriodo%  Os  homeas  i%QO  coB^ndos 
com  a  gera^So,  que  descobriu  a  índia  e  ftmdou  o  irape*- 
río  do  omnie,  ex^slioam  como  as  trovas  da  intelligenda 
acompanham  quasi  sempre  as  trevas  nioraes. 

A  obscuridade  não  caiu.  porém,  repentinamente»  O  edi- 
iicio  não  desai^ou  de  goipe,  e  successivas  transições  adiau- 
laran  os  passos  á  decadência*  Da  cornipçSo  dos  estudos 
nasceu  a  depravado  do  gosto,  e  da  absoluta  affirmaçio 
do  principio  da  auctoridade  a  morte  dos  coramettimentos 
originaes,  tanto  nasidèiís,  como  nas  fòrmas.  Os  progressos 
da  epocha  de  D.  Manuel  não  tiveram  continuadores.  A  in- 
spiração nacional  de  Gil  Vicente  e  de  Beraardim  Ribeiro 
desmaioii  logo  depois  suífooada  peia  imitação  clássica,  e  a 
luz  pura  e  viva,  que  promettia  esdareoer  as  letras  e  as 
scienc4a8>  depois  de  fulgurar  por  curto  espaço,  e(  lipsou-sc. 
O  re!n;i(l«>  de  D.  João  111  colheu  os  fructos  da  arvore  plan- 
tada por  U.  João  II  e  por  seu  pae,  mas  não  soube  crear 
outros.  O  governo  de  D.  Sebastião  ouviu  as  ultimas  voaes 
do  grande  período»  que  o  desditoso  prilidpe  em  breve  ha- 
via de  eneenrar,  dando^  uma  catastrophe  por  epitaphio< 
Coimbra  declinou  quau<lo  tudo  declinava,  e  a  influencia 
da  co!ii})iiíiiiKi  apressííU  para  ella  a  hora  do  deslaíleci- 
mento.  Á  plêiade  dos  homens  illustres>  que  haviam  ele* 
vado  o  ensino  e  firmado  o  conceito  europen  da  universi- 
dade portogueza,  suocederam  professores  sem  liberdade, 
sujeitos  á  tutela  de  emulos,  que  trabalhavam  por  aniqui- 
lar todos  os  esforços,  que  tendessem  a  nnaper  o  cir^ 
euio  de  ferro  da  tradição  conservadora.  Ás  faculdades. 


biyilizuu  by  GoOglc 


DOS  SBGULOS  XVII  £  %.ym  MÊ 

oomprímkkspelosiiie&odosepetostextoskiiiM^  P^mmik 

deram  a  iniciativa,  o  zêlo  e  o  amor  da  reputação.  O  col- 
legio  das  artes,  tornado  dependência  exclusiva  do  insti- 
tuto de  Santo  Ignacio,  viu  desapparecer  de  suas  aulas  os 
T«ives  e  os  Fatnicias,  e  co&vterteu-ae  em  wdadeiro  se* 
minarío  jesuítico.  Os  resultados  corresponderam  ás  pre* 
missas.  A  sociedade  ta9o  desejava  de  certo  a  mina  das 
letras  e  o  suicidio  dos  engenhos  distinctos,  mas,  fiel  m 
seu  pensamento,  sacriíicou-os  sem  iiesilar  ao  odio  votado 
ás  novidades,  ás  suas  máximas  exclusivas,  e  ámbição 
de  monopolisar  tudo.  Um  rápido  esboço  dos  aootores  e 
dos  systemas  seguidos  nas  escolas  provará  o  <]iie  asse- 
verámos. 

Os  estudos  iheologicos  tinÍKiin  ílorecido  na  e|H>ciia  de 
D.  Manuel  e  de  D.  João  III.  Homens  nossos  eminentes 
tinham  honrado  as  cadeiras  da  academia  de  Oiimbra, 
e  as  das  uniwsidades  estrangeiras;  mas  na  primeira 
metade  do  século  xvii  já  todos  deploravam  a  qiiéda  rá- 
pida d'aquellc  esplendor.  A  niá  escolha  dos  textos,  con- 
íiii  1(1  indo  o  Ldvro  das  Se/denças  de  IN  dro  Lombardo  e  a 
Summa  de  Santo  Thomás  com  os  tratados  de  Escoto^  de 
Durando  e  de  Gabriel  fiiel,  preferindo  a  sdeocm  pole^ 
mica  ás  doutrinas  ateis,  e  a  gioriílcaçião  de  auctores 
oppostos  e  contaminados  pelos  vicies  escolásticos  eo  eta* 
me  imparcial  das  matérias,  encheu  as  aulas  de  contendas, 
de  subtilezas,  e  de  partidos.  Os  Lentes,  obrigados  á  ex- 
plicação das  obras  dos  cinco  theologos  pelo  methodo 
analytico»  e  ao  estado  minucioso  de  cada  artigo,  do  cada 
aigumento,  e  de  cada  pfarase,  i^o  podiam  ministrar  aos 
discípulos  as  noções  geraes  indi^nsaveis,  e,  ligados  pelos 
estatutos  á  opinião  e  á  letra  dos  textos,  apenas  allegavam 
dos  escriptores  modernos  os  que  podiam  servir  de  re- 
forço á  veneração  e  auctoridade  dos  antigos.  A  rasSo  «a 


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HISTORIA  DE  PORTUGAL 


sdÊBdM  critica  foram  desterradas  quasi  como  importunas,  os  pro- 
jjj^  fessores  só  curavam  de  descobrir  argucias,  qiio  ajudas- 
sem na  defeza  dos  auctores  impostos,  e  os  alumiios,  di- 
vididos» como  os  mestres»  em  thermistas  e  escotistas, 
corriam  atrás  das  apparencias»  ígoorando  o  que  deviam 
saber  ^. 

Nos  cursos  de  jurisprudência  canónica  e  civil  os  ma- 
les, se  é  possível,  ainda  eram  maiores.  O  systema  de  an- 
tepor o  commentario  analytico  á  exposição  syntlielica  en- 
redava de  lODgas  e  ociosas  d^essões  e  difiiculdades 
os  eiereicios  escolares»  e  reduzia  a  poucas  leis  e  capitu- 
les a  instrução  dos  ouvintes.  Recuando  o  ensino  quasi 
aos  tempos  da  escola  de  Bartholo  convertiam  as  aulas 
em  Lliealros  de  disputas,  eo  direito  em  tliema  de  faisa>  e 
cansadas  interpretações.  Acrescia  o  absurdo  de  quasi  to- 
das, senão  todas  as  cadeiras»  serem  consagradas  ao  direito 
romano  na  jurisprudência  civil»  deixando  quasi  o  direito 
pátrio  em  profundo  silencio.  Os  estudantes  deviam  pos- 
suir oslivros  de  Bartholo  e  do  abhiide  Palormitauo.  deviam 
consultar  as  analyses  e  as  glossas  de  Acursio,  e  haviam  de 
firmar  em  todas  as  conclusões  o  império  dos  velhos  tex* 
tos.  O  tempo  lectivo  corria  escasso  n'esta  e  nas  outras  fa- 
culdades. Era  excessivamente  larga  a  interrupção  das 
lições  por  causa  da  extensão  das  férias.  No  período,  em 
que  as  aulas  esla^anl  aiíertas,  as  apostillas  consumiam  a 
melhor  parte  dos  dias  úteis»  e  a  falta  de  frequência  dos 
alnmnos  trazia  as  escolas  quasi  desertas,  apesar  das  pro- 
videncias adoptadas  para  cobibir  o  abuso.  Não  havia 
policia,  nem  disciplina.  Â  indulgência  reprebensivel  dos 
professores  nos  actos  públicos  e  na  coliação  dos  graus 

1  Compendio  BUloHeo  do  Ettado  da  tfimerHdade  de  Cwmbra, 
part  n»  cap.  l 


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DOS  S£CULOâ  &VU  E  XVm  2â3 

académicos,  filha  do  interesse  de  nmltiplicarem  as  propi-  seMu 

nas,  e  a  falta  de  exames  nos  primeiros  quatro  annos  do  j^,^ 
curso  jurídico,  davam  largas  á  ignorância  e  á  jactância,  • 
para  se  pavonearem  com  os  títulos,  qoe  só  ao  mérito  de- 
veriam ser  conferidos.  Assim  mesmo  ainda  appareceram 
algons  vai^es  notáveis  como  Antonio  da  Ganha,  Thomás 
Velasco,  Gabriel  Pereira  de  Castro  e  João  Pinto  Ribeh*o, 
mas,  confrontados  coin  os  mestres  da  epocha  anterior, 
estavam  iõnj^e  de  poderem  competir  com  elies.  Á  pro- 
porção que  os  auctores  se  afastam  do  século  xvi  e  vem 
entrando  pelo  xvii ,  mais  fraco  ha  de  ser  o  conceito  em 
que  devem  ser  tidos,  observa  o  douto  Pascoal  de  Mello 
Freire  *. 

Os  estudos  pliilosophicos  sobresaíram  em  Coimbra, 
mas  não  por  lórma  tal,  que  resgatassem  a  decadência  ge- 
ral. O  reinado  de  D.  Joio  III,  como  observa  um  escriptor 
contemporâneo  e  nosso,  representou  em  Portugal  a  tran- 
sição, que  liga  a  philosophia  escolástica  e  a  moderna.  En- 
tre os  professores  chamados  pelo  rei  para  a  universidade, 
um  dos  mais  insignes,  Antonio  Luiz,  encarregou-se  em 
1547  da  explicação  de  Galeno  e  de  Aristóteles  nas  suas 
fontes,  e  rasgou  assim  uma  nova  estrada.  Depois  d'eUe 
Pellro  da  Fonseca,  da  cmnpanhia  de  Jesus,  compoz  as 
suas  hístUuições  Biakíieas,  publicadas  em  I5d0  e  os 
Commentarios  d  Metaphysica  de  Aristóteles,  obra  que  lhe 
grangeou  subido  conceito,  porque  se  não  lestiiiigiu  a 
explanar  somente  o  assumpto,  mas  soube  verter  muita 
luz  sobre  diversas  questões,  concordando  até  onde  era 
compatível  as  doutrinas  do  mestre,  cuja  interpretação 
authentíca  o  seu  escripto  ollerecc,  com  as  de  S.  Thomás 

1  Compendio  Histórico  do  Estado  da  Universidade  de  CoMru, 
part.  n.^Mello  Freire,  HUtoria  do  ÍHreUú  CwUÍAmtawi,  cap.  xn. 


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ffitoin»  em  i&  fiwàfiM  evaogelíeos.  Sebastião  do  Coulo» 
UnkMMi  do  iiBtitat»     Saalo  %mcíOv  escima  outros 

Commentiarios  sobre  toda  a  Diaktica  de  Aristóteles, 
uiuíido  extrema  clareza  ao  profumlo  oonhecimentõ  do 
l«xlo>  e  tendo  mais  em  mente  o  lim  modesto  de  fonnar 
uflk  livro  immak  de  msíao  que  traçar  um  trabalho 
dMflmdo  eileoKSo.  FioalaeDte^Ballhae&f  AWares,  igoà- 
mettli  j^suila,  no  seo  Trodatm  ée  Amàm  Sep&naa,  dir 
viílido  em  seis  disputas,  provou  erudição  vasta,  bom  me- 
tbodo  e  lucidez,  embora  peccasse  por  menos  observação 
e  anai^íse  em  pootos  essenciaes  K 

Wwm  «staft  Boa  fins  do  sdcolo  xn  e  Da  príneini 
tadç  do  XVII  os  lentes  e  os  escríptores  de  maior  nome  n» 
aeaâ^nia  eoBlnkrieme.  A  apf«eiaç9»  de  seus  esforços 
por  juizes  compeleiítes,  se  nTio  jusLilira  a  severidade  par- 
cial do  Compendia  Histórico,  iiispirado  pelo  odio  tio  lua?  - 
qmk^  éà  Poaibâl^  demoasUra^  cointudo,  qd^  a  sociadade 
n'esta  pto^viocia  desatar,  eosKueK todas»  qfoizser,  eM 
eseeficialmeBte  consemadora,  impondo  nas  aaftas  os  seas 
lÍMPOS  e  os  seus  professores,  e  velando  com  ciame  para 
que  elles  não  eneoiílrassera  a  mais  leve  opposição,  e 
podyi^ss^  ser  contrariados  por  tijeorias,  ou  opiniões 
maisJÁvies.  Ex^u,  porém,  o  rigor  do  systema,  abdicando 
^uBtanameaie  todi  a  mieialivjb  original  no  pensamento 
ptHioeoptikOv  e  ficoii  sempre  algewada  àimmobilídade  da 
tradição  aristotélica.  Ao  passo  que  as  idéas  caminhavam 
nalòuropa,  eila  cada  vez  cci  i  i  va  innis  as  suas  escolas  ás  in- 
ítei)fiki^e]^teraas^dL'it  iiiltiiu  )  coiii  i^uul  ardor Àristoleíes 
e  a  ipejaj.  e  lepettindo  com  aolipatbm  proftmda  todas  as 

'  Historia  da  Philosophia  cm  Portugal ,  \w\o  sr.  J.  J.  Lopes  Pra- 
í-i.  romiIira,.lÔ6ii,  peiiodL  ii»  aoB%^  i,  pag.  iiO  a  iiS^  itô-a  122  e 


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hOSk  SKCXLQS,  XVH  K  XYIII 


epochas,  em  tjuo  ella  já  vadllava  combatida,  travou  com 
o  preseutti  e  com  o  porvir  uma  lula  iiiiiujv^sivel  em  iiotue- 
€b  pasfiailo»  conrtMifcfttndo  s«tt&  âuctnre^,  emkisitcos 
deââldos»  com»  eno^  todao  qn»  podia  oiBader,  m  atto» 
miar  a  sua  fó.  A  seci6âad&  de  imiS'  iisi^  de^Maís  m 
resistência,  e  s-eui  lasao  cuidou  vencer  as  teiídenciaí!» 
contrarias.  O  edifício  desamparado  não  podia  suster-se, 
e  a  cega  ol)âliiiação  obrigou-a  a  akrazar-se  de  todos  os 
pit^pressos,  e  a  assistir  de  iooge  ás  mais  Ifécuodas  maoí- 
festações,  sem  as  querer  acceitar»  e  senoi  tomar  a'^s  a 

mcnoi'  |)ai  lo  ^ 

Nas  sciencias  ijuediíja&  e  naèura^  ainda  o  atrazo  se  ^ 
te&teava  maior,  m  ó  possível.  Um  docameulo  do^^  ii^  doi 
secuio  XVI  assim  o  attesta  com  evidleocia.  É:  a  earta  do  me- 
di(H>  do  hospital  de  Ústoa,  Fraocisco  Tbomás,  escripta 
em  1592  ao  bispo  D.  Jurge  de  Atliaide^  declaruíido  iiiíck' 
paiii4ínte  perdidas  no  reino  a  laeiliciaa  e  a  cirtMfgiapor  não 
haver  na  miiversidade  ie&les  aptos,  e  os  discif  »k)â  aão 
terem  com  qaem  prendessem.  Este  man  estado  era  taato 
mais  deplorável,  qaanto  nos  tres  reinados  anteriores  ao 
de  Filippe  II  tinham  sobresaído  varões  insignes  e  escri- 
ptores elogiados  peio  mereciuieuto  e  pela  utilidade  de  seus 
livre».  No  seoiiio  de  £>.  Manuel  e  ée  1>.  Joio  Ul,  alem  d» 

I  Historia  da  PJrilosojihia  cm  Portugal ,  pdo  sr.  J.  J.  Lopes  Pim- 
ça.  Coimbra,  ISíiH,  p, nod.  ii,  secç.  i,  pa^.  110  a  #18. a  1>22  c 
122  a  i2'i., —  r>.s  Commentarios  do  CoHe(jio  de  Coimbra,  o/preciadoê 
por  Barthélemy  de  Saint- Hilaire,  pag.  124  a  *>  scuç.  m,  oap.  nr. 
Quem  dfsejar  colher  sobre  o  estudo  e  progressos  (k  philosophia  em 
Portugal  noções  claras  e  exactas  deve  consultar  a  obra  do-síi  Lo- 
pes Praça,  aoiule  ('iiLOUtitii'^  colligidas  as  noUcia^  esseiiciaes,  &  es-», 
poeta  com  graiide  clareza  e  solida  enubçiit). a  hinterin  di». desiovol^i 
vimento  d'esta  sciencia  entre 


I 


266  mSTOBIÂ  DB  POST06AL 

sdencias  famoso  Amotus  Lmiamis  (João  Hodrigaes  de  CasteUo 
Branco),  excellente  clínico»  orai  versado  no  estado  de 
Galeno  e  dos  aoctores  árabes^,  haviam  honrado  a  scien- 

cia  com  seus  trabalhos  Antonio  Reinoso,  grande  sabodur 
das  línguas  árabe  e  gi  ega  ^,  Abraham  Nehemias  ^  Tho- 
más  Rodrigues  da  Veiga,  physico  distincto  Diogo  Ro- 
drigaes  Zacato^  Diogo  da  SiivaS  Antonio  Luiz^  João 

1  Antttos  eompoz:  -^^M^anoto  tu  pncr»  dmi  Duueond»  ie 
maUritt  meãiea  Itiroi,  In  IHincoridem  AMOzarbenm  amrnmtatío, 
Curatíomm  nuOeniaHim  cenHarue  sepUm,  Anuitns  Yiajou  muito 
peia  Balia,  eia  consultado  pelo  papa  Julio  III,  e  foi  perse^do  por 
Paulo  IV  como  judeu  de  origem  e  de  erauça.  Grande  pratioo>  po* 
rém  mnHo  Yaidoeo,  eala  em  enw  que  nflo  quis  confessar.  Foi  o 
piimeiío  que  empregou  as  vélaa  nas  doeoças  da  uretra,  e  attribuiu- 
se  também  a  primeira  mençio  das  Talvulaa  das  veias,  descobri- 
mento reiyindicado  por  J.  B.  Ganano,  seu  discípulo,  em  um  livro 
publicado  em  1643.  Yeja-se  Haller,  BiUMuea  Medica  ê  BiUiotheca 
Cirurgicaj  tom.  a,  pag.  28,  e  Bibliotheea  Boiamea,  tom.  i,  pag.  S61. 

^  Antonio  Bninnso,  citado  pela  suaemdiçSo  beUenica  e  árabe  no 
reinado  de  D.  João  III,  escreveu  um  2Witado  Sohre  as  Feòret  (Tro' 
eUUus  de  febribusj. 

3  Abraham  Nehemias  compoz  antes  de  159i  o  seu  livro  intitu- 
lado Mpthodm  Medendi  per  tangumU  missionem. 

*  Thomás  Rodrigues  daVeiga,  conhecido  nos  tempos  de  D.  Joáo  III 
e  de  D.  SebastíAO,doequae8  fõm  physico  mór,  e  lente  de  medicina 
da  universidade,  escreveu  unscomnientarios  sobre  as  obras  de  Galeno 
e  de  Hypocrales,  estampados  em  1578,  1586  c  1594,  e  outro  livro  . 
que  denominou  Pratica  Medica  comum  tratado  tobre Fontes  e  Cau- 
terios. 

^  Diogo  Rodrigues  Zacuto  deixou  manuscripta  uma  obra  sobre  o 
Clima  e  Sitio  de  Portugal. 

«  Diogo  da  Silva  escreveu  commentarios  sobre  os  Elementos  de 
Hipócrates  em  1548. 

7  Antonio  Luiz,  lente  de  medicina  na  universidade  de  Coimbra, 
compoz  diversas  obras,  esclarecendo  e  conimentando  as  de  Galeno, 
o  tratado  De  Occultis  Proprietat^us,  a  obra  De  Empúricit,  e  diver- 
sos outros  trabalhos. 


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DOS  SÉCULOS  XVII  R  XVIII 


Valverde*,  Garcia  Lopes ^,  Francisco  Frazão ^  Affonso 
de  Miranda^  e  Francisco  da  Silva  Oliveira ^  abrangendo 
em  seus  tratados  a  theoría  e  a  pratica»  e  alguns  d^elles» 
como  Âutonio  Luiz,  na  obra  De  OccuUis  ProprieUUibus» 
rastreando  aiei  da  attracção  universal,  ou,  como  Antonio 
Frazão,  descrevendo  com  penna  exercitada  os  symptomas 
e  o  tratamento  da  peste  de  1569.  Mas  se  este  período  flo- 
recente  foi  logo  seguido  de  declinação,  deve  imputar-se 
a  causa  ao  errado  systema  seguido  na  academia,  á  obsti- 
nação com  que,  cerrando  os  olhos  á  luz^  ella  repellia  os 
progressos,  e  á  omissão  quasi  completa  dos  conhecimen- 
tos subsidiários,  apontados  apenas  ou  postos  de  lado  in- 
teiramente. 

Até  ao  XT  século,  em  que  principiou  com  a  renascença 
o  cyclo,  com  rasão  denominado  erudito,  os  estados  médi- 
cos seguiram  quasi  exclusivamente  a  auctorídade  dos 

auctores  árabes,  que,  salvando  os  livi  os  gi  egos  de  total 
ruina,  abraçaram  com  ardor  o  svstema  de  Galeno,  mas 
enredado  das  subtilezas  próprias  da  philosophia  peri- 
pathetíca,  de  que  eram  sectários.  As  escolas  de  Cordova 
e  de  Toledo  foram  tidas  como  omulos,  e  d'el]as  se  es- 
tendeu aquella  doutrina  a  todos  os  paizes  da  Europa 

*  Jo5o  Valverde  publicou  em  1556  a  s\n  Historia  da  Composição 
do  Corpo  Humano,  e  em  1552  ura  tratado  De  Auimi  et  Corporis  Sa- 
nitale  Tuenda. 

2  Garcia  Lopes  escreveu  os  seus  commentarios  de  Galeno,  Com- 
merU.  in  lib.  Galen.  de  Parvo  Pilce  Exercitio. 

'  Francisco  Frazão  compoz  um  Tratado  da  Peste  que  infcciowm 
IMoa  m  1869. 

4  Aflbuío  de  Hiianda,  contador  do  rano  e  casa  leal,  ddxou  m* 
presso  em        o  sen  Dialogo  da  Perfeição  do  Bom  Meàieo, 

^  Francisco  da  Silva  e  OlÍTCira  escreren  o  seu  discnno  sobre  a 

Cvramn  de  Carbunetdot  Contagiosos,  estampado  em  iSfíd, 
tom  T  17 


28i  mSTOiULà  0K  PORTUGAL 

scmau  desde  o  século  xi,  principaliiniite  á  França  e  á  Itália.  A 
applica^^o  dos  proíéssores  reduzia-se  6m  gerai  a  consul- 
tarem os  mestres»  traduzindo,  compilando,  commeatando 
e  imitando  os  seus  escrlptos,  e  com  particularidade  os  de 
Avicena  (ibn-Sina)  e  os  de  Averroes  (Ibn-Roschd),  cujo 
tratado  Kitab  el  Kuiiyyat  (Livro  de  tudo)  comprehendia 
em  sete  livros  a  anatomia,  a  saúde,  as  doenças,  os  signaes 
da  saiidd  e  das  moléstias,  os  alimentos  e  os  remédios,  o 
regimen  e  o  tratamento  das  enfermidades  ^  O  estudo 
mais  acurado  das  línguas  hellenica  e  latina  e  a  interpreta* 
ção  dos  maiiuscriptos  dos  inedii gregos,  depois  vulga- 
risados  pela  imprensa,  mudaram  a  direcção  e  o  aspecto 
da  instracçâo.  A  escola  hypocratica,  defendida  por  Bris- 
sot,  demoliu  o  conceito  dos  árabes.  A  diseusslo  travada 
em  Portugal  eutre  o  sábio  fraiicez  e  o  physico  mór  Dio- 
nysio  espei  lou  a  curiosidade  de  ouvir  explicar  Aristóte- 
les, Galeno  e  Hypocrates  nas  suas  fontes,  e  D.  ioâo  UI 
satitfez  os  desejos  dos  enidilos.  Posta  em  vigor  a  sua  re- 
forma, Henrique  Cuellar,  Antonio  Reinoso,  Thomás  Ro- 
drigues da  Veiga  e  Antonio  Luiz,  como  notámos,  grau- 
gearani  merecidos  applan^ds,  nm  se  disLiiiguindo  menos 
na  cadeira  de  anatomia  e  cirui  gja  AHonso  Rodrigues  de 
Guevara,  auctor  do  tratado  De  Be  Anatómica^  impresso 
em  Coimbra  em  1592,  e  nas  de  medicina  Antonio  Rarl>o- 
sa,  Luiz  Nanes  e  Francisco  Franco,  que  escreveu  um  li- 
V]'o  sobre  as  Moléstias  Contagiosas,  e  outro  Sobre  o  Uso 
da  Neve  no  tratamento  (ie  algumas  doenças,  dado  á  luz 
em  Sevilha  em  1569 

1  Hemi  Hallain,  HiUoria  da  líUeraiiiira  da  Evmpa  noã  $tmkm 
XVI 9  XVII,  tom.  I,  cap.  u,  parL  v. — Renouaid,  BMire  ds  la  Mê- 
dedne  depms  ton  origine  Jíuqii^au  zbl  tUde.  Paris,  1846,  tom.  i. 

^  Compandih  Bitioriea,  pwt  d,  eap.  in. — Rmouard,  Bâioíre  de 
la  Mideeiu,  tom*  if,  panoiL  vn. 


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DOS  SÉCULOS  Xm  E  XTIO  S09 

Murcharam,  porém,  e  rapidamente,  estas  felizes  es- scieott»» 
tráag.  I^os  ííds  do  século  xva  já  restava  pouco  d  aquella 
idade  anrea  t3o  curta.  Na  primeira  metade  do  xm  aca- 
bou de  eclípsaiHie  de  todo.  Os  eatatutos  de  1597,  appa* 
rentando  facilitar  as  habilitações  medicas,  limitaram  os 
preparatórios  aos  exames  da  lingua  latina  e  da  pliiloso- 
pbia.  A  physica  de  Aristóteles,  lida  no  idioma  originai 
por  um  babil  professor  nos  dias  de  D.  João  JU,  passou  a 
ser  interpretada  por  mestres,  que  tropeçavam  com  o  sen* 
tido,  e  que  buscavam  de  propósito  questões  ociosas  para 
alardeai  tim  agudeza  polemica.  A  cíiiiíiica  ainda  se  não  le- 
vantara do  berço,  e  a  ruidosa  luta  de  Paracelso  eootra 
Aristóteles,  Galeno,  e  Avicena  nio  tinha  produzido,  nem 
podia  produzir  outro  efieito  nos  sectários  dos  tres  aucto- 
res,  senão  coníinna-los  na  admiração  tradicional.  Da  bo-  . 
tanica  pouco  mais  se  alcançava  então,  do  que  as  noções 
superliciaes,  ai)plicaveis  á  matéria  medica,  e  colligidas 
das  obras  de  Galeno,  Hypocrates  e  Dioscórides»  e  addi«> 
tadas  pelos  árabes  com  a  descrípçlo  de  algumas  plantas 
orientaes.  Os  Colloquios  de  Garcia  de  Orta  sobre  m  Sim- 
ples e  Cumas  Medicinaes  da  índia,  estampados  mi 
e  a  Tratado  de  las  Drogas  Medicimki  de  las  índias  Orien- 
UU$$  de  CbristovSo  da  Costa,  impresso  em  Iõ78,  assim 
como  outras  obras,  que  inculcavam  melhoramento,  lâo 
entiavani  nas  escolas,  excluídas  pelo  preceito,  que  orde- 
nava ao  lente  de  prima,  que  no  sexto  anno  explicasse  os 
livros  dos  simplices  de  Galeno,  e  fizesse  resumida  decla- 
ração d'elle$t^ 

No  estudo  da  anatomia  seguiam-se  os  livros  de  Galeno 
De  Usu  Partium^  e  não  os  auctores  modernos,  que  mais 

>  Cãmpmdiâ  IHtiorieo,  paft    cap.  n^BflDoaitd,  Huloirê  é$ 
la  Médeente,  tom.  u,  period.  vn. 

17. 


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260 


UlSTOhlA  DE  PORTUGAL 


profundo  conhecimento  haviam  demonstrado  d'ella.  Os 
passos,  que  a  sciencia  adiantai  ;!  no  xiv  século  com  oses- 
criptos  de  Yesale,  Faiiepes  Hondelet»  Eustache»  Colum- 
bus  e  FabriciOy  e  os  qae  assipalaram  no  xvn  os  nomes 
mais  celebres»  era  como  se  não  existissem.  As  dissecções 
limitadas  a  seis  lições  praticas  de  membros  partícalares, 
e  a  tres  lições  geraes,  ínsuflQcientes,  alem  de  mais  do  que 
superâciaes,  quasí  que  serviam  só  para  augmentar  a  re- 
tribuição dos  professores.  Nas  outras  aulas  lia-se»  como 
dissemos,  pelos  tratados  de  Galeno,  Hypocrates,  Aver- 
roes,  e  Avicena,  passando-se  de  uns  para  outros  com 
grande  confusão,  ouviíido  alguns  estudantes  no  principio 
a  explicação,  que  ihes  aproveitaria  no  meio,  ou  no  fim  * 
do  curso»  e  correndo  o  ensino  sem  ordem,  sem  nexo  e 
sem  dedução.  Estes  aprendiam,  por  exemplo,  os  Apho- 
rimos  de  Hypocrates  no  terceiro  anno,  e  aquelles  no 
quinto!  Na  exposição  e  escolha  da^  matérias  n  inava  a 
mesma  anarchia  K  A  doutiina  hypocratica,  sem  respeito 
pela  differença  dos  systemas,  enredava-se  com  as  noções 
derivadas  áã&  obras  de  Galeno  e  dos  auctores  árabes. 
O  methodo  escolástico,  dictado  pela  lei  académica  aos 
mestres  e  aos  discípulos,  repellindo  a  critica  dos  textos, 
e  substituindo-a  por  disputas,  argumentos  e  distincções 
inúteis,  formava  médicos  incapazes,  mais  funestos  pela 
meia  ignorância,  do  que  os  próprios  empíricos,  de  que 
zombavam.  Rastejando  os  vestígios  da  escola  árabe  já  pro- 
scripta,  desprezando  a  anatomia  e  as  sciencias  accesso- 

1  Haller,  Commentario  ao  Methodo  do  Estudo  M^diieo  de  Boerhave, 
tom.  I.— Portal,  UiMtmia  de  AnaUmiiia  do  Steulo  xvj.— Estatutos  da 
Vnwertidade,  liv.  m,  tit  v,  eap.  n. — RemNuurd,  Hittoirê  de  la  Méde- 
eme,  tom.  v,  liv.  m,  cap.  n,  períod.  vn,  e  lly.  in,  period.  viu, 
eap.  I. 


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t 


nos  s£GULOS  xvn  c  ivni  261 

rias,  e  perdendo  o  tempo  lectivo  na  escripta  impertinente  sdend** 
de  pedantescas  apostillas,  a  academia  de  medicina  de 
Goiõibra  s6  parecia  acordar  da  tristeza  na  occasiHo  dos 
exames  para  ver  transformados  os  actos  solemnes  em 
scenas  quasi  de  circo  no  meio  dos  clamores  dos  arguen* 
tes  e  defendentes,  e  da  cliolera  do  presidente.  Voavam 
então  as  citações,  cruza vam-se  os  brados  e  os  ditos  pi- 
cantes, 6  o  estudante  saía  contiiso,  mas  approvado,  d'esta 
luta  sempre  concorrida  pelos  alamnos  das  outras  facul- 
dades^. 

Na  instnicção,  que  hoje  denominámos  Secundaria, 
também  a  obsrui  idade  se  tornara  visivel.  Quando  Nicolau 
Cleonard  veiu  a  Portugal  entrou  em  Coimbra  na  epoclia 
das  ferias.  Ainda,  porém,  as  aulas  de  grego  estavam  aber- 
tas, e  o  douto  professor  estrangeiro»  escrevendo  a  Vasco, 
encareceu  a  mestria,  com  que  ouvira  Vicente  Fabricio  ver- 
ter em  latim  os  trechos  mais  dífficeis,  pronundando-os, 
e  entendendo-os  como  verdadeiro  atiieuiense.  N'este  pe- 
riodo  as  letras  latinas  eram  cultivadas  com  o  esmero,  que 
attestam  as  paginas  elegantes  de  Osorio  e  de  Teive,  e  a 
fama  de  Rezende,  Caiado,  £staço,  e  outros.  Até  as  damas 
.  se  gloriavam  de  versadas  na  língua  de  Cicero  e  de  Sallus- 
tio.  A  infanta  D.  Maria,  íilba  deEl-RelD.  Manuel,  as  duas 
irmãs  castelhanas  Angela  e  Luiza  Sigea,  a  filha  do  mar- 
quez  de  Villa  Real  D.  Leonor,  Joanna  Vaz,  dama  da  rai- 
nha D.  Catbarina,  D.  Helena  da  Silva,  religiosa  de  Cellas, 
Publia  Hortência  de  Castro,  e  Paula  Vicente  pela  sua  eru- 
dição, e  pelos  seus  conhecimentos  nas  letras  divinas  e 
humanas  podiam  compor  uma  academia  digna  de  elogio. 
Se  a  infanta  D.  Maria,  escrevia  a  sua  mãe  com  perfeição 
invejável  uma  carta,  que  obteve  merecidos  louvores  pos- 

t  Compendio  Bittorieo,  parL  n,  liv.  m. 


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S61 


HISIORU  D£  PORTUGAL 


sohwiMthumos,  Paula  Vicente,  lida  nas  linguas  ingleza  e  hollan- 
deza,  passa  por  ter  sido  a  mnsa  de  sou  pa»*  nas  coiíc»-pções 
'  dramáticas^  e  Pubiia  Uortaocia,  defendendo  conclusões 
publicas  em  Évora  aos  dezesete  annos^  espantava  André 
de  Rezende,  admirado  de  tanto  aaber  e  promptidão  em 
idade  tio  verde  ^ 

A  companhia  de  Jesus,  assenhoreando-se  do  coUegio 
das  artes,  teve  a  infelicidade,  não  sn,  de  não  elevar,  mas 
de  abater  muito  os  estudos.  O  ensino  da  língua  grega 
decaiu  em  suas  aulas  sem  ouvintes.  O  da  latina,  sujeito 
a  longos  tirocímos,  e  desamparado  dos  rudimentos  da 
grammatica  materna,  cansava  a  memoria  e  a  paciência 
com  a  repetição  dos  jjreceitos,  excepções  e  escólios  da 
arte  dillusa  do  padi^e  ^íanuel  Alvares.  A  íacilidafle  dos 
exames  rematou  este  péssimo  systema,  abrindo  o  accesso 
das  faculdades  juhâicas  a  almnnos,  que  não  estavam  em 
estado  de  interpretarem  os  auctores  com  quem  haviam 
de  tratar  quotidianamente.  Faltavam-lhes  as  noções  his- 
tóricas essenciaes,  e  as  criticas,  suffocadas  pelas  formas 
adoptadas  na  explicação  dos  princípios  da  lógica,  ainda 
era  peior  do  que  se  lhes  faltasse.  Por  ultimo  as  re- 
gras de  eloquência  professadas  em  lições,  viciadas  pela 
corrupção  do  gosto,  nem  propunham  o  exemí)lo  dos  bons 
modelos,  nem  se  acompanhavam  do  conhecimento  e  an»- 
lyse  das  litteraturas  antigas  e  da  patna^. 

Do  que  temos  exposto  deprehende-se  com  sutíiciente 
clareza,  que  tanto  nas  sôencias,  como  nas  letras,  os  pro- 
gressos ulo  excederam  a  piímeira  metade  do  reinado  de 

1  Fr.  IGguel  Pacheco,  Vida  da  Infanta  D,  Maria,  liv.  n,^.  n, 
carta  estampada  na  obra  De  Anlf 9iitfalt&M  LmtaniiB,  de  Rezende,  e 
eacnpta  ao  hespanhol  Frods  e  Albemoz. 

2  Qmpmiia  Hittorim,  parL  u,  cap.  it 


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I 


DOS  SÉCULOS  Xfn  B  Xm  Í63 

D.  Joio  III|  e  que  o  de  D.  SebastiSo  refleetia  apenas  gtMmm 
luz  do  corto  período,  em  qae  tinham  prosperado.  As  j^,, 

causas,  que  apontámos  concisamente,  explicando  a  decli- 
nação, produziram  em  toda  a  parte  effeitos  análogos.  Cor- 
tada a  veia  nativa  da  poesia  nacional,  que  principiára  a 
brotar»  pela  invasão  das  imitações  clássicas,  estas  pre- 
valeceram, e  em  todas  as  manifestasses  canharam  os  seus 
modelos.  Nada  lhes  resistiu.  Os  poetas  e  os  prosadores, 
abdicando  a  iniciativa  origiiial,  iui\aí  im  a  inspiração  a 
siijeitru-sn  a  typos  convencionaes,  e  os  engenhos  mais  al- 
tos limitaram-se  a  enaobrece-los,  variando  um  poucu  as 
tintas,  ou  apurando  mais  os  tragos.  Na  poesia  dramática, 
na  épica,  na  bucólica,  na  lyríca,  na  etoquenda,  no  género 
histórico,  ou  no  epistolar,  o  theatro  grego  e  romano,  Ho- 
mero e  Virgilio,  Theocrito,  Horácio,  Quiníiliauo,  Livio,  e 
Cicero,  dictavam  excliisivnmerile  as  regras,  e  os  aiiclures 
modernos,  pautando  por  elles  as  obras,  gloriavam-se 
da  escravidão  voluntária  como  se  houvessem  descoiíerto 
e  lavrado  novas  minas.  Insinuou-^e  depois  a  corrupção 
do  estylo  e  da  forma  com  a  predilecção  pelas  locuções 
hyperbolicas,  pelos  equívocos  e  conceitos,  pelas  anti- 
theses  forçadas  e  os  trocadilhos,  e  as  musas  rodearam 
por  mais  de  um  século  o  tbrono  de  ouropel  d  esta  ver- 
gonhosa decadência  sagrada  e  applaudidapela  aberração 
de  todos  os  preceitos  do  gosto. 

A  poesia  lyrica,  eíisaiad.i  pelos  trovadores  portLi^ait^zos, 
scíriiiu  primeiro  os  passos  da  Ilesf)nTilia,  e  dejiois  os  da 
ibrauça,  como  provam  os  CaDCioueiros.  O  de  Roma,  in- 
cluindo versos  dos  cavalleiros  mais  iUustres  do  reinado 
de  Affonso  III,  mostra,  que  no  remanso  das  armas  aquel- 
les  homens  rudes  distrahiam  os  ócios  dos  solares  com  en- 
deixas,  mais  ou  menos  sentid.is,  mas  afinadas  em  geral  cm 
um  tom  monótono  e  rude,  como  a  imgua  em  que  se  canta- 


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m 


HISTOBIA  DB  PORTUOAL 


setencias  Yam.  Os  Gaocíoneiros  attribuidos  a  D.  Dioiz  e  ao  conde  de 
B^rcellos  não  destacam  d'esta  cansada  uniformidade,  e 
repetem,  ferindo  sómenCe  uma  ou  duas  cordas,  os  mesmos 

suspiros  e  as  mesmas  queixas.  A  inveiirão  não  enriquece 
a  forma,  e  as  idéas  raras  vezes  transceiídeiu  o  estreito 
circulo  de  paixões  e  de  sentimentos  amorosos,  que  for- 
màvam  os  themas  usuaes  dos  metros.  No  Cancioneiro  de 
Rezende  os  borísontes  rasgam-se  mais  largos,  e  já  appare- 
ce  maior  variedade  de  cores,  de  pensamentos  e  de  assum- 
ptos. Esta  pobreza  relativa  nâo  deve  admirar-nos.  Os  livros 
no  século  xv  ainda  eram  tâo  raros,  que  o  padi  e  lieurique 
Bulla  em  França,  doando  um  breviário  á  igreja  de  S.  Thia- 
go  da  Bottcherie,  legou  ao  sacrístSo  quarenta  soldos  de 
renda  para  uma  caixa,  aonde  se  guardasse,  e  que  em  1 448 
em  Portugal  o  bispo  D.  Diogo  Affonso,  testando  avultados 
bens  para  a  fundarão  de  um  collegio,  mandou  conservar 
os  livros  seguros  por  cadeias. 

Na  epocha  de  D.  João  I,  em  que  o  paiz  como  que  re- 
surgiu  do  meio  das  ruinas  das  discórdias  civis  e  da  guer- 
ra estrangeira,  renovado  e  retemperado  de  forças,  de 
brios  e  de  aspiraç4)es,  a  cultura  intellectnal  alargou  mais 
as  conquistas,  e  o  movimento  litterario  da  Europa,  pas- 
sando as  fronteiras,  achou  os  caminhos  desotistniidos 
para  se  adiantar.  A  rainlia  D.  Filippa,  o  mestre  de  Aviz 
e  os  príncipes  deram  o  exemplo.  Os  mancebos  da  côrte, 
vendo  as  letras  estimadas,  voltaram-separa  ellas,  cultivan- 
do-as  com  tanto  ardor,  que  as  fizeram  florescer  em  pou- 
cos annos.  D.  Henrii  jue  applicou-se  ás  sciencias  exactas,  e 
creou  uma  escola  de  pilotos  e  de  navegadores.  D.  Duarte 
e  D.  Pedro,  não  menos  distinctos  nas  sciencias  moi  aes, 
foram  dos  mais  doutos  bomens  do  sen  tempo.  Do  im- 
pulso dado  pelos  tres  infantes,  que  as  circumstancias  po- 
liticas do  paiz  e  os  progressos  das  outras  nações  auxi- 


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DOS  SÉCULOS  XYI^  E  IVIU  S65 

liaram  muito,  nasceu  o  desenvolvimento,  qae  preparou  o  sdimias 

grande  século  de  D.  Manuel*. 

Consultando  as  obras  dos  auctores  do  século  xv  em 
Portugal  pôde  apreciar-se  com  facilidade  o  grau  e  a  ex- 
tensão dos  seus  conhecimentos.  A  lista  dos  livros  de 
el-rei  D.  Duarte  causa  certo  espanto  pela  variedade, 
tanto  das  olu  as  latinas,  como  dos  escriptos  nas  linguas 
vulgares,  e  entre  ellas  nas  castelhana  e  nacional.  Marco 
Paulo  já  corna  traduzido,  e  é  citado  com  frequência. 
Os  cadernos  das  villas  e  cidades  do  reino,  que  existiam 
na  livraria  real,  parece  inculcarem  um  esboço,  embora 
iiiluime,  (ie  estalislica.  O  tratado  intitulado,  da  Còi^te 
Imperial,  demonstra,  que  se  discutiam  no  idioma  pátrio 
as  árduas  questões  de  theoiogia  polemica.  Diogo  Monso 
Manga  Ancha,  Fr.  Gil  Lobo,  os  dominicanos  Fr.  Rodrigo, 
Fr.  Fernando  Arrotea,  e  outros  oradores  sagrados  pré- 
gavam  com  eloquência,  e  a  escola  juridica  introduzida  por 
João  das  Regras,  instruía  e  elevava  o  ensino,  os  homens, 
que  honraram  o  governo  do  mestre  de  Aviz  e  o  dos  seus 
successores.  El-rei  D.  Duarte  aponta  entre  outras  obras  o 
Reffimento  dos  Prineipes,  o  lAwo  chamado  dê  Martim 
PireSj  o  Tratado  da  Caça  de  1).  João  1,  o  de  Bem  Ad- 
ministrar as  Rendas  do  Estado,  o  Conselho  de  Fr,  Gil 
LobOy  ura  Tratado  de  Idiologia,  o  Livro  da  Amisade 
de  Joio  Linbano,  o  Pomar  das  Viriudes  de  Fr.  André 
da  Paz,  as  Obras  de  Santo  Tfiomás  de  Aquino,  as  de 

1  Consultoni-so  sobre  a  historia  tia  litteratura  portugiieza  as  obras 
estrangeiras  de  Bouterweck,  Sisnioiidi  de  Sismondi,  e  Ferdinand  Di- 
niz, o  Primeiro  Ensaio  sobre  a  Historia  Litteraria  de  Portugal  por 
Frnnciscij  Freire  de  Carvalho;  o  Curso  de  Litteratura  Nacional áo 
^r  Caetano  Fernandes  Pinheiro;  o  Bosquejo  da  Historia  da  poesia 
e  da  litteratura  portugiieza  por  Almeida  Gaorett,  e  o  sr.  Herculano 
em  YarioB  artigos  no  jornal  o  Panorama, 


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206 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


9anto  Agostinho,  de  8.  Bernardo,  de  S«  loão  GUmaeo,  e 

de  Santo  Izidoro  de  Sevilha,  e  a  Vita  Christi  do  padre 
Ludulii)  Ortuziono,  alem  de  ouLi  us  auclui  es.  O  erudito 
príncipe  lera  os  livros  de  Cicero,  de  Séneca,  de  Platão,  de 
Aristóteles,  e  cita  dos  modernos  Boécio,  Fr.  Gil  de  Roma, 
o  celebre  eneyclopedista  Vicente  de  Beauvais,  Raímnndo 

LuHo,  Affonso  Sabio,  Hugo  de  São  Victor,  e  diversos*. 
Gomes  Eaniies  de  Azuraia  na  Chronica  do  J)e<^rotrh 
metUo  ê  Conquista  de  Guiné,  a  par  da  biblia  mostr  a  ter 
versado  os  escriptos  de  S.  Jeronymo,  de  S.  João  Ghrl- 
sòstomo,  e  de  S.  Tbomás  de  Aquino,  e  os  de  Heródoto, 
Hesiodo,  Homero  e  Aristóteles,  não  sendo  menos  copiosa 
a  sua  i  i  udição  latina  nas  referencias  de  Cesar,  TitoLivio, 
Sallustio,  Valério  Máximo,  Lucano,  Ptolomeu,  Ovidio,  Ve- 
geeío^  e  dos  dois  Senecas.  Nos  auctores  da  meia  idade, 
Dio  era  menos  lido,  alludindo  a  trechos  e  opini5es  de 
Isidoro  de  Sevilha,  de  Marco  Paulo,  de  Scotto,  e  de  Pedro 
de  Ailly,  assim  como  revela  grande  familiaridade  com  as 
cbroaicas  e  historias  e  até  com  as  Dovellas  de  cavallaria 
francezas,  italianas,  allemãs  e  hespaoholas^^ 

Quando  os  soberanos  prezavam  assnn  as  letras,  e 
quando  os  seus  cultores  podiam  soccorrer-se  a  subsídios 
tão  valiosos,  não  era  jiara  admirar,  que  homens  eminentes 
se  distinguissem  em  vários  géneros,  e  que  certa  actividade 
intellectual,  transcendendo  os  limites  dos  claustros,  ainda 
então  quasí  os  exclusivos  depositários  dasciencia,  viesse 
animar  nas  outras  classes  o  amor  do  estudo.  A  caila  de 

1  V^'ja-so  o  Led  Conselheiro  composto  entre  os  annos  de  1428  e 
4i38  porEi-Hei  D.  Duarte,  talvez  apriiueira  obra  politica  composta 
na  iiiigua  portuffueza.  Paris,  1842. 

2  Azurara,  Chronica  do  Dp^imhrimentne  Copqnista  âe  Guiné,  pu- 
blicada pelo  sr.  visconde  da  (^;in 'i?  a,  e  precedida  dc  uma  introduc- 
çào  pelo  íailccido  viscoude  de  Santarém. 


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DOS  SÉCULOS  XYU  £  XflU 


167 


Affonso  V  a  Gomes  Eânnes  de  Azurara,  e  a  de  D.  João  II  scMm 

a  Policiano  são  monumentos  preciosos  para  a  historia  lit- 
teraria,  porque  attestam  a  importância  concedida  á  penna 
d'aquelles  escriptores,  e  o  desejo  ard^e  que  tinham  os 
dois  piiDcipes  de  yerem  perpetuadas  as  memorias  glorio* 
sas  do  sea  tempo  e  do  anterior.  Ao  passo  que  o  respeito 
do  nome  portugiiez  se  dilatava  pehis  regiões  novamente 
descobertas,  e  que  iiavtgadores  audaciosos  iam  assen- 
tando cada  vez  mais  longe  os  padrões  da  via  marítima^ 
que  nos  patenteou  as  portas  do  oriente^  Fernão  Lopes  oas 
suas  chronicas  de  el-rei  D.  Pedro,  D.  Fernando,  e  D*  JoSo  I, 
retratava  do  natural  as  epochas  e  as  fignras,  e  unindo  á  sin- 
geleza (lo  pincel  uma  interpretação  admirável  dos  caracte- 
res e  dasscenas  lii>loricas,  excedia  Froissard,  fundindo  a 
effigie  do  passado  a  cuja  grande  voz  o  futuro  acudiu  em 
breye  com  os  prodígios  das  epopeias  africana  e  oriental. 
Gomes  E^es  de  Azurara^  apesar  dos  defeitos  qne  Da- 
miSo  de  Goes  lhe  noton,  descreve  coro  viveza  os  confiictos 
com  os  mouros  alem  do  estreito,  e  as  proezas  dos  capi- 
tães, (pie  immortalisaram  os  inunjs  de  (^euta.  Mas  a  aífe- 
cUçâo  e  a  vaidade  de  erudito  e  de  rhetorico  desfeiam  mui- 
tas vezes  os  seus  quadros,  e  na  pintura  dos  vultos  históricos 
e  dos  costumes  fica  assás  distante  de  Fernão  Lopes. 

As  idéas  de  honra,  de  esforço,  e  de  amor,  que  tanto 
I)reoc(mparam  a  meia  idade,  reproduziram-se  nas  institui- 
ções e  em  todas  as  formas  soclaes.  O  sentimento  religioso 
manifestou-se  nas  cruzadas  e  nas  guerras  de  seitas.  As 
justas,  os  torneios  e  as  caçadas  pomposas  lisonjeavam  as 
paíxQes  guerreiras.  Romances,  mais  longos  do  que  os  so- 
laus,  e  as  cantigas  das  trovadores,  assim  como  os  poemas 
e  as  novellas  de  cavallaria,  expressavam  os  aíTectos  mais 
vivos,  doiíados  pelo  maravilhoso.  As  leis  franqueavam  a 
liça  aos  combates  judiciários,  e  as  damas  appkudiam  os 


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968 


UISTOBIA  DE  POHTUGÀL 


SfltatóM  campeões  felizes.  Os  serões  dus  paços  e  das  casas  nobres 
enlrtítinliaiii-se  ouvindo  exaltar  as  armas  e  a  ternura.  As 
habitações  eram  fortalezas  cercadas  de  ameias,  os  ador- 
nos das  salas  corpos  de  aço,  lanças  e  montantes.  As  don- 
zellas  lavravam  nos  pannos,  que  vestiam  as  paredes,  os 
episódios  hellicosos  da  sua  epocha  ou  das  antigas.  Eru 
Portugal  o  período,  em  que  o  espirito  cavalleiroso  se  os- 
tentou em  toda  a  sua  plenitude,  foi  de  certo  o  decorrido 
desde  o  reinado  de  D.  Fernando  até  ao  de  AiSooso  V. 
Alvaro  Vaz  de  Almada  fechoa  este  cyclo  de  qnasi  um  sé- 
culo. A  ficção  dos  doze  de  Inglatri  ra,  as  alas  da  madre- 
siha  e  dos  namorados  em  Aljuban  ota,  e  os  votos  deno- 
dados representam  as  aspirações  e  os  brios  da  geração, 
qne  cingiu  a  coròa  sobre  o  elmo  do  mestre  de  Aviz.  O 
romance  de  « Amadiz»  de  Gaula  resume  a  expressão  poé- 
tica de  suas  tendências  e  esperanças,  e  Vasco  de  Loheira, 
se  foi  mais  do  (|ue  ii  aduclor  ou  imitador  d'aqueUas  aven- 
turas, pôde  dizer-se  o  Homero  d  este  periodo  notável,  O 
«  Amadiz»,  primeira  e  principal  novelia  do  extensíssimo  ca- 
talogo dos  contos  de  cavallaría,  atravessou  as  idades,  fes-  - 
tejado  pelo  coiiimuiu  dos  leitores,  recatando  para  os 
doutos  e  os  críticos  o  enij^^ma  de  sua  verdadeira  origem  e 
o  segredo  do  seu  verdadeiro  auctor.  O  ultimo  dos  quatro 
livros,  de  que  se  compõe,  alterado  na  versSo  bespanhola, 
comprehende  uma  teia  ímmensa  de  lances  e  de  episódios, 
que  parece  quererem  representar  na  Gaula,  paiz  phantas- 
tico  quasi  tão  grande  como  o  mundo  conhecido  no  tempo 
de  D.  João  I,  as  façanbas  de  Ricardo  Coração  de  Leão^ 

<  De  Vasco  de  Lobeira  sabe-ae  apenas  que  fóra  natural  do  Porto, 
que  se  armára  cavalleiro  antes  de  começar  a  batalha  de  Aljubarro- 
ta, que  vivéra  a  maior  parte  dos  annos  em  Elvas,  e  que  fallecéra  em 
1103.  A  novelia  de  «Amadus»  existia  manuscripta  no  tempo  de 
D.  JoCoY.  Barbosa  deolaia  que  o  original  ainda  estava  na  livraria 


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BOS  SÉCULOS  vm  E  XVIU 


269 


No  secalo  ímmedíato  outros  propósitos  e  perspectivas  scmm 
mais  larps  mudaraDi  quasi  inteiramente  o  modo  de  ser 
e  de  sentir.  Vencida  a  nobreza  na  luta  com  D.  João  11,  e 
tríumpbante  a  unidade  mouarchíca,  a  epocha  de  Augusto 
foi  tomada  para  modelo.  Á  infidlibidade  do  direito  ro- 
mano, proclamada  pelos  jurisconsultos,  respondeu  nas 
instituições  e  nos  costumes  uma  or^anisação  adequada 
ás  Dovas  idéas»  e  as  letras,  sempre  ligadas  por  vínculos 
apertados  com  os  factos  sociaes,  traduziram  em  todas  as 
manifestações  da  arte  este  estado,  filho  de  uma  transirão 
lenta,  mas  constante.  No  fím  do  século  xv  a  revolução 
achaA  a-se  consummada,  e  D.  Manuel,  subindo  ao  tbrono, 
inscrevia  o  nome,  que  um  futuro  próximo  bavia  de  tomar 
grande,  na  face  ainda  nebulosa  do  século  xvi,  que  des- 
pontava. Os  successos  justificaram  o  seu  orgulho.  Vasco 
da  Gama,  realisando  as  esperanças  do  infante  D.  Henri- 
que e  de  D.  João  II,  transferiu  de  Veneza  e  da  Itália  para 
Lisboa  o  empório  do  commercio  oriental.  Pedro  Alvares 
Cabral  descobriu  o  Brazil,  aonde  o  seguinte  reinado,  sem 
o  cuidar,  lançou  depois  com  a  colonlsação  as  bases  de  um 
império  mais  solido  e  mais  rico,  do  que  o  da  Asia.  Uma 
floresta  de  m^sU  os  e  do  antenas  povoou  a  espaçosa  bahia 
do  Tejo,  e  os  mercadores  de  todas  as  nações  disputaram 
os  sorrisos  e  âivores  da  afortunada  capital  do  reino  mais 
invejado  da  Europa  n'aquelle  momento.  Uma  actividade 
incrível  e  quasi  febril  devorou  todas  as  classes.  As  ma- 
ravilbas  da  ludia,  da  Cbma,  do  Japão  e  de  tantas  regiões 

dos  duques  de  Aveiro.  O  terremoto  de  Í7â5  fé-lo  desapparecer,  se 
aeaso  de  feito  era  o  origiiud.  Ab  duas  copias,  que  nos  últimos  tem* 
pos  havia  d'ella,  sumiram-se  igualmente.  O  «Âmadíz»  teve  multas 
versões,  a  castelhana  de  1510»  a  de  Gait^ia  Ordenes  de  Montalvo  de 
1526,  n  frnneeza  de  1540,  acrescentada  por  Nicolau  de  Uerheray»  a 
aUeiu&  de  1583  e  a  italiana  de  Bernardo  Tasso. 


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270 


HISTOBU  DE  POBTUGAL 


8MMd66eobdrtH,  visitadas^  os  avaisalladas  pelas  naas  portn- 
léuu  inflammaram  as  boas  e  as  más  paíxSes,  awaram 

o  desejo  da  emigração,  c  arremessaram  }i(»los  mares,  es- 
quecida (Ia  moi  tc  ('  dos  peiigos,  uma  plebe  de  aventu- 
rairos,  que  tudo  julgava  possivel  e  íacii»  porcjue  a  victo* 
ria  ainda  se  não  cansára  de  coroar  as  empresas  mais 
temerárias^. 

Nenhum  paiz  unia  elementos  tHo  poderosos  de  gran- 
deza. Admii  ado  por  seus  vastos  descobrimentos  maríti- 
mos e  terrestres,  senlioi*  exclusivo  do  trato  mercantil  da 
Ásia,  e  dominando  os  mares  arados  por  suas  quilhas  até 
ás  mais  desviadas  parles,  não  era  para  causar  estranhe^ 
za,  que  o  deslumbramento  de  t9o  raro  espectáculo  exal- 
tasse 08  ânimos,  desvairasse  as  phantasias  e  excitasse 
o  enthusiasmo.  A  superioridaiie  iias  sciencias  mathema- 
ticas  e  nas  theurias  náuticas  datava  dos  tempos  do  infante 
D.  Henrique,  e  as  artes  náuticas  nio  tinham  cessado  da 
se  aperfeiçoar  com  as  arriscadas  viagens  intentadas  de- 
pois. A  reputação  de  Pedro  Nunes  resumiu  os  progressos 
das  gerações  ])recedentes.  Os  conliecimeiitos  geogiaj>lji- 
cos,  ainda  Ião  obscuros  e  duvidosos  no  século  xiv  e  iia 
primcka  metade  do  xv,  deveram  aos  nossos  cosmogra* 
pbos,  prínclpalm^te,  as  luzes  que  lhes  illuminaram  os 
passos.  Mestres  e  escriptores  notáveis,  ensinando  e  com* 
pondo  na  universidade  pátria  e  nasestran^^eiras,  honravnn 
as  sciencias  moraes  cora  as  palmas,  com  a  gloi  ia  [lacifica 
dos  triumphos  académicos,  giuiiiioaiulo  a  nação,  (}uo  a 
ousadia  e  íelicidade  dos  conmiettimentos  tanto  haviam 
levantado  nos  louvores  do  mundo. 

1  Sohre  a  grando  revolução  operada  iia  Europa  pelos  descobri- 
mentos de  Vasco  da  Gariin  t^Diisulte-se  H.  Sclierer,  HisUnrê  du  CúOí- 
mercê  de  Toides  les  NaÚomi  Ion.  u,  i,  «Lo»  Borto^ús». 


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DOS  8IC0LOS  XVII  E  Xmi  17i 

A  penna  dos  chronistas,  emqnanto  se  não  aparava  as«hMtot 
dos  gl  andes  liisloriadui  es,  escrevia  a  narração  dos  acon- 
tecimentos  que  serviram  de  prologo  áqueiles  dias  de 
prosperidade.  Depois  deFeroão  Lopes,  appareeeramGo* 
mes  Eannes,  Ruy  de  Pina»  e  Garcia  de  ReKonde,  posto- 
que  desiguaes  nas  qualidades  essenciaes,  e  traçai  ani  o 
quadro  dos  remados  de  D.  Duarte,  de  D.  Allousa  V  e  de 
João  IP. 

Nas  letras  dois  vultos  se  destacam  á  entrada  do  novo 
período,  como  representantes  das  doas  manifestações 

mais  [lupulares  da  imaginação  meiidit^ial,  Bernardim  Ri- 
beiro e  Gil  Vicente,  o  romance  e  o  theatro.  O  ardor  das 
armas  não  amortece  o  amor  do  estudo.  ú&  exemplos 
emditos  da  Itália  e  da  Hespanha  encontram  entre  nós 
imitadores.  As  obras  dos  auetores  gregos  e  latinos  são 
lidas  e  aduui  iiflas  até  pelos  homens  de  acção.  Os  com- 
mentarios  de  Cesar  e  os  livros  de  Tlmcydidcb  e  de  Poli^ 
bio  dormem  á  cabeceira  de  muitos  capitães  iilustres.  Não 
poucos  dos  conquistadores  da  índia  levam  em  uma  das 
m3o8  a  espada  e  na  outra  a  penna,  como  de  sí  dizia  Ga*- 
mões.  Duai  tc  Pacheco,  o  leão  dos  mares,  compõe  o  Es- 
meraldo, e  D.  João  de  Castro  os  seus  iioíeirus.  As  cai'las 
e  instrucções  de  Alfonso  de  Albuquerque  e  de  D.  Fraor 
cisco  de  Almeida  provam,  que  nenhum  d'elies  era  hos» 
pede  na  lioSo  das  disciplinas  indispensáveis  aos  bons  ge- 
neraes  e  estadistas^. 

1  Gomes  Esnnes,  Chronka  de  El- Hei  D.  Affonso  V. — Duarte  Gal> 
Vjo,  Chronicas. — Ruy  dc  Pina,  Varias  chronicus  dos  reis  éfiPwiU^ 
gul.  —  Garcia  de  Rezende,  Chronka  de  El-liei  D.  Jom  lí. 

*  Esmeraldo  de  Situ  Orhis,  ins.  da  bibliothecade  Évora,  cod. 
Alguns  dos  roteiros  de  D.  João  de  Castro,  como  o  da  primeira 
viigeni  áiadiA«  Q  de  Goas  Dia»  êxiatom  aa.  aa  bibKotfaaea  abo- 
rarae. 


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272  HISTORIA  DE  PORTCGAL 

8dMieiM  A  Jfeuma  e  inopa  de  Bernardim  Ribeiro,  ttiulo  sem 
relato  com  o  assumpto  da  obra,  é  mna  novella,  cuja  fi- 
liação deriva  dos  contos  cavalleirosos,  tão  vulgares  nas 
lltteraturas  franceza,  italiana  e  hesi)anhola  da  epocha, 
sem  poder  competir  com  elles,  porém,  na  viveza  da  ac- 
ção e  no  maravilhoso  dos  episódios.  O  anctor  encobria 
com  anagrammas  os  verdadeiros  nomes  dos  personagens, 
talvez  por  se  referir  a  cortezãos  conhecidos,  e  em  todo  o 
caso  para  esconder  o  segredo  de  seus  amores.  Ousára 
elle,  de  feito,  levantar  os  olhos  para  D.  Beatriz  de  Por- 
tugal, como  aflSrma  a  lenda  geralmente  admittida?  Fal- 
tam as  provas  para  o  attestar.  Mas  o  que  o  livro  logo  re- 
vela na  doçura  dos  sentimentos  e  na  meiga  melancolia, 
que  o  repassa,  é  que  o  coraçSo  do  ain  tui  gemia,  e  que 
mais  de  uma  lagrima  lhe  saltou  dos  oUius  sobre  aquollas 
paginas.  A  dicção  harmoniosa,  a  phrase  por  vezes  bem 
cinzelada,  e  grande  copia  de  conceitos  pittorescos  e 
de  imagens  felizes  tomam  este  romance,  t9o  elogiado, 
mna  das  mais  formosas  obras  de  prosa,  de  que  a  lingua 
portugueza  se  ufana,  ao  passo  que  na  invenção,  embora 
frouxa,  na  perfeição  dos  quadros  campezinos,  e  na  inge- 
*  nuidade  muitas  vezes  maviosa  continua  a  tradição  inter- 
rompida desde  o  Âmadiz,  proftmdamente  modificada, 
comtudo,  em  mnitos  aspectos  K 

Gil  Vicente  reli  ata  uuLr;i  face  da  sociedade  com  pin- 
cel mais  franco  e  traços  menos  delicados.  Filho  dos  fins 
do  terceiro  quartel  do  século  xv,  foi  para  festejar  o  nas- 
amento  do  príncipe  D.  João,  qne  elle  recitou  na  pre- 
sença do  rei  e  da  rainha  o  primeiro  monologo  pastoríl. 
  sua  vocação,  animada  pelos  applausos,  seguiu  depois  a 

1  Bouterweck,  Litteratura  poriugutga  e  he9panhola.-^Gsar^ 
Boiquigo  da  hittoria  da  UUeralura  potingueza. 


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DOS  SJâCULOS  IVII  £  XVIII  373 


carreira  aonde  tantos  primores  lhe  exaltaram  a  superiori-  soioieiM 
dade.  Não  abria  de  certo  o  caminho,  porque  outras  na- 
ções  nos  precederam.  Ê  provável  que  lhe  servissem  de  . 
modeloSs  não  as  éclogas»  oa  dramas  bucólicos  de  João 
de  la  Ensina»  mas  as  peças  sacras  e  profanas  representadas 
em  Paris.  O  que  suas  composições  não  imitaram,  porém, 
porque  se  realçam  com  ellas,  foi  a  fina  pintura  dos  ca- 
racteres e  dos  costumes,  a  graça  do  dialogo,  e  a  origina- 
lidade da  invenção.  Portognezas  no  espirito»  nas  feições 
e  na  linguagem  respiram  por  todos  os  poros  o  ar  pátrio» 
pennitta-se  a  phrase.  Nota-se  em  todas  um  sal  mais  gros- 
so, do  que  attico,  alliisões  a  pessoas  vivas  e  até  presentes, 
que  renovam  a  satyra  directa  de  Aristophanes,  e  o  des- 
prezo mais  do  que  acintoso  das  regras.  £stas  nódoas  des- 
apparecem,  entretanto,  quando  encontrámos  nos  autos, 
farças  e  tra^icuiiieilias,  escripias  com  a  maior  liberdade, 
como  algumas  das  comedias  de  Molière,  a  fiel  expressão 
da  vida  avivada  pela  verdade  das  situações,  pela  combi- 
nado engenhosa  das  scenas»  pela  fluência  do  estylo»  e 
pela  harmonia  da  versificação.  O  theatro  de  Gil  Vicente 
coiisliUie  um  dos  brasões  liUerarios  do  século  xvi.  Não 
liuijrou  só  o  paiz,  grangeou  em  toda  a  parte  o  elogio  dos 
críticos  competentes  ^ 

Francisco  de  Sá  de  Miranda  e  Antonio  Ferreira  são  os 
representantes  legítimos  da  renascença  dassica  entre  nós, 

*  Bouterweck,  Litteratura  portugueza  e  hêípanhola* — Garrett, 
AotgiiQO  da  Historia  da  JJtteratvra  Portugueza,  Uma  das  piovaa 
da  espontânea  inspiração  do  poeta  é  a  far^  de  Jgn«x  Pereira,  com- 
posta sobre  o  provérbio:  antes  burro,  que  me  leve,  <1o  que  Ca- 
vallo que  mo  derrube.  £ste  thema  foi  dado  a  Gil  Vicente  em  um 
dos  serões  da  cC,rU\  £ra8mo  era  glande  admirador  d'elle.  Bouter- 
weck,  HaUam,  Moratino,  e  quasi  lodos  os  críticos  apreciam  com  lou- 
vor o  ^u  talento  cómico. 

TONO  V  18 


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274  mSfOiU  BB  P0RT06ÂL 

r 

fliiMiii  e  as  letras  deveram  a  ambos  serviços  importantes.  O  ge- 
nero  bueolioo,  inspirado  pela  amenidade  do  clima  e  pelo 

gosto  (los  prazeres  eainprestes,  foi  dos  iirirueiros  culti- 
vados em  i^ortugal,  eliernardim  Ribeiro  n  elle  sobresaíu 
com  os  mesmos  dotes,  que  no  romance  da  Menina  e 
Moça  lhe  earacterísam  o  engenho.  Suas  éclogas»  das  mais 
antigas»  que  se  conheceram  na  península»  compostas  em 
versos  de  arte  menor,  e  estimadas  pela  simplicidade»  tor- 
nam-se  notáveis  pelos  toques  «le  iní^eniia  brandura  e  de 
namorada  saudade.  Atjueiias  ^ceíias  pasluris,  collueafias 
nas  margens  do  Tejo  e  do  Mondego,  neui  sempre  se  re- 
CfHnmendam»  eomtndo»  pela  fidelidade  das  descripções, 
e  em  mais  de  um  trecho  a  imitação  pouco  Mi2  de  Sana- 
zaro,  de  Boscan,  e  de  Garcilasso  poe  de  lado  as  galas 
pátrias  para  bordar  de  relevos  estraubos  a  tela,  aonde  tão 
graciosa  podia  avivar-se  a  representação  dos  usos  nacio- 
naes.  Sá  de  Miranda  ainda  exagerou  estes  defeitos»  e  Fer* 
rein»  sectário  jurado  como  elle  da  escola  italiana»  e  mais 
elegíaco  e  trágico,  do  que  bucólico,  nio  era  de  certo  mnito 
competente  para  os  coj  i  i;j  u  .  Pela  sua  elevação  devia  o  gé- 
nio de  Camões  repugnar  á  sin*,^eleza  pastoril,  mas  a  paixão 
e  a  melodia  de  saus  metros,  ennobrecendo  todos  os  as- 
sumptos» mesmo  n'este  aífirmaram  grande  superioridaâe, 
nituralísaDdo  o  idílio  piscatório»  e  esboçando  painós»  que 
os  mestres  consnmmadosiiiioengeitariam.  OltmadeDio- 
yii  Bernardes  merece  os  njiplaiisos,  qiuj  soube  grangear. 
Sens  quadros,  em  que  muitas  vezes  suspiram  a  ternura 
e  uma  branda  tristeza»  realçadas  de  vivos  traços  descri- 
plivos,  figuram  com  propriedade  os  costumes»  e  os 
sentimentos  campesinos»  mas  em  muitos  legares  não 
evitam,  antes  buscam,  a  macula  dos  conceitos  e  troca- 
dilhos, vicio  que  priíicipiava  a  invadir-nos,  do  qual  nem 
O  cantor  dos  Lusíadas  se  isentou  de  iodo.  itemardes 


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DOS  SfiCULQâ  XYU  £  XViU 


approxima-se  bastante  de  Camões  na  pureza  da  língua- sdencus 
gciii,  e  na  harmonia  dos  versos.  Na  poesia  lyrica,  na 
didáctica,  e  no  género  dramático  Sá  de  Miranda  e  Fer- 
reira occupam  o  primeiro  logar  como  austeros  imita- 
dores das  bellezas  latinas  e  italianas.  Profundos  no  es- 
tudo e  coiihecimento  (h  anti^M  liUeraluia,  suas  obras 
não  briliiam  peia  grandeza,  uu  pela  novidade  das  idéas 
e  das  fórmasi  mas  pela  correcção  e  sabor  dassico.  A 
língua,  ínstramenio  mais  dócil  em  suas  mios,  expor*: 
ga-se,  opulenta-se,  e  presta-se  á  introdução  de  no- 
vos jiicUos.  Ferreira  excede  muito  Miranda  no  tliea- 
tro.  O  CiosOj  como  comedia  de  caracter,  e  a  ígnez  de 
Castro,  como  tragedia  regular,  são  obras  credoras  de 
elogio.  Nos  córos  da  Jgn$z  áe  Catíro  o  poeta  sobe  meS' 
mo  a  grande  altura  Ijríea.  Sá  de  Miranda  nas  doas  co- 
medias Os  Estrangeiros  e  os  Vil/ialpandos  copiou  tudo 
(ie  túra,  ikaudo  loúge  dos  typos,  que  desejava  repro- 
duzirá 

N3o  intentámos  traçar,  nem  as  proporções  d*este  litro 
o  consentiam,  uma  noticia  abreviada  da  litteratura  por- 

tugueza  110  século  xvi.  Se  apíMiLainn-^  nomes  e  escrlptos 
foi  para  notarmos  a  indole  e  as  condições  do  desenvolvi- 
mento intelectual  d'aquelle  período.  Duas  correntes  as- 
signalam  desde  os  flns  de  xv  século  soas  tendências.  Uma 
fresca  e  limpida  rebenta  do  seio  do  p»z  e  reflecte  as  fei- 
ções da  imaginação  meu  li  nal.  A  outra,  lenta  e  regrada, 
mana  das  nascentes  da  l  enascença,  e,  crescendo  e  avul- 
tando, abraça  e  inunda  tudo,  deixando  apenas  sobrevi- 
ver alguns  vestígios  qnasi  oblítterados  da  primeira  .011 
Yk^nte  e  Bernardim  Ribeiro,  Sá  de  Biíranâa  e  Antonio 

1  Bontefweck,  Litteratitra  Portuguesa  e  Hétpanhola, — Gairett, 
BtÊqtt^  ia  Btnoria  da  Púeria  $  da  jUnmtm  Pwíêigueza. 

IS. 


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276 


HISTORIA  DE  l  OKTUGAL 


sdeoGiu  Ferreira  symbolísam  o  espirito  e  as  aspirações  das  doas 

escolas. 

A  epopeia  veiu  coroar  a  gloria  d  este  periodo  fecundo 
em  todas  as  evoluções  do  pensamento.  Grandes  feitos  pa- 
recia deverem  ter  suscitado  o  geoio  nacional,  mas  o 

berço  guerreiro  da  monarchia,  ornado  de  Ião  bellos  flo- 
rões íTuerreiros,  e  a  luta  <la  independência,  tiavtdi  no 
ultuno  quaitel  do  secuio  xiv,  ainda  não  iiaviam  aciiado 
Enio»  que  as  cantasse.  Âs  epocbas  de  acçSo  precedem  as 
epochas  de  interpretação.  Quando  os  heroes  lutam,  e  en- 
chem o  theatro  do  mundo  com  o  ruido  de  suas  proezas 
esse  niiiio  emudece  tnilas  as  vozes.  Só  depois,  quando 
a  admiração  fundiu  em  bronze  a  estatua,  e  o  sol  da  pos- 
teridade iUuminou  as  grandes  paginas  da  bistoria,  é  que 
*  a  inspiração  desponta,  e  que  a  epopeia  nasce.  A  /liíada 
e  a  Eneida  encerraram  dois  dos  mais  grandiosos  perío- 
dos da  vida  dos  povos.  Luiz  de  Gamões  também  appa- 
receu  na  bora  própria.  Mais  cedo  encontraria  o  assumpto 
ainda  incompleto.  Mais  tarde  não  acharia  talvez  a  sublime 
inspiração,  que  fez  do  seu  poema  um  monumento.  A  de- 
cadência do  reino  precipitava-se  tão  veloz  no  império 
ultramarino,  que  os  últimos  cantos  dos  Lusíadas  quasi 
que  se  confundiram  já  com  o  estrondo  sinistro  do  edi- 
ácio  a  desabar  por  todos  os  lanços. 

Luiz  de  Gamões  seria  o  nosso  primeiro  poeta  lyrico  se 
a  fama  do  épico  não  tivesse  comu  iiiie  escurecido  as  ou- 
tras manifestações,  tão  variadas,  do  seu  engenho.  Algu- 
mas odesy  muitos  sonetos,  e  mais  do  que  tudo  as  elegias 
affirmam  a  ternura,  a  melancolia  enlevada,  e  os  arreba- 
tamentos d*aque]la  grande  abna.  O  episodio  de  Ignez  de 
Castro,  o  do  repto  dos  Doze  de  Inglaterra,  e  vários  qua- 
dros menos  extensos,  são  trechos  iyricos  namorados  e 
mimosos,  em  que  a  imaginação  enfeita  das  mais  vistosas 


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I 


DOS  SÉCULOS  XVn  £  XVIII  S77 

flores  as  tradições  populares.  Na  pintura  dos  phenomenos 

naturaes,  ou  na  das  scenas  maritimas,  e  dos  lances  guer- 
reiros, o  seu  pincel  encanta,  matiza  acertadamente  os  tra- 
ços e  as  cores,  e  traduz  tudo  em  effeitos  admiráveis.  As 
reminiscências  clássicas  predominam  de  mais  ás  vezes,  o 
maravilhoso  pagão,  em  obediência  ás  regras  seguidas, 
usurpa  no  enredo  e  nos  incidentes  logar,  que  não  podia 
caber-lhes,  mas  as  bellezas  portal  fórma  se  multiplicam, 
que  a  vista  deslumbrada  d'aquelie  raro  esplendor  mal  aper- 
cebe como  leves  maculas  estas  nódoas  do  astro  radioso. 
Versado  no  conhecimento  profondo  da  sdencia  da  epocha, 
e  homem  de  acç^o  ao  mesmo  tempo,  o  poeta  viu  o  que  des* 
creve  com  os  olhos  do  espirito  e  com  os  olhos  da  experiên- 
cia. Soldado,  amante,  ijaulrago  e  desditoso  sabe  o  que  as 
victoriâs  custam,  e  o  que  as  penas  doem,  sabe  de  que 
horrores  a  tormenta  cérca  a  morte  nas  ííirías  do  oceano, 
e  por  que  preço  se  congelam  nas  faces  do  infeliz  as  lagri- 
mas do  infortúnio.  O  amor  da  pátria  e  o  orgulho  de  suas 
glorias  inspiram  a  sua  musa,  e  cunham  em  cada  canto  e 
em  cada  oitava  a  feição  nacional,  que  tomou  o  poema  in- 
separável do  paiz.  Camões,  para  o  seu  destino  ser  em 
tudo  único  e  singular,  não  sobreviveu  á  independência  de 
Portugal.  Acabou  com  ella.  Deus  na  sua  piedade  antes  do 
reino  descer  por  sessenta  annos  ao  sepulchro,  d*onde  ha- 
via de  levantar-se  regenerado,  quiz  que  este  cântico  de 
saudade  liie  servisse  de  suprema  consolação.  De  feito  os 
iMsiadas,  voz  heróica  e  extrema,  não  concorreram  pouco 
para  se  conservarem  vivas  as  esperanças  da  futura  res- 
tauração*. • 

1  O  baiSo  deHomboldt  notacomlouror  o  niodo  por  qaeLuiz  de 
Cam0es  descreve  o  fogo  electrieo  e  as  trombas  marinhas,  pinta  as 
tempestades,  e  retrata  a  realidade  das  cousas.  Se  louvei  em  Ga- 
lOQfies,  diz  elle,  o  poeta  marítimo,  ^  unicamente  observar  qoe  as 


278 


HISTORU  DB  PORTUGAL 


ffnimiii    Depois  d*e8t6  nobre  esforço  tudo  desmaia,  mas,  nSo 

repeiiiiii.iinente,  como  se  cuida  em  geral.  Antes  das  tre- 
vas se  íeciiai  tiia,  alguns  raios  de  sul  bi  ilharam,  que,  cx- 
tíDgaindo-se  a  poaco  e  pouco,  tornaram  depois  mais  triste 
a  obscuridade,  que  veíu  cobrir  o  paiz.  Nos  últimos  aq* 
nos  do  século  xyi,  e  no  primeiro  quartel  do  xvii,  as  le- 
tras, (íbedecendo  ao  impulso  anterior,  ainda  inscreveram 
nomes  distuiclos  no  livro  de  oiro  dalidaiguia  iatelleclual. 
Aos  Luãiadas  seguiram-se  muitos  poemas,  nem  todos  di- 
gnos do  esquecimento.  Os  chronistas  e  os  liístoríadores  do 
grande  período  acharam  continuadores.  A  poesia  lyríca, 
a  bucólica,  e  a  dramática  não  se  apa^ai  ani  quasi  inteira- 
mente sem  lançarem  clarões  bastante  lortes.  A  Imgua  poi- 
tugueza  opulenta,  iiarmoniosa  e  flexível  ainda  inspira  bel- 
los  trechos,  e  luta  sem  desar  com  a  castelhana,  tomada 
desde  o  reinado  de  Carlos  V  quasi  a  língua  universal.  A 
saudade  da  inde[)eudencia  esperta  o  estudo  das  tradições  e 
das  glorias  aacionaes,  e  aviva  no  coração  dos  escri piores  o 
amor  do  idioma  pátrio.  A  actividade  iitteraria  aii^nienta. 
Se  desde  a  invenção  da  imprensa  até  ao  anno  de  1580  se 
publicaram  em  Portugal  182  obras,  desde  1580  até  1640 
mo  saii  aiii  (los  prelos  menos  de  486,  entrando  n'este  nu- 
mero 30  edições  de  Caniues*.  O  movimento  correspon- 
dia quanto  aos  leitores,  e  seguramente  era  maior,  do  que 
o  actual  no  século  zvi,  e  no  principio  do  xvii.  Uma  tira- 
gem de  mil  exemplares  reputava-se  em  1570  a  mais  di- 

geenas  da  natureza  terrestre  o  attrahiram  menos.  —  6o,s//<o.s.  Este 
conceito,  que  as  beilezas  do  poema  justificam,  tirn  dos  preitos  mais 
honrosos  que  a  posteridade  podia  render  á  memoria  do  grande 
épico. 

1  Esta  nota  do  numero  das  obras  publicadas  nos  dois  períodos  é 
devida  á  diligencia  do  nosso  amigo  e  consócio  o  sr.  Antonio  da  Silva 
TuUia 


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DOS  SEGDLOS  XYII  £  XVHI  279 

minuta,  que  se  podia  fazer ^.  Os  auetores  nascidos  nostetiu 

reinado  de  D.  João  III,  antes  de  pegarem  da  penna,  ha- 
viam  empuiiliado  a  espada,  e  aílrontado  as  iras  do  oceano,  * 
e  os  trabalhos  das  guerras  constantes  movidas  pelos  bar* 
baros  e  pelos  europeus  alliados  com  elles.  No  século  xin 
os  homens  de  ac(So  vão  a  pouco  e  pouco  desapparecendo» 
as  seiencias  refuglam-se  nos  claustros,  e  os  religiosos  s3o 
quasi  os  únicos,  por  fim,  que  imprimem  e  compõem  livros. 
£m  Hespanha  acontecia  o  mesmo. 

£  não  era  para  admirar  que  as  mesmas  causas  produ- 
zissem effeitos  analogfos.  A  fama  de  Gongora  e  a  imitarão 
de  Marino  general isavam-se,  entretanto,  iiiiiocuiauilu  os 
vicies  das  duas  funestas  escolas  no  verso  e  na  prosa,  e 
contaminando  os  mais  privilegiados  talentos.  O  estudo  das 
sciencias  padecia  as  enfermidades  apontadas  na  aprecia* 
ção  dos  methodos  de  ensino  das  universidades  de  Goim- 
bra  e  de  Évora,  e  dos  coliegios  tia  companhia  de  Jesus. 
A  introducção  do  Inàex  Expurgatorio,  publicado  no  go- 
verno de  Filippo  lY  pelo  inquisidor  geral  D.  Fernando 
Martins  Mascarenhas,  acabou  de  descarregar  o  ultimo 
golpe,  mutilando  o  pensamento  dos  auetores  mais  esti- 
mados, e  tirando  da  circulação  os  livros  mais  úteis,  sub- 
stituidos  pelos  que  se  accommodavam  á  devoção  aca- 
nhada e  ao  fanatismo  irreconciliável.  A  publicidade  já  en- 
cerrada n'este  circulo  estreitíssimo  ainda  se  encurtou  mais 
com  os  rigores  do  processo  determinado  pelo  alvará  de 

1  Vido  cailíis,  que  os  padres  c  irmãos  da  companhia  de  Jesus  em 
missão  nos  reinos  do  Japão  escrcveraii)  aos  da  índia  e  da  Europa 
desde  o  anno  de  1549  até  ao  de  1566,  impressas  em  Coimbra  em 
casa  de  Antonio  de  Maris,  impressor  c  livreiro  da  universidade  no 
mez  de  julho  de  1570. 0  prolocro  diz  que  st  »  so  imprimiram  mil  pxom- 
plares,  por  scmm  dados  de  graça,  o  que  parece  inculcar  que  esta  ti- 
ragem se  julgava  pequena  em  relação  á  que  se  usava. 


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hiblOKl  DE  POKiliGÁL 


sémdu  4  de  dezembro  de  4566,  que  exigia  para  a  publicação  das 

obras,  alem  da  \kmn\  dos  prelados  ordinários  o  da  in- 
quisição, a  ceiisuia  moral  e  politica  do  desembaigo  do 
paço.  Postas  estas  peias  só  podiam  íallar  e  escrever  os 
que  Dão  assustassem  as  tendências  dos  poderes  ecciesias- 
lico  e  civil,  e  nSo  espanta,  que  a  acção  lítteraria  da  epo* 
cha  se  concentrasse  qiiasi  toda  exclusivamente  nos  con- 
ventos, e  que  a  decadência  cauiinliasse,  sendo  só  para 
notar»  que  seus  passos  se  não  adiantassem  mais  rápidos, 
e  que  a  influencia  das  boas  idéas  durasse  por  tanto  tempo, 
e  se  estendesse  tão  longe  ^ 

Dissemos  qn*'  piincipalmente  no  prinipiro  quartel  do 
secuio  xvii  ainda  íloresceram  varTíes  (lt>liiictos.  Esses  ho- 
mens pertenciam  na  maior  parte  pela  data  do  nascimento 
e  pela  educação. ao  periodo  anterior,  e  representavam 
as  suas  tradições,  embora  enfraquecidas  pela  distancia. 
Tanto  nas  cathedras  das  universidades  portuguezas,  como 
nas  de  Paris,  Montpellier,  Lovaina,  Salamanca,Yalladolid 
e  Alcalá  encontrámos  professores  nossos  ouvidos  com 
louvor.  Entre  muitos  apenas  citaremos  os  nomes  de  Fer- 
nando Mendes,  lente  de  prima  na  faculdade  de  medicina 
de  Montpellier,  os  de  D.  João  Altamirano  e  Fernando 
Ayres  de  Mesa,  lentes  de  direito  canónico  em  Salamanca, 
e  o  de  Fr.  Diogo  Soares  de  Santa  Maria,  um  dos  theolo- 
gos  eminentes  da  universidade  de  Paris.  Em  Coimbra  não 
alcançaram  menor  conceito  na  mesma  sciencia  André  de 
Almada,  o  jesuíta  Christu\rio  Ciil,  e  Fr.  Egydio  da  Apre- 
sentação, c  no  ensino  da  jurisprudência  Antonio  da  Cunha, 
lente  de  leis  imperiaes,  e  Rodrigo  Ribeiro  de  Leiva,  lente 
de  prima  na  faculdade  de  direito  canónico»  ao  passo  que 

1  Prefação  do  regimento  da  iDquiúçilo  feito  pelo  cardeal  da  Ga* 
nha  no  anno  de  1774. 


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DOS  SÉCULOS  xm  £  xvm 


S81 


Gonçalo  Alvo  Godinho,  Antonio  Homem,  ThomásYelas^sdmeiM 

CO,  Antonio  th  {][um,  Gabriel  Pereira  dc  Castro,  Manuel  ^J^^ 
Mendes  de  Caslru  e  João  Pinto  Ribeiro  justificavam,  co- 
mo magistrados»  ou  como  jurisconsultos,  a  opinião  for- 
mada ácerca  do  seu  saber.  Nas  sciencias  medicas  tam* 
bem  se  recommendaram  alguns  YarOes,  como  clínicos 
dentro  e  fóra  do  paiz,  ou  como  auctores  de  livros  esti- 
mados na  sua  epocha,  e  ainda  na  immediata.  Tornaram- 
se  conspicuos  entre  elles  Alvaro  Nunes,  pbysico-mór  do 
archiduque  Alberto,  fallecido  emi603S  Antonio  da  Fon- 
seca, pratico  esclarecido,  qae  teve  a  ventura  de  atalhar  a 
epidemia  de  1620  em  Flandres  e  no  Palatmado^  Diogo 
Mourão,  afamado  pela  felicidade  da  sua  clinica  na  Pro- 
vença ^  Zacuto  Lusitano*,  Manuel  Bocarro  Francez,  me- 
dico, mathcmatico  e  poeta  ^,  e  João  Marques  Correia, 
elogiado  pelo  Tratado  da  Circulaçõo  do  Sanguêj  obra  á 
qual  a  posteridade  não  concedeu  os  creditos  com  que  viu 
a  laz^ 

<  Goinpoz  a  obra  intitulada  AimoiaÊkmes  aã  Wrros  dum  Fhm» 
eisd  ÂrtasL  Antuérpia,  1876. 

2  Expôs  em  um  Utto  as  rasOM  do  seu  sysiema,  froMut  de 
Epidemia  FéMH,  1683. 

>  Escreveu  um  tratado  a  que  deu  o  título  de  TYet  Apologias  Mé- 
ãkoi  OrtíiuH,  1686. 

^  Zacuto,  alem  da  obra  apieciadaDe  MtdkonmPrineipmHit-' 
tona,  libri  x,  dada  á  estampa  em  1629,  publicou  o  tratado  De 
Praxi  Médica,  libri  m,  e  outros  escriptos. 

'  Bocairo,  doutorado  em  Montpellier,  Coimbra  e  Alcalá,  osten« 
ton  o  seu  saber  quasi  nniversal  em  diversas  obras. 

*  Aíóra  estes^  podem  àer  ainda  citados  entre  os  médicos  illustves 
do  xvu  secuk)  Diogo  Samssa,  auctordo  tratado  Dt  VirtuUHer^ 
rum,  1630;  Diogo  Rosales,  auctor  do  livro  intitulado  Armatura  Me» 
diea,  1638;  Ambrósio  Nunes,  auctor  do  Traiado  da  Petie,  1601  a 
1603^  e  Átmo  Lopes»  auctor  do  livro  De  Uarbo  GaUieo,  1610.  Es- 
creveram commentarios  aobie  a  Arte  Medka  de  Galeno  Uannel  de 


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m  iasTORU  PR  mmAL 

sámàu  Na  poesia  e  na  prosa  os  effeitos  da  declinação  ainda  se 
iet!a«  Patentearam  mais  lentamente,  mas  por  modo  tal,  que 

logo  deixaram  antever  a  proximidade  de  um  periodo  de 
trevas.  Se  os  esforços  irulividuaes  de  alguns  liomens  res- 
peitáveis não  conseguiram  suster  a  ruína  das  sciencias,  e 
se  m  theologia,  no  direito  civil  e  canónico»  na  medicina 
e  nos  conhecimentos  physico-matbematicos  a  perversio 
dos  methodos  e  a  superficialidade  do  ensino  foram  apa- 
irando  uma  após  outras  as  luzes,  que  tiiuíla  esclareciam, 
mas  já  qiiasi  a  medo,  as  academias  e  os  collegios,  as  mu- 
sas, no  trato  das  boas  !(;lras,  castigaram  sem  piedade  a 
corrupção  do  gosto,  a  imitação  servil  de  modelos  defei- 
tuosos, e  oodio  das  beliezaseda  elegância  naturaes  com 
as  quédas  desastrosas  dos  ícaros,  que  ousaram  remontar- 
se  a  alturas  inaccessiveis.  Os  poetas  e  os  prosadores  da 
epoi  ha  de  D.  Manuel  e  de  D.  João  111  ainda  enconlravam 
continuadores,  porém  esses,  como  observámos,  tinham 
bebido  o  leite  da  geração  educada  na  escola  da  renascen* 
ça,  e  foram  os  seus  últimos  representantes.  Os  que  se 
lhes  seguiram  acabaram,  baixando  sempre,  por  forma- 
rem ajit  iias  uma  quasi  plelie  de  metrificadores  desvaira- 
dos [>ela  loucura  dos  conceitos  e  das  empolas  gongoris- 
tas,  e  de  prosadores  túmidos,  ailectados  e  escravos  do 
desregramento  de  uma  imaginação  enferma.  Mesmo  os 
melhores  engenhos  tropeçavam  nos  vicios  communs  do 
tempo,  e  não  podiam,  ou  não  queriam  purificar  as  obras 
mais  limadas  d  esta  quebra  de  bastardia.  Seus  olhos  pe- 

Ahren  e  Manuel  Fernandes  de  Mura,  e  corapoz  um  tratado  sobre 
os  quatro  livros  de  Avicena,  De  Morbis  Internis,  Fernando  Alvares 
Cabral,  o  soIht  ttypncrafos  Manuel  Xnnes,  cujo  livro  saiu  dos  pre- 
los em  l")S!).  Finalmente  Fernando  Alvares  6  citado  eom  louvor 
peta  sua  obra  intitulada  De  pátrio  refugio,  iive  quid  prastel  tn 
morltis  httgú  terram  mutare. 


.  ly  j^cLj  L^y  Google 


DOS  SÉCULOS  XYil  £  JkVm 


283 


netrantes  nem  sempre  alcançaram  romper  a  espessa  ne-scfaiwiM 

voa,  que  fazia  perder  as  mullidues. 

Esta  primeira  transição  ainda  se  aununciava,  porém, 
com  alguma  esperança.  Na  entrada  do  novo  periodo,  que 
se  rompeu,  e  que  tão  cedo  havia  de  cegar-se  a  escuridão, 
avultam  verdadeiros  poetas  e  escríptores  insignes.  Encer- 
rado o  cyclo  dos  feitos  notáveis  e  dos  homens  de  acção 
com  o  poema  adiiuravel  dos  Lusíadas,  que  foi  como  que  o 
ultimo  suspiro  da  grande  raça,  que  baixava  ao  sepulcluo 
com  a  pátria,  começaram  a  brotar  os  cantos  destinados  a 
applaudir  os  actos  mais  gloriosos  da  luta  africana,  da  il- 
llada  da  índia,  ou  das  guerras  qne  embalaram  o  berço  e 
a  juventude  da  monarchia.  Nenhuma  doestas  tentativas 
venceu,  lomtudo,  as  proporções  (jue  requerem  os  monu- 
mentos, e  a  epopêa  de  Camões  licou  dominando- os  sé- 
culos em  toda  a  sua  elevação,  como  saudoso  testamento 
das  memorias  de  um  povo,  qne  mesmo  na  agonia  punha 
os  olhos,  o  coração  e  a  fé  nas  maravilhosas  acções  pro- 
porcionadas por  seus  destinos  pnvilegiados.  Reduzidos 
ao  estreito  circulo  das  poéticas,  os  sectários  de  Aristóte- 
les nem  aos  Ijisiadas  concediam  os  íóros  de  epopêa, 
mas  contemplados  á  luz  de  menos  rigorosa  critica,  o  Áf- 
fanso  Africano,  a  Malaca  Conquistada,  o  Naufrágio  de 
S^ulveda  «e  a  Ulimia,  por  exemplo,  cantando  empre- 
zas  illustres»  ou  expedições  perigosas,  e  bordando  de 
pinturas  vivas  e  felizes  a  tela  da  acção  principal,  eram  ver- 
dadeiros poemas  históricos,  mytliologicos  e  romanescos, 
e  não  mereciam  jazer  esquecidos  entre  as  cinzas  de  tantas 
obras,  de  que  nem  o  nome  sobrevive ' . 

^  Entre  muitos  citaremos  o  Naufrágio  de  Sepulveda  e  o  Segundo 
Cerco  de  Diu  por  Jeronymo  Côrte  Real,  poeta  ^iiPireiro  e  cultor 
esmerado  da  musica  e  da  pintura ;  a  Elegiada  de  Luiz  Pereira  Bran- 
dão, soldado  e  captivo  na  l>atalba  do  Alcácer  ILàbir,  ci^a  catastro- 


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HJSTOBIA  DE  POETUGAL 


Scieocias  Facto  síngular!  O  momento  em  qiio  desappnrecia  a  iri- 
1^  dependência,  e  em  que  a  nacionalidade  se  oliuscava,  foi 
aquelle  em  que  mais  poetas,  e^iaitados  pela  ira  patriótica, 
oa  talvez  pela  dor  do  infortúnio»  se  arrojaram  a  medir  as 
forças  com  a  musa  de  Virgilio,  do  Tasso  e  de  Gamões,  e 
se  alguns  preferiram  o  i«1ioma  castelhauo,  mais  vulgari- 
sado,  o  maior  numero  honrou  a  língua  pátria,  e  quiz  an- 
tes ser  lido  só  dos  portuguezes,  do  que  dever  aos  oppres- 
sores  as  vozes,  com  que  celebrava  os  rasgos  sublimes  das 
epocbas  findas,  suprema  consolação  dos  dias  desditosos. 
Em  qnasi  todos  aquellcs  poemas;  comludo,  o  plano,  alem 
de  mal  deduzido,  não  compensa  a  fraqueza  da  contextura 
pelo  vigor  do  interesse»  muitas  vezes  desviado  por  inci- 
dentes enredados  sem  coberencia.  Nota-se-lbes  pouca 
arte,  má  distribuição  e  pobreza  de  maravilhoso,  pec- 
( ando  frequentemente  em  Mugularidades  e  aberrações 
pouco  jusUUcadas;  mas  estes  defeitos,  na  realidade  fun- 
damentaes,  se  não  podem  ser  resgatados,  são  pelo  me< 
nos  bastante  attenuados  pela  belleza  de  alguns  episódios, 

pbe  memora;  o  Âfwto  Âfrkam  deYasco  lldiisioho  de  Quevedo, 
que  B.  Francisco  Manuel  de  Mello  no  EoupiUA  âa$  Letnts  elogia  em 
termos  honrosos,  e  que,  celebrando  a  conquista  de  Ansilla  e  Tanger, 
offerece  scenas  e  movimentos,  que  o  génio  de  Camões  nSo  engeita- 
ria;  a  Ul^eia  de  Gabriel  Pereira  de  Castro;  a  Malaca  Conquistada 
de  Francisco  de  Sá  de  Meneses,  sobrinho  de  Sá  de  Miranda;  o  Vi- 
riato Troffim  de  Braz  Mascarenhas,  guerreúo  aventuroso»  ao  qual  as 
musas  serviram  por  vezes  de  distracção  nos  trabalhos;  o  Cande$ta' 
vel  de  Francisco  Rodrigues  Lobo,  composiçSo  gélida,  desmentida 
pelo  talento  do  poeta  nas  suas  composições  bucólicas,  e  o  Wú»fo 
de  Antonio  de  Sousa  de  Macedo.  Em  hespanbol  escreveu  D.  Ber * 
nardo  Ferreira  de  Lacerda,  que  Lopo  da  Vega  chamou  a  «decima 
musa»,  o  poema  da  Bespatã^a  ÍÁhertaàa,  Ifiguel  da  Silva  o  Ifodks- 
h^,  impresso  em  1636,  e  Francisco  Botelho  de  Moraes  o  Âfom, 
destinado  a  memorar  a  fimdaçSo  da  monarchia. 


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DOS  SÉCULOS  Tm  B  XVIIl 


186 


por  formosas  pinturas  de  caracteres»  por  descrip^es  ani-  scimcíM 
madas,  e  por  lances,  em  qne  realçam  os  sentimentos  ter- 

nos  e  apaixonados.  Na  Uhjsseia  de  Gabriel  Pereira  de 
Castio,  talvez  o  menos  imperfeito  de  todos  quanto  ao 
desenho  geral»  a  imitação  clássica  é  tão  primorosa  em 
partes,  e  as  scenas  mythologicas  são  vasadas  dos  moldes 
antigos  com  tanta  feUddade»  qae  fazem  IemA)rar  alguns 
trechos  admirados  da  Odpsseia,  Entretanto  a  falta  de  in- 
venção, a  copia  quasi  servil  lus  modelos  clássicos,  e  o  vi- 
cio da  affectação  gongorica  negam-lhe  a  palma,  que  al- 
guns críticos  tentaram  .deferir-ihe,  classificando  a  sua 
epopéa  logo  depois  da  de  Gamões.  Se  entre  esses  poe- 
mas existe  um,  ao  qual  a  honra  de  t3o  alta  qualificação 
possa  caber,  o  Âffonso  Africano  talvez  seja  o  que  a  me- 
reça, apesai*  das  nódoas  que  em  muitos  logares  o  des- 
feiam. 

Na  poesia  bucólica  pertence  n  este  período  o  pruneiro 
logar  a  Francisco  Rodrigues  Lobo.  Suas  éclogas  pouco  se 
afastam  da  escola  italiana,  introduzida  por  Ferreira,  Sá 

de  Miranda  e  Camões.  Lavrador  modesto,  nias  dotado 
de  aptidão  ])ara  observar  e  descrever,  conhecia  de  perto 
a  vida  rural,  e,  apesar  disso,  nem  sempre  buscou  as  tin- 
tas na  palheta,  que  lhe  ofièrecia  a  natureza.  O  seu  cam* 
po,  na  linguagem  e  nos  costumes  dos  pastores,  mais 
se  parece  com  a  cidade,  do  que  com  o  rm  amemm  de 
Theocrito  e  de  Virgilio.  Na  prosa,  e  particularmente  nos 
diálogos  da  Côrte  na  Aldeia^  que  rastreiam  de  longe  as 
TuscuUairm  de  Cicero,  junta  grande  pureza  na  dicção  a 
variado  saber,  avivados  por  summa  amenidade  e  elegân- 
cia de  estylo.  Estas  qualidades,  affirmadas,  postoque  em 
menor  f^rau  talvez,  lia  Primavera,  no  Pastor  Peregrino 
e  no  Demiganadús  tornam,  não  só  recreativa,  mas  utilis- 
sima  a  leitura  de  suas  obras.  Fr.  Bernardo  de  Brito,  de- 


Digrtizeij  Ly  <jOOgle 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


seMM  dícado  em  annos  mais  graves  a  estudos  severos,  estreou 

itL»  ^  eiií^enho  com  orna  pequena  coHecção  de  sonetos,  éclo- 
gas, romances  e  poesias  miii  ia.s,  intitulada  a  Silvia  de 
Lisardo,  que  Kai  ia  e  Sousa  declara  superioi'  aos  \  orsos 
de  Bernardes,  masque  um  exame  menos  parcial  não  hesi- 
tará em  inculcar  como  visiveL  prova  da  corrupção  do  gosto 
nas  Hespanhas.  Finalmente  D.  Bernarda  Ferreira  de  La- 
cerda, compondo  em  castelhano  as  Soledades  do  Bunsaeo 
e  a  Hespanha  Libertada,  lui  (juasi  admirada  como  a  ma- 
ravilha da  sua  epoclia,  mas  o  louvor  resente-se  dos  en- 
carecimentos próprios  de  Lope  da  Vega,  e  as  maiores 
bellezas  então  elc^iadas  parecem-nos  hoje  os  trechos  me- 
nos felizes  d'aquellas  composições. 

A  poesia  dramática,  á  qual  Ferrei r  a  e  Sá  de  Miranda 
talvez  cuidaram  fadar  larga  e  auspiciosa  caireira,  {laii- 
tando-a  pelas  regras  da  escola  italiana,  esmorecera  logo 
aos  primeiros  passos.  Camões,  que  nos  Amphitriães  imi- 
tára  Planto,  seguia  já  no  Filodemo  o  trilho  do  theatro  de 
Calderon  e  de  Lope  da  Vega,  mostrando-se  nos  enredos, 
nos  caracteres,  e  no  dialogo  superior  aos  dois  poetas 
clássicos.  As  tres  comedias  de  Jorge  Ferreira  de  Vascoii- 
celios  a  Euphrosim,  a  OlyssipOj  e  a  Aulegraphia  mais 
devem  ser  tomadas  como  repositórios  copiosos  dos  brios, 
opulências,  e  travessuras  graciosas  da  língua,  do  que 
como  obras  destinadas  ás  platéas,  que  as  não  poderiam 
supportar.  Gil  Vicente  não  eiiconlrára  successores  na 
parte  íuats  elevada  de  suas  crcaçues,  nem  nu  tu  i^mali- 
dade  das  pinturas.  Uma  plebe  de  autos,  mais,  ou  menos 
dii^Fines,  cortados  de  lòas  e  de  chacotas,  fazia  as  deli- 
cias do  povo  nas  romarias  e  nas  festas  religiosas,  sobre- 
saíndo  entre  os  auclores  mais  fecundos  e  estimados  os 
nomes  de  Affonso  Alvares,  mestre  de  primeiras  letras, 
de  Francisco  Vaz  de  Guimarães,  clérigo  do  Jlliniio,  deBal- 


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D03  SÉCULOS  XYII  £  XVIII  t^l 

thazar  Dias,  muito  applaudido  no  reinado  do  D.  Sobas- sdemsta» 
tião,  e  de  Fr.  Antonio  de  Lislioa'.  A  imitação  clássica, 
fóra  (lo  regaço  popular  e  sem  estímulos,  pôde  dizer-se 
que  nunca  se  levantou  do  berço.  Para  as  multidões  havia 
as  foncções  devotas,  em  que  o  divino  se  conftindía  com  as 
cousas  mundanas,  saindo  muitas  vezos  nas  lirocissõps 
mulheres  \mwÁ)  honestas  em  li-j^ura  de  santas,  o  arman- 
do-se  nas  igrejas  e  capellas  tablados,  aonde  se  represen* 
tavam  autos  e  farças  acompanhados  de  cantigas  e  de 
dansas.  Gbegou  a  abusar-se  tanto  das  liberdades  sceni- 
cas,  que  nos  autos  de  Smita  Barbara  e  de  Santa  Calha- 
rina  se  reproduzia  no  theatro  a  ceremonia  do  baptismo. 


1  AíTonso  Alvares»  creado  do  Bispo  âe  Évora  D.  AíTonso  de  Por- 
tuga! e  conloniporaneo  de  Gil  Vicente  compoz  os  autos  de  Santo  An-' 
túnio  ,  dt!  S.  Thiago  Apostolo,  e  de  Santa  Barbara  Virgem  Martj/r. — 
Francisco  Yaz  de  Guimarães  escreveu :  Obra  novamente  feita  da  muito 
Moroí^n  morte  e  paixão  de  Noiso  Senhor  Jeius  Christo,  etc,  Lisboa 
lâ59,  Éradimda  na  iingua  eoneani  por  algum  missionário  da  índia, 
ou  pessoa  versada  nos  dois  idiomas. — BaithazarDia8>  natural  da  Ma- 
iteira,  íbi  um  dos  escriptores  mais  fecundos  n'oste  género,  dando  ú 
lai  em  1613  o  Auto  dêSi-Rei  Salomão^  em  1613  o  Auto  da  Paiorão, 
e  o  de  Santo  Aleixo,  e  seguidamente  compondo  os  aatos  de  Santa 
Catíuírina,  da  Feira  da  Ladra,  da  Malicia  das  Mnikeree,  e  éoNoB* 
cimento  de  Christo,  a  Hàtêaria  daímperatris  Porcina,  e  a  Tragedia 
do  MÊTquêz  de  Mantun,  nnrraçta  romanescas.  —  Fr.  Antonio  de  Lis« 
boa  fez  o  Auto  dos  dois  ladrões  cnieifieados  juntamente  cem  Chrieto 
Senhor  Noeeei,  pi^iàieado  em  1603  por  Antonio  Alvares  editor. — De- 
balio  do  nome  de  ««anitoa»  saiam  também  dos  pvelos  poemas  exten- 
sos, que  Dão  podiam  ser  representados,  como  sfin  a  ehronica  rimada 
de  Santo  Antonio  em  eiaeo  cantos,  ns  (h  S.  Gonzalo  de  Amaranle 
e  S.  Fraaciseo  Xiriery  oomposlas  peio  iivreiro  Francisco  Lopes  an- 
dor e  ás  vezes  impressor  das  próprias  obras.  —  Diogo  Bernardes  es- 
creveu os  dois  Autos  da$  lagrimas  de  S.  Pedro  e  de  S.  Jiuio  Etem* 
gáiakí,  e  JeronymoCkMeReal  o  Auto  dm  fíwiemnm  áotiammem 
uma  meditaçik)  dat  penm  êit  Fm^Bkir^ 


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mSTORU  DB  PORTUGAL 


scioncias  6  que  00  duto  da  Paixão  por  Francisco  Vaz  os  actores  e 
letras  ^  publico  ajoelhavam  quando  Jesus  consagrava  o  pão  M 
Conceberam  os  jesuítas  a  idéa  singular  de  nobilitarem 

as  maiui  es  anomalias  dramáticas  por  meio  de  tragicome- 
dias,  em  que  os  absurdos  dessem  as  mãos  á  erudição,  e 
nas  quaes  se  misturassem  também  sem  escrúpulo  o  sacro 
e  o  profano.  Foi  provavelmente  em  Í5ti0,  para  celebrar 
a  vinda  a  Ck)imbra  de  el-rei  D.  Joio  III,  seu  protector, 
que  os  padres  do  collegio  das  artes  eiisaiaiam  a  primeira 
peça  recitada  i»elos  cstadantes  na  presença  do  monarcha. 
Kepetmdo  D.  Sebastião  em  1570  a  visita  do  avô  á  univer- 
sidade, compoz  o  padre  Luiz  da  Cruz  uma  tragedia — 
Sedeeia»,  m  a  DesindçSo  de  Jerusalém  por  NabueOf  — 
que  nlo  durou  menos  de  dois  dias,  acabando  apesar 
d'isso  coberta  de  louvores.  Os  collegios  de  Ev(jra  e  Lis- 
boa ostentavam  iguaes  exercicios  nas  grandes  solemni- 
dades,  sendo  de  todos  o  mais  apparatoso  a  famosa  ti  a- 

^  O  cardeal  D.  Hemiqne^  sendo  inquisidor  geral,  indoin  no  rol 
dos  1ÍVT06  piohíbidos  todas  as  <^ras  em  i^manoe  de  builas,  que  tra- 
tassem de  cousas  de  religi2o^  on  da  sagrada  eseripttura  (iMl),  e  o 
lúspo  de  Coimbra  D.  Aflbnso  de  GasleOo  Branco  nas  constituições 
do  bispado  suppiimin  na  procissSo  de  Corpm  as  figuras  e  invençOes 
destumestas»  e  nas  igrejas  e  ermidas  a  lepresentaçSo  de  farças,  au- 
tos e  comedias,  e  os  jogos,  densas  e  cantigas  profimas  (1591).  Em 
outras  constituições  de  bispados  notam-se  iguaes  censuras,  renova- 
•  das  da  letra  dos  concilios  da  meia-idade,  e  das  Partidas  i,  tit.  vi,  lei 
34  e  vit,  tit  vt,  lei  4  de  Ailonso  o  Sabio.  —  A  CoUecção  das  Comediat 
Portuguezas  por  Antonio  Prestes  e  Luiz  de  Camões,  e  outros  aucto- 
res  é  assás  curiosa,  e  foi  estampada  em  1587  por  AíTonso  Lopes  em 
i  vol.  de  4.«»  de  179  pag.  Contém  doze  autos,  sete  por  Antonio  Pres- 
tes, 08  da  Am  Maria,  do  Procurador ,  do  Dei^emhargador ,  dos  Dow 
JrmãoB,  da  Ciosa,  do  Mouro  Encantado,  e  dos  CaíUarinheiros,  as 
duas  comedias  de  Camões,  os  Ampkitriões  e  o  Filodemo,  o  auto  da 
Cena  Policiana  por  Henrique  Lopes,  o  de  Rodrigo  e  Mendo  por  Joige 
Pinto^  e  o  do  PÃysteo  por  Jeronymo  Ribeiro. 


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DOS  SIGDLOS  XVn  E  XVtH 


gicomedia  da  Conquista  do  orimíepor  D,  Manuel^  posta  sameiiii 
no  palco  de  Santo  Antão  em  1619  para  festejar  a  entrada 

de  Filippe  III,  o  qual  assistiu  por  dois  dias  consecutivos 
(2i  e  22  de  agosto)  com  as  infantas  D.  ízabel  e  D.  Maria, 
ouvindo  nada  menos  do  que  trezentos  e  cincoenta  persona- 
gens, sob^bameote  caracterísados,  no  meio  de  córos,  de- 
eoraçQes  custosas,  madiinas,  tramóias  e  orchestras,  dialo- 
garem em  versos  latinos  com  ardor  e  enthusiasmo  dipos 
dos  tempos  de  Terêncio.  Estas  peças  resumiam  todas  as 
audácias  e  excentricidades,  que  apreversão  da  arte  podia 
inspirar,  entrando  sempre  n*eUas»  a  par  das  figuras  histó- 
ricas, as  virtudes  e  os  vícios  personificados,  o  amor  di- 
vino e  o  amor  terrestre,  e  alé  a  própria  companhia  de 
Jesus  com  o  seu  anjo  custodio.  A  mistura  do  sacro  e  do 
proiano  e  as  mais  flagrantes  inverosimiihanças  não  assus- 
tavam os  Senecas,  que  nos  Geraes  do  instituto  calçavam 
o  cothumo,  nem  suspendiam  05  Rosdos  imberbes,  seus  in- 
terpretes, que  se  ufanavam  de  glorificarem  as  letras  da 
sociedade,  trocando  a  roupeta  pelas  vestes  syrabolicas 
da  esperança  e  da  caridade,  ou  pelos  attributos  iiorri- 
ficos  de  Satan  e  do  seu  cortejo  infernai.  Pouco  tardaram 
depois  as  comedias  magicas,  que,  olhando  s6  ao  effeito 
de  attrahir  o  publico,  e  de  o  deslumbrar,  multiplicavam 
as  visualidades  para  sem  nenhum  respeito  das  regras 
forçarem  o  interesse.  Suppõe-se  que  Fr.  Boaventura  (Si- 
n^o  Machado)  fòra  o  primeiro,  que  na  comedia  da  Pas- 
tora Alpheia  tentára  entre  nós  este  novo  caminho,  que 
imitadores  ainda  menos  sujeilos  do  que  elle  aos  bons 
preceitos  nâo  duvidaram  can  egar  de  exagerações. 

A  decadência  não  podia  ser  maior»  nem  a  negação  de 
um  theatro  nacional  mais  absoluta,  porque  as  farças  e  os 
entremezes,  com  que  o  povo  se  recreava,  não  o  substi- 
tuiam,  nem  se  approximavam  dos  pr  imeiros  e  umcos  pro- 

TOMO  y  â9 


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m 


8tí«6iMgressos  da  scena  pátria  nos  reinados  de  I).  Manuel  e 
D.  JoioiU.  O  pequeno  livro  iatitulado  Autos  e  Comám 
P0nit§mMii  por  Antonio  Prestes,  Luis  de  Gamões  e  ou- 
tros anctoreS)  prova  o  que  dizenios.  Tanto  os  sete  antos  de 
Prestes,  cmno  o  da  Cem  Policiam  de  Henrique  Lopes,  o 
de  Rodrigo  e  Mendo  de  Jorge  Pinto,  e  o  do  Phynco  de  Je- 
ronymo  Hiboiro,  iião  passam  de  esboços,  ein  que  a  alegria 
[^ebea  aio  é  eompensada  pela  verdade  dos  earacterss  e 
dos  coatiHMS.  As  doas  pecas  d'aqiielia  coUeocio  digMs 
dê  «m  tiíealro  coito  sSo  os  Amph^9e9  e  o  TOsduni*  Os 
dois  atitos  do  ex-franciscano  AnUnuo  iulxnro  Chiado,  que 
não  iewios,  nao  nos  parece  também,  pela  noticia  que  resf^ 
d'eiles»  ftts  justiíiqueni  melhor  conceito,  iimiiaiido^  iat- 
vezoeev  mérito  á  jovialidade  aolta  do  poeta,  4|ae  as  tte> 
norías  oentmporaieas  retratam  antes  de  4espír  oMMto 
como  um  frade  barganêe  e  dizidor,  A  dominaçlo  caste- 
lhana nao  era  segiir;i  mente  própria  para  espertar  a  voca- 
ção dramática  por  tão  largo  e^[MÇ0  adormecida.  As  obras 
de  Calderon»  de  Lopo  da  Ve^,  e  dos  mestres  da  sua  es* 
eok  grmgeevam  appftavsos  eyi  Portugal,  mas  tão  lhes 
smeítaram  mmca  emnlos,  e  a  capital,  viuva  da  suaoôMe* 
quasi  agradecia  como  libei  alidade  aos  vice-reis  as  recitas 
dascorni>âiihias  de  comediantes,  que  vnihani  a  Lisboa  de 
AMdhd  e  de  outras  cidades  representar  os  dramas  dos 
sem  amlmi  prediieotos  ^ 

O  geveiM  faespaiM  pot  em  vigor  entre  tt6s  â  ma  le* 
gislação,  applicando  aos  estabeleoimentos  pios  uma  paite 

*  Chiado  coiiipoz  o  Auto  dv.  Gonçalo  Chfvnbão,  Lisboa  ^  o 
Auio  da  jSatural  Invenção,  rt^pivseiiUdo  na  presença  de  D.  João  III. 
Os  seus^pjso«  para  guardar  mostram  quaes  eram  as  feições  d  aquella 
musa  fácil  e  chocarreira.  Vide  Panorama,  vol.  iv,  n.«  190,  artigo  do 
sr.  Ctmha  Rivara,  e  Trigoso,  Memoria  sobre  o  Theali  o  Poi'tuqnez, 
BO  tom.  V  das  Memoriai  áa  ÁMdema  IM,  dm  Sciencm  de  LUboa. 


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DOS  mmM  jm  b  xfm 


Ml 


do  imâucto  éos  espectáculos  publioost  ordenado  qja^scmmu 
as  representtcSes  de  comedias  nSó  fossoa  permittidas» 
seDão  DOS  logares  designados  pelo  provedor  o  officiaes 

(lo  hospital  de  Todos  os  Santos,  6  prescrevendo  (jiie  ne- 
nhuma peça  subisse  á  scena  sem  licença  dos  ministros 
oompetei^es  para  acautelar  a  olfeosa  costutoes.  Em 
Coimbra  era  a  Misericórdia  quem  arrecadava  a  quota 
pi^  pek>s  empreurías,  estipulando^  por  accordo  re> 
ciproco  em  1632  a  quantia  fixa  de  500  reaes  por  cada 
CDincdia,  quer  íbsse  maior,  quei'  menoi*  o  rendimento*. 
IN  aquella  epocha  as  peças  representavam-se  em  pateos, 
mais  ou  meoos  espaçosos,  e  julga-se  ter  sido  o  mais  m- 
ii^  de  Lisboa  o  das  Fangas  da  Farinha,  que  i^3o  existiiu 
ou  ji  estava  inteiramente  arraiDado  em  1588.  O  da  Bi- 
tesga,  ou  da  Mouraria,  todo  coberto,  rodeado  de  varan- 
das íaiiiiiem  coi)ertas,  e  sustentado  em  paredes  de  alve- 
naria, íòia  coDStruido  par  Fernão  Dias  de  Latorre,  em 
virtude  de  contrato  feito  com  o  hospital,  e  já  em  1594 
tinha  franqtteado  suas  portas  ao  puWco,'  siÃkido  a  re- 
cita de  cinco  meses  a  3941800  reses,  e  a  quota  das  duas 
quintas  partes  devida  ao  hospital  a  87^450.  Existiam, 
igualmente,  em  1593  o  pateo  da  rua  da  Praça  da  Palha, 
e  da  rua  das  Áreas,  se  não  é,  como  supi^omos,  que  os 
doísAomes  fossem  a{q[)licadós  ao  mesmo  tíieatro,  de  que 
eraemprezario  Latorre,  e  depois  d'elle  Antonio  da  l^va  e 

^  A  primeira  lei  que  estabeleceu  a  quota  do  producto  dos  espe- 
elaciilos  Pm  benefício  dos  estabelpcinientos  pios  foi  o  alvará  do  20 
de  agosto  de  1588,  mas  só  por  dois  armo»,  renovado  pelo  de  7  de 
outubro  de  1595.  Ern  1003  Filippe  III  aiictorisou  em  Lisboa  as  re- 
presentações publicas,  passada  a  quarestna,  coiii  a  censura  previa  do 
desembargo  do  paço.  Vide  Jornal  do  Commprrio.  13."  anno.  n.*"  3736 
e  3737,  arlisjo  sobre  a  Archeoto^  do  Theatro  Partuffuez  pelo  sr. 
J.  M.  A.  fogueira. 

19. 


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m 


HISTORIA  OK  POttTVGAL 


scieneias  Sousa.  Mas,  apesdP  da  apropriação  de  parte  do  producto 
diversões  aos  enfermos  pobres»  as  aimas  devotas 
sempre  se  mostraram  escandalisadas,  qualificando  os  dra- 
mas e  as  sceiías  de  verdadeiras  ciladas  do  demónio. 
O  ciiroiiisla  da  coiiipaiihia  de  Jesus  descreve-nos  a  oppo- 
sição  ferrenha  do  mestre  Ignacio,  auctor  da  Cartilha  Clás- 
sica, e  pínta-o  alH-asado  em  zélo  no  meio  do  luzido  es- 
quadiiío  de  meninos»  com  que  percorria  as  mas»  pré- 
gando  contra  os  vicios  em  geral  e  contra  os  theatros  em 
particular.  Em  uma  d*estas  predicas  o  mestre  Ignacio  in- 
\estiu  e  dispersou  a  dansa  saída  do  paleo  da  rua  das  Ar- 
cas, accusando-a  de  lasciva  e  de  inventada  pelo  inferno*. 
É  natural»  que  em  algum  dos  pateos»  que  no  século  xm 
reuiííam  os  admiradores  de  ThaHa,  fossem  representadas» 
senão  todas,  muitas  das  vinte  e  quatro  peças  em  um  acto 
de  Manuel  Coelho  Rebello,  impressas  em  Coimbra  (1658) 
e  em  Lisboa  (1695)  com  o  titulo  de  Musa  Entretmida  de 
Varm  Entremezes. 

Os  estados  históricos»  que  nos  períodos  anteriores  ti- 
nham sido  cultivados  por  homens  insignes,  ainda  conser- 
varam II  este  represeiitaiites  illustres.  Kiitre  elles  avultam 
Fr.  Anlomo  Brandão  e  Diogo  do  Couto,  o  prinieiío  con- 
tinuador de  Brito  na  in  e  iv  partes  da  Monarchia  Lusitana, 
o  segundo  continuador  das  Décadas  da  índia  de  Barros 
desde  a  quarta.  Fr.  Bernardo  de  Brito  nascêra  com  a  ima- 
ginação prompta  e  infiammavel  de  um  poeta.  Ha  capítulos 
na  sua  Chronica  de  Cister,  que  os  mellioies  coloristas 
das  esci)las  modenias  certamente  invejariam.  Grande  pu- 
reza e  abundância  na  dicção  ennobreciam  os  outros  do- 
tes do  espirito»  ministrando  áquelle  fino  pincel  tintas  para 
os  mais  delicados  cambiantes.  Mais  curioso»  do  que  in- 
vestigador, a  sua  erudição,  menos  profunda,  do  que  ei- 

1  Balthazar  Telles»  Chronica  da  Companhia  de  Jesus. 


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DOS  SÉCULOS  XVII  £  XVUI 


393 


tensa,  procura  o  apparalo,  f*  nem  sempre  encontra  h  rea- 
lidade. Visitando  quasi  todas  as  minas  e  iogares  notáveis 
do  paiz  coUigira  copiosos  apontamentos  de  todas  as  anti- 
guidades, mas  a  crítica  leviana  das  apreciações,  o  pouco 
escrúpulo  das  asserções,  e  ás  vezes  a  credulidade  volun- 
tária roubam  á  i  e  ii  partes  do  vasto  inoiiumento,  de  que 
lançou  os  alicerces,  o  conceito  e  a  auctoridade  desmen- 
tidos pela  introdac(^o  de  erros  e  de  fabulas  indesculpá- 
veis. Brandão  recommenda-se,  justamente,  pelas  quali- 
dades contrarias.  Infatigável  na  averiguação  dos  cartórios 
do  reino  e  no  exame  das  chronicas  nacioíiaes  e  esti  anhas, 
até  das  mais  raras,  não  acceita para  a  laboriosa  reconstruo- 
C3o  das  primeiras  epochas  da  nossa  historia  senão  mate- 
riaes  escolhidos  e  de  provada  solidez.  A  veracidade,  que 
Brito  tantas  vezes  ousára  tratar  de  leve,  serve-lhe  a  elle 
de  divisa,  e  a  sua  rara  comprehensão  do  sentir  e  crer  da 
meia  idade  portugueza,  maravilhosa  em  um  escriptor  do 
século  XVII,  quasi  swpre  adivinha  sem  esforço  a  hidole 
e  a  significação  dos  factos  e  as  verdadeh*as  raspes  d*elles. 
Methodico,  lúcido  e  circumspecto  destrama  sem  preci- 
pitação os  íios  dos  acontecimentos,  pinta  os  homens  e  as 
cousas  como  os  viu,  e  sem  se  remontar  a  grandes  alturas 
nunca  descáe  da  gravidade  e  singeleza  cultas  ^ 

<  Sobre  os  eim  e  qualidades  de  Brito  nai  eu  partes  da  Jtfonor- 
ehia  lAuiiana,  consultem-se  o  Ewame  de  AMigméaàM,  impresso  em 
iei6  por  Diogo  de  Paiva  de  Andrade,  a  DefeniSo  da  JMmardtôi  lâh 
iUana  por  Bernardino  da  Silva,  sobrinho  de  Brito^  a  memoria 
de  Fr.  Joaquim  de  Santo  Agostinho  Sobre  os  Codieei  ManuãeHplot  e 
CarioriodoRed  Mosteiro  de  AMaça^Sí  memoria  de  Fr.  Fortunato 
de  S.  Boaventura  no  tom.  vn  das  da  Academia  relatiTs  ao  auctor 
da  Jlãonúrehia,  o  a  Vida  de  BrUo  por  D.  Antonio  da  Visitação  Freire 
de  Carvalho.  Quanto  a  Brandão  o  sen  elogio  eneontra-se  nos  louvo- 
res com  que  o  sr.  A.  Herculano  apreciou  na  Bistoria  de  Pertu^  e 
ema  outros  csBcriptos  a  sua  eompetem^a. 


* 

M  mSTOUA  BE  PORTUGAL 


João  de  Barros,  admirado  pela  formosura  da  linjCfiia- 
gem,  pela  opulência  das  iiaagens.  o  pela  prui)iH,Ml;i(li>  c 
riqueza  da  phraso,  pegando  da  peooa  po/«  os  olhos  nas 
paginas  de  Túú  Lmo^  e,  tiHModo  por  modelo  o  liisioría-* 
dor  legendário  de  Roma,  entretece  á  imitação  â'6lle  a  soa 
exposição  de  discursos,  descripçSes  e  mov^ntos  ora- 
tórios, matizados  de  íiguras  e  de  cíires  tão  bella-,  que 
mais  se  assimilham  em  muitos  logares  á  tela  de  Houieio, 
do  que  iembram  a  sol)riedade  doa  grandes  mestres  gre- 
gos e  romanos.  IMogo  do  Couto,  encarregado  por  Fi- 
lippa II  de  continuar  as  Êkemdas  da  Índia,  nio  podia  com* 
petir  com  as  prendas,  que  asseguraram  a  Barros  a  re* 
putação  merecida  de  eminente  j)r(jsa(ior.  Muito  inferior, 
como  estyiista,  suas  faculdades  eram,  comtudo,  mais 
apropriai  ao  olfido  de  historiador,  e  a  rapidez  com  que 
componha  parece  quasi  inacreflítavd.  Desde  que  aeceitou 
completar  as  narrações  de  Barros  até  1616»  em  que  fai- 
leceu,  sete  décadas  divididas  em  muitos  livros,  provara» 
a  sua  fecundidade,  fadiga  ímproba  aggravada  peia  leitura 
dos  documentos  e  memorias,  que  teve  de  consultar  1  Muito 
mais  imparcial,  e  menos  aulico,  do  que  o  seu  predecessor, 
homem  honrado  e  inisiigo  jurada  dos  abusos,  como  de- 
monstram os  diálogos  do  Soldado  Frúiieo$  tíSo  esconde, 
nem  attenua  a  iiedioridez  dos  vicios,  nem  disfarça,  ou 
descnl[)a  as  acções  torpes.  Antevê-se,  lendo-o,  e  notando 
as  sombras  do  quadro  qual  será  em  breve  o  desenlace 
da  luta,  que  s6  uma  raca  forte,  verdadeira  raça  de  gigan- 
tes, podia  sustentar.  O  lavor  da  phrase  nSo  o  sedni.  Thn- 
bra  em  ser  justo  e  exacto,  e  a  locução  clara,  e  por  vezes 
sentenciosa,  exprime  quasi  seiíipi  e  »  oin  lealdade  os  sen- 
timentos que  o  inspiram,  (juando  o  assumpto  sobe  sabe 
subir  com  elie,  e  a  vehemeocia  e  os  aâectos»  as  pintaras 
enérgicas,  e  os  traços  delicados  nSo  assustam,  o  seu  ta- 


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im  êãooM  xm  E  xmi  n$ 

lento,  mas  não  o  tentam.  Hyperboles  arriscadas  e  con-  ^ommi 
eeiloftroâiMdos,  menos  próprios  de  mngoslo  poro,  qo^ 
bim  em  partes  a  betieia  desaièctada  do  seu  livro.  Estes 
prennticiospor  poaco  repetidos,  se  já  aecusam  a  decadên- 
cia, ainda  apparecem  felizmente  como  nódoas  fupritivas  *. 

Manuel  de  Faria  e  Sousa  escreveu  em  hespanbol,  ver- 
sando com  assidua  diligencia  as  matérias  cnticas  e  histo- 
rícas.  Mais  erudito  do  que  elegante,  e  mais  noticiosa  do 
que  agradável,  deixa-se  vencer  pw  vezes  da  soa  inclina- 
ção ás  exâgei  ações,  encarece,  ou  diminue  os  homens  e  os 
successos  sem  rasSo  sufficiente,  e  nem  sempre  edifica 
sobre  bases  a^  segaras.  Entretanto  a  Europa,  a  Am 
e  a  Africa  F&ttugmzas  encerram  particularidades,  que 
buscaríionos  n'o«tra  parte  em  vio,  e  o  Epitome  de  Im 
Historias  Porttiguezas  offerece  um  resumo  sem  novida- 
de, mas  claro  o  deduzido  dos  remados  de  todos  os  sobe- 
ranos desde  Afionso  Henriques  até  á  dynastia  da  casa  de 
Anslria.  Duarte  Nunes  do  LeSo,  apesar  de  partidário  do 
domínio  castelhano,  nem  por  isso  desprezava  as  tradi- 
ções pátrias,  de  que  íoi  activo  investigador,  co?no  attes- 
tam  as  Chronicas  dos  Reis  de  Portugal  até  Afiooso  V. 
Compiladas  dos  antigos  escríptores  ainda  inedftos  no  seu 
tempo,  que  Le9o  nem  sempre  soube  abreviar,  ou  trado* 

1  Diogo  do  GoQto,  naseido  em  1812,  estudou  nas  aulas  do  ooUe- 
gío  de  Sauto  Antáo,  í(â  moço  da  camará  de  D.  JoSo  lU,  e  passou  a 
seirir  na  índia  na  idade  de  dezeseis  annos.  Sobre  os  quilates  do  seu 
est>  lo  e  câpaeidade  como  historiador  escreveu  largamente  Severím 
de  F^m»  diiGWio  pag.  148  a  157.  D.  Francisoo  Maouel  de  Mello 
GÍta-o  com  kKim  na  oarta  4-i,  e  o  licenciado  Manuel  Goneia  no 
Ommentarío  aos  Lusiadas^  10, 31,  affirma  a  fidelidade  de  suas  des- 
cripçõea  Eiogtaram-o  entre  outros  escrlplores  estrangeiros  0.  An- 
tonio Capmany  no  Di$mno  IhreHminar  âo  Tlmfyro  Butorieo  CríHeo 
d$  Im  JBhqmneh  BêpaSola,  pag.  SS. 


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USTOBIA  DE  PORTUGAL 


sdcaeiaszir  pâia  a  súa  linguagem.  Esta  obra  extensa,  mas  de 
pouco  mérito  intrínseco,  não  dispensa  a  confrontação  dos 
origíDaes.  Basta,  por  exemplo,  comparar  Fernão  Lopes 
na  historia  de  D.  JoHo  I  com  Duarte  Nunes  para  se  per- 
ceber a  immensa  distancia,  que  os  separa,  e  para  se  notar 
quão  longe  comain  já  os  liomens  dos  fins  do  spciilo  xvi 
do  coahecimento  da  vida  e  dos  costumes  da  idade  me- 
dia, que  Dão  entendiam  qoasi,  e  que  não  admira,  por* 
tanto,  que  não  soubessem  interpretar. 

As  palmas  cortadas  por  Barros  longe  de  seccarem  no 
periudu  seguinte,  reverdeceram  nas  mãos  de  tres  escri- 
ptores  tão  distinctos  como  ^r.  Luiz  de  Sousa,  o  padre 
Antonio  Vieira,  e  D.  Francisco  Manuel.  Encerrou  o  pri- 
meiro com  chave  de  oiro  o  cyclo  memorável  da  escola  do 
século  XVI.  Fez  o  segimdo  a  admiração  da  primeira  me- 
tade do  século  XVII  suspenso  diante  do  púlpito,  ou  antes 
da  tribuna,  do  alto  da  qual  sua  grande  voz  abrasava  os 
auditórios.  O  terceiro,  finalmente,  compondo  nos  idiomas 
castelhano  e  portugnez  com  igual  mestria  sobre  os  mais 
variados  assumptos  de  prosa  e  verso,  pela  vastidão  do  sa- 
ber, pela  flexibilidade  do  talento  e  pela  formosura  da  lin- 
guagem mereceu  o  conceito  de  clássico  nas  duas  litte- 
ratoras,  que  seus  escriptos  enriqueceram. 

Das  tres  obras,  em  que  Fr.  Luiz  de  Sousa  empregou 
a  penna,  a  Historia  de  S.  Domingos,  a  Vida  do  Arce- 
bispo D.  Fr.  Bartholomeu  dos  Martyres  e  os  Annaes  de 
D*  João  IIJ,  só  uma,  a  ultima,  podia  admittir  largueza 
de  traços  e  maior  diversidade  de  debuxos.  A  cbronica  da 
ordem  dominicana  fechava  o  auctor  no  círculo  ando  e 
acanhado  da  íaadação  e  penitencia  dos  mosteiros.  A 
Vida  do  Arcebispo  ainda  mais  estreito  campo  lhe  oíTe- 
recia,  limitando-o  ás  modestas  proporções  da  biograpbia 
de  um  religioso,  que  a  mitra  assustava  como  um  castigo. 


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DOS  SÉCULOS  XVn  E  XYOl  S97 


e  ao  qual  as  honras  prelaticias  se  afiguravam  um  peso  scimcu» 
intolerável.  £  entretanto  como  a  uiagia  do  estylo  espai-  |^ 
rece  e  transforma  tudol  Aquellas  mmorías  quasi  domes- 
ticas da  existeDcia  do  arcebispo  attrahem  e  prendem  mais» 
do  que  um  livro  de  novellas,  e  muitos  capitulos  da  histo- 
ria monástica  escurecem  as  narrações  mais  recreativas. 
Nos  Annaes  de  D.  João  Hl,  a  que  a  mprte  roubou  a  ul- 
tima lima,  rasgavam-se  horisontes  mais  amplos,  e  grandes 
acções  convidavam  o  pincel  a  retrata-las;  mas  o  raro  me- 
recimento de  Fr.  Luiz  de  Sousa  consiste  em  enlevar  pela 
singeleza  na  apparencia  desartificiosa,  pela  propriedade 
dos  vocábulos,  peio  tom  amoravel  e  ailectuoso  das  phra- 
ses,  e  pela  graça  moas  vezes  calculadamente  innocente, 
oQtras  sinceramente  maviosa,  qoe  aviva  a  ex[M*e8âSo  dos  * 
sentimentos.  Não  é  pintor  inventivo,  não  solta  vôos  ar- 
rebatados, mas  sabe  tocar  o  ideal  com  tanta  delicadeza, 
que  as  realidades,  sem  desapparecerem,  como  que  se 
transfiguram  e  ficam  outras.  S3o  exemplos  d'esta  facul- 
dade, propriamente  sua,  as  descripçQes  dos  conventos 
da  Batalha,  de  Bemfíca,  e  da  visita  do  arcebispo  ás  serras 
do  Minho.  (Conciso  e  conceituoso,  ninguém  dispõe  com 
mais  regrada  opulência  dos  poderes  da  língua,  nem  com 
mais  arte  e  menos  affectação  soube  nmica  reger  o  gosto 
e  a  dicc3o,  elevando-se  com  a  idéa,  e  vestíndo-a  dos  en- 
íeitcs  adequados.  Os  períodos  harmoniosos  e  bem  acaba- 
dos encantam  o  ouvido,  como  poemas,  a  prosa  rica  e 
fluente  seduz  como  verso,  e  tudo  o  que  desenha  se  anima 
e  vivifica.  Superior  no  género  histórico  a  muitos  dos 
cbronistas  que  o  precederam,  Fr.  Luiz  de  Sousa  nlo 
possnia,  comtudo,  os  dotes  críticos  de  Hrandão,  nem  os 
políticos  de  D.  Francisco  Manuel  de  Mello  *. 

1  Fr.  Luiz  de  Soma,  no  século  e  antes  de  vestir  o  habito  Há- 
mA  de  Sonsa  Coutinho,  conára  com  gnmde  aproveitamento  os  es- 


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m 


HISTORIA  P^ATOGÂL, 


Ao  padre  Vieira  gran^^earam  renome  exactanieiite  mui- 
tas  das  qualidades  oppostis.  Manuel  de  Sousa  Coutinho, 
quebrando  a  espada,  8^puitcm*se  rio  claustro,  desenga- 
ntdo  das  iMosões  do  seoiílo»  a  96  se  lembrava  tahrei  d'eUe 
por  tlgmiia  unidade  buns  viva,  que  as  iMu^edes  do  most^ 
rediseretamente  calaram.  Q  jesuíta,  pelo  contrario,  devo- 
rado do  orgulho  da  sciencia  e  cônscio  das  próprias  for- 
ças, consei  vára  na  vida  monástica  as  paixões  fogosas  de 
tribuno  a  par  das  mais  arraigadas  aspirações  politicas  e 
de  todas  as  vaidades  de  orador  com  que  nascéra.  Aquela 
atHividade  ínqinela  aehava  ainda  pequenos  dois  mundos 
para  theatro  de  seus  triiimphos,  e  m  jurll,!  ardente  eloquen- 
ci?»,  julgando  o  púlpito  apertado  de  riiais,  nào  duvidava 
desdobra-loem  «róstro*  ou  em  «agora»  paraaffirmarthe- 
ses  audaciosas.  Goberto  com  o  manto  sacerdotal,  fulmina- 
va, como  prégador,  não  sé^as  culpas  e  os  maus  costumes, 
mas  os  povos,  os  reis  e  os  ministros.  O  idioma  pátrio  tor- 
non-?e  em  suas  mãos  um  instrumento  dócil,  poderoso  e 
irresistivel.  Nifiofuem  itie  conheceu  mais  intimanieute  os 
s^redos,  ou  lundtu  de  mais  brilhantes  metaes  a  liga,  m 
que  sinzekm  as  imagens  e  esculpiQ  as  pbrases.  MasYieíra, 
Miando  do  eéu,  nunca  tirava  os  olhos  da  oôrte  e  da  cidade. 
A  aula  politica  era  para  elle  o  verdadeiro  templo,  e  a  elo- 
quência sagrada,  único  meio  de  publicidade  da  epocba,  a 

tuilos  de  (Coimbra,  e  seguiia  dt-pois  a  fí^iTeira  das  armas  na  milícia 
de  Malta,  ('aptivo  dos  inouro?^,  lex  e  jj  i  tonipaiiheiro  em  Argel  Mi- 
jíucl  de  (ATvantes,  aiictor  de  1).  (Juix  dIp,  com  o  qual  estreitou  in- 
timas relações  de  amisade.  Os  louvores  do  seu  engenho,  como  pro- 
sador, tOein  sido  geraes.  Manuel  d«  Severim  de  Faria,  disc.  ii, 
pag.  8i  V.,  Fr.  Antoiíit)  Ijiandão,  Monairliia  Lmitana,  4,  13,  e 
4,  12,  Jorge  Cardos,  Dio^o  de  Paiva,  1).  Francisco  Manuel  de 
Mello,  Afologos  Dialogaes,  38G,  e  u  Padre  Antonio  Yiciia  applau- 
dem  unanimes  nos  termos  mais  expressiví^  as  bellas  paginas  com 
que  Fr.  Luiz  iionrou  a  pahia,  a  lingua  vernácula,  e  o  próprio  nome. 


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DOA  flBC0LO6  IVR  B  XfHI 


soa  arma  invênclvei.  Estudando  e  affeiçoanáo  as  mais  luzi-  sàmám 
das  galas  immolaTa  sem  escrúpulo  a  idóa  e  a  fòrma  á  sécto  ^ 
de  applansos,  ao  desejo  de  ostentar  oiiginaUdadeemlodo, 

e  á  idolatria  do  próprio  génio.  A  estes  sifeetos  transito* 
rios  não  hesitou  niinci  em  sacrilicai*  a  verdade,  a  verosi* 
mllhaDça  e  a  sua  gioria  mesmo.  Se  um  principio  absurdo, 
se  orna  opiniSo  arriscada  podia  sobresaltar  p^a  noyidaâe, 
abraçaya-a  logo,  e  propunliM  escorada  em  sophismas  e 
argucias  ás  vezes  quasi  pueris.  Ouvindo-o,  sentimos  pas- 
sar sobre  nós  o  sò])ro  de  uma  grande  alma,  e  cobrem-nos 
as  azas  de  uma  nobre  intelligeDCia;  mas  aquelies  arrei>a* 
tameutos,  aquelies  affectos»  aquellas  eommoções  pouco 
ou  nada  dixm  ao  cora^.  O  amor,  a  fé,  e  a  unçio  fiil- 
tam.  Abundam  os  primores  em  seus  sermões,  e  apesar 
d'isso  ])oucos  são  irrepiviíensiveis,  e  alí^ms,  se  abo- 
nam muilo  os  dotes  do  estadista,  ri^o  aííirniam  as  crenças 
do  orador.  Mais  aiuda.  As  mamléstações  espiendidas  do 
génio  de  Vieira  s3o  empanadas  repetidas  Teses  pelo  ha- 
bito vicioso  das  empolas  e  dos  equívocos  gon^roristas, 
pelo  abuso  da  anlitbese,  pt^las  subtilezas  exliolaslicas,  e 
até  por  jogos  de  palavras  e  de  vogaes.  Aqueile  assom- 
broso talento,  sempre  apaixonado,  e  sempre  tentado  de 
audadas  e  temeridades,  nSo  sabia  resistir  ao  gosto  da 
epocha,  ao  amor  do  paradoxo  e  á  vai();i(!t'  de  ser  tido  por 
propheta.  Os  imitadores,  exagt  j  aodo-ihe  os  deleitos,  pro- 
duziram verdadeiras  monstruosidades,  e  apressaram  a 
corrupção  da  arte  e  mesmo  a  perversSo  da  lingua,  de 
que  elle  íòra  tão  zeloso  e  esmerado  cultor  K 

1  Knlra  nniitoft  mrmõea  «pplaiididoi  de  Vieira  sobresáem  o  que 
prégou  na  Bahia  em  1640  pelo  Bom  Suecem  àm  Armea  Fcrtuguê- 
zas,  o  qual  nmreeeu  ser  traduzido  em  francez,  e  que  Boesaet  nio 
engeitaria  coroo  uma  de  suas  mellioree  onçOts,  o  SerrnSe  de  Sanh 

ÀrUoniOy  recitado  em  S.  Luiz  do  Máianliflo  em  1651,  notável  pela 


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300 


UISTOBU  D£  PORTUGAL 


sdndas  A  exislencia  de  D.  Francisco  Manuel  de  Mello  correu 
jj^j  agitada  e  repartida  entre  u  bulício  das  armas,  os  tra- 
balhos de  uma  longa  perseguição,  a  par  do  estudo  per- 
severante das  letras  antigas  e  modernas.  Homem  de 
ac^o,  dotado  de  faculdades  elevadas  e  de  eradição  vas- 
tíssima, amigo  de  D.  Frandsco  de  Quevedo  Villegas,  cujo 
engenho  tinha  com  o  seu  grandes  aífinidades,  e  esti- 
mado dos  homens  mais  doutos  e  dos  príncipes  mais 
iliustrados  da  Europa,  versou  com  mão  segura  os  géne- 
ros mais  diversos  e  (^postos,  e  em  quasi  todos  provou 
immenso  cabedal  de  scienda.  Afinado  pela  concisão  ner- 
vosa de  Tácito,  molda  as  phrases  e  os  periodos  com  per- 
feição, e,  não  só  não  evita,  como  procura  a  obscuridade 
e  a  suspensão  elliptica,  imitando  o  que  chama  chistosa- 
mente as  travessuras  do  seu  aactor  predilecto.  Prezando 
a  propriedade  e  a  correcção  dos  vocábulos,  e  preferindo 
á  simplicidade  nua  a  dicção  ornada,  quasi  sempre  foge 
das  exagerações  e  enfeita  os  conceitos  sem  os  carregar 
de  ouropéis.  O  gosto  pervertido  da  epocha  não  perdoou 
a  muitas  de  suas  paginas,  as  antitheses  e  os  trocadilhos 
desfeiam  n*ellas  mais  de  um  trecho;  mas  assim  mesmo 
cedeu  o  menos  que  podia  ceder  á  invasão,  e  nunca  lhe  sa- 
crificou a  virilidade  do  estylo.  O  numero  e  quahdade 
de  snas  obras  attestam  a  quasi  universalidade  do  seu  ge- 
t  nio  e  dos  seus  conhecimentos.  Politico,  escreveu  a  defeza 
dos  direitos  de  D.  João  IV  e  a  justificação  das  rasões  dos 
portuguezes  para  elevarem  ao  throno  a  dynastia  de  Bra- 
gança. Moralista,  deixou-nos  a  sua  Carta  de  Guia  de  Casa- 

bcHa  e  engenhosa  allegoria  dos  peixes,  admiravelmente  sustentada, 
e  o  do  Bom  Ladrão,  pronunciado  na  igreja  da  Misericórdia  de  Lis- 
boa em  1655,  que  é  nada  menos  do  que  uma  Ychemente  declama- 
$8o  politica,  cuja  ousadia  espanta,  considerados  o  tempo  e  o  regi- 
men. 


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DOS  SÉCULOS  xvu  £  xvm  301 

dos  e  as  saas  Obras  Morales.  Historiador,  provou  a  com-  f 

petencia  em  algumas  das  Epanaphoras,  na  Historia  de 
los  Movimientos,  Separatian  y  Guerra  de  la  Catalufia, 
reputada  clássica  pelos  hespaoboes,  e  no  Taciio  Portu- 
guez»  ainda  inédito.  Soldado,  mostrou  que  unia  o  saber 
â  experiência  da  sua  profissio,  tanto  na  sua  PoUtica  Mt- 
Utar,  como  nos  seus  Tratados  da  Fortificação  das  Pror 
ças  e  das  Insígnias  Militares,  Poeta  as  Tres  Musas  de 
Melodino  e  os  Autos  e  Comedias  aâirmam  que  a  inspira- 
ção se  lhe  não  mostrava  esquiva.  Critico  das  letras  e  dos 
costumes,  os  seus  Ápohgos  Dittíogaes,  em  que  o  riso  e  a 
ironia  nunca  degeneram  em  satyra,  encerram  toques  de 
fina  observação  e  pinturas  excellentes,  e  mais  aiada  ao 
Hospital  das  Leiras  ]uizos  e  apreciações  exadissimas  so- 
bre o  mérito  dos  escriptores.  £m  epistolograptiia  a  coi- 
lecção  de  suas  Cartas  Familiares,  impressa  em  Roma, 
hombreia  em  muitos  logares  com  as  de  Vieira  em  graça, 
em  viveza  e  em  naturalidade.  D.  Francisco  Manuel  e  o 
oratoriano  Manuel  Bernardes  íorani  os  últimos  represen- 
tantes da  escola  clássica  da  língua,  e  os  últimos  prosado- 
res que  a  ennobreceram.  Depois  d'eiies  começa  o  período 
de  trevas,  e  só  de  raros  em  raros  intervallos  surge  um 
nome,  cujo  brilho  momentâneo  adelgaça  a  escuridão. 
Fòra  injusto  deixarmos  do  ai)onlar  entre  esses  nomes  o 
de  Sebastião  da  Roclia  Pitta,  auctor  da  Historta  da  Ame- 
rica  Poriíigmza,  porque  resgata  com  verdadeiras  beUe- 
zas  os  lapsos  gongoristas. 

Um  período  em  que  tantos  varões  illustres  florece- 
ram,  e  no  qual  as  manifestações  do  espirito  saíram  tão 
copiosas,  e  algumas  tão  apreciadas,  não  pôde  ser  qualifi- 
cado com  verdade  de  estéril,  ou  de  obscuro,  nem  devem, 
sem  motivo,  attribuir^se  a  influencias  pérfidas  e  calcula- 
das do  governo  hespanhol  as  causas,  em  grande  parte 


Himillà  DK  MmOAL 


MiMiMneraes,  que  ao  %ax         cteterminaram  a  declinação 
^laaá  toUl  dos  6fiM<Mi « <^  l^ofito,  deoliii«clk>  nasci 
ifiHlaçSo  infelit  do  eslyio  do&omiiiado  cuko  e  da  ^ada 

e  funasla  du  ecç^o,  que.  toraáraquasi  exclusivamente  ec- 
eiesiastico  õ  eiismu,  lião  só  itós  ooilegios  da  <  (iiupauhia 
de  Jesus  e  das  outras  ordens»  mas  alé  no  seio  da  univer- 
sidade de  Coiflibra.  Suiocadas  ao  berço  pela  renaaGeiír 
ça  aa  tailativ»  para  a  ereacio  de  uma  Mttenitura  nacio- 
itâl  e  impostas  pelos  legisladores  do  Parnaso  as  poéticas 
como  invioláveis,  a  imaginação  vegetou  cai>liva  em  um 
ekciiie  apertadíd,  que  a  íiual  rompeu,  ims  para  se  entre- 
^  ioa  deavariose  esgares  do  delírio  googorísU.  Nos^ 
eoloxvi  a  liogua  aperfeiçoou-se  earítiaeeida  cosa  «s  obras 
de  Ferreira,  Miraoda,  Gamões,  Barros,  Lucena,  Arraes, 
Heitor  Pkito  e  outros  escriptores,  e  os  domlmos  da  poe- 
sia» (^iltivados  c(Mn  desvelo,  desataram-se  em  íructos  e 
floreSb  Na  pnaaeira  netaâe  do  século  xtii»  cohio  acabá- 
ttfts  de  usr,  as  tradicíles  dos  honiets  eodBeotes  do  tempo 
de  TL  Manoel  e  4e  D.  Mo  ffl  aiKda  nio  estavam  oblite- 
radas, e  Fr.  Bernardo  de  Brito,  Vieira  e  Fi\  Luiz  de  Sousa 
ftlo  tinhaDft  de  que  se  envergonhar,  compai^ando  suas  pa- 
ginas com  as  d'elles,  nem  Brandão,  Duarte  Nunes,  e 
D.  Franoisoo  Manuel,  coBfrontaiido  seas  trabalhos  bisto- 
ríeos  oom  os  dos  ébronistas  anteriores. 

Mas  o  impulso  parou,  e  as  forças  intellectuaes  con^- 
liadasja  se  nâo  sentiam  com  o  \  iiror  necessário  para  de- 
bellarem  a  enfermidade  e  operai  em  a  mudança,  em  que 
de¥ía  «oiiislár  «a  salvação,  sioudindo  « tuiek  dos  maus 
preoeilia,  seeularisando  « íntnKçio,  ahriado  novos  ca- 
minbos  ás  idèas  e  á  léma,  e  <;einbaiMftlo  a  cemipção 
litteraria  com  exemplos,  único  modo  efficaz  de  renovar 
a  l  epublica  das  letras  desde  as  bases  até  á  cúpula.  Nada 
dislo  ao  fei^  porque  se  não  pedia  tear.  A  iniciativa  indi- 


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DOã  SÉCULOS  1¥U  £  XVIii 


m 


ylditiil  era  muito  fraca  para  hitar  contra  a  torroDte  dos 

qiii3  liaham  nas  imos  a  ediicação  da  juventude,  e  por 
meio  d'eUa  o  futuro  da  sociedade.  O  governo  de  Madrid 
cruzou  06  imiços.  Nio  tm  [)arece  ^  ièe  restasae  outro 
artMtrio.  Nas  it^es  da  ialeUigaocia  aa  imetícas  •  «r* 
nadias  bIo  se  decretam.  Os  Filifjpeii  mandaram  tm^m» 
por  Conto  as  Décadas  da  Índia,  privilepiaiaiii  a  impres- 
são das  chronicas  de  Duarte  iSunes  e  das  ol  tras  deFr.ôâr*- 
nardo  de  Brito»  e  protegeram  aaboas  artes  cam  o  poooa 
aélo  eom  que  procediam  em  tudo,  mascom  o  desejo  po- 
sitiw  de  as  ajudar.  Se  as  reformas  repetidas  do  ensino  se- 
cundário e  superior  termiiiaram  pelo  triunipiío  <Mímpl^o 
do  io&Ututo  de  Santo  igaacio,  os  primeiros  passos  para 
iaao  datavam  de  loqge,  e  a  O.  ioio  iii  e  a  D*  Sebaatiio 
eaèem  eom  maia  ftmdamenie  as  iMíndpaee  i  esponsaM- 
iídades  do  mal.  Quando  slíIííu  ao  throno  a  dyiia^tla  tia 
casa  de  Áustria,  achou  a  companhia  de  iéms  m  coiè^gk) 
daa  «tas,  aotioo  a  «mvarsiáade  avataaUada,  viu  6a  seim 
eoiiegioa  abeitoa  e  eoBeonídoa  em  Iodas  as  lenran  pHn^ 
cipaes,  €  ella  senhoi  a  da  vontade  das  novas  ^ra^ões  pe- 
las aulas  e  pela  educação,  e  do  coraçío  da>  íaiinlias  i>eio 
cofilèssiOBario  e  pelo  puipilo.  Precipitada  das  posições 
eecqmdas  nao  seria  eomaaeltimento  Ml  panreíswMí»- 
mes,  e  muito  menos  |iara  prâMMpss  ostvaiiffeífee.  Akm 

d'isf;o  a  actividade  litteraria,  desenvolvida  nos  sossenta 
annos  que  durou  o  seu  regifiíen,  a  perfeição  que  a  lnigi*a 
attingiu,  apesar  da  castelhana  ser  considerada  n'aquelie 
tempo  quasi  a  língua  universal,  e  a  mesma  escolha  dos 
assumptos  quasi  todos  destinados  a  espertar  no  paiz  a 
meiiiona  de  seus  feitos,  inculcam  bem,  que  o  gabinete  de 
Madrid  não  concebera»  nem  intentara  pôr  em  execução  o 
tenebroso  plano  de  coDspirar  com  os  jesuítas  a  mutilando 
inleltoctual  do  reino. 


dOi    niSTOIUA  DE  PORTDOAL  DOS  «ECXSWS  XVU  B  XVIU 

Se  os  escriptores  não  desíhictavam  plena  Uberdade, 
se  o  índex  e  a  censura  comprimiam  o  pensamento,  a 
colpa  foi  mais  do  fanatismo  dos  súbditos,  do  que  da  acçio 
violenta  do  poder.  O  odio  ás  heresias  e  ao  judaismo  e  os 
pi  iiicipios  exclusivos  existiam  [mais  vivos  no  ensino  da 
plebe  e  das  classes  medias  do  que  mesmo  nas  idéas  do  cie* 
ro.  Quanto  á  censura  politica  nSo  julgámos  também  que 
pesasse  com  demasiado  rigor,  lendo  os  opúsculos  de  João 
Pinto  Ribeiro  e  os  livros  de  vaticinios  e  promessas,  que 
serviram  de  prologo  á  revolução  de  lt)40.  O  governo  hes- 
panbol  limitou-se  a  prohibir  em  1623,  em  1627  e  em  1632 
que  se  publicassem  relações»  gazetas  ou  noticias  dos  suc- 
cessos  contemporâneos  sem  preido  exame  e  licença  do 
desembargo  do  paço,  e  a  não  consentir  a  entrada  das  obras 
impressas  fóra  do  paiz  sem  o  tribunal  as  ver  também. 
Estas  disposições  só  se  tomavam  oppressivas,  quando  a 
intolerância  religiosa  se  valia  d'eUas,  e  em  geral  quasi 
que  estavam  reduzidas  a  pura  formalidade.  Em  todo  o 
caso  fòra  pouco  justo  querer  deduzir  da  sua  execução 
todas  as  causas  de  atiazo  scientifico,  ou  as  rasões  eíQ- 
cientes  de  males,  que  escondiam  a  origem  nas  entranhas 
dos  vícios  sociaes.  O  espirito  do  paiz  resentia-se  do  seu 
estado  moral.  Quando  todas  as  faculdades  pbysicas  es- 
moreciam quebrantadas»  seria  quasi  loucura  suppor»  que 
as  intellectuaes  podessem  resplandecer  como  nos  curtos 
dias  de  prosperidade  e  elevação  ^ 


1  Ahaiá  de  16  de  novembro  de  1613  e  cartas  r^as  de  S5  de 
jMMÍio  de  1617  e  de  31  de  maio  de  1631 


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LIVRO  IX 


PARTE  IX 


tom  V  3ff 


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LIVRO  IX 

PARTE  IX 

FORÇAS  SOCIÂES 

CAIUILLO  I 

O  CLERO 

ImKurtancu  do  «»ta4o  04x|c!íum»Iicu.  Lutas  aos  priiueirQj^  sdcuIos  da  mOQarcbi%  eatre 
a  «orAa  •  o  éUtt^^k  «wia  ronaaa.  ConwrdâtM  d»  d-rel  ft.  BlBUL—FolttlM  d«s 
aobimMi  do  nonlo  xvi.  Sw  latia»  alKança  can  a  Ign^a.  Ifon»  pvMligiot.  Iib- 

sidios  ecdesiasUcos.  Promessas  do  Filippe  II  ácerca  dos  beos  do  cloro.  >-Vi(4en- 
cias  de  Olivares.  (?ran'1f  a<'rnnmlar5o  de  proprif f1if^?s  ecdcsinsticas  nos  séculos  iTi 
e  xvjf .  Koiua  e  seus  cQlleclorõi.  — .Odio  provocado  pela  adminUtraçlo  do  oonde 
dn^e.  Effeitos  da  excessiva  riqueza  do  clero  secular  e  regular.—  Conventos  de  fm- 
taf.  Oompt^Mt  mnadant*  do>flnde«.  âlaqnidclo o saalnlIneBcliaolm o  eart* 
cttr  a  os  dMtinos  do  porv. 

As  influencias  theoci^aticas  tinham  sido  preponderantevs 
em  epocbas  mais  antigas,  e  no  século  xvii  ainda  eram  bas- 
tante poderosas,  e  Oio  poderosas,  que  o  donúmo  da  casa 
de  Áustria»  minado  por  ellas,  succumbiu,  e  que  a  dynastía 
de  Bragança  lhes  deveu  em  grande  parte  as  forças,  com 
que  snslentou  a  revolução  do  \  °  de  dezembro.  O  clero  e 
o  mouacbismo,  ligados»  dispuniiam  de  largo  poder  em 
uma  epodia,  em  que  a  opinito  m  quasi  toda  formada 
AOS  dauatrosi  nas  sacristias,  nos  púlpitos  e  nos  conflasio^ 
narios,  e  em  que  a  inslrucção,  viciada  e  rachitica,  não  ti- 
nha Quasi  de  secular  senão  o  nome.  Em  1580  Filippe  11  en- 
contiira  nos  monges  e  nos  clérigos  ousados  adversários» 
%  Ifrra  Obligado  a  desarma-los»  alternando  o  castigo  com  oa 


Diyilizeo  by  GoOglc 


m 


HISTORIA  DB  P0BTU6AL 


Odero  prémios  e  com  us  promessas.  Mas  a  memoria  dos  rigores 
licou  mais  viva,  do  qae  a  lembrança  dos  benelicios.  Fi- 
lippa III,  devoto  por  índole  e  por  educação,  e  o  doqne 
de  Lerma,  religioso  por  calculo  e  por  sentimentos,  pro- 
curaram sempre  assellar  em  todas  as  circumstancias  a 
sinceridade  do  seu  zèlo  pelo  serviço  de  Deus,  e  a  expul- 
são dos  mouriscos  provou  até  onde  o  fanatismo  podia 
arrasta-los.  Portugal  do  meio  das  calamidades,  que  o 
opprimiam,  mantinha  cada  vez  mais  liva  a  luz  da  fé,  e 
írequeiites  vezes  motins  v  i)erigosos  lumultos  mi  diversas 
terras  do  reino  contra  os  hel)reus  conversos  Linliain  pa- 
tenteado o  ardor  sombrio  dos  ódios  populares  e  o  aferro 
do  vulgo  á  unidade  das  crenças. 

Os  soberanos  naturaes,  gratos  á  protecção  do  braço  di-  * 
víno,  haviam  assignalado  a  sua  piedade  desde  AiTonso  I 
em  monumentos  grandiosos,  enriquecendo  os  mosteiros, 
as  cathedraes,  e  a  milícia  das  ordens  de  cavallaria  reli- 
giosa com  tanta  liberalidade,  que  em  1581  os  seuspre* 
díos  rústicos  eram  avaliados  quasí  na  quarta  parte  da  su> 
perficie  arável  do  paiz.  Templos  sumptuosos,  conventos 
construídos  e  dotados  com  largueza,  doações  í,^enerosas 
e  incessantes  de  herdades,  quintas,  villas.  senhorios,  e 
rendas  abonaram  desde  o  berço  da  monarcbia  a  extensão 
da  munificência  real.  A  devoção  dos  particulares,  esti- 
mulada pelas  idéas  commuos  â  epocha,  e  explorada  com 
supplicas  e  conselhos  não  se  mostrara  menos  faci!  em  lo- 
cupletar os  que  o  remorso  e  os  terrores  da  eternidade 
lhes  representavam  como  depositários  das  chaves  da  sal- 
vação. O  clero»  pelas  suas  riquezas  e  pelas  profundas  i  ai- 
zes  lançadas  no  solo  e  no  animo  dos  habitantes,  constituía 
de  certo  a  classe  mais  opulenta,  e,  unindo  o  império  abso- 
luto das  consciências  á  imijortancia  dos  mais  amplos  pri- 
vilégios, tornara  o  seu  voto  preponderante  e  decisivo  em 


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DOS  SÉCULOS  XVn  E  XVlli  309 

muitas  occasiões,  pesando  na  balança  dos  destinos  pu-  o  rim» 
blicos,  qualquer  que  fosse  o  lado  para  onde  se  inclinasse. 
Os  povos,  aíTirmando  em  1579,  que  o  reino  com  mais 

rasão  ixmíi.i  rliamar-se  da  if^reja,  do  que  ns  cidades  de 
Itália,  cuja  cabeça  ora  Homa,  pouco,  ou  nada  tinham 
eiuigerado  a  verdade. 

Nos  primeiros  séculos  da  monarchia  a  ordem  ecclesias* 
lica  íiinda  íòra  <le  certo  muito  mais  poderosn,  constituindo 
na  realidade  um  estado  no  seio  do  estado.  (:onii)OSta  dos 
bomens  mais  aptos  e  iliustrados,  dos  prelados,  dos  có- 
negos das  catbedraes  e  das  coliegiadas,  dos  abbades,  prio- 
res, e  gnardiSes  dos  institutos  religiosos  e  mendicantes, 
e  dos  cavalleiros  e  commeiidadores  das  ordens  militares 
dominava  o  conselho  dos  reis,  v  quasi  todos  os  i  atiius  da  . 
administração,  e  ingeria-se  em  todos  os  negócios  públi- 
cos e«pariiculares.  O  papa  era  o  sen  verdadeiro  chefe,  e 
Roma  a  sua  verdadeira  cabeça.  A  violência  das  contesta- 
ções entre  o  clero  e  os  soberanos  da  primeira  dynastia 
até  D.  Diniz  prova  ao  mesmo  tempo  o  orgulho  dos  pon- 
tífices, a  ambição  dos  ministros  da  igreja,  e  a  tenacidade 
da  resistência  do  poder  real  supplantado,  mas  nmica  intei- 
ramente vencido  na  defeza  de  suas  prerogativas  essen- 
ciaes.  A  Unguagem  dos  dociimentos  da  cúria  romana 
e  os  actos  dos  seus  legados  mostram  até  que  ponto 
subiam  as  exigências  do  Vaticano,  e  qu^o  arreigado  es- 
tava o  convencimento  da  sua  superioridade.  O  vigário  de 
Christo  não  hesitava  em  avocar  ao  tribunal  da  santa  sé  o 
conliecimento  dos  assumptos  mais  prr  nves,  mesmo  tem- 
poraes,  e,  fulminando  a  desobediência  dos  principes, 
como  erros  contra  a  fé,  arrancava-lbes  a  corOa,  desligava 
08  súbditos  do  juramento  de  fidelidade,  e  dispunha  dos 
reinos  como  de  feudos,  ou  de  cousas  próprias.  O  clero, 
da  sua  parle,  unido  em  idéas  e  em  interesses  com  a  cu- 


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aio 


HBTORU  DB  PORTOGAL 


O  ctaw  ria»  sustentava  as  pretenções  do  papa,  e  valia-se  do  terror 
das  armas  espirituaes  para  as  fazer  prevalecer.  Os  elsas- 
tros,  seus  alliados  seguros»  engrossavam  em  todas  as  èon- 
tendas  as  iileirns  da  ordem  ecciesiastica.  As  abbadias  e 
os  conventos,  enriquecidos  pelos  monarchas  e  pelas  fa- 
mílias nobres,  empregavam  sem  escrúpulo  a  influencia, 
que  lhes  deviam,  contra  os  bemfeitores^ 

A  introducç9o  dos  dízimos,  generalísados  na  segunda 
metade  do  século  xii,  rúo  concorrêra  pouco  para  augmen- 
tar  a  importância  dos  mosteiros  e  rathedraes  federados 
contra  a  corôa  em  todos  os  conflictos,  em  que  ella  teve 
de  lutar  com  a  côrte  de  Roma.  Os  pretextos  não  faltavam. 
Os  papas,  arrogando*se  a  mísS9o  de  dispensadores  su- 
premos da  justiça  e  de  defensores  natos  dos  opprimidos, 
seguiam  os  passos  de  Gregorio  YII  e  de  Innocencio  III,  e 
eram  no  meio  do  cahos  da  meia  idade  a  única  força  mo- 
ral reconhecida  e  respeitada.  Ao  domínio  t9o  illimitado 
do  poder  espiritual  haviam  juntado  a  intervenção  poli- 
tica, e,  hivocando  as  liberdades  e  as  immunidades  da 
igreja,  a  voz  dos  successores  de  S.  Pedro,  qn-isi  como 
voz  do  Deus,  chegava  a  toda  a  Europa,  e  o  seu  in  aco 
armado  do  raio  das  vinganças  celestes  feria  as  cabeças 
mais  soberbas.  Estendiam  o  império  ião  s6  ás  pessoas 
e  ás  cousas  sagradas,  mas  aos  menores  incidentes  da 
vida  civil,  que  por  qualquer  modo  envolvessem  sombra 
de  ecciesiasticíjs.  Matrimónios,  testamentos,  doações,  pa- 
droados, contratos,  juramentos,  delictos,  impostos,  quasi 
tudo  sem  excep$9o,  podia  ser  chamado  á  sua  jurisdic(3o 

>  Aflbnso  Httiriqoes  dotou  msis  do  cento  e  eineoenta  ianju  o 
nMMtoirot  de  difforenlet  ovdeni.  Sancho  I  e  leiís  successores  foram 
ifwlmeute  generosos  com  elles.  Sobre  ai  lutas  do  clero  e  dos  reii 
da  primeira  dynastia  vide  HUioria  dê  Portuffol  |»elo  sr.  A.  Heicu* 
nm^  tom.  nem. 


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wm  SBCDLOfl  xm  e  vm  311 

para  ser  decidido  pelas  leis  canónicas.  Posta  a  questSo  o  dm 
n'este8  termos,  e  interpretados  assim  os  privilégios  sm* 

piíssimos  da  igreja,  ninguém  estava  no  caso  de  dizeraonde 
eiles  terminavam.  Vendo  temidos,  opulentos  e  impunes 
US  que  a  serviam  quizeram  todos  participar  das  mesmas 
vantagens,  e  a  ordem  clerical  cmn  máximo  desdouro  seu 
foi  invadida  por  uma  plebe  de  homens  indignos  e  de  mal- 
foitores  tonsurados,  que  buscavam,  não  nos  altares,  mas 
ao  ahriíTO  (Telles,  refugio  contra  a  expiação  dos  crimes, 
amparo  para  a  soltura  dos  attentados,  e  escudo  invul- 
nerável, que  os  cobrisse  do  castigo  dos  mais  desregra^ 
dos  costumes  ^ 

Não  podia  proloní?ar-se  Simillianle  estado,  e  coube  a 
D.  Diniz  a  gloria  de  ibe  pôr  termo,  congrassaodo  as  maio- 
res dissidências,  cedendo  o  que  já  era  impossível  manter» 
e  affirmando  os  princípios  que  deviam  assegurar  a  inde- 
pendência do  poder  real.  Reconhecidas  as  liberdades  da 
igreja,  arreigadas  nos  costumes,  e  confirmadas  pelo  di- 
reito canónico,  converteu-as  em  leis  pátrias,  límitou-as 
com  prudência,  e  cortou  pela  raiz  os  motivos  de  Inter- 
vençUo  á  cúria  romana.  Estas  resoluções,  approvadas 
pelos  prelados,  denominarain-se  Concordatas,  e  ficaram 
formando  as  bases  principaes  do  direito  ecclesiaslico 
d'aquella  epocha.  O  rei,  mostrando-se  liberal  com  o  clero 
nas  pretensões  individuaes  e  na  questSo  disputada  dos 
senhorios  das  terras,  acabou  de  o  reconciliar  com  a  co- 

-  &  Carta  de  AfTonso  IV  de  1352  aos  bispos  do  reino soliie  os  ex- 
cessos dos  rlpriíos  mnlfeitores,  Synopte  Chronologica ,  tom.  i,  part.x. — 
Lobão,  Dittertação  sobre  os  dizinm,  art.  4.» — J.  P.  Ribeiro,  Reflê' 
xões  Hiíitoricas^  part.  I,  ii.«9. — Voigt,  Historia  de  Gregorio  VIL — 
Hurler,  Historia  de  InnocMOQ  11!  e  dc  feu  Século.— Coelho  da  Ro- 
cha, Ensaio  sobre  o  Governo  e  a  í^itlação  de  Boríu^al,  art.  3." — 
Monarchia  ÍAuUana,  part  ti,  liv.  xviii. 


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3i2 


UISTORU  BE  PORTUGAL 


O  clero  rôa,  e  esta  pôde  sem  receio  oppor  depois  suas  recusas  for- 
maes  ás  novas  instanci.is  de  Homa.  Desde  então  o  braço  ec- 
clesiastico,  em  vez  de  hostUisar  a  realeza,  coritentou-se 
«com  a  manutenção  das  próprias  regalias.  consoUdaado,  e 
procurando  tomar  mais  extensos  os  vastos  domínios  que 
tinha  conquistado.  Suas  immensas  possessões,  isentas  de 
todos  os  encargos,  nem  pagavam  contribuição  alguma, 
nem  solviam  o  imposto  pessoal  da  milícia.  Nos  coulos  da 
igreja  não  entra\  aui  os  exactores  do  fisco  real,  e  os  cultiva- 
dores, que  os  faziam  valer,  não  pegavam  em  armas  senão  á 
voz  dos  prelados.  Os  bens  do  dero,  immobilísados,  nãd  en- 
travam na  circulação  do  commercio.  Os  foros  ecclesias-" 
ticos  impuiiiiam  iini  veto  quasi  absoluto  á  aceão  das  leis 
criminaes,  e  em  parte  á  acção  da  justiça  civil.  D.  Diniz 
intentou  minorar  estes  males  até  onde  o  julgou  exequível, 
prohlbindp  ás  corporações  a  compra  de  prédios  rústicos 
e  urbanos,  ordenando  dentro  do  praso  de  um  anno  a 
alieiiação  dos  illegalmente  adquiiidos,  e  estendendo  o 
mesmo  preceito  aos  prédios  bavidos  por  beranca.  Log() 
depois  descarregava  D.  Pedro  í  um  golpe  ainda  mais 
fundo  na  influencia  directa  da  cúria,  decretando  o  bene* 
placito  régio  como  condição  indeclinável  da  publicação 
das  letras  e  rescriptos  pontifícios  em  Portugal  *. 

Mas  as  leis  de  desam  ji  ri-ação  e  o  placito  régio  encon- 
traram obstáculos  na  execução,  foram  iUudidos  com  fre- 
quência, e  não  preencheram  sempre  os  seus  fins.  Roma, 
deixando  de  combater  de  rosto,  soube  no  essencial  con- 
servar o  antigo  predomínio,  e  por  via  de  legados  e  de 
collectores  babeis,  nâo  só  estreitou  a  intima  dependência 
• 

T  Concordatas  deEI-Rei  D.  Dmiz  de  1289  e  i290.-'Lei  de 
desamortisaçSo  de  Si  de  março  de  1286  e  de  ML^MomnAia  ÍM" 
siiana,  part.  v,  liv.  clxx.— Ordenação  Affomnaj  Ut.  n,  tii  v  e  xiv. 


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V 


BOS  SÉCULOS  XVn  B  XTOI  3iS 

a  que  não  podia  negar-s6  um  paiz  catholico  iVaqueUes  odero 
tempos  para  com  o  chefe  da  igreja,  como  ainda  alcançou 
mais,  encaminhando  todos  os  annos  para  os  seus  cofres 

as  avultadas  quantias  derivadas  das  annatas,  do  provi- 
mento dos  beiíeíicios,  da  concessão  das  indulgências,  das 
dispensas,  e  das  outras  graças  apostólicas,  muitas  vezes 
expedidas  com  offensa  da  legislação  do  reino.  Bulias  suc^ 
eessivas  sanccionaram  com  a  annuencia  dos  soberanos  nto 
poucas  das  pretensões  sustentadas  anterionueute  pela 
santa  sé.  A  coroa  reconheceu,  que  as  pessoas  e  os  bens 
do  clero  não  podiam  ser  coUectados  para  acudir  ás  ur- 
gências do  estado  sem  auctorlsaçlo  pontificia,  e  nlío  poz 
duvida  em  admittir,  que  pertencia  ao  papa  dispor  das 
terras  ultramarinas  descobertas,  tanto  no  temporal,  como 
no  espiritual,  considerando-a^  ^eclesiásticas.  Na  primeira 
metade  do  século  xvi  D.  João  iU  pedia  a  Roma  a  sua  ab- 
solvição por  ter  desoccupado  alguns  presídios  de  Africa^. 

A  revolução  iniciada  no  reinado  de  D.  João  II  em  favor 
da  unidade  monarchica  achou  na  ordem  clerical  um  au- 
xiliar zeloso,  mas  nâo  desinteressado.  Os  monarchas  á 
proporção  que  foram  concentrando  os  poderes,  não  se  / 
esqueceram  de  a  attrabir  e  recompensar  com  novos  pri- 
vilégios. D.  Manuel  concedeu  aos  mosteiros,  ij^rejas,  e 
pessoas  ecclesiasticas  plena  isenção  das  sizas,  portagens 
e  dizimas,  e  mandou  émendar  na  sua  Ordenação  as  dis- 
posições, que  lhe  apontaram  como  contrarias  aos  cânones. 
D.  João  III  habilitou  os  clérigos  para  os  officios  da  judi- 
catura, e  para  votariam  nas  causas  crimes  penas  de  san- 
gue. O  cardeal  D.  Henrique  na  sua  regência  mandou  guar- 
dar sem  limitação  os  cânones  de  Trento  não  aceeitos  por 

*  Coelho  da  Rocha,  Ensaio  sobre  ójGovernc\e  a  Legislação  de  Por- 
tugal, art.  3.%  6.«  e|M)cha. 


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S14  HKTOMÀ  DE  PORTUGAL 


cteo  moitas  nações  na  parte  em  que  proclamam  a  antiga  sit* 
premaeia  pontificia  sobre  os  governos,  e  D.  Sebastião, 
nlo  só  ratificou  este  acto,  como  escreveu  aos  bispos,  que 

usassem  livremente  da  auctoindndo  conferida  pelo  con- 
cilio, embora  fosso  í'm  prejuízo  do  poder  real!  Na  con- 
cordata de  1578  ampliou  a  jurisdição  do  clero  aos  esta- 
belecimentos pios»  ao  padroado  das  igrejas  e  a  todos  os 
bens  da  mesma  natureza,  declarando  suas  rendas  quites 
da  Inspecção  das  alfandegas  e  dos  empregados  fiscaes. 
A  cúria  romana  liriíia  conseguido,  pois,  a  mais  completa 
satisfação.  Via  a  administração  quasi  subordinada  á  igreja, 
e  a  sua  influencia  mais  acatada  do  que  no  século  xiu.  Não 
a  haviam  coadjuvado  pouco  para  obter  estes  resultados 
08  esforços  da  companhia  de  Jesus 

A  politica  tomára  pelo* menos  tanta  parte,  como  a  de- 
voção, n^estes  testemunlios  de  beiíevolencia.  O  apoio  de 
uma  classe  poderosa  e  ramificada  merecia  alguns  sacri- 
flcios.  O  clero  correspondeu  á  benevolência  dos  sobera- 
nos, e  apesar  da  sua  repugnância  em  concorrer  para  as 
despezas  publicas,  expiou  em  mais  de  uma  occasião  o 
valimento  â  custa  de  suas  rendas.  Mas  nas  grandes  tem- 
pestades as  nuvens  mais  carregadas  passavam-lhe  por 
cima  da  cabeça  sem  o  offender,  e,  obrigado  a  ajudar  o 
rei  com  donativos,  ou  com  subsídios,  depressa  se  res- 
taurava, porque  a  fonte  de  seus  proveitos  sempre  ma- 
nava perenne.  Quando  a  necessidade  apertou  os  reis, 
nunca  estes  mostraram  o  menor  escrúpulo  em  pedir  ao 
estado  ecclesíastico  uma  quota  importante,  e  a  cúria  nunca 

^  As  constituições  dos  bispados,  códigos  systematicos  mandâdos 
observar  em  cada  diocese  pelos  prelados,  revelam  até  onde  ousa- 
va levar  as  consequências  da  sua  victoria  a  reacçfío  religiosa.  7- 
Lei  do  i."  dc  aí,'os(o  de  1498,  e  alvará  de  12  de  setembro  de i664.—. 
Pedueçãú  Cimmolo^ca,  part  i,  div.  v. 


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DOS  SÉCULOS  xvn  £  XVUI 


315 


se  IncQlcoti  demasiado  remissa  em  acceder  a  supplicas  o  dm 
fundadns  m<  urgências  da  guerra  contra  os  infiéis.  Le3oX 
concedera  a  D.  Manuel  o  rendimento  da  bulia  da  cruzada» 
avaliado  em  perto  de  400:000  cruzados,  assim  cmo  a 
terça  de  todas  as  rendas  ecclesiastlcas,  e  o  mais  que  as 
representações  dos  prelados  e  das  corporaç?5es  religiosas 
podernm  alcançar  foi  que  o  monarcha  acceitasse  em  troca 
das  terças  o  donativo  de  153:000  cruzados.  O  piedoso 
D.  JoSo  III  soube  aproveitar  estes  exemplos.  Paulo  IH» 
d3o  menos  condescendente  do  que  LeSo  X,  auctoríson*o 
a  cobrar  mais  duas  decimas  sobre  os  bens  ecclesiasticos, 
e  o  papa  allegava  depois  ao  nosso  embaixador,  como 
prova  de  sua  rara  complacência,  os  clamores  com  que  os 
interessados  haviam  estranhado  esta  graça»  de  que  Roma» 
todavia,  colheu  grosso  quinhão.  El-rei  D.  Sebastião,  var- 
rendo todos  os  cofres,  sem  perdoar  aos  dos  estabeleci- 
mentos de  caridade»  impetrou  de  Gregorio  XIII  para  soe- 
corro  das  armadas  extraordinárias  a  concessão  da  buUa 
da  crazada,  ê»  absorvidas  as  sommas  que  ella  produziu, 
ainda  obteve  doValicano  um  subsidio  do  clero,  de  que 
foi  nomeado  collector  o  filho  natural  do  arcebispo  de  Lis- 
boa. O  infante  D.  Henrique  na  sua  regência  havia-lhe 
aberto  o  caminho,  e  a  memoria  dos  vexames  da  sua  ar- 
recadação ainda  estava  tio  viva,  que  os  prelados  e  as 
ordens  religiosas  preferiram  uma  composição,  e  offerece- 
maeúcpontaneameníe  150:000  cruzados*. 

Fillppe  II,  decidindo  com  a  espada  do  duque  de  Alba 
o  pleito  da  succes^o»  desejava  firmar  em  alicerces  mais 

1  Sobre  a  importância  das  sommas  auctorisadas  pela  euria  ro- 
mana por  conta  dos  rendimentos  do  dero  portoguez  consultem-se 
aa  «Instrozzíone  al  Coadjutora  di  Bergamo*  na  SymnkUí  Lwitana, 
roh  xn,  coUecçflo  da  bibliotheca  da  Ajuda,  e  fiarbosa^  Memomê  df 
^hBH  D,  SíAaaiSo,  part  iv,  Iít.  I;  cap.  xiv. 


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3i6 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


odtro  sólidos,  do  que  a  força  das  armas,  os  desliaos  da  sua  dy- 
nastia,  e  não  ignorava  que  lhe  era  indispensável  para  isso 
nUo  só  a  neutralidade,  mas  a  boa  vontade  do  clero.  Db- 

Uiiij.Klo  \u\v  é^sle  pensamenU)  ufio  hesitou  em  capiliilar 
com  c\k  nas  curtes  de  Tiiomar,  afiançando-lhe  que  as  pre- 
lazias, alibadias»  benefícios  e  pensões  seriam  providas  em 
súbditos  portuguezes,  assim  como  o  elevado  cargo  de  in* 
quisidor  geral,  e  as  commendas  o  ofScios  do  mestrado 
das  tres  ordens  inilitaics,  o  di»  priui  ado  do  Crato.  Foz 
mais  o  rei  catholico.  Promctleu  em  seu  nome  e  no  dos 
seus  snccessores  não  repetir  as  contribuições  com  que  os 
tres  reinados  anteriores  haviam  cansado  o  patriotismo  do 
braço  ecclesiaslico  *.  Filippe  III,  já  menos  pi  udente,  soube 
comtudo,  recuai  .i  it  iupo.  A  resistência  manifestada  con- 
tra 03  indultos  negociados  com  os  christãos  novos  abriu 
os  olhos  ao  duque  de  Lerma,  e  mostrou4he  as  verdadei^ 
ras  forças  da  theocracia,  e  o  [)erigo  de  provocar  a  sua 
iniinisade.  Mas  o  eonde  di^  Olivares,  altivo  e  despótico, 
tomando  acircuiiis[)ecrâo  porfraijueza,  não  duvidou  con- 
citar contra  o  seu  governo  os  ódios  mais  implacáveis,  e 
de  propósito  deliberado  maltratou  o  clero  nos  interesses 
B  no  orgulho.  Alem  do  tributo  da  cruzada  perpetua,  e  do 
subsidio  i)or  ironia  denominado  voUnUario,  expediu  aos 
tribunaes  as  ordens  mais  terminantes  para  )»i  onioverem 
zelosamente  a  reivindicação  das  capellas  usurpadas  pelos 
mosteiros  e  para  a  restricta  observância  das  leis  de  des- 
amortisação,  e  nomeou  uma  commissão  encarregada  dos 
actos  e  dos  inquéritos  preparatórios.  Estes  golpes  não 

'  Carta  paí^nto  em  que  ostâo  iiicorpondos  os  capitiiius  que  os 
trps  estados  do  reino  apresentaram  a  El-Rei  jias  curtes  de  Thomar, 
a)>ertas  etn  ^  dc  abril  de  1581,  e  as  respostas  dadas  por  Sua  Ma- 
gestade. 


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1 


BOS  SÉCULOS  Xm  E  XTID  317 

podiam  deixar  de  excitar  grandes  resentimentos,  e  a  exe-  o  úuo 
cução  do  breve,  que  extorquia  aos  prelados  a  renda  de 
ummez  em  cada  beneficio,  veiu  ainda  exacerba-los,  aggra- 
vado  com  a  reteiirão  de  um  quartel  dos  juros,  tenças  e 
salários  pagos  pela  folha  da  alfandega  de  Lisboa.  Esta 
quebra  na  fé  publica,  recaindo  sobre  a  extorsão  recente 
de  um  donativo  de  200:000  cruzados,  affectava  de  perto, 
não  só  os  templos  e  os  claustros,  mas  os  orphios,  as  mi- 
sericórdias, os  hospitaes,  as  confrarias  e  as  irmandades. 
A  indignação  qiiasi  geral  triplicou  as  forças  dos  inimigos 
do  governo  castelhano,  e  Filippe  IV,  perdendo  pouco  de- 
pois o  reino,  arrependeu-se  de  certo,  mas  tarde,  dos  er- 
ros e  violências  do  seu  ministro^. 

0  procedimento  do  conde  duque  foi  indesculpável. 
Nunca  devia  ter  assim  lançado  a  luva  a  uma  classe,  que 
não  carecia  de  envidar  grandes  esforços,  para  associar 
todo  o  paiz  ao  desaggravo  de  suas  injurias.  Se  em  dias 
de  estreiteza  a  igreja  se  negava  a  acompanhar  o  povo  nos 
sacrificios,  aspirando  a  conservar  e  augmentar  suas  ri- 
quezas, ensinava  a  boa  politica  o  modo  oppoilLiiio  dt: 
modificar  e  de  punir  até  este  demasiado  apego  aos  bens 
temporaes.  A  opulência  do  clero  dava  nos  olhos,  e  o  es- 
pectáculo do  seu  egoísmo  cedo  irritaria  os  que  o  vissem 
immune  e  indifferente  no  meio  das  desgraças  publicas, 
devorando  a  melhor  parte  da  substancia  publica,  e  tra- 
tando a  pátria  quasi  como  solo  e^trnnlin.  Havia  muito 
que  os  procuradores  do  braço  popular  tinham  arguido 
em  còrtes  a  cubiça  e  a  avareza  do  clero,  lançando-lhe 

1  Carla  1  t  gia  de  de  setembro  de  1629  sobra  as  capellas  sone- 
gadas. ^Alvará  dc  20  de  abril  de  1G13  mandando  cumprir  a  lei  que 
prohíbía  a  accumulaçâo  de  bens  de  raiz  em  poder  de  corporações 
de  iii<io  morta.  — Consulta  da  mesa  da  consciência  de  10  de  maio 
de  1634  e  resolução  de  19  do  mesmo  mez  e  anna 


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HttTOIUA  DS  PORTUGAL 


odiro  em  rosto  a  fórma  por  que  adquiiia  us  beuó  e  o  mau  uso 
que  iazia  d'eUes.  Se  alguns  mouges  nos  séculos  iii  e  im 
haviam  ediâcado  os  fieis»  desbravando  e  cultivando  as 
terras,  corando  e  âoccorrendo  os  pobres  e  os  enfermos, 
e  ensinando  os  ignorantes,  as  propriedades  da  igreja  ííos 
séculos  XVI  6  XVII,  arruinadas  e  cobertas  de  mato,  ou 
aioradas  com  dausulas  leoninas,  bem  mostravam  a  ditle- 
rença  dos  tempos  e  a  mudança  dos  homens.  Os  fins  nlo 
justificavam  a  accumulac9o  e  muito  menos  a  sua  esterili- 
dade. Os  prelados,  salvas  raras  e  honrosas  excepções, 
assim  como  os  monges  e  os  reitores,  uàu  subrcsaíam  pelo 
esplendor  das  letras,  pelo  exemplo  das  virtudes,  ou  p(^la 
utilidade  pratica  dos  serviços  prestados  á  religião.  A  ao- 
çio  de  uma  prosperidade  constante  gangrenára  pelo  con- 
trario muitos  membros»  e  entorpecéra»  ou  paralysára  ou- 
tros. 

As  riquezas  do  clero  eram  já  tão  iraporíniites  no  lempo 
de  D.  Joio  III,  que  as  instruciiões  dicUdas  ao  núncio 
coadjutor  de  Bergamo  pela  cúria  romana  as  calculavam 
em  mais  de  i  milhão  de  oiro  de  renda,  do  qual  a  Santa 

Sé  podia  dispor  (juasi  na  totalidade  por  uma  ou  por  ou- 
tra via.  O  arcebispado  de  Lisboa  liiiha  6  contos  de  réis 
de  rendimento  com  o  encargo  de  uma  penslo  de  réis 
i;5(XMtOCK)  ao  cardeal  D.  Henrique.  O  arcebispado  de 
Braga  nlo  valia  menos»  e  pagava  igual  pensio  ao  inftinte. 
O  bispado  de  Lamego  subia  a  2:500^9(000  réis  e  mesmo  a 
3  contos,  podendo  el-rei  distribuir  2:000  cruzados  pelas 
pessoas  que  designasse.  O  mosteiro  de  Alcobaça  produ* 
zia  liquidos  para  o  commendador»  porque  era  dado  em 
oommenda»  i:IMKMíOOO  réis.  A  mesa  do  priorado  de 
Santa  Groz  orçava,  termo  médio,  por  6:000  cruzados  an^* 
nuaes  coui  uma  pensão  de  1:000  cruzados  pura  1).  Pe- 
dido da  Costa^  bispo  de  Usma.  O  mosteiío  na  camaia 


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âicouM  xyu  M  vm 


m 


apostólica  ejitava  taxado  em  á:OUO  cimados*.  S.  Salva- o  ciao 
dior  de  Grijó  rendi:)  2:000  ducados.  O  bispado  de  Aogm, 
o  mais  pobre  de  todos»  só  fòra  dotado  com  500  crazados 
amraaes.  Os  curiaes  suppunbam  que  as  commendas  va- 
gas no  aaiiu  de  1537  passavam  de  100:000  cruzados  de 
renda.  As  ordens  militares  não  eram  menos  ricas.  A  de 
Christo,  alem  da  doação  da  ilha  da  Madeira  e  de  ouii  as 
terras  descobertas»  possuía  já  do  reinado  de  D.  Joio  11 
120:000  ducados  de  rendimento  annual.  No  de  D.  Ma- 
nuel acresceram-lhe  a  decima  da  navegação  da  Ethiopia 
e  da  índia,  e  mais  20:000  (iULaik)>  sobre  as  parochias 
UOiditô  ao  mestrado»  e  as  igrejas  não  providas  ou  proxi*. 
mas  a  yagar»  que  segundo  a  letra  da  bulia  de  Leão  X  de- 
viam ser  encorporadas,  as  quaes  n3o  montavam  a  menos 
de  80:000  ducados.  As  ordens  de  Avíz  e  de  S.  Tbiago  des^ 
fructavam  pelo  menos  30:000  i inçados  mensaes,  com 
belld$  propriedades  territoriaes,  commendas  rendosas  e 
bons  beneficies^.  As  ordens  religiosas,  em  geral,  iam* 
bem  possuíam  grossas  rendas»  especialmente  as  de  ivaof 
daç3o  antiga.  As  modernas  mesmo,  e  entre  eltas  a 
cumpaniiia  de  Jesus,  tinham  saindo  aproveitai -se  das  cir- 
riimstancias.  Em  vinte  e  três  annos  (desde  1540  até  1563) 
o  instituto  de  Santo  Ignacio  elevara  o  seu  rendimento 
annual  a  perto  de  íO:000  cruzados.  Nlo  deve  por  isso 
admirar  que  os  bens  de  raiz  dos  mosteiros»  biq[»dos  e 

A  Aj'chivo  uacioual  da  Torre  Uo  Tombu,  CoiUeçãú  á»  S,  VietiUês 
liv.  I,  fl.    ^  e  55. 

2  Sifmmictaj  yol  ir,  11.  ^32.— Arcbivo  nacional,  Collecção  d$ 
S.  Vicente,  liv.  i,  pag.  45.  —  Instruz.  an  núncio  coadjutor  de  Berga- 
mo,  datadas  de  1537.— Bibliotheca  da  Ajuda,  Symmicta,  voL  xxxiu, 
fl.  149.— Aichivo  nacional,  niaç.  3,  n.®  353  de  Cartm  mimvas. — 
htst)'ucções  a  D.  Pedro  Maêearenha$,  embaiaeador  rai  Monitaj  Moê 
m  iú  da  ain  il  dê  im 


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^20  •        HISTORIA  DE  PORiUGAL 

m 

Odero  igrejas  constituíssem  uma  parte  principal,  talvez  á  mais 

valiosa,  do  domínio  rural  do  jiaiz,  e  que  em  1538 
D.  João  III  pedisse  ao  papa  auctorisaçâo  para  a  cui  òa 
aforar  em  foteusim  os  prazos  ecclesiasticos  em  vidas,  que 
constassem  de  casas,  vinhas,  olivaes,  hortas  e  moinhos, 
podendo  augmentar  os  fóros  e  empregar  nas  despezas  da 
guerra  contra  os  laíieis  as  souimas  colhidas  d  esta  opera- 
ção *. 

Na  primeira  metade  do  século  xvii  o  clero  ainda  os- 
tentava grande  poder.  Embora  tudo  estivesse  decadente, 

e  as  outras  classes,  começando  pela  cia  nobreza,  se  quei- 
xassem com  rasão  dos  apuros  da  epocha,  as  bases,  era 
que  assentavam  os  alicerces  da  sua  fortuna,  eram  muito 
soHdas-  para  se  alluirem  com  as  calamidades,  que  feriam 
a  todos.  Em  4632  um  orçamento  fundado  nos  cálculos, 
de  certo  nada  exagerados,  remettidos  pelos  prelados  â 
junta  incumbida  da  repartirão  do  donativo  dos  230:000 
cruzados,  avaliava  em  2.301:402  cruzados  todas  as  ren- 
das ecdesiasticas,  incluindo  o  clero,  as  corporações  re- 
'  ligiosas  e  as  ordens  núlitares.  As  dos  arcebispados  e 
bispados  do  reino  não  baixavam  de  300:000  cruzados 
annuaes,  e  as  dos  mosteiros  e  do  ciero  secular  excediam 
9ãS0:000  cruzados.  As  ordens  militares  de  Ghristo,  Aviz 
e  S.Thiago  comprehendiam,  em  161  i,  592  commendas, 
cabendo  ao  mestrado  de  Christo  456,  ao  de  Aviz  54 ,  e 
ao  de  S.  Tliiago  85.  As  comnieíidas  de  Iodas  as  ordens 
rendiam  mais  de  150  contos  de  réis  coin  o  ónus  de 
apresentarem  promptos  e  armados  para  a  defeza  do  reino 
1:505  homens  do  cavallo.  Havia  conunendas  de  3  con- 

^  DUterta^  chrotulogieas  e  eríHeaSt  tom.  ir,  part  ii,  app. 
XIX. — Nota  extrahida  de  um  livro  do  punho  do  secretario  Ruy 
Dias  de  Menezes. 


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DOS  sfictJLos  tvn  E  xvni 


tos,  de  i  conto,  de  SOOmo,  de  400(i;000,.  de  aoOj^OOO»  o 
de  2004^000  e  até  de  50|$000  réis  de  lotaçSo.  Os  com- 
mendadores  pagavam  meias  annatas  á  camará  apostólica 

e  a  quarta  parte  do  rendimento  em  compensação  do  di- 
reito de  testar*. 

A  cúria  romaoa  sabia  o  valor  d'estes  bens  e  velava  ai- 
tentamente  sobre  elles,  procurando  tomar  o  mais  lacra- 
tivo  possível  o  seu  quinhão.  A  independência  nominal  do 
reino  serviu-lhc  de  pretexto  para  semiire  conservar  em 
Lisboa  afjentes  hábeis,  e  a  sua  [lontuaíidade  eni  os  no- 
mear provava,  que  as  antigas  e  copiosas  fontes  continua- 
vam sem  diminuição  notável.  De  feito  o  clero  secular  e  as 
religiões  não  eram  só  os  que  dependiam  de  Roma.  Os  fi- 
dalgos e  parte  das  classes  medias,  pelas  commendas,  pe- 
los bcneíicios,  e  pelos  hens  í^niprazados  fruíam  redditos 
ecdesiasticos  â  sombra  de  bulias  c  provisões  apostólicas, 
que  a  chancellaria  pontiiicia  não  expedia  gratuitamente. 
Muitas  outras  pretensões,  que  a  flexibilidade  do  Vaticano 
excitava,  em  vários  casos  com  offensa  da  jurisdicção  dos 
ordinários,  ou  quebra  manifesta  dos  direitos  da  coroa, 
derivavam  para  os  cofres  dos  colleitores  avultados  cabe- 
daes,  de  que  a  Santa  Sé  se  nâo  esquecia  de  exigir  rigo- 
rosas contas.  No  tempo  de  D.  João  III  a  missão  dos  nún- 
cios em  Portugal  era  um  descargos  mais  appetecidos  por 
causa  da  contenda  suscitada  entre  a  in(]uisição  e  os  cbris- 
tãos  novos.  Siniga^dia  trouxe  do  reino  ^0:000  cruzados, 
e  Capo  di  Ferro  igual  quantia,  coibidos  em  extorsões  e 

1  íaoro  de  toda  a  fazenda  e  real  pairimoiUo  dot  rmos  de  Pw' 
tugal,  índia  e  lihas^  etc,  por  Luiz  de  Figueíiedo  Falcão.  Lisboa, 
iS59.  Só  á  ordem  dc  Ghristo  rendiam  suas  commendas  90:090^258 
Pôis  e  devia  dar  900  homens  de  armas,  a  rasSo  de  1  homem  por 
cada  iOO|)000  réis.  A  renda  das  de  S.  Thíago  era  de  35:68411000 

léís,  e  a  das  da  ordem  de  Atíx  24:963)^000  ràs. 
*     vwov  StI 


m 


UISTORU  DK  PORTUGAL 


ucittpu  peitas  ^  As  iiistrucções  passadas  autos  dus  Uns  de  1620 
ao  bispo  do  Alboiiga,  nomeado  coileitor  por  Gregorio  XV, 
,  e  as  que  foi  ain  dicUdas  em  Í6â2  a  monsenhor  Àlberga- 
tí,  bispo  de  Viceglia»  mostram  com  evidencia  quaes  eram 
o  pensamento  e  as  tendências  dos  ministros  pontíflcios. 

Koma  achava  os  prelados  pui  liiguezes  inclinados  eni 
demasia  a  assumirem  maior  auctoridade,  do  que  dcvin 
compelir-ihes,  e,  considerando-os  zelosos  da  conserva- 
ção da  fé  e  do  seu  augmento»  suppunha,  que  seriam  mais 
dedicados  ao  vigário  de  Ghrísto,  se  a  influencia  dos  mi- 
nistros do  rei  os  não  coagisse  quasl  a  uma  obediência 
servil.  Quaiiiu  aos  conventos  e  mosteiros,  que  a  cúria  des- 
crevia como  um  pélago  perpetuamente  revolto  de  paixões, 
de  abusos  e  de  irregularidades,  aconselhava  aos  seus  pro- 
postos a  maior  prudência,  e  até  lhes  insinuava  uma  sisada 
absten(;ão,  ião  devendo  ingerii  -se  no  governo  d'aquellas 
inquietas  repubUcas,  senão  quando  a  necessidade  império 
sãmente  os  compeiiisse.  Concedia  entretanto  ao  bispo  de 
Viceglia  poderes  iguaes  aos  dos  núncios  com  recom- 
mendação  expressa  de  usar  discretamente  d*elles»  e  de 
reger  com  summa  cautela  o  leme  de  tão  arriscado  bai- 
xel^. Este  pi  ('LL'ito  nem  sempre  lui  atlendido.  Acerca  da 
deíeza  da  jurisdicçao  pontifícia  as  duas  iiislt  ucçues  iucul- 
cam  máximas,  (jue  promettiam  ser  fecundas  em  conili- 
ctos,  como  de  feito  o  foram,  provocando  a  saida  do  bispo 
deFossambrono,  e  os  attentados  de  Albergati,  de  Paloto 
e  de  Castracane,  insistindo  a  chaucellaria  do  Vaticano  na 
expedição  de  breves  clandestinos  contra  os  direitos  do 

1  AiiíhivM  iiainouai,  Loiicq^ao  de  S.  ViceiU8f  liv.  I,  11.  l4(i. 

*  lnsíruz:iione  a  numigitor  teiscovo  dc  AWengat  Symmicta  Lusti^j 
lom.  LIV,  paj:.  737  a  .  —  In.sfruzzione  a  momignor  vescovo  di  tíi- 
se^i,  Symimaa^  tom.  uy,  pag.  70^  a  730. 


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DOS  SECOLOs  xm  E  xm 


m 


soberano»  continuando  os  sub-colleitores^  prohibidos  pe-  oám 
Ias  ordens  regias,  a  fanccionar  em  desprezo  d'eUas  nas 

províncias  e  nas  conquistas,  e  não  escapando  até  a  admi- 
nistração da  bulia  da  cruzada  e  os  espólios  dos  religiosos 
íailecidos  fóra  dos  conventos  ás  usurpações  dos  agentes 
da  caria.  O  governo  por  seu  lado  sustentava  com  flrmeza 
as  regalias  da  corôa,  e  respondia  ás  censuras  e  interdi- 
clos,  com  que  os  colleitores  assustavam  as  consciências, 
limitando-lties  os  poderes,  estrautiando-lhes  os  excessos 
e  punindo  até  os  maiores  arrojos  com  a  expulsHo.  Diver- 
sos documentos  attestam  que,  o  procedimento  dos  magis> 
trados  e  dos  tribunaes  se  conservou  fiel  ás  tradições  da 
monarchia  n'uma  epoclia,  em  que  tudo  conspirava  para 
as  riscar  da  memoria  dos  súbditos.  A  Victoria  íicou  por 
fim  ao  poder  civil,  e  Roma,  conhecendo  que  seria  peri- 
goso levar  mais  longe  a  obstinação,  sem  abertamente  ce- 
der de  suas  iiretensões,  reservou  para  melliui  ensejo  a 
i^enovação  (Fellas 

Apesar  da  repetição  d'estes  conílictos  a  côrte  de  Ma-* 
drid  nunca  encontrou  em  Roma  verdadeira  opposiçlo,  ou 
repulsa,  quando  se  propoz  obter  do  Santo  Padre  as  bul- 
ias e  os  breves,  que  no  governo  de  Olivares  niullaram 
cuiu  iaiilu  rigor  os  bens  da  igreja  portugueza.  A  cúria  via 

^  Cirta  regia  de  i  de  maio  de  1621,  declarando  não  existir  iiaoo 
do  pa|»a. — Carta  regia  dc  2  de  janoíro  c  piovisão  de  23  do  mesmo 
mez  (anno  1G22),  prohibindo  ao  colieitor  introduzir-se  na  adminis- 
tração da  bulia.  — Cartns  regias  de  18  de  março  de  1623  e  de  24  de 
maio  de  1624,  prohibindo-lhes  qualquer  ingerência  no  goveiTio  das 
ordens  religiosas. — Outras  providencias  pozeram  côbro  á  venalidade 
dos  officios  da  legacia  e  ao  abuso  das  censuras  ecclesiasUcas,  assim 
como  comminarara  penas  cunUa  os  que  propozessein  recursos  em 
Roma,  ou  impetrassem  d'ella  l)enL'íicios  ecclesiasticos. — Cartas  re- 
gias de  28  de  junho  e  2  de  maio  de  1616. 

Mi 


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I 


324  UlSTORiA  DE  POIiTUGAL 

Odeio  muito  [)i'u.\iiiiU5  Na])<)les  e  Milão  pai.i  m'  atreNer  a  uma 
nej^ativa,  e  o  clero  (h-pressa  se  convenceu,  de  que  a  von- 
tade oumipotente  do  miuistro  sempre  eucontrava  no  Vati- 
cano echos  fáceis  e  complacentes.  Corriam  já  desviados  os 
tempos,  em  que  o  braço  ecclesiastíco»  reunido  em  Tho- 
mar,  dictára  em  1581  entre  as  condições  da  sna  adhesão 
a  clausula  expressa,  de  que  o  rei  nau  loniaiia  a  extor- 
quir as  terças  dos  rendauenlos  da  igreja,  nem  arrancaria 
novos  sul)sidios  ou  «escusadost.  O  conde  duque,  obce- 
cado, rasgava  com  mão  audaz  os  privilégios  de  todas  as 
classes,  e  cerrava  os  ouvidos  ás  vozes  do  clero  espolia- 
do ^  Era  cedo  para  isso.  Os  prelados,  os  mosteiros  e  as 
ordens  nuíitares  de  certo  não  edificavam  o  mundo  com 
suas  virtudes,  e  pouco  o  esclareciam  já  com  suas  luzes, 
mas  ainda  conservavam  nas  mãos  as  armas  com  que  ti- 
nham demolido  os  poderes  hostis.  Do  fimdo  dos  claus- 
tros saíam  quasi  as  únicas  paginas,  que  o  vulgo  lia  e 
decorava,  nas  sacristias  iuijavam-se  as  superstições  e  as 
beaUces,  que  o  cegavam,  e  no  púlpito  e  nos  coníessiona- 
rios  urdiam^se  os  tramas,  que,  illudindo  os  crédulos,  e 
convertendo  em  casos  de  consciência  os  Interesses  mun- 
danos, desvairavam  a  opinião  e  recrutavam  numerosas 
coliorU  s  de  defensores  aos  claustros.  O  que  a  rasão  e  a 
justiça  podiam  allegar  em  favor  da  igualdade  dos  sacn- 
licios  ei  a  representado  pelo  íanalismo  e  peia  hypocrisia 
como  Ímpia  especulação,  ou  como  attentado  horroroso 
contra  a  Divindade.  As  multidões,  crentes,  ignorantes  e 
arrastadas,  condemnavam  como  réus  de  heresia  e  como 
inimigos  de  Christo  os  que  punham  mãos  violentas  nas 
temporalidades  dos  seus  ministros. 
Os  abusos  correspondiam,  comtudo,  á  opulência,  e  ac- 

1  Ctftiei  cf^tkradat  em  Thamar  no  anno  de  1581,  cap.  x. 


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DOS  sficuLOs  xvn  E  xvm  315 

ciisações  insuspeitas  apontavam  os  males,  tlemmciando- ociem 
lhes  as  causas.  A  instrucção  do  clero  fôra  em  geral  sem- 
pre insuâiciente,  e  já  mesmo  no  começo  do  século  xvit 
nUo  seria  tanto  para  estranhar,  como  poderia  crer-se,  qae 
os  bispos,  á  similhanra  dos  prelados  do  século  xi,  impo- 
zessem  no.s  siilnlitos  a  obrigação  de  saberem  o  Evaníre- 
Iho  e  os  livros  rituaes  ^  nem  deveria  causar  espanto  que, 
renovando  os  aggravos  das  côrtes  de  i480  a  1481,  uma 
assembléa  da  mesma  Índole  pedisse  aos  poderes  públicos, 
ífiie  estancassem  a  corrente  caudal  de  oiro  e  prata,  qne 
saía  do  reino  todos  os  annos  para  Roma,  a  íim  de  pa^ar 
as  annatas  e  os  direitos  da  chancellaria,  con«;indo  os  pre- 
lados á  residência  nas  dioceses,  os  reitores  nas  parochias, 
e  todos  ao  cumprimento  das  obrigações  pastoraes,  e  ata- 
lhando o  escândalo  das  ovelhas  desamparadas  os  verem 
distrahuios  em  funcções  polilicMS,  consumindo  nas  ca- 
sas dos  princi[)es,  ou  em  carj^os  civis  elevados  os  rendi- 
mentos das  mitras  e  igrejas^.  Os  prelados  das  ordens  mi- 
litares continuavam,  como  nos  dias  de  D.  João  III  e  de 
seu  neto,  a  desprezar  os  deveres  mais  sagrados,  ostai- 
tando  zélo  excessivo  sómente  na  arrecadação  dos  dízimos 
e  rendas,  e  deixando  os  povos  muitas  vezes  sem  os  sa- 
cramentos e  sem  os  officios  divinos.  Não  pareceria  segu- 
ramente extemporânea,  mesmo  em  1638,  a  petição  das 
côrtes  de  Thomar  para  os  mestrados  da  cavallaria  reli- 
giosa serem  reformados  e  compellidos  â  execução  dos 
preceitos  de  seus  institutos 

1  Veja-se  o  Concilio  Cnijacense,  l  aiiou  V. — Flores,  Hespanha  Sa- 
grada, tom.  xxxvnr,  app.  r,  pag.  203. 

2  CóHps  âc  4480  p  I48i,  rap.  r.xLi  e  cxLin. 

Cortese  fh'  W^tH,  cap.  rxxi,  íjlxii  c  ci.xiii. — Côrtes  de  Thoinar, 
cap.  XVII  p  wíii. 

Estos  queixa.s  mostraoi  quuo  aiiUgos  e  inveleraiios  eram  os  s^bU' 


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UISTORU  OE  POBTUGÁL 


Odero  As  terras  sujeitas  às  oídons  mililarcs  podiam  na  rea- 
lidade ser  apontadas  entre  as  que  mais  padeciam  com  a 
incúria  e  relaxação  de  todas  as  obrigações»  servindo  só  a 
regra  de  pretexto  para  usufruir  as  vantagens,  e  tratan- 
do«se  tudo  o  mais  qoasi  como  ficção.  O  Mestrado  de 
Christo,  cujo  padroado  abranj^ia  centenares  de  parochias, 
dftixava-as  sem  i)aslur('S,  o  [Ku  a  o  cxercicio  e  reverencia 
do  culto  até  os  vasos  e  paramentos  muitas  vezes  falta- 
vam» Na  phrase  conceituosa  dos  procuradores  dos  con- 
celhos nas  c6rtes  de  1525  este  e  os  outros  mestrados  co- 
miam o  pio  de  Christo  e  dormiam  a  somno  solto  na  vinha 

do  Senliof. 

As  «Constituições  dos  Bispados»,  documentos  insus- 
peitos, pintam-nos  os  costumes  do  clero  secular  com 
tintas  pouco  lisonjeiras.  O  estado  sacerdotal  não  inhibia 
os  padres  de  se  fazerem  regaiões,  e  de  emprestarem  di- 
nheiro com  usura.  Muitos  exerciam  o  ollicio  de  advoga- 
dos e  de  procuradores.  Não  poucos  frequentavam  as  ta- 
vernas e  logares  de  venda,  e  desprezando  a  honestidade 
e  compostura  recommendadas  pelos  cânones,  figuravam 
nos  autos  e  farças,  lutavam  despidos  em  publico,  dansa- 
vam  6  disfarçavam-se  em  trajos  de  mulher.  O  abuso  dos 
exercicios  venatorios  ei  a  comoium  no  clero  provinciano, 
e  Gil  Vicente  em  uma  de  suas  peças  traçou  o  retrato  aca- 
bado de  um  d*aq|uelles  caçadores  infatigáveis,  que  mes* 
mo  no  altar  viam  saltar  os  coelhos  e  as  lebres  pela  cam- 
pina. Muitos  clérigos,  deecclesiasticossôttnhamonome, 
escondendo  a  coroa,  usando  cabellos  compridos,  e  vesti- 
dos pouco  decentes,  jogando  publicamente  os  jogos  de- 
fezos  de  dados  e  cartas  e  o  jogo  da  péla,  e  correndo  as 

SOS,  aos  quaes  a  impunidade  qu  isl  c  iicodrra  força  de  costume  nos 
fins  do  século  ;cvi  e  na  primeira  metade  do  3LVU. 


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DOS  SÉCULOS  ivn  E  ivm 


317 


ruas  de  noite  com  armas  prohibidas.  Bastantes,  finalmente,  oúm 
viviam  cm  casa  sem  o  menor  recato  com  mulheres  de  má 
nota»  6  afirontavamcomellas  a  moral  e  os  costumes.  Se* 
calo  e  meio  antes  já  os  mesmos  vícios  haviam  provocado 
as  queiíias  dos  povos,  pedindo  os  procuradores  dos  con- 
celhos ao  rei,  que  obrigasse  os  prelados  a  acudireiA  á  dis* 
solução  do  clero,  cujas  armas  deviam  ser  as  orações  e  as 
lagrimas,  enão  espadas  e  adagas,  porque  de  outro  modo 
08  fieis  perderiam  a  devoção.  No  século  xvii  os  maus 
exemplos  continuavam,  e  os  clérigos  escandalosos  feriam 
desgraçadamente  assás  a  vista  e  não  mereciam  meno-» 
res  censuras*. 

As  ordens  religiosa:?  oíiereciam  espectáculos  menos 
edificantes  ainda,  e  por  isso  a  cúria  romana,  apreciando 
a  degeneração  dos  claustros,  impunha  aos  coUeitores  uma 
prudente  abstenção,  qoe  mostra  considerar  o  Vaticano 
como  irremediável  a  relaxação,  em  que  ellas  tinham  caído. 
A  verdade  ê  que  a  gangrena  subira  aos  orgàos  mais  im- 
portantes, eque  a  vida  monástica,  tornada  quasi  profissão 
venal»  povoava  os  mosteiros  de  homens  ociosos  e  turbu- 
lentos, presos  ao  mundo  pelos  laços  das  paixDles.  As  fa- 
iiiilias  tinhaiã-se  costumado  a  diminuir  os  encargos,  sepul- 
tando n'aquella  espécie  de  jazigo  dos  vivos  os  filhos  e  as 
fiUias,  que  nâo  podiam  sustentar,  ou  dotar  com  decência. 
As  saudades  do  secuio  batiam  por  isso  de  todos  os  lados 
ás  portas  dos  conventos,  e  a  devassidão  em  alguns  nada 
respeitava.  Nas  alterações  civis  haviam  apparecido  os  fra- 
des capitaneando  tumultos,  concitando  ódios,  iuílauiuiando 
os  púlpitos,  como  tribunos,  e  aviltando  o  habito  nas  pra- 

í  Vide  a  ConsUluição  dos  Bispados  de  Coimbra,  Lisboa,  Braga 
e  outras. — Côrles  de  1480-1481,  cap.  cxliv.  Arcl»ivo  Nacional, 
maç.  3.<*  de  Côrtes,  n.<>  5. 


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328 


HISTORIA  Di:  PORTUGAL 


O  eleio  ças  coiH  a  espada  ou  com  o  mosquete  em  punho.  Em  iS80 

vários-  religiosos  tinham  sobresaído  como  chefes  de  tur- 
bas, e  o  silencio  da  clausura  fôra  interroin|)id<»  por  mo- 
tins e  ruídos  de  arma^.  Uma  intolerância  estuita  c  abusões 
absurdas  serviam  de  capa  a  este  atheismo  pratico.  No  in- 
terior fixas,  partidos  e  discórdias»  nas  eleições  capitula- 
res e  na  administraçiSo  dividiam  os  ammos  e  zombavam 
da  fraternidade  christã.  Os  prelados,  sem  íorça,  ou  domi- 
nados pelas  facções  a  (iu(.'  pertenciaíu,  não  ousavam  man- 
ter a  observância  da  regra,  nem  a  disciplina.  Os  monges 
pacificos,  estudiosos  e  exemplares,  eram  apontados  como 
raridades.  O  amor  de  Deus  e  do  próximo  contava  poucos 
defensores.  As  letras  desprezadas  declinavam,  e  seus  cul- 
tores sem  louvor  e  sem  estimulo  cediam  ao  desalento. 

A  superstição  cobria  o  escândalo  com  a  sua  mascara 
hedionda.  Suppunha  faciL  remir  todos  os  peccados,  e  até 
os  crimes,  a  peso  de  oiro,  convertendo  o  tribunal  da  pe- 
nitencia em  balcHo  de  indulgências.  A  simonia  infrene  pu- 
nha o  preço,  e  os  compradores  nunca  íaltavam.  Os  últimos 
soberanos  liaviam  por  vezes  exposto  á  santa  sé  os  males, 
que  acabámos  de  avivar,  rogando-lhe,  que  empregasse 
todos  os  esforços  para  moderar  os  excessos  monásticos; 
mas  o  Vaticano  relrahía-se,  e,  se  não  cruzava  absoluta- 
mente os  braços,  também  não  alçava  a  mão  para  punir,  ou 
para  emendar.  Preferia  fechar  os  olhos  a  indispor  contra  os 
seus  agentes  a  milícia  irritável,  que  debaixo  de  bandeiras 
diversas  e  com  institutos  muitas  vezes  inimigos  depressa 
formaria  um  só  corj)o  pela  união  dos  interesses,  se  elle 
intentasse,  como  devia,  a  reforma  dos  abusos.  A  ordem 
íle  S.  Vrancisco  recenseava  em  Xabregas  e  na  cidade  á20 
ísubdilos,  a  de  S.  Domingos  em  Lisboa  o  Ikiníica  i?iO,  a 
de  Santo  Agostinho  no  convento  da  Graça  120,  e  a  com- 
panhia de  Jesus  em  Santo  Antão,  S.  Roque  e  Noviciado 


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DOS  SECCLOS  XYU  E  XVílí 


329 


da  Cotovia  180.  As  oatras  ordens,  menos  populosas  dis-  oci«o 

punham  também  de  grandes  influencias,  e  a  cúria  antes 
queria  té-Ias  da  sua  parte,  como  auxiliares,  do  que  vê-las 
ao  lado  dos  ministros  do  rei  como  contraiias.  Filippe  II 
e  Filippelli  por  devoçãOi  e  mais  ainda  por  calculo,  tinham 
protegido  a  dilatação  dos  grémios  religiosos  no  reino  e 
soas  conquistas,  auctorlsando  e  favorecendo  aconstmcçlo 
de  novos  mosteiros,  e  njudaiK  lo  os  antif^os  cora  rendas, 
com  obras  dispendiosas,  e  com  doações.  Ulippe  IV  e  o 
conde  duque  seguiram  politica  opposta,  prohibindo  a  íun- 
dação  de  mais  conventos  na  índia  e  no  paiz>  e  mandando 
recolher  á  sua  provmcia  os  padres  da  mercê,  introduzidos 
sem  licença,  e  mesmo  depois  de  expulsos  pertinazes  na 
fabrica  de  uma  igreja  e  dormitórios.  Este  iirocedimento 
alienou-ihe,  como  é  de  crer,  as  sympathias  dos  claustros, 
e  não  concorren  pouco  para  tornar  suspeitos  aos  olhos 
do  vulgo  a  pureza  da  fé  e  os  sentunentos  cathoUcos  do 
rei  e  do  ministro 

A  perversão  dos  costumes  não  se  revelava  com  menos 
força  na  soltura  mal  encoberta,  com  que  se  violava  a  clau- 
sura nos  conventos  de  freiras,  aonde»  em  vez  das  morti- 
ficações se  aninhavam  enredos  e  requebros  amorosos,  e 
galanteios  pouco  honestos.  Os  prelados  das  ordens,  ce- 
dendo a  empenhos,  facilitavam  a  entrada  dos  seculares 
nos  iõcuíorios,  e  a  pretexto  da  necessidade  de  banhos  e 
de  tratamento  de  doenças  auctorisavam  a  saída  das  reli- 

^  Jntírutskme,  ete.,  ao  Bispo  de  Viceglia,  Stftnm.,  tom.  UV,  pag. 
709  a  730.~-Fr.  Nicolau  de  OlÍTeira,  Grandezoi  de  Luboa,  trat.  iv, 
cap.  111.— Filippe  III  auctoriflott  com  zélo  incansável  a  fundaçSo  de 
novos  conventos.  Sen  pae  só  em  Lisboa  desde  1S84  até  i598  con* 
cedéra  licença  pára  a  edificaçSo  de  mais  sete.  O  seu  successor  con- 
correu para  se  levantarem  mais  de  deiesete  em  todo  o  reino. — 
Gartaa  Regias  de  29  de  setembro  de  1638  e  de  i6  de  janeiro  de  1636. 


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330 


HISTOBIA  DE  PORTUGAL 


dero  glosas  dos  iiiostoiros.  As  céllts  das  freiras  moças  e  levia- 

nas  pareciam  aposentos  de  noivas.  Enfeitadas  de  coi  linas, 
sanefas,  rodapés,  laminas,  pias  de  crystal,  íninrdas-rou- 
pas  d6  Hollanda,  caçoulas  e  espelhos,  recolhiam  todos  os 
mimos*  Vasos  de  flores  naturaes  e  artiíiciaes»  gaiolas  de 
aves  raras»  jarras  e  porcelanas  preciosas  alegravam  aquel- 
les  devotos  asylos.  Em  cima  dos  contadores  viam-se  re- 
domas 6  fiolas  de  perfumes  e  figuras  de  íilabastro  e  de 
gesso,  e  nos  tectos  relevos,  pinturas  e  doirados,  que  im-  - 
portavam  em  despeza  avultada.  Estes  excessos  luxuosos» 
consentidos»  e  louvados  até  pelos  que  mais  deveriam  es- 
tranha-los, concordavam  com  asprofenidades  e  desregra-* 
raentos,  de  qne  eram  symptoma.  Os  fidalgos,  as  pessoas 
pnncipaes  das  terras,  e  em  Coimbra  os  estudantes  fre- 
quentavam as  grades  dos  conventos»  tentavam  a  ionocen- 
6ía  das  religiosas  com  brindes  e  seducções»  banquetea- 
vam-se  com  ellas,  e  zombavam  da  disciplina,  inquíetan- 
do-as  e  desvairanJo-as.  Pai  a  atalhar  os  abusos  foi  preciso 
que  as  leis  comminassoni  penas  severas,  e  que  os  tribunaes 
castigassem  os  iofractores.  As  desobediências  repetiram- 
se,  apesar  disso»  e  as  prescripções  renovando*$e»  pro- 
varam a  inefficacía  d'ellas^  No  mosteiro  de  Nossa  Se- 
nhora da  Conceição  de  Braga,  Bento  de  Mello,  filho  de 
um  cavalheiro  respeitado,  levou  a  ousadia  a  pouto  de  se 
introduzir  na  clausura  dentro  de  uma  arca,  sendo  desco- 
berto em  trajos  pouco  decentes  na  cella  de  uma  noviça  f 
Este  e  outros  escândalos  affligiam  os  que  respeitavam 
sinceramente  o  altai%  retratando  a  desmoralisaçSo  infrene 

1  Instruzzime  ao  Bispo  de  Albenga  em  1620^  Symm.  Lusitana, 
tom.  Liv,  pag.  737  a  757.— Padre  Manuel  Demandes,  NomFbm* 
ta,  tom.  V,  pag.  31.— Alvará  de  13  de  janeiro  de  160i  e  Carta  Re* 
lia  de  5  de  maiço  de  1610. 


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DOS  SECinx)s      E  xvm 


331 


dos  claustros  e  a  hvpocrisia  das  exterioridades  beatas,  ocièro 
Era  grande  o  numero  das  freiras  nos  mosteiros  da  capi- 
tal, e  maior  ainda  em  muitos  das  provindas.  Só  em  Santa 
Clara  de  Lisboa  se  contavam  140  de  véu,  alem  de  120 
noviças  e  educandas  pelos  annos  de  1620  a  1623.  Em 
Chellas  existiam  60,  em  Nossa  Senhora  da  Rosa  130.  no 
Salvador  107,  em  SanfAnna  80,  e  na  Annunciada  60. 
£ntre  esta  população  feminina,  sequestrada  do  mundo 
por  toda  a  vida,  quantas  infelizes  nKo  haviam  pronunciado 
votos  forçados  coegidas  pela  voiíínde  inflexível  dos  paes, 
ou  dos  tutores,  ou  iUudidas  pela  persuasão  enganosa  dos 
confessores,  e  pelos  erros  de  uma  falsa  educação?^ 

Os  religiosos  não  se  limitavam  aos  exercidos  piedosos* 
Viviam  mais  no  século,  do  que  nos  mosteiros,  e  sabiam 
mais  das  intrigas  domesíii  i>  das  familias  e  das  cousas  po- 
liticas, do  que  de  orações  e  de  sagradas  letras.  Ck)nse« 
Iheiros  natos  das  casas,  aonde  se  insinuavam  como  anui* 
gos,  ou  como  directores  espirítuaes,  accessores  constantes 
dos  magistrados,  que  auxiliavam  coni  alvitres  e  noticias, 
e  árbitros  incansáveis  das  contendas  e  amuos  das  confra- 
rias e  irmandades  agremiadas  em  grande  numero  nas  ca- 
pellas  de  cada  convento,  pouco  tempo  lhes  sobrava  para 
a  meditação,  para  o  estudo  e  para  os  officios  espirítnaes. 
Os  prelados  de  algumas  ordens  podiam  quasi  dizer-se 
potentados.  A  de  S.  Domingos  pelas  riquezas  e  pela  in- 
fluída rivalisava  com  a  companhia  de  Jesus,  mas  esta 
venda-a  na  subtileza,  com  que  sabia  attrahir  e  illaquear  as 
adliesôes,  e  conslituia  um  verdadeiro  poder,  com  o  qual 
a  administração  teve  de  capitular  por  vezes  no  reino  e 

1  Carta  Rogia  de  4  de  maio  de  1633  e  officio  do  Arcebispo  de 
Braga  a  que  ella  se  refere.— Fr.  Nicolau  de  Oliveira,  Grandezas  de 
ÍÀêboa,  trat.  iv,  cap.  iii. 


ê 

HISTORIA  BE  PORTUGAL 


Odero  nas  possessoes.  Ao  mesmo  tí^mpo  os  colleilores,  os  sub- 
colíeitores  e  os  juizes  apostólicos,  avocando  as  causas  do 
fòro  secular  e  ecclesiastico,  perturbando  as  cons4^íencias, 
e  promovendo  pleitos  lucrativos  para  elles  e  para  a  chan- 
cellaria  romana,  causavam  gi  aves  embaraços,  e  não  pe- 
quenos males.  As  disputas  e  os  conflictos  entre  os  pre- 
lados ordinaríos  e  os  das  ordens  militares,  e  entre  os 
seculares  e  os  ecdesíasticos  representavam  outro  grande 
flagello  derivado  da  confbsão  dos  tempos.  Os  requerentes 
com  offensa  das  ordenações  iiiipetravam  de  lionia  u  i>ro- 
vimento  dos  beneiicios,  e  os  oíliciaes  da  legacia  com- 
metteram  taes  excessos,  que  obrigaram  o  coUeitor*  para 
applacar  as  queixas,  a  simular  um  inquérito,  que  só  po- 
dia enganar  os  crédulos.  Nas  conquistas  as  demasias  dos 
sub-colleilores  foram  tão  longe,  que  o  governo  ordennu 
á  Mesa  da  Consciência  e  ao  vice-rei,  que  os  suspendesse 
em  todos  os  domínios  ultramarinos. 

A  inquisição,  tinha  firmado  o  seu  poder,  e  cobria  com 
a  sombra  as  terras  principaes  do  reino.  O  terror,  que 
inspirava,  era  profundo,  obtendo  por  elle  até  dos  que 
mais  a  detestavam  em  segredo  prompta  e  ilel  coopera- 
(^0.  Não  havia  família  que  não  tremesse  de  incorrer  na 
severidade  do  tribunal,  e  os  que  mais  desejavam  vé-lo 
sopeado,  lingiaiii  admirar-lbe  o  zelo.  A  igi  oja  confiára-lhe 
a  defeza  da  urtliodoxia  e  da  unidade  das  crenças,  e  a  in- 
tolerância e  o  fanatismo  louvavam  a  força  invencível,  com 
que  elie  aíugentára  do  reino  a  peste  das  heresias,  com- 
batendo as  idéas  ousadas  e  perigosas.  Em  1563  o  estado 
ecclesiaslico,  depois  de  encarecer  os  serviços  prestados 
pelo  santo  oílicio,  e  de  pedir  que  suas  casas  fossem  visita- 
das de  tres  em  tres  annos  por  alguns  prelados  virtuosos, 
declarava  que  os  inquisidores  pela  sua  idade  e  experiên- 
cia eram  dignos  de  toda  a  confiança.  Entretanto  o  epis;- 


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DOS  S£CULOS  XVli  £  XVUI  333 

copado  queixa va-se  do  Breve,  que  auctorisára  o  U  iljuiial  odcro 
da  fé  a  avocar  as  causas  sujeitas  aos  ordinários  comofifensa 
manifesta  da  sua  jurisdição,  mas  o  Brev  e  permaneceu,  e 
só  em  1623  é  que  um  decreto,  datado  de  8  de  outubro, 
encarregou  o  arcebispo  de  Braga  da  visita  das  inquisições 
acoiii[)aiilia«.lo  do  licenciado  Mem  Carrillo  de  Alvite,  in- 
quisidor de  Valiadolid,  e  que  em  de  outubro  de  1640 
foi  promulgado  o  novo  regimento  do  santo  oíDcio,  alte« 
rando  em  parte  o  que  tinha  mandado  elaborar  o  cardeal 
D.  Henrique*.  Mas  a  fónna  do  processo,  os  meios  de  ex- 
torquir a  confissão  dos  [nv^o>  [ielos  iiorrores  da  prisão 
cellular,  peia  dor  dos  tratos,  e  pelas  violências  moraes 
subsistiram,  e  o  systema  de  premiar  as  denuncias  e  de  as 
provocar  por  todos  os  modos  directos  e  indirectos  tam- 
bém li  io  nu  receu  o  menor  reparo.  A  inquisição,  para 
penetrar  o»  se^^^edos  das  famílias  e  introduzir  no  seio  d  el- 
las  uíua  vigilância  continua,  carecia  de  favorecer  os  de- 
latores e  de  approvar  os  actos  mais  repugnantes.  Se  não 
pervertesse  os  princípios  de  honra,  e  não  applaudisse 
como  ras^Mjs  de  heroísmo  religioso  o  esquecimento  dos 
deveres  sagrados,  os  liihos  não  deporiam  contra  os  paes, 
as  mulheres  contra  os  maridos,  e  os  irmãos  contra  as  ir- 
mãs. Sem  delações  tenebrosas,  sem  o  silencio  e  a  intimi- 
dação, o  seu  império  não  poderia  sustentar-se.  Para  o 
manter  precisava  de  nubilUar  os  delatores,  de  canonií.ar 
o  desprezo  dos  vínculos  do  2>augue,  e  de  glonticar,  como 
virtudes,  a  ingratidão»  a  periidia,  e  até  a  violação  das  leis 
da  natureza. 

Em  1G12  o  ijispo  inquisidoi  D.  Pedro  de  Castilho  pio- 

1  Vide  jlí«fiiorta  para  a  Historia  àat  Cortes,  pelo  visconde  de  San« 
tarem. — Documentos,  pag.  61  e  63. — índice  Chronologico,  tora.  vi 
pag.  39. 


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HISTOaiA  D£  PORTUGAL 


vava  a  necessidade,  que  o  tribunal  tinha  de  obedecer  a 
estas  máximas,  pedindo  uma  ten(.a  para  remunerar  o  fer- 
vor de  um  d'esses  delatores,  judeu  rene*;adu.  D.  Pedro 
nas  Acções  do  cargo»  satisfazendo  o  ideai  do  bom  in- 
quisidor, teria  sido  o  orgulho  do  cardeal  infante  D.  Hen- 
rique se  existisse  na  sua  epocha.  Até  a  morte  foi  digna 
da  vida.  Havendo  dispendido  sem  auctorisação  nas  obras 
dí)  santo  oííicio  de  Lisboa  avultadas  somnia,>  MHibe,  que 
o  govei  no  nomeara  Fernão  de  Matos  para  lhe  tomar  con- 
tas, e,  nâo  podendo  resistir  á  paixão,  falieceu  de  tristeza, 
Dio  sem  deixar,  todavia,  iostituido  um  morgado  para  o 
sobrinho  com  o  producto  de  suas  economias,  que  a  ma- 
licia  dos  contemporâneos  disse  muito  engrossadas  á  custa 
dos  bens  confist^ados  aos  christãos  novos. 

Foi  memorável  o  anno  de  1612  nos  fastos  do  tribunal. 
As  tres  inqai$iç?$es  de  Lisboa,  de  Coimbra  e  de  Évora  fes- 
tejaram cada  uma  com  seu  auto  de  fé  o  dia  2S  de  novem- 
bro, primeiro  do  advento.  Na  procissão  do  santo  oílicio  de 
Lisboa  ^aíram  noventa  e  seis  pessoas,  cincocnta  e  nove  lio- 
mens  e  trinta  e  sete  mulheres,  com  seis  estatuas  de  con- 
demnados  justiçados  em  effigie,  e  contaram-se  cinco  ho- 
mens e  tres  mulheres  executadas  no  largo  do  Rocio.  Na 
de  Évora  appareceram  cem  coniJemnados,  cnti-ando  dois 
homens  e  sete  mulheres  queimadas  com  sers  estaínas  na 
Praça  Grande.  Finalmente,  a  inquisição  de  Coimbra  avul» 
tou  o  seu  préstito  com  cento  setenta  e  quatro  victimas,  das 
quaes  doze  serviram  de  pasto  ás  chammas  com  doze  esta* 
tuas.  Ao  auto  de  Lisboa  assistiam  os  e^ovemadores  do  rei- 
no. No  de  Coimbra  ficaram  aniqnilailas  familias  inteiras. 
Em  outra  ceremonia  igual,  celebrada  dezoito  annos  antes 
lio  dia  3  de  agosto  de  1603  na  Ribeira  Velha  de  Lisboa, 
ârdêra  um  frade  franciscano,  e  na  de  1624  pereceu  abra- 
sado em  uma  fogueira  o  desditoso  Atitonio  Homemi  w- 


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DOS  S£CUL09  JYU  £  XYIU  3)8 

nhccido  [ida  denominação  úo  Doutor  Infeliz.  A  província  ode» 
de  Traz  os  Montes  foi  uma  das  mais  assoladas.  A  inquisi- 
ção encerrava  ali  os  suspeitos  dos  cárceres  por  familias, 
e  até  menores  de  treze  e  de  quatorze  aimos  padeceram 
como  homens.  Estes  exemplos  deixavam  nos  ânimos  pro- 
fundos vestígios.  As  multidões,  quu  iam  cevar  os  olhos 
n  aquelles  espectáculos  horríveis,  recolhiam-se  conven- 
cidas, de  que  a  mão  de  Deus  tinha  fendo  os  culpados»  e 
cada  vez  se  sentiam  mais  animadas  de  zdlo  pela  pureza 
da  fé,  e  de  odio  contra  o  judaísmo  e  as  heresias. 

O  predomínio  da  inquisição  matou  o  futuro.  Foi  ella 
quem  deu  príncipalmente  ao  paiz  as  feições  sooibriaSy 
que,  alterando-lhe  a  pbysíonomia,  o  tornou  o  contrario 
em  tudo  do  que  fôra  antes  da  segunda  metade  do  sé- 
culo XVI.  Foi  ella,  de  mãos  dadas  com  a  influencia  não 
menos  fatal  da  educação  clerical,  (]n(>m  obsciii-eceu  a  luz, 
tão  viva,  que  irradiara  do  ultimo  período  da  meia  idade 
e  da  aurora  dos  descobrimentos  e  das  grandes  emprezas. 
Depois  de  roubar  â  nação  pélas  perseguições  contra  os 
judeus  uma  parte,  de  certo  a  mais  valiosa,  das  foFças 
que  haviam  animado  o  commercio  e  as  industrias,  depois 
de  ter  levantado  em  cada  fogueira  um  monumento  á  in* 
tolerância,  e  cavado  em  cada  masmorra  um  jazigo  para 
a  Uberdade  de  consciência  e  para  a  liberdade  do  pensa* 
mento,  a  sua  obra  de  trevas  estava  concluida,  e  os  effei* 
tos  nâo  deviam  demorar-se.  Impotente  contra  a  corru- 
pção, que  tão  carecia  para  se  esquivar  aos  golpes  senão 
de  se  envolver  no  manto  da  hypocrisia,  sua  funesta  ac^^o 
amortecendo  a  alma  e  destemperando  o  caracter  portu* 
guez,  1  i.scou  em  p  ucos  annos  as  tradições  de  um  longo 
período,  e  substituiu  ao  ardor  das  crenças,  ao  vigor  dos 
brios,  e  ao  enthusiasmo  a  apathia,  a  indiferença  e  a  apa- 
gada tristeza  do  desalento.  As  superstições  mais  absurdas 


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3d6    UISTOBU  DE  PORTUGAL  DOS  SÉCULOS  XVU  £  XVIU 

Odor.,  c  a  credulidade  boçal,  seguiram  passo  a  pasbu  us  pro- 
gressos do  tribunal  da  fé.  Os  ânimos  subjugados  e  as  von- 
tades escravisadas,  perdida  a  independeacia  e  a  íDicía- 
tiva,  arrastaram-se  servilmente  atrás  das  exterioríuaues 
do  cullo,  inaterialisando  tudo,  coníum lindo  as  visões  do 
fanatismo  com  as  \ei  dades  puras  da  reiigiào  e  da  moral, 
e  buscaodo  no  uuiraviiiioso  inventado  nas  sacristias  um 
clarão  incerto,  que,  em  vez  de  as  adelgaçar,  serviu  só  de 
condensar  ainda  mais  as  trevas. 


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CAPITULO  U 


A  NOBREZA 

• 

Suas  retardes  com  i  ooi  Aa.  Condições  dc  exístmcia.  Ausência  do  systema  feudal  na 
sodedudo  portugueza.  D.  Diniz»  D.  Fernando  e  D.  João  I.— Sorriço  militar  dos 
fidalKOs  e  cavalMitM.— Governo  de  Affiraso V.  —  Allianfa  de  D.  Joio  II  eom  as 
cliUMi»  medias.  Luta  o  resistência  da  aristucraoia,  Vicloria  da  auctoridade  moaur- 
chica.  — D.  Manuel.  RcconciMarílo  da  coróa  com  a  nobreza.  Os  descobrinionf-»- 
conquistas.— Reinados  de  D.  João  III  e  O.  Sebastião.  O  poder  peisoal.  — Eileitos 
da  naldade  mooarcbiea.  Corrupção  dos  oostomes.  Degenera(iodo  earader.  Catas* 
trofilie  de  1578^  Raioa  das  fsinílias  nobres.  Cdrtes  doTbomar.  Pedidos  dos  idal* 
gos.  Politica  errada  da  Heqtanba  eom  eUes. 

• 

O  esplendor  das  famílias  titulares,  já  decaído  antes  de 
reioar  em  Portugal  a  dynastía  bespanbola,  acabou  de  se 
eclipsar  com  o  seu  domínio.  A  ausência  da  còrte,  e  o  des- 
faltecimento  do  paiz  não  podiam  deixar  de  aSèctar  pro- 
fundamente a  aristocracia  na  influencia  e  nos  rendimen- 
tos. A  nobreza,  desde  que  D.  Manuel  subira  ao  tlirono, 
alliando-se  com  a  corôa»  trocara  pela  satisfação  das  vai- 
dades aulicas  as  velhas  arrogâncias,  e  no  serviço  do  paço 
e  das  armadas,  ou  nas  capitanias  da  Africa  e  da  índia  íôra 
esquecendo  a  pouco  e  pouco  as  aspirações,  que  no  xv  sé- 
culo a  tornavam  ainda  uma  ameaça  constante  para  o  rei, 
e  um  flagello  muitas  vezes  insupportavei  para  os  povos. 
D.  João  II  com  a  sua  luta  contra  os  ducjues  de  Bragança 

VOHO  Y  XI 


338  -        HBTOBIA  m  FORTUGAL 


AnoiMia  e  de  Yizeu  assegurou  a  victoiia  do  poder  real.  Ck)ube  ao 
seu  suceessor,  em  tudo  feliz,  a  misslo  agradável  de  co> 

lher  os  fructos  do  triumpho,  e  ao  mesmo  tempo  de  recon- 
ciliar os  vencidos  com  elie.  Estabelecida  sob  formas  sua- 
ves, a  uoidade  monarchica  depressa  se  consolidou,  e  os 
fidalgos»  cedendo  á  lei  dos  factos  consummados,  couver- 
teram-se  em  cortez3os,  tirando  proveito  e  até  orgulho  dos 
favores,  com  que  o  rei  lhes  premiou  a  docilidade. 

D.  João  111  e  D.  Sebastião  não  se  desviaram  do  s}  stema 
iniciado  por  seu  pae  e  por  seu  avô,  e  repartiram  com  mão 
larga  pelos  nobres  os  governos  lucrativos,  as  tenças,  as 
doações  dos  bens  da  cor6a  e  ordens,  e  os  oflicios  mais 
reudosos  da  administração  civil,  ecdesiastica  e  militar,  e 

do  paço.  Este  accordo  tácito,  se  por  uai  iaíJu  aliançava 
aos  príncipes  a  cooporacHO  dos  homens  poderosos,  pelo 
outro  offerecia-lhes  os  cargos  e  posições  mais  imporlan- 
te$,  embora  para  as  obterem  e  conservarem  fossem  obri- 
gados a  submettei^se  á  vontade  dos  monarchas,  única 
fonte  d  onde  manavam  as  honras  e  mercês.  Este  estado 
de  dependência,  supprimindo  quaesquer  tentativas  de 
resistência  collectiva,  não  concorreu  pouco  para  adulte- 
rar as  instituições  viciadas  em  uma  de  suas  partes  essen- 
daes. 

A  reacção  monarchica  achou  menos  obstáculos,  porque 

a  organisaç^o  feudal  nunca  prevalecera  entre  nós,  des- 
envolvendo-se  a  sociedade  portugueza  fora  das  condições 
de  quasi  todas  as  sociedades  dos  séculos  xn  e  xni.  A  ín« 
va^  dos  árabes  no  começo  do  viu  século  viera  atalhar 
a  transfbrmaçSo  do  systema  beneficiarto  em  systema  tsa* 
dal,  e  impedir  que  a  tradição  wisigulliica  se  apagasse 
dos  costumes  da  peninsula.  Os  dois  caracteres  principatí> 
do  feudalismo,  a  perpetuidade  do  domínio  no  feudata- 
rio  6  seus  Sttccessores,  e  a  obrigação  do  serviço  militar 


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DOS  8EGDL0S  xvh  b  xm 


m 


para  com  os  suzeranos,  nunca  existiram  eni  Portugal,  a 
aondô  as  terras  dos  nobres  eram  patrimoniaes,  ou  per- 
tenciam á  corôa,  e  nUo  podiam  ser  dadas  em  feudos,  pop* 
que  á  perpetuidade  das  doações  se  oppunba,  pelo  menos 
no  primeiro  período,  o  direito  constiUicional  do  reino,  isto 
é,  a  inalienabilidade  dos  bens  do  estado,  principio  rece- 
bido de  Leão.  Em  liai mnnia  com  elle  a  clausula  da  neces- 
sidade das  confirmações  de  rei  para  rei  apparece  desde  o 
governo  de  Affonso  II,  e  o  direito  de  reversUo  dos  bens  da 
corôa  sustenta-se  sem  interrupção  desde  o  século  xii  até 
aos  tempos  modernos.  O  diploma,  em  que  I).  Diniz  re- 
vogou as  mercês  ino0icio$as  da  primeira  mocidade,  en- 
cerra uma  prova  inconcussa  da  verdade  d'este  facto.  Mas 
ao  mesmo  tempo  a  Hespanha  central  e  occtdentai  Tão  vi- 
via sequestrada  da  Europa  romano-germanica,  e  nlo  po- 
dia abstrahir  inteiramente,  por  isso,  das  idéas  estranhas 
tanto  na  politica  e  na  administração,  como  em  relação  ao 
seu.  aperfeiçoamento  intellectual. 

Portugal  ligava-se  com  ellas  por  muitos  vínculos,  sendo 
os  mais  fortes  e  continuados  as  communicaçl^es  diplomá- 
ticas e  mercantis  com  os  paizes  de  aleni  dos  Pyrineos,  a 
introducção  dos  monges  de  Cluny,  a  presença  de  bastan- 
tes cavalleiros  e  prelados  ultramontanos,  e  a  acção  exer- 
cida pelo  conde  Henrique  e  seus  companheiros  de  ar- 
mas, acçSo  dilatada  pelas  colónias  francas  e  pela  frequência 
dos  cruzados  em  nossos  portos.  Todos  estes  elementos, 
actuando  constantemente,  por  força  traziam  sementes  de 
feudalismo,  e  as  lançavam  em  terreno  até  certo  ponto 
apto  para  as  receber.  Mas  a  instituição,  embora  conse^ 
gaisse  íncamar-se  em  algumas  formulas  e  manifestaçdes 
secundarias,  não  logrou,  comtudo,  apoderar-st^  nunca 
do  espirito  e  tendências  da  legislação,  e  a  nobre/a,  pro- 
curando enxertar  na  arvore  wisigothica  o  que  julgava 


340 


mSTORlA  DK  PORTUGAL 


■Mbrttft  utíl  a  seus  interesses,  conservou-se  fiel  na  essência  ás  tra- 
dições nacionaes.  Os  feudos  nunca  se  coustituiram,  mm 
inlluiram  nas  relações  das  differentes  classes  entre  si  e 
com  o  rei.  Satisfeitas  as  mais  poderosas  com  os  amplos 
privilégios,  que  dísfnictavam,  nunca  ren^ram  pelas  leis 
peregrinas  os  antigos  fóros^ 

A  condição  das  obrigações  do  serviço  militar  do  feu- 
dalarii)  para  com  o  suzei'ano  em  vii  iude  du  domimu  da 
terra,  faltou  portanto  sempre  no  modo  de  possuir  da  no- 
brexa.  A  sua  propriedade  nunca  saiu  das  duas  fórmas,  pa- 
trimonial, ou  realenga,  isto  é,  da  coròa,  honrada,  ou  coti- 
taáa,  tanto  em  um,  como  em  outro  caso,  e  como  tal  isenta 
do  serviço  da  guerra  e  dos  tributos  reaes.  É  evidente,  ([ue 
as  terras  assim  ])ossnidas  pela  ai  istocracia  secular  e  eccle- 
siastica  nenhuma  analogia  tinham  com  o  regimeu  feudal, 
e  as  consequências  inevitáveis  d'esta  maneira  de  ser  pe- 
saram por  largo  espaço  sobre  a  administração  fiscal  e 
econoníica  do  paiz.  Estabelecida  a  immunidade  do  ser- 
viço uiilitai-e  de  todas  as  contribuições  como  base  da  exis- 
'  tencia  das  classes  priviiegiadas,  o  rei,  para  obter  a  coadju- 
vação dos  fidalgos  e  de  seus  acostados,  ou  homens  de 
armas,  auxilio  importante  pelo  valor  e  perícia  da  casta 
íllustre,  era  obrigado  a  assegurar-lhes  estipêndios  avul- 
tados, empobrecendo  com  o  seu  pagamento  o  patrimó- 
nio publico  cada  dia  mais  desfalcado.  Um  dos  meios  a 
que  recorria  para  acudir  a  estes  soldos  consistia  em  con- 
verter em  prestamos  os  bens  da  corôa,  fazendo  mercê 
d*elles  em  prazos  indeterminados,  e  alienando,  não  o  ca- 
pital, porque  as  ton  as  não  podiam  ser  alheadas  definiti- 
vamente, mas  o  seu  valor,  como  rendimento  do  estado. 

^  HitUiria  de  Pwiugalj  pelo  sr.  A.  Heit^ulano,  tom.  iv,  Uv.  viu, 
part  n  e  lu* 


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• 


DOS  8BCUL0S  xvn  E  xvm  34i 

Acubiça  (los  poderosos  era  insaciável,  e  a  necessidade  Anobreu 
coagia  ainda  os  soberanos  a  lançarem  m9o  dos  tributos 
municipaes,  transfonnando-os  também  em  prestamos. 

•  O  melhor  das  rendas  publicas  correu  por  esta  maneira 
para  a  bolsa  dos  fidalgos,  que  pouco  dispostos  a  pelejar 
e  morrer  gratuitamente  pela  cruz  e  pela  pátria»  devora- 
vam a  substancia  da  nação»  e  nunca  arrancavam  da  es- 
pada, ou  enristavam  a  lança,  sem  a  certeza  de  grossos  e 
seguros  prémios  *. 

No  reinado  de  D.  Diniz,  notável  na  existência  da  monar- 
chia  pela  transfiguraçlio  politica»  económica  e  iiscal  opera- 
da n'elie»  exerceram  maior  acção  asopiniQesfeudaes  ácerca 
do  serviço  da  nobreza.  As  quantias,  ou  soldos,  foram  pa- 
gas  n'esta  epocha  e  na  seguinte  alê  ao  gosei  no  de  D.  Fer- 
nando com  os  senhorios  das  terras,  approximando-semais 
assim  o  príncipe  da  formula  feudal,  porque  os  rícos  homens 
e  cavalleiros  ficavam  possuindo  na  realidade  as  proprie- 
dades como  espécies  de  feudos  (feu),  palavra  que  só  en- 
tão 1)1  iocipiou  a  apparecer  com  significação  mais  verda- 
deira. A  causa  d'este  facto  não  deve  attríbuir-$e  entretanto 
ao  desejo  de  imitar  os  costumes  de  fóra»  mas  á  urgência 
das  círcumstancias.  O  mau  estado  da  fezenda  determinava 
o  ruinoso  systema  de  trocar  por  doações  os  pagamentos 
dos  soldos  em  mueda  corrente,  ou  em  géneros.  A  po- 
breza do  erário  cada  dia  era  maior,  e  o  mal  derivava-se 
d'ella  e  das  exigências  das  classes  privilegiadas»  mais  ain- 
da do  que  da  vontade  dos  monarcbas»  chegando  o  abuso 

<  Coutar  uma  terra ^  dizia  D.  Diniz,  é  psciisar  seus  moradores 
de  hoste  (serviço  militar),  de  fossado  (serviço  guerreiro),  e  de  fôro  ^ 
e  toda  a  peita,»  isto  é,  de  todas  as  contribiiifôes  ein  dinheiro,  ou  gé- 
neros (fôro),  e  das  penas  pecuniárias  (peita).  Cliancellaria  de  D.  Di- 
niz, liv.  III,  fl.  72. — Memorias  da  Academia  Real  das  Sciencias  de 
JJsboa,  tom.  vi,  part.  ii,  pag.  iâO. 


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í 

3U  HISTORIA  DE  POATLGAL 

■ 

A  nobnm  ao  auge  de  serem  aquantiados  mesmo  no  berço  os  filhos 

dos  ricos  homens,  e  considerada  a  sua  infância  inulil  como 
serviço  do  paiz.  Os  paes  apesar  (Vh<o  não  tomavam  so- 
bre si  em  compensação  todos  os  perigos  e  trabailios  da 
defeza  do  solo  natal,  e»  pelo  contrario,  os  deveres  da  mili« . 
cia  pesavam  cada  dia  mais  onerosos  sobre  os  maDicipíos. 
D.  Fernando,  instado  pelos  apuros  do  thesouro,  introduziu 
uma  alteração  im^iortante.  Para  minorar  os  sacrifícios» 
que  as  lanças  das  classes  pr  ivilegiadas  custavam  á  corôa, 
límílou  as  ccartas  de  contia»  aos  primogénitos  dos  fidal- 
gos, não  passando  senio  por  morte  d'elles  aos  irmãos. 
Mas  o  soldo  começava  a  vencer*se  da' mesma  maneira 
desde  o  berço,  e  os  ricos  homens  não  duvidavam  alistar 
entre  os  seus  acoslaíios  os  cavalleiros  dos  concellios,  des- 
íaicaudo  os  contingentes  das  villas  e  cidades.  Foi  preciso 
para  reprimir  a  fraude,  que  o  monarcha  probibisse  o  pa- 
gamento de  soldos  ás  lanças  não  levantadas  em  terras 
coutadas,  ou  â  custa  dos  nobres  fóra  dos  municípios. 

A  estreiteza  dos  meios  pecuniários  obripou  1).  João  I  a 
suspender  as  quantias  aos  vassallos,  pagando  uuicamente 
o  soldo  dos  que  servissem,  calculado  pelo  numero  de 
homens  de  pé  e  dé  cavallo,  que  cada  um  trouxesse.  As  or- 
dens militares  deviam  entrar  em  campanha  com  300  ho- 
mens de  armas,  o  condestave!  com  30,  os  bispos  de  Évora 
e  Coimbra,  e  os  arcebispos  de  Braga  e  de  Lisboa  com  50 
cada  um,  o  do  Porto  e  o  prior  de  Santa  Cruz  com  00  en- 
tre ambos,  os  bispos  de  Vízeu,  da  Guarda,  de  Silves  e  de 
Lamego,  o  prior  do  Crato  e  o  abbade  de  Alcobaça  com 
áO  cada  um,  e  os  outros  senhores  e  ricos  homens  com  os 
•  que  podessem  sustentar  segundo  sua  riqueza.  Estes  con- 
tingentes, impostos  na  proporção  das  faculdades  dos  se- 
nhores ecclesiasticos  e  seculares,  mostram  o  grau  de  opu- 
lência a  que  se  haviam  elevado.  O  mestre  de  km,  (|uando 


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008  SÉCULOS  XVn  £  &VU 


343 


O  aperto  das  circumstancias  lh'o  consentiu»  restabeleceu  a»*!»» 
as  quantias  pagas  a  rasão  de  1:000  libras  por  cada  lança 
do  corpo  de  cavaiiôiro  oobrô»  e  de  700  por  cada  uma 
das  outras,  e  poz  termo  ao  abuso  dos  filhos  prímogeni* 
tos  principiarem  a  vencer  no  berço»  ordenando  que  a 
quantia  só  começasse  a  ser  abonada  desde  a  idade  em 
que  o  Vassallo  entrasse  a  servir.  De  tudo  o  que  acabámos 
de  expor  deprehende-se  facilmente  quaes  eram  na  meia 
idade  portuguesa  os  privilégios,  as  riquezas»  e  a  verda- 
deira força  das  classes  aristocráticas*  Emquaoto  o  povo 
e  as  classes  medias  pelejavam  de  graça  e  ajudavam  a  co- 
rÔa  com  o  produclo  das  contribuições,  a  nobreza,  im- 
mune  de  todos  os  encargos,  não  saía  dos  solares,  nem 
mettia  o  pó  oo  estribo  com  os  seus  acostados»  senão  de- 
pois de  segara  do  alto  preço  de  seus  esforços*  Âlem  dos 
empregos  militares,  civis  e  ecciesiasttcos,  níSo  vestia  as 
armas,  nem  dava  um  passo,  sem  receber  em  premio  ren- 
dosas doaç(3es  de  terras,  ou  de  direitos  reaes.  A  superio- 
ridade da  sua  cooperação  assegurava-ihe  a  continuação 
d*ella.  Os  soberanos,  não  podendo  dispensa-la,  obededam 
á  leí  da  necessidade,  empobrecendo  o  erário  e  çollectando 
os  concelhos*. 

Quasi  toda  a  nobreza  titular  e  opulenta  seguira  o  par- 
tido de  Gastei  la,  e  vencida  perdeu  os  bens  e  as  dignida- 
des. O  mestre  de  Avia,  elevado  ao  throno,  carecia  de  o 
rodear  de  uma  aristocracia  nova,  leal  e  dedicada  á  sua 
dynastía.  Começou  a  institui-ta  com  seus  filhos  e  o  eon^ 

deslavei,  dando  o  titulo  de  duque  de  Coimbra  ao  infante 
D.  Pedro,  o  de  duque  de  Yizeu  ao  infante  D*  Henrique,  e 

*  Chronica  de  El -Rei  D.  João  I,  por  Fernão  Lopes,  part.  ii, 
:  ip.  cxxix.  As  4:000  libras,  que  aponta  o  texio,  valiam  n'aqiiella 
epocha  ^0  dobia!»  casteiiiauas,  e.  a  dobra  libras  da  moeda  dos 
reales  de  iO  soldos. 


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344 


HISTOlUA  0£  PORTUGAL 


Anuiircia  O  de  conde  a  Nuno  Alvares  Pereira.  Aftbnso  V  foi  mais  li- 
beral, e  creou  marquezr?,  vice-coades  e  barões.  A  deno- 
minação empregada  até  então  de  rico  homem  e  de  Vas- 
sallo principiou  a  ser  menos  usada^  e  a  ser  substitoída 
pela  de  alcaide  mór,  e  senhor  de  terras;  mas  a  verda> 
deira  importância  dos  fóros  nobiliários  procedia  da  qua- 
lidade (ionalario.  Na  aristocracia  de  s»  ,<,^unda  ordom 
os  fidalgos,  os  escudeiros  e  os  cavalleiros  compunham 
as  classes  mais  distinctas  pela  posição  e  pelos  privilégios. 
Entre  os  fidalgos  e  os  homens  dos  concelhos,  plebeus,  ou 
peões,  interpunham-se  os  doutores,  e  em  geral  os  letra- 
dos, íiliio^  do  povo  quasi  sempre  pelo  berço,  mas  con- 
spícuos e  considerados  pela  sciencia  e  pelos  cargos  judi- 
ciaes,  que  exerciam.  Todos  estes  elementos  se  desenvol- 
veram progressivamente  desde  os  fins  do  século  xiv  em 
condições  diversas,  e  alcançaram  o  xvri  mais,  ou  menos, 
profundamente  modificados.  A  nobreza,  trocando  a  so- 
berba e  as  i(ieas  invasoras  pela  dependência  palaciana,  a 
magistratura  alliada  com  a  corôa  e  de  mãos  dadas  com 
eila  para  consolidar  o  principio  monarchico  sobre  as  bases 
do  direito  divino  e  do  poder  absoluto,  os  antigos  caval- 
leiros e  escudeiros  para  povoarem  as  conquistas,  guarne- 
cerem as  armadas,  e  oITerecerem ao  rei  a  milícia  intrépida 
e  aventurosa,  cuja  espada  conquistou  e  retalhou  impérios, 
e,  finahnente,  os  peões,  ou  os  plebeus,  agricultores,  fa- 
bricantes e  mercadores,  para  formarem  o  núcleo  d^essas 
classes  medias,  Uo  vigorosas  já  em  4470  e  em  1480,  qae 
AlTonsoA'  muitas  vezes  se  \[u  i>Íjrigado  a  atlende-las  con- 
trariado, e  que  D.  João  li  se  ligou  com  ellas  no  seu  duello 
com  a  nobreza^. 

*  Coelho  (la  Rocha,  Ensaio  sobre  a  líiatiwia  do  Governo  e  da  />• 
giúação  de  Portugal,  art.  4.*— £i/aí/o  da  Nobreza. 


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I 


BOS  SÉCULOS  XVII  E  XVIlt  348 

Muitas  famílias  nobres,  das  que  haviam  abraçado  as  Anobfv» 
bandeiras  castelhanas,  nao  voltaram  ao  reino,  e  saas  pro- 
priedades sequestradas  foram  dadas  por  D.  Joio  I  aos 

fidalgos  fieis  á  sua  causa.  O  mestre  de  Aviz,  combatendo 
um  contendor  tão  poderoso,  não  hesitou  em  repartir  tam- 
l)em  por  elles  os  bens  da  coroa.  Dava  ainda  do  que  não 
sabia  se  ficaria  sendo  seu.  Firmada,  porém,  depois  a  corOa 
na  sua  fronte  a  rasão  de  estado  fallou  mais  alto,  e  as  pro- 
visões restrictivas  da  lei  mental  procurarani  atalhar,  até 
onde  fosse  possível,  sem  violência,  nem  quebra  de  fé,  os 
maus  etíeitos  das  liberalidades  dictadas  pelas  circumstan- 
cias  políticas.  Esta  lei,  guardada,  ao  que  parece,  desde  o 
anno  de  1441  em  vida  de  D.  Joio  sem  nunca  se  promul- 
gar concebida,  segundo  se  crê,  por  inspiração  do  chan- 
celler  João  das  Regras,  e  approvada  pelos  letrados  do 
conselho  de  el-rei,  propunha-se,  não  revogar  as  doações 
feitas,  mas  declara-las  e  limita-las  em  harmonia  com  a 
natureza  dos  bens  da  coròa  b  com  os  interesses  públicos, 
ordenando,  que  as  terras  doadas  passassem  aos  herdei- 
ros de  varão  em  varão  em  premio  de  serviços  antigos, 
mas  que  na  falta  de  herdeiro  varão  se  devolvessem  logo 
á  corda,  de  cujo  património  inalienável  haviam  sido  des- 
membradas, com  exclusão  das  fêmeas,  dos  ascendentes, 
e  dos  collateraes.  Não  foi  este  só  o  único  golpe  que  feriu 
a  aristocracia  no  reinado  do  mestre  de  Aviz.  As  côrtes  de 
Lisboa  de  1389  representam  uma  data  para  ella  dolorosa. 
Suas  malfeitorias,  accusadas  com  vehemencia  pelos  con- 
celhos, foram  reprimidas  em  parte,  e  as  queixas  dos  fidal- 
gos nos  estados  convocados  nove  annos  depois  em  Coim- 
bra, em  1398,  provam,  que  a  auctoridade  começara  a 
olhar  mais  de  perto  pelo  povo,  cortando  os  abusos,  e  pu- 
nindo os  excessos  filhos  da  soltura  dos  costumes  e  da 
anarcbia,  obra  da  continuação  da  guerra.  Mais  tarde  sú. 


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346 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


kmtÊtu  entretanto,  é  qae  n  verdadeira  luta  se  travou  entre  elles 

e  a  coma.  Va  r  codo  ainda  para  o  rei  levantar  a  luva  e  se 
expor  ás  consequências  de  um  conflicto,  cujas  consequea- 
cias  podiam  ser  terríveis 

O  reinado  de  Affonso  V  foi  para  os  fidalgos  e  donata* 
rios  uma  das  epochas  de  maior  valimento  e  predomínio. 
O  enlhusiasmo  sincero  e  as  inclinações  guerreiras  do  rei 
tornavam  sua  vontade  extremamente  accps^ivel  ás  suppli- 
cas.  Julgando  tudo  pouco  para  remunerar  o&  senhores»  ao 
que  via  oonàbater  a  seu  lado»  prodigalisava  os  titulos  e  as 
doações.  As  mercês»  com  que  engrandeceu  os  duques  de 
Bragança  e  de  Yizeu,  foram  a  verdadeira  causa  da  emula- 
ção e  do  ciúme  do  seu  successor,  e  a  origem  da  perda  de 
ambos  pela  soberba,  com  que,  julgando  hombrear  quasi 
com  o  monarçha,  nlo  duvidaram  levantar  a  luva»  que 
D.  Joio  n  lhes  lançou  do  seio  das  côrtes  de  4581.  Mio  con- 
tente com  esta  profusão  de  graças  honorificas,  D.  Afifonso. 
repartiu  por  elles  a  melhor  parte  das  terras  e  dos  ilií  citos 
reaes,  annullando  sem  previsíío  os  rendimentos  mais  co- 
piosos do  património  da  coroa  já  h  astante  atfcenuados  peias 
concesaòes  a  que  o  império  da  crise  politica  forçára  a  re^ 
gencia  do  infante  D.  Pedro.  Fòra  longo  e  supérfluo  indi- 
viduai aqui  US  rasgos  de  exagerada  generosidade  do  ven- 
cedor de  Arzilla.  As  tenras  at  bilradas  aos  oíTiciaes  da  sua 
casa  foram  taes,  que  gei  almente  se  dizia»  que  nenhum  rei 
as  pagára  nunca  iguaes.  Greava  e  educava  alem  disso  no 
paço  à  sua  mesa  e  na  sua  camará  os  filhos  das  famílias 
mais  distinctas  em  tão  grande  numero»  que  nem  quatro 

^  A  lei  mental  foi  publicada  por  D.  Duarte  em  1434. — D.  Fran- 
cisco de  S.  Luiz,  Obras  completas,  tom.  i.^MemMia  âcerea «tal ao* 
tieku  quê  «ot  nttm  do  dr,  Jo3o  das  Regra»,  ê  H  tõtm  dgiàim 
«iftcíu  ukfê  a  Ih*  urnuuà. 


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DOS  SECCtOS  Xm  £  XVDI  347 

reinados  dos  mais  longos  podoriam  jualos  compelir  com  Anobma 
o  seu  em  munificência.  As  moradias  dos  fidalgos,  accu- 
muladas  com  o  producto  dos  bens  doados  e  dos  oílicios» 
constiluiam  outra  fonte  valiosa  de  proveitos  para  a  no- 
breza, assim  como  os  ccasamentos»,  isto  é,  as  gratifica- 
ções  aboiíadas  pelo  rei,  tanío  as  <iaiiKiS,  como  aos  homens 
empregados  no  seu  serviço,  quando  mudavam  de  estado. 
Os  fidalgos  cavaileiros»  que  venciam  moradias»  passavam 
de  cem,  fóra  trinta  e  oito  escudeiros  fidalgos  e  cincoenta 
e  um  moços,  lambem  fidalgos,  todos  retribuídos  com  lar- 
íTueza.  Não  admira,  que,  seguindo  estes  caminhos,  a  som- 
ma  total  gasta  só  com  o  pagamento  das  tenças  graciosas, 
se  elevasse  em  1477  a  6:848|jKXM)  reaes,  e  quç  as  qoan- 
'tias  despendidas  em  casamentos  e  mercês  pecuniárias 
subissem  a  mais  de  1:1335000  reaes,  algarismos  impor- 
tantes em  relação  ao  valor  da  moeda  n  aquella  epocha,  e 
ainda  mais  consideráveis  comparados  com  a  receita  pu- 
blica ordinária,  que  em  1477  n^o  excedia  43:074^9000 
reaes 

O  governo  de  Affonso  Y  pela  sua  indulgência  em  tolerar 
aos  grandes  vassallos  os  maiores  abusos  e  prepotências,  e 
pela  sua  prodigalidade  em  os  premiar  muitas  vezes  sem 
motivo,  complicou  por  modo  tal  a  situaçlo  do  paiz  e  da 
fazenda,  que  só  um  braço  íh  me,  como  o  de  D.  João  II,  e 
uma  resuhição  inflexível  como  a  d  elie,  seriam  capazes 
de  os  arrancar  da  beira  do  abysmo.  O  melhor  dos  rendi- 
mentos do  estado  era  absorvido  pelas  tenças,  moradias, 
casamentos  e  mercês  lucrativas  devoradas  pdos  fidalgos, 

*  Historia  Genealógica  da  Casa  Real,  tom.  ii,  provas,  n.**  8,  pap.  17. 
—  Covsas  que  dm  em  sua  vida  El-Rei  D.  Aflonso  V,  Archivo  nacio- 
nal da  torre  do  tombo,  gav.  i.%  maç.  9,  n."  16. — Papel  de  Fazenda 
do  reinado  de  Affonso  V, 


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348 


HISTORIA  D£  PORTUlUL 


A  nobreza  que  iilío  satisAíilos  ainda  com  tantos  favoi  es,  não  hesita- 
vam em  explorar  as  facilidades  do  monarcba  á  sombra  do 
mais  niinoso  valimento.  Qaeixava-se  ao  mesmo  tempo 
o  povo,  mas  em  v9o»  lastimando  o  desbarato  dos  bens 
da  coma,  e  accusando  a  soberba  e  a  oppressão  da  aris- 
tocracia, que,  segura  da  benevolência  do  rei,  e  certa  da 
impunidade»  tratava  quasi  como  servas  as  cUsses  infe- 
riores. N3o  contando  a  despeza  empregada  na  sustenta- 
ção dos  logares  de  Africa  (4:348i!í662  reaes),  as  sommas 
applicadas  á  administração  da  justiça  com  as  casas  do  ei- 
vei o  da  su|)[)li(  M  :iL)  (OSOflíSTSreaes),  as  destinadas  a  obras 
publicas  (300|j(000  reaes),  e  as  esmolas  algrejas  e  mos- 
teiros (d7<9l500  reaes)»  o  resto  da  receita  publica  no  valor 
de  37:3701060  reaes  desapparecia  na  voragem  das  dota- 
ções annuaes  da  família  real  e  das  graças  e  assentamen- 
tos liberalisados  aos  íidalgos  nunca  saciados.  Ei-rei  e  o 
príncipe  herdeiro  gastavam  entre  ambos  annaalmente 
14:818(9(000  reaes.  A  princeza  D.  Joanna,  denominada 
a  Excellente  Senhora,  recebia  1:4005000  reaes.  triste 
subsidio  confrontado  com  as  ^n  andezas,  que  seu  tio  lhe 
aliançara,  ofTerecendo-lhe  a  mão  de  esposo.  1).  Leonor, 
iliba  do  infante  D.  Fernando,  e  mulher  de  D.  João  li, 
l:650i$000  reaes.  As  tenças  graciosas  sem  praso  limi- 
tado ascendiam  a  0:730^000  reaes,  e  as  concedidas 
temporariamente  a  iSljJiSSO  reaes.  Os  estudos  dos  mo- 
ços fidalgos  sustentados  pelo  estado  custavam  S02fjl540 
reaes^ 

0  desequilíbrio  assustador  entre  os  rendimentos  e  as 

1  Archivo  nacional,  gav.  2.*,  maç.  9,  n.°  16. — As  outras  despe- 
zas  ordinárias  que  saíam  do  erário  iTam  avaliadas  em  2:000ií000, 
entrando  n'eslp  ralculo  os  500:(X)0  reaes  pagos  pelos  rendeiros  dos 
direitos  reaes  e  aâo  inscriptos  nos  livros  da  fazenda. 


.  j  I.  d  by  Google 


DOS  SEGGLOS  IVH  E  XVm 


349 


despezas  foi  o  pretexto  com  que  D.  Jo3o  II  se  cobria,  a  noim» 
para  oppor  o  veto  das  côrtes  e  o  seu  á  continuação  dos 

excessos,  que  a  nobreza  imaginava  perpetuar,  incutindo 
o  receio  da  sua  resistência.  Aíieita  a  zombar  dos  meios 
paliativos  e  das  restricções  apparentes»  com  que  se  tinha 
procurado  remediar  o  mal,  coutava  com  a  sua  uniSo,  na 
realidade  poderosa,  para  subjugar  o  novo  soberano,  con- 
verletido-o  em  instrumento,  senão  dócil,  pelu  nitínos  re- 
signado, dos  abusos,  que  elle  jurara  extirpar.  Não  conce- 
der novas  tenças  senão  á  medida  que  fossem  vagando 
algumas  das  antigas,  e  suspender  por  espaço  de  dez  ân- 
uos o  pagamento  dos  casamentos,  a  pâr  de  fortes  deduc* 
ções  nos  ordenados  e  vencimentos,  foram  as  providen- 
cias inculcadas  em  1477  para  occorrer  desde  logo  ás 
maiores  dilliculdades,  providencias  logo  íruslradas  pela 
Índole  do  monarcha  e  pela  avidez  dos  cortezãos.  Os  po- 
vos, viclimas  sabidas  das  prodigalídades  e  fraquezas  do 
rei,  vexados  pela  insolência  e  cubíça  dos  fidalgos,  viam- 
se  con.^li.ii);5'iilos  a  soccorrer  o  thesouro  exliauslo  com 
subsidios  extraordinários,  que  monlavam  a  dezenas  de 
contos,  e  não  ignoravam,  que  a  máxima  parle  d  estas  som- 
mas  servira  sú  para  engrossar  as  rendas  dos  grandes  vas- 
sallos,  cujo  fausto  escarnecia  a  pobreza  gerais  Osinr 
teressados  sabiam,  que  as  vozes  dos  procuradores  dos 
concelhos  só  eram  ouvidas  emquanto  duravam  as  cortes, 
e  que  os  propósitos  de  emenda  e  de  economia  só  vigora- 
vam emquanto  apertavam  os  apuros,  mas  que,  encerradas 
as  assemblèas  nacionaes  e  obtidas  as  antecipações  ou  os 
impostos,  as  promessas  esqueciam,  e  o  monarcha  volvia 
aos  mesmos  erros. 

^  Os  sttiwtdía»  arrancados  ao  paix  subiam  a  muito  mais  de  68 
contos,  somma  consideiavel  para  o  tempo. 


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MO 


UlâXOAlA  DE  PORTUGAL 


kmàtnm    Mudai*am,  porém,  de  aspecto  as  cousas  com  D.  JoâoII. 
Previsto,  dissimulado  e  constante  nas  idéase  deliberações, 
os  daques  deVizau  e  de  Bragança,  o  cardeal  D.  Joiígeda 
Costa  6  o  arcebispo  D.  Garcia  de  Menezes,  principaes  ca- 
beças da  facçSo  da  nobreza  tinham  sempre  encontrado 
no  herdeiro  da  coròa  um  adversário  occullo,  e  algumas 
vezes  até  um  iDimigo  declarado,  mais  que  tudo  desde 
que  seu  pae  o  associára  ao  governo.  Esta  circomstancia 
deveria  aconselhar  aos  duques  e  fidalgos  maior  prudên- 
cia. Mas,  confiados  nas  suas  forças,  suppozeram  o  so- 
berano débil  e  desampat  ado,  e  cuidaram,  que  bastaria 
a  ruidosa  ostentação  de  suas  colligações  para  lhe  fazer 
quasi  cair.  das  mios  o  sceptro.  Illudiam-se.  D.  João  II, 
alma  proftmda  e  tenebrosa,  dotado  de  caracter  inexorá- 
vel, traçara  o  plano  da  luta,  e  a  experiência  p!'ovou  de- 
pois, que  nenhmna  consideração,  nenhum  esciiipulo  e 
nenhum  remorso  podiam  obriga-lo  a  recuar  um  passo. 
Paciente,  emquanto  lhe  conveiu  encobrir-se,  vigiava  os 
contrários,  punha  uma  sombra  sua  junto  éd  cada  um, 
assistia  invisivel  aos  conciliábulos  dos  inimigos,  e,  vendn- 
se  rodeado  de  ciladas  e  traições,  fingia-se  tão  seguro  e 
descuidado,  como  se  não  sentisse  o  punhal  apontado  nas 
trevas  a  cada  hora  contra  o  peito.  Fiado  na  analogia  de 
interesses,  que  existia  entre  a  sua  causa  e  a  das  classes 
medias,  reuniu-as  em  torno  de  si,  e,  insinuando-lhes  o 
que  haviam  de  pedir,  fez  dos  aggravos  e  petições  das  còr- 
tes  a  sua  arma  principal.  De  feito  os  capitulos  dos  esta- 
dos de  1841  relativos  aos  privilégios  e  abusos  da  no- 
breza estabeleceram  a  questUo  com  a  maior  clareza.  Os 
procuradores  dos  concelhos,  deplorando  que  a  justiça 
andasse  ha  tantos  amios  íòra  das  mãos  do  seu  princi- 
pal executor*  notaram,  que  muitas  viUas  e  logares  iin- 
portantes  se  achassem  desmembradas  do  dominio  leali 


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foquerertm  qoe  o  ret  avocasse  os  titidos  das  doações  amImhi 
fòítas,  e  mandasse  examinar  a  soa  legitimidade,  para 

unir  ouUa  vez  á  coròa  ;is  terras  usm  iiadas,  lembrando, 
quanto  ás  moi-cés  nao  sujeitas  a  contestação,  o  alvitre  da 
biereiu  coaiirmadas  sómente  uas  pessoas  dos  donatários 
existentes  com  a  clausula  expressa  da  reversão  por  morte 
d^elles^ 

Era  nada  menos  du  iiue  uma  verdadeira  revolução  feita 
pelos  povos  e  pelo  rei  cuuiia  a  prepotência  tli)>  nobres. 
Estes  despertaram  sobresaltados,  e  decidiram  resistir 
por  todos  os  modos.  A  resposta  újd  D.  João  li  não  ibes 
deixára  a  menor  esperança.  Gommunicando  ás  côrtes, 
qne  já  tinha  nomeado  pessoas  competentes  para  exami- 
narem os  titulos  das  mercês  concedidas  anteriormente,  o 
rei  coUocava-se  audaciosamente  ao  lado  dos  concelhos, 
a»  unido  com  elles,  declarava  a  guerra  ás  classes  privile- 
giadas. Outra  providencia  accentuou  ainda  mais  a  signi' 
llcação  d'este  acto.  Desprezando  os  clamores  dos  fidal- 
gos, ordenára  que  os  seus  corregedores  entrassem  nas 
terras  dos  que  possuíam  jurisdicções,  e  coniiecessem  davS 
violências  e  vexames  praticados.  Esta  reivindicação  ou- 
sada dos  direitos  da  soberania  acabou  de  convencer  os 
antigos  validos  de  seu  pae,  de  que  a  luta  não  admittia 
quartel.  A  questão  das  jurisdicções  não  era  nova.  Os  mo- 
uarchas,  fáceis  em  remunerar  com  doações  os  serviços 
que  não  podiam  pagar  com  dinheiro»  não  se  mostraram 
menos  promptos  depois  em  se  arrependerem  da  excessiva 
liberalidade»  vendo  o  património  da  coròa  desbaratado 
e  repartido  pelos  vassallos.  Afifonso  ni  e  Affonso  iVi, 
D.  Fernando  e  D.  Juão  I,  cada  uui  poi*  diveiso  motivo, 

i  Cártm  é$  1481 « 14St,  Arcliivo  Nadonal  da  Tone  do  fombo, 
maç.  3  de  odrtea  a.*  ^ 


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dS9t  HISTOnU  DE  PORTUGAL 


Aaotecsa  adveitldos  severamente  pela  necessidade,  tinham  queri- 
do, mas  tarde,  voltar  atrás,  atalhando  o  mal;  mas  as  raí- 
zes, extensas  e  profundas,  não  o  consentiam  já,  e  com- 
plicado desde  o  governo  de  Affonso  III  com  o  conflicto 
suscitado  pelo  abuso  dos  fidalgos  esteiidereni  os  privi- 
légios ás  terras  não  coutadas,  tornando-as  innnunes  do 
•  fisco,  ainda  se  havia  aggravado  mais,  inutilisando  os  es- 
forços tentados  para  o  debellar^ 

D.  João  II  não  ignorava  a  historia  de  muitas  d  essas 
doações  usurpadas,  e,  recorrendo  ao  meio  violeiito  de 
uma  inquirição,  meio  empregado  sem  eíleito  por  alguns 
de  seus  antecessores,  sabia  os  obstáculos  que  ia  comba- 
ter. Na  alienação  das  jurísdicções  muitos  soberanos, 
usando  de  clausulas  va^as  e  indetennínadas,  haviam  en- 
tregado aos  doiialtií  iiao  só  a  justiça  civil  e  criminal, 
mas  as  nomeações  dos  magistrados,  incufiibitlos  de  a  ad- 
ministrar, despojando  a  realeza  do  uma  de  suas  i  ire  roga- 
tivas mais  preciosas.  O  districto  assim  privilegiado  iicava 
quasí  sempre  fóra  da  acção  do  poder  real,  e  os  infelizes 
habitantes  manietados  e  sujeitos  á  cubiça  e  â  tyrannia  dos 
senhores.  Maiidando,  pois,  rever  os  títulos  oiiginaes  das 
mercês,  e  obrigaado-as  todas  á  confirmação,  o  rei  amea- 
çava a  nobreza  em  uma  das  fontes  mais  valiosas  da  sua 
opulência,  e  abalava  pelas  bases  o  edificio  em  que  ella  se 
fundava.  Mandando  devassar  ao  mesmo  tempo  as  terras, 
aonde  nenlium  oílicial  dei  corõa  i)odia  entrar  para  alten- 
der  os  gemidos  e  as  l.igrimas  dos  opprimidos,  descai're- 
gava  outro  golpe,  nâo  menos  fundo  e  sensivei,  ua  prepo- 
tência das  classes  aristocráticas,  cujos  abusos,  animados 

^  Vidè  Memoria  da  Academia  Real  dm  Sciencioê  de  lAãboa, 
toio.  vn,  pag.  1Õ7  a  159  e  164. — Ordmíções  Âffontinaê,  liv.  ii, 
Ut  Lxia. 


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DOS  SRCDLOS  XYH  £~XVni  dS3 

pela  iiiiiHiiHdade,  ha  muitu  estavam  pedindo  repressão  amIm» 
immediata. 

As  queixas  dos  povos  nas  côrtes  de  1481  pintam  o 
quadro  sombrio  dos  padecimentos  dos  povos  nos  flns  do 
século  XV  ^  O  duque  de  Bragança,  desvairado  pela  ambi- 
ção, não  duviíJim  acceitar  o  repto.  De  cia  rou-se  chefe  da 
resistência,  e,  ao  que  parece,  não  hesitou  em  se  entender 
côm  os  reis  de  Castella  para  a  tornar  mais  decisiva.  Preso 
e  processado  camararíamente»  a  sua  morte  foi  como  que 
uma  expiação  da  longa  serie  de  crimes  e  extors5es  com- 
mettidos  pela  casta,  que  representava.  D.  João  II,  co- 
mo Luiz  XI,  não  era  pi  incipe  que  se  prendesse  com  for- 
mulas, ou  que  hesitasse  diante  do  assassinato  juiidico.  O 
punhal,  com  que  em  Setúbal  varou  o  peito  ao  duque  de 
Vizeu»  bem  mostrou  que  o  sangue  dos  seus  parentes  mais 
próximos  não  o  fazia  parar.  Inaccessivel  ao  temor,  á  pie- 
dade e  ao  remorso,  obreiro  implacável  de  uma  recon- 
struccào  dolorosa,  mas  ale  certo  ponto  necessária,  levan- 
tou os  alicerces  da  unidade  monarchífa  sobre  as  ruínas  e 
o  luto  das  casas  mais  iilustres»  e»  ferindo  a  reacção  nobi- 
liária na  cabeça,  decepou-lhe  de  uma  vez  os  brios  e  os 
alentos.  O  seu  governo  enceira  uma  das  epochas  me- 
moráveis da  historia  portugueza,  a  epocha  da  quéda  do 
predomínio  dos  grandes  vassallos  e  da  completa  eman- 
cipação da  corda»  liberta  de  todas  às  influencias»  que 
pod^m  dimínuir-lbe  o  esplendor»  ou  assoberbar-lhe  os 
direitos'. 

D.  Manuel,  subindo  ao  llu  ono,  achou  os  ânimos  dispos- 
tos para  uma  reconciliação  sincera.  Abrindo  as  portas  da 
pátria  aos  fidalgos  desterrados,  e  restituindo  aos  filhos 

1  ('òrtes  de  1481  e  1482,  capituios  ilas  jiirisdicçôes. 

2  liarcia  de  Rezende,  Chronica  de  EURey  D.  João  U. 

TOMO  T  S3 


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HISTORIA  ne  POBTDGAL 


Auobreia  (lo  ciuquc  íie  Ht  agança  e  aos  nobres  pi  oscriptos  as  hon- 
ras e  os  bens,  aproveitou  a  opportunidade  do  ensejo, 
para  lançar  sobre  o  passado  o  véu  do  esquecimento,  e 
para  deatrízar  aa  feridas  das  discórdias  abertas  pela  se- 
ireridade  do  governo  do  seu  antecessor.  A  nobreza  accei* 
tou  agradecida  o  quinhão  de  infiucncia,  que  o  soberano 
llie  offerecia,  e  este,  na  essência,  innlo,  òn  mais  cioso,  do 
que  seu  primo»  dos  direitos  e  pi  erngailvas  da  realeza, 
conseguiu  aproveitar  sem  nova.^  violências  os  resultados 
da  luta.  em  que  D.  João  II  arriscára  a  paz  interna  e  até  a 
vida.  Em  suas  m9os,  menos  pesadas  na  apparoncia,  mas 
igualmente  finues,  a  (luu^f  ina  da  unidade  monarchica  al- 
cançou um  triumpho  deliaitivo,  apfilicada  ás  relações  do 
príncipe  com  os  vassalios,  e  successivamente  introduzida 
nas  instituições  politicas  e  socíaes.  O  lustre  das  conquis- 
tas e  navegações,  e  a  actividade,  que  a  ftindaçio  da  um 
vasto  impoi  io  tlespertou  im  todas  as  classes  depois  da 
passagem  do  Cabo  da  Boa  Esperança,  não  concorreram 
pouco  para  aplanar  os  caminitos  por  onde,  sem  ruido, 
mas  com  vontade  segura,  a  monarcbia  se  adiantou  até 
realisar  o  pensamento  do  reinado  antecedente.  As  resís* 
tencías,  decapitadas  com  o  duque  de  Bragança  no  cada- 
fiílso,  não  podiam  reviver.  A  nobreza  vencida,  desarmada 
e  sem  chefes  ainda  era  de  certo  poderosa  como  classe, 
mas  carecia  de  meios  e  de  iniciativa  para  se  reorganisar 
como  Aicç9o  preponderante.  A  lição  cruel  dos  últimos 
annos  não  í)5ra  perdida,  e  mesmo  os  mais  ousados,  depois 
deterem  provado  o  peso  do  braço  real,  não  se  atreviam 
a  desafiar  segunda  tempestade. 

A  transtormação  profunda  operada  nos  destinos  da  na- 
ção com  o  descobrimento  da  índia,  rasgando  ás  ambições 
insolTrídas  horisontes  largos  e  indefinidos,  e  oferecendo 
aos  interesses  e  ao  ardor  da  gloria  tbeatro  tão  novo  e 


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BOS  SÉCULOS  mi  E  XVUI 


385 


vasto*  acabou  de  reduzir  quasi  á  obedieocia  passiva  os  a  nobre» 
mais  oiigQlhosos,  mudando  em  poucos  annos  as  idéas>  os 
costumes,  e  as  aspiraçQes,  n3o  só  dos  grandes  vassallos, 
como  dos  fidalgos  pronncianos,  e  dos  moradores  das  vil- 

las  e  cidades.  Lisboa,  asscnUaJa  á  beira  da  ;niipla  bahia  do 
Tejo,  recolheu  no  regaço  as  páreas  do  oriente,  e  tornada 
repentinamente  a  Veneza  do  occidente,  centralisou  em 
seus  muros  e  em  suas  agúas  as  armadas,  os  commercios, 
a  còrte,  e  todas  as  opulências  de  uma  epocha,  que  mesmo 
aos  mais  eiiUiusiaslas  devia  parecer  quasi  um  sonho,  mas 
que  por  desgraça  lambem  passou  rápida,  como  snnho, 
legando  apenas  de  lanlos  [trodigios  e  prosperidades  a  me- 
moria de  grandes  feitos,  uma  pagina  sem  igual  na  liisto- 
ria,  e  a  decadência  rápida  da  corrupção  e  da  fadiga. 

As  círcumstanclas  creadas  pela  conquista  nSo  podiam 
deixar  de  inílnir  na  existência  de  Iodas  as  classes,  des* 
equilibrando  muitos  dos  antigos  elementos,  e  alterando 
de  um  modo  notável  a  existência  de  outros.  A  auctoridade 
reai,  a  nobreza>  a  burguesia  e  o  povo,  saindo  transfor- 
mados da  meia  idade  para  a  renascença^  entravam  em 
uma  carrciia,  que  nenhum  conhecia  ainda,  mas  aonde  o 
amor  das  aventuras,  a  sôde  do  mando  e  das  riquezas,  e  a  ^ 
conOança  nas  grandes  audácias  promettiam  recompensas 
quasi  superiores  aos  desejos  e  pelo  menos  iguaes  á  teme- 
ridade das  emprezas.  A  necessidade  de  tripular  tantos 
navios,  de  guarnecer  tantos  presídios  remotos,  e  de  po- 
voar tantos  logares  distantes  occupava  todos  os  braços  e 
convidava  todas  as  vocações  guerreiras.  O  rei  precisava 
dé  attrahir  e  de  utilisar  os  que  podiam  servi-lo  no  mar, 
como  capitães  das  naus  e  das  frotas,  e  em  domínios  tSo 
longiquos,  como  soldados  e  generaes.  Os  fidalgos,  limi- 
tados antes  ao  serviço  das  praças  africanas  do  litoral  de 
Marrocos^  á  povoação  das  ilhas  descobertas»  e  a  facções 

S8. 


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356 


HISTORU  BB  POHTUGAL 


Auobnaa  milltal't'^  rvcíiluaes,  acljai  aiu  na  índia  e  na  Aíiica  orien- 
tal emprego  mais  proporcionado  a  seus  iiistinctos  bellí- 
cosos,  contando  voltar  á  pátria^  depois  de  alguns  annos 
de  trabalhos,  ricos  de  fama  e  de  thesouros*  D.  Manuel 
soube  contentar  os  mais  iiiipaci entes,  e,  venturoso  em 
todos  os  commettimenlos,  soube  convertei  em  íbrça,  em 
respeito  e  em  engrandecimento  do  poder  mooaii^bico  este 
periodo  de  transição»  de  que  a  fortuna  o  tomou  arbitro. 

Sustentando  sem  quebra  o  principio  da  auctorídade,  e 
coagindo  os  mais  poderosos  a  inclinar-se  diante  d  eile, 
costumou  os  nobres  á  dependência  absoluta  do  throQO 
por  meio  de  graças  e  de  liberalidades  calculadas  de  f6rma 
taU  que  lhes  satisfizessem  o  orgulho  sem  lhes  favorece* 
rem  as  inclinações  antigas  e  invasoi  as.  O  rei,  dispensador 
supremo  das  mercês,  dos  governos,  das  capitanias  mais 
invejadas,  das  tionras  e  dos  títulos,  viu-se  rodeado  em 
breve  de  cortezãos  submissos,  satelUtes  do  astro,  d*onde 
emanavam  para  todo  o  systema  a  luz  e  o  movimento.  O 
paço,  escola  já  no  tempo  de  Affonso  Ve  D.  João  II,  aonde 
os  fillius  dos  f(randes  se  habilitavam  na  presença  áa  m> 
berano  para  os  altos  cargos  da  milícia  e  da  administra- 
00,  nos  dias  de  D.  Manuel  ainda  lhes  patenteou  mais 
largas  as  portas,  e  o  numero  dos  fidalf^os,  cavaíleiros  e 
moços  da  camará  inscriptos  com  luni  adia  nos  livros  da 
casa  real,  longe  de  diminuir,  augmeutou  a  ponto  de  mo- 
tivar as  queixas  dos  procuradores  dos  concelhos  nas  côr- 
tes  de  Lisboa  de  i498,  queixas  desattendidas,  como  o  ti- 
nham  sido  no  reinado  anterior  as  das  cortes  de  Évora 
em  1481  sobro  o  mesmo  assumpto.  Mas  se  os  planos  po- 
liticos  decidiam  o  monarciia  a  cercar-se  dos  nomes  mais 
distinctos  e  a  educar  debaixo  da  sua  vigilância  os  que 
mais  tarde  haviam  de  i-epresenta-los,  as  urgências  do  era* 
rio  não  foram  desprezadas,  regulando-se  nas  Ordenações 


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1 


DOS  SÉCULOS  XTU  £.  XVUI  357 

de  fazenda  de  17  de  outubro  de  1516  um  dos  capitulo^  a  nobres 
mais  onerosos  do  serviço  do  paço»  o  das  ajudas  de  casa- 
mento, por  maneira  que  os  abusos  cessassem,  e  que  a 
graça  fosse  proporcionada  ao  ofiBcio  e  qualidade  dos  que 
a  recebiam.  A  reforma,  sem  olfender  os  interesses  dos 
privilegiados,  coilon  as  duplicações  e  as  fraudes,  e  esta- 
beleceu regras  determinadas  para  a  concessão  da  mercê, 
e  para  o  modo  de  eUa  se  realisar 

Os  reinados  de  D.  Jo3o  III  e  D.  Sebastião  consnmma- 
ram  esta  revolução  pacífica.  A  vontade  dos  soberanos  em 
todas  as  jerarchias  euconliou  súbditos  reverentes,  e  o 
governo  pessoal  arraigou-se  nas  instituições  e  nos  costu« 
mes  sem  obstáculo.  O  paiz  aprendeu  cedo  e  á  sua  custa 
o  que  significa  a  abdícaçSo  voluntária  dos  brios  e  tradi- 
ções diante  do  poder  illiiuiíado  de  um  iioineiii.  O  cara- 
cter nacional  degenerou,  os  nobres  tornaram-se  aulicos, 
00  mercadores,  os  negociantes  fizeram*se  chatins,  e  osia- 
vradores  marinheiros,  ou  soldados.  Às  delicias  da  Ásia 
corromperam  a  milícia,  a  côrte  e  o  povo.  Todas  as  idéas 
grandes  se  acaiiliai  am,  e  até  o  sentiinento  mais  \  ivo,  que 
pôde  iuflammar  o  enthusiasmo  das  nações,  o  amor  da 
terra  natal,  esmoreceu  pervertido  pelo  espectáculo  do 
envilecimento  da  população  escrava  do  oriente,  pelo  la- 
pso da  ausência,  e  pelas  especulações  da  cul)i(  a.  A  fé  ar- 
dente de  epochas  mais  felizes  apagou-se  nas  vascas  de 
um  fanatismo  sombrio,  e  a  hypocrisia  cobriu  com  o  manto 
hediondo  as  torpezas  do  atheismo  politico  e  da  falsa  de- 
voção religiosa.  O  clero  servia  o  altar  pelas  grossas  ren- 
das, que  arrecadava,  e,  exagerandu  as  exterioruiades  do 

1  Córtex  de  1498  em  Lixboa,  cap.  n,  in  e  i\ .  —  Ordenações  rf/* 
Fazenda,  publicadas  em  Lisboa  a  17  de  outubro  de  1516  por  Ar- 
mão de  Campos,  cap.  cxxhi  a  cxxxix. 


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358 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


A  loiíntft  culto,  cuidava  enganar  a  Deoa,  como  illudia  os  crédulos. 

A  inquisição,  rodeada  de  delatores,  velava  pela  pureza 
das  crenças,  substituindo  â  persuasão  suave  do  Evange- 
lho O  terror  dos  tralos  e  o  clarão  das  fogueiras.  O  Uvel 
da  auctoridade  absoluta  igualava  os  mais  altos  com  os 
mais  humildes  na  submíssio.  Ninguém  levantava  os  olhos 
da  terra,  senão  para  os  baixar  a  um  aceno  do  podei',  ijue 
algemava  todas  as  coíiscieiícias  e  Iodas  as  vontades.  O  rei 
quiz  ser  e  foi  tudo.  Â  igreja  ligada  pelos  interesses  tem- 
poraes  deu  o  exemplo  da  obediência.  A  inquisição,  tri* 
bunal  nascido  de  um  pacto  da  realeza  com  a  intolerância, 
emmiidecia  as  resistências,  perseguindo  como  delictos  as 
novidades  e  os  progressos.  Os  grandes  vassallos  esque- 
ceram nas  embaixadas  e  nos  governos,  entre  as  ostenta* 
ções  de  régulos,  ou  nos  olBcios  do  paço,  a  antiga  soberba 
e  pretensões.  Do  povo  não  fatiámos.  Das  velhas  e  robus- 
tas municipalidades  dos  séculos  xiv  e  xv,  que  mais  res- 
tava nos  íios  do  xvi  século  do  que  o  nome  e  a  letra  quasi 
morta  de  seus  fóros? 

Emquanto  as  famílias  titulares  e  os  donatários  accu« 
mulavani  com  o  producto  dos  bens  palrimoniaes  os  ren- 
dimentos das  conimendas,  das  cafiulias  e  das  doações  de- 
vidas á  munilicencia  real  e  os  proventos  dos  oflicios  do 
paço  e  dos  grandes  empregos,  os  irmãos  e  os  flllios  se- 
gundos das  casas  mais  opulentas,  assim  como  a  nobreza, 
que  vivia  nas  províncias  retirada  da  côrte,  só  tres  carrei- 
ras podiam  seguir  com  esperança  de  lortuna:  a  das  ar- 
mas, a  ecclesiastica  e  a  da  magistratura.  £llectivamente 
desde  o  governo  de  D.  Manuel  todas  ellas  começaram  a 
ser  muito  concorridas,  povoando-sc  as  igrejas  e  os  claus^ 
Iros,  e  guarnecendo  se  as  armadas  e  os  presídios  de  man- 
cebos dislinctos,  que  mais  tarde,  íiivorecidos  pelo  mere- 
cimento, ou  pelo  acaso,  cingiam  a  mitra  episcopal,  ou  9 


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DOS  8ECUL08  XVtt  S  IVIU 


m 


abbadd,  ou  eram  fandadores  de  casas  não  menos  iUus^  huamm 

tres,  do  que  os  antigos  troncos  de  que  brotavam.  A  insti- 
tuição vincular,  muito  ramificada  n  esta  epocha,  influiu 
bastante  para  este  resultado.  Oi  morgados  no  tempo  de 
O.  João  1  eram  já  em  grande  numero»  e  datavam  de  Ion* 
gos  annos,  segundo  afOrmaram  nas  còrtes  de  1398  os  fi« 
dalgos,  que  requereram  ao  mestre  de  Aviz  u  itj^peilu  da 
voíiLade  dos  iuslituidores,  na  idéa  de  perpetuarem  o 
nome  e  a  descendência.  ^ío  remado  de  Âllooso  VmuUiplh 
caram*-se  os  vínculos  com  fundos  próprios  e  inalienáveis, 
ficando  a  suecessao  restringida  ao  direito  de  primogeni* 

tura,  e  <em\o  regulada  pelos  graus  de  corisaiiguiiiiiladô 
deuU  o  da  iinha  directa.  A  vaidade,  a  ostentação,  e  a  moda 
tornaram  esta  íòrma  nobiliarchica  tão  commum,  que  nos 
dias  de  D.  Seiíastifto  e  de  Filippo  U  quem  nSo  fundasse 
um,  ou  dois  morgados,  embora  de  pequeno  rendimento, 
expunha  se  quasi  á  nota  de  pobre  e  de  plebeu. 

As  consequências  não  se  demoraram  em  demonstrar  o 
que  tendências  similhantes  encerravam  de  vicioso  e  de 
estéril ísador,  tanto  em  relação  ao  aspecto  politico,  como 
pelo  lado  económico.  A  dilíusão  dos  vínculos  trouxe  logo 
comsigo,  como  elíeito  necessário,  a  exageração  dos  dotes 
das  donzellas  nobres,  a  incapacidade  dos  primogénitos 
para  as  funcções  publicas  e  para  a  vida  civil»  e  a  diminui- 
ção das  famílias,  porque,  monopotisadas  nas  mãos  de  um 
só  todas  as  l  uiulas,  os  oulros  íilhos  desherdados  só  ti- 
nham a  escolher  enlre  a  clausuia  c  os  perigos  da  exis- 
tência errante  de  navegadore:<  e  de  soldados.  Para  as 
filhas  não  havia  mesmo  escolha.  O  nascimento  conde- 
innft va-as  á  solidflo  dos  conventos,  aonde  as  saudades  ã6 
mundo  não  cessavam  de  as  coml)aler.  A  immensa  quan- 
tidade de  prédios  roubada  á  circulação  e  á  cultura  cui- 
dadosa, c  entregue  na  máxima  parte  ás  especulat&ea 


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360  HIOTORU  HE  PORTUGAL 

AiMimut  dos  reodeiros,  reduzia  dentro  em  pouco  a  área  do  solo 
arável,  já  tSo  pequena,  ás  mais  acanhadas  proporções'. 

0  progresso  das  navejíarôes  o  conquistas  não  acíuava 
com  menos  força  jiara  ejiipobrecer  o  reino,  ♦•stancando 
as  verdadeiras  íonles  de  riqueza  de  todas  as  ciasses. 
Desde  1497  alé  1580,  no  periodo  relativamente  curto  de 
oitenta  e  tres  annos,  o  governo  e  os  súbditos,  suppondo 
inexofotaveis  os  lhesouros  da  índia,  consideraram  o  tra- 
balho agrícola  e  a  industria  fabril  como  indignos  dos  bnos 
de  uma  nação  poderosa,  e  confiados  nos  galeões  abarro- 
tados de  especiaria  e  de  mercadorias  preciosas,  deixaram 
enredar  de  urzes  e  de  mato  os  campos  mais  férteis,  pa- 
gando com  orgulho  ao  estrangeiro  os  productos,  que  snas 
mãos  já  não  saliiain  lavrar.  Pouco  valiam,  a  seu  ver,  al- 
guns teares  ociosos,  e  algumas  charruas  de  menos  na  la- 
voura, quando  as  nossas  quilhas  aravam  os  mares  subju- 
gados, e  todos  os  annlDs  traziam  riquezas  muito  superiores^ 
a  umas  poucas  de  colheitas.  Pouco  importava  aos  senho- 
les  de  vinculos,  que  o  numero  de  suas  geiras  arroteadas 
diiiiiiuiisse,  ou  que  os  fructos  das  terras  devidas  á  libe- 
ralidade do  soberano  cada  anno  fossem  menos.  Tinham 
as  capitanias  e  as  viagens  do  oriente  para  compensarem  as 
perdas,  e  esperavam  depois  de  pouco  prolongada  ausên- 
cia voltar  tres,  ou  quatro  vezes  mais  ricos  e  opulentos 
para  restaurarem  o  lustre  dos  solares,  e  satisfazerem  to- 
dos os  encargos.  No  começo  do  século  xvii  os  lucros  que 
podiam  colher-se,  mesmo  de  governos  subalternos,  ex- 

1  Raoke,  Otnuaãit  e  Ifyspanhoeê^  cap.  ra,  Dwenu  Eitadt»  e  tua 
Aimimtira^,  «Os  grandes  de  Castella*. — Memoria  sdbre  a  Ori- 
ym,  Proffreuoê  ê  Vartaçõeê  áa  Jurítpmdenda  ãot  Morgado»  m 
Púiiagal,  por  Thomá»  Antonio  de  Villa  Nova  PortugaL — £l«ci< 
dario,  verbo  «Capella*.— Onlenofâd  Manuelina,  liv.  ii,  tít  jxxv, 

* 


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■ 


I»aS  SÉCULOS  XYU  £  XVUI  361 

cediam  o  que'  a  imaginarão  mais  audaciosa  se  atreveria  a  aii«1ii«i» 
conceber  dois  ^pciili  is  antes.  A  íortaleza  de  Mombaça  dei- 
xava livres  para  o  capitão  no  triennio  30:000  cruzados,  e 
a  de  Sofola  âOO:000.  Onnuz  180:000»  Mascate  30:000, 
Diu  60:000.  DamSo  50,  Baçaim  40,  e  Ghaul  80.  Godum 
reiiília  IS  contos  de  réis,  Bracellor  42,  e  Manar  na  costa 
de  Coromandel  outros  lá.  No  mar  do  sul  iMalaca  podia 
enriquecer  o  seu  capitão  com  130:000  cruzados  nos  tres 
annos,  a  fortaleza  de  Maluco  com  50:000  pardaus,  a  de 
Amboino  com  20:000,  e  Solor  com  15:000. 

A  viagem  aimuaí  da  China  pai  a  u  Japão  dava  á  pessoa 
provida  no  commando  80:000  e  iOOróiX)  cruzados,  a  de 
Meliapor  para  Malaca  âO:000,  a  de  Goa  para  Moçambi* 
qae  30:000 pardaus,  e  a  da  índia  para  as  Molucas 35:000. 
Os  ofiicios  de  feitor,  de  alcaide  mór  e  de  escrivão  das 
fortalezas  eram  taiabem  muito  rendosos.  No  de  alcaide 
inór  de  Moc^bique  podia  o  agraciado  tirar  20:000  a 
ââ:O0O  pardaus  em  tres  annos.  O  de  feitor  de  Ormuz  va- 
lia â5:000,  e  os  de  escrivão  nas  feitorias  prindpaes  or- 
çavam por  6:000  cruzados  no  triennio.  Os  togares  de  jui- 
zes das  aiíandegas  calculava-se  nas  mais  uiiportantes, 
como  Goa,  Ormuz,  Diu  e  Chaul,  que  poderiam  produzir 
DOS  tres  annos  entre  10:000  e  âO:000  cruzados.  Estes 
eram  os  proveitos  lícitos;  mas  a  comip($3o  e  a  falta  de 
escrúpulo  sabiam  triplica-los,  abusando  de  tudo  e  de  to- 
dos. Para  se  íormar  idéa  dos  excessos,  que  as  auctorida- 
des  fiscaes  e  militares  da  Índia  ousavam  commetter.  b 
praticavam  usualmente  quasi  com  plena  impunidade, 
basta  consultar  o  depoimento  sincero  de  Diogo  do  Couto 
nus  seus  diálogos  do  aSoldãdo  Praticoi> ,  Ali  se  vè  com 
que  artes  e  por  meio  de  que  violências  conseguiam  os 
capitães  das  fortalezas  e  a  máxima  parte  dos  empregados 
juntar  riquezas  immensas,  com  as  quaes,  por  mal  adqni-: 


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mnOBU  OE  PORTUGÀI. 


AMkMâ  ridas,  aorescenta  o  efarooiflla  da  Aaia,  muito  ponoa  ma- 

draram,  eogolíDdo  os  mares,  ou  apresando  as  naus  ini- 
migas os  galeões  em  que  as  transportavam  ^ 

As  ordens  militares  oilereciam  á  noi)reza  coilocaçdes 
vaDt^osaa*  e  os  readímeatos  das  commandas  eram  am 
grande  parte  monopotisados  por  ella,  assim  como  os  be- 
nefícios mais  piíjgufs  dos  cabidos  e  collegiadas,  e  os  lega- 
res da  Magiòlratura  no  Desembargo  do  Paço,  na  Mesa  da 
GonscioDda,  nas  Relações  e  no  Senado  de  Lisboa.  As  clas- 
ses aristocratias,  com  exclusSo  quaâ  completa  das  clas- 
ses medias  e  dos  filhos  do  povo,  requeriam  e  alcançavam 
os  melhores  cargos  civis,  militares  e  juiliciae^  pai  a  mui- 
tos dos  quae>  su  os  desceudeates  de  sangue  illustre  se 
podiam  julgar  aptos  em  presença  das  habilitações  exigi- 
das Das  leis.  Os  plebeus  deviam  cooteotar-se,  e  de  feito 
se  contentavam,  com  os  empregos  menores  da  judicatura 
e  do  ensino  puljlicu,  não  subiuJo  os  mais  felizes  ás  jerar- 
chias  superiores  senão  peias  portas  dos  claustros»  porque 
diante  dos  religiosos  laureados  com  as  palmas  universitá- 
rias, ou  acadeinícas,  desappareciam  as  diíOculdades  e  apla- 
navaia-se  os  caminhos.  As  ordens  militares  eram  muito 
ricas.  A  de  Christo,  fundada  por  D.  Diniz,  e  locupltílada 
com  os  bens  que  haviam  pertencido  aos  templários,  pos- 
saia  víDte  e  uma  villas,  e  quatrocentas  cincoenta  e  quatro 
coromendas,  avaliadas  em  94  contos  de  renda,  sem  con- 
tai' os  dizimos,  as  decimas,  e  as  terras  das  ilhas  e  do  ul- 
tramar, A  de  S.  Thiago  não  contava  ineno^  de  quarenta 
e  sete  villas  e  legares  sujeitos  á  sua  jurisdicçio,  e  cobrava 

1  Livro  de  toda  a  Fazenda  e  Real  Património  (íoi  Beynos  de  Por» 
iugaí,  ordenado  por  Luiz  de  Figueiredo  FalcSo  no  anno  de  1607, 
pig.  Ii9  8  I3e.--Di0go  do  CoatOi  Mod»  Pralicê,  dial^g.  i  S  u» 
pmiai* 


« 

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» 

DOS  S£CULOS  X¥U  £  XVUl  363 


mate  de  36  contos  de  réis  annuaes  de  soas  eeDto  e  cm*  kn^tm 

coenta  commendas,  A  orderii  de  S.  Bento  de  Aviz,  a  mais 
antiga  de  Portugal,  devia  á  liberalidade  dos  soberanos, 
em  premio  do  auxilio  prestado  m  luta  contra  os  sarrace- 
nos, dezoito  viUas  e  quarenta  e  oito  commendas  orçadas 
em  93  contos  de  renda  por  anno.  Finalmente  a  de  S.  João 
de  Jei  usalem,  ou  do  Hospital,  herdada  com  launificencia 
pelos  nossos  reis,  principalmente  na  provinda  de  Entre 
Douro  e  Minho»  tinha  vinte  e  uma  villas  e  legares,  e  vinte 
e  quatro  commendas  com  o  rendimento  annual  de  35 
contos 

Aílonso  V,  sempre  com  os  olhos  na  conquista  de  Afri- 
ca, impetrara  em  1463  de  Pio  U  a  graça  da  creação  em 
Ceuta  de  tres  conventos»  um  para  cada  ordem  de  Mílicía 
Religiosa,  sendo  os  mestres  obrigados  a  enviarem  a  terça 

parle  dos  cavalleiros  por  turnos,  a  fim  de  i*esidirem  á  sna 
custa  n  aquella  praça  e  de  se  familiarisarem  com  os  traba- 
lhos da  guerra.  Esta  prescripçao,  por  motivos  de  interesse 
pessoal,  não  chegou  a  cumprír-se,  e  D.  Manuel  buscou 
diverso  modo  de  obter  quasí  o  mesmo  fím.  O  papa  Leão  X, 
por  supplica  da  coiôa  acrescentou  a  ordem  de  Clitisto 
com  as  novas  commendas  instituídas  em  1513,  e  subsi- 
diadas com  o  rendimento  annual  de  20:000  cruzados  ef- 
feciívos  separados  das  rendas  dos  mostoiros  e  inteirados 
com  os  fructos  das  igrejas  parochiaes  do  padroado  real. 
Estas  commendas  só  podiam  ser  concedidas  aos  que  as 
ganhassem  servindo  contra  os  indeis.  Mas  o  rigor  do 

t  Dvarto  Kiineg  dt  Leão,  iVoiídá»  d$  PortMç^l,  diíe.  n,  {  i7.« 
Ests  calcula  poueo  diflbro  do  que  apresenta  Luíx  de  Fisueiredo  Fal- 
cSo,  citedo  no  capilulo  enlecedente.  O  pequeno  exeeeio  que  appa- 
me  no  computo  de  Duarte  Nunes  ó  faeU  de  justiOcar,  deoonridoe 
dee^le  annpe  entre  oe  escríple»  da  FateSe  e  d'el|e. 


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364  HISTOhlA  Di:;  PORTUGAL 

Anoiínu  preceíto  não  resistiu  muito  tempo  aos  valimentos,  e  na 

epocha  de  D.  Sebastião,  para  se  j^^uardarem  ao  menos  as 
apparencias  da  sua  observância,  duas  bulins  pimtiíicias 
limitaram  a  tres,  ou  qualio  annos  o.praso  prescripto  ao 
serviço  militar  nos  presídios  aâicanos,  e  igualaram  â 
guerra  contra  os  mouros  em  Ceuta  e  Tanger  e  nas  galés 
da  costa  do  Algarve  a  guarnição  dos  navios  de  alto  bordo 
do  oceano,  sob  pretexto  de  íjue  o  exterminiri  dos  turcos 
e  cursados  nâo  era  menos  agradável  a  Deus,  de  i\uv  o  dos 
piratas  do  Ríí!  e  dos  cavalleiros  de  Fez  e  Tarudanle  K  A 
concessão  aos  reis  de  Portugal  em  1516  do  padroado 
dos  mestrados  das  ordens»  e  a  encorporação  de  todos 
tres  na  coroa  em  1550  também  consummou  por  este  as- 
pecto a  concentração  de  poderes,  que  desde  o  reinado 
de  D.  João  II  íòra  o  pensamento  constante  da  monarchia, 
acabando  de  reduzir  á  dependência  absoluta  do  throno 
os  nobres  que  aspiravam  a  participar  dos  proventos,  com 
que  só  as  religiões  militares  podiam  recompensar  os  que 
(lesLja\am  imir  á  profissão  guerreira  a  fruição  dos  bene- 
licios  ecciesiasticos  2. 

Á  proporção  que  as  emprezas  militares  tomavam  maior 
corpo^  e  se  alongavam  mais  da  pátria,  e  que  o  nosso  im- 
pério se  dilatava  pela  Asia  e  pela  Africa  oriental,  crescia 
a  emigração  dos  fidalgos  e  cavalleiros,  tanto  da  capital, 
como  das  províncias.  E  não  eram  sò  os  fidalgos,  eram 
lambem  os  lavradores  e  a  parle  mais  viril  e  activa  das 

1  Bulla  de  Lefo  X,  datada  do  anno  de  1513,  Goncedenão  20:000 
crazadoB  de  renda  doe  ihielos  e  rendimentos  dos  mosteiros  e  ig re- 
jas  de  Portugal  para  D.  Manuel  ftuidar  commendas  da  ordem  de 

.  Chrísto.  Hi$toria  GeMotogica  âa  Cata  Real,  tom.  n  de  Provas, 
pag.  M,—Elueidano,  verbim  «Decimas». 

2  Bulla  QmUamH  /Úb  de  30  de  julho  de  1516.— Bulla  Prmstara 
eharisnm  de  30  de  deiembro  de  1550. 


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I 


4 

DOS  SÉCULOS  xvn  K  ifm  365 

classes  medias,  (jiie  imjlei  ía  á  obscura  mediania  da  vida  Aiwbi^» 
rural,  ou  do  trabalho  fabril»  os  laoces  por  vezes  ditosos 
das  carreiras  tão  concorridas  das  armas  e  das  navegares. 
Na  lavoura  e  nas  arfes  manuaes  os  lucros  corriam  escas- 
sos e  incertos,  as  condições  humildes  não  achavam  modo 
de  sul)i'esair,  e  as  probahiildades  desfavoráveis  todos  os 
dias  augmentavam.  Para  a  nobreza  os  estímulos,  apesar 
de  diversos,  não  tinham  menos  força.  Os  grandes  pro- 
prietários ecciesiastieos  e  seculares  temiam,  que  a  resi- 
dência nos  coutos  e  sulai  tj>  os  lizesse  esquecer,  e  acudiam 
a  cuisar  o  paço  na  esperança  de  conservarem  e  robuste- 
cerem a  influencia.  Dentro  em  pouco  o  agrado  e  o  favor 
dos  soberanos  tinhamros  tomado  cortezãos  a  todos,  e  os 
mais  d*eHes  saíam  do  paiz  a  pelejar  na  índia  e  na  Africa, 
e  a  sulcar  o  oceano  como  capitães  de  el-rei. 

As  guerras  da  Asia  depressa  devoravam  os  soldados 
ÍDlrepidos,  e  os  reis,  carecendo  de  homens  decididos, 
que  sustentassem  n'aquellas  partes  o  prestigio  do  nome 
portuguez,  não  poupavam  promessas  aos  que  voluntaria- 
mente se  otíereciam  pMt  a  continuarem  as  proezas  dos 
primeiros  conquistadores.  £$ta  necessidade  politica,  cada 
dia  mais  sensivei,  deu  em  resultado  o  que  o  poeta  mora- 
lista Sá  de  Miranda  com  tanto  sabor  critico  já  notava  no 
seu  tempo,  e  o  que  Luiz  de  Camões  com  tanto  \\^ov  en- 
careceu no  seu  poema.  Os  senhores,  e  nmilos  mesmo 
que  o  não  eram,  abrasados  na  séde  de  gloria  e  de  rique- 
zas, principiaram  a  viver  ausentes  das  terras,  olhando  a 
exist^icia  campesina  e  a  sua  laboriosa  obscuridade  como 
occupaçSo  imprópria  das  gerações  aventurosas,  que  a 
Europa  admirava.  A  unidade  moiiarcbica  triumphante 
conGrmava  estas  idéas,  premiando  os  que  as  traduziam 
em  factos,  e  avivando  em  todos  a  emulação  e  a  impaciên- 
cia de  igualarem  as  grandes  acções.  A  corrente  dos  que 


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HISTORIA  DE  POBTUOAL 


Aasfeiwa  trocavam  o  socego  e  a  modéstia  da  vida  retirada  pelo  bu- 
lício da  côrte  e  pelas  fadigas  e  inquietações  das  cousas 
politicas  e  militares  cada  vez  engrossava  mais,  e  os  po- 
derosos começaram  a  reputar  os  antigos  solares  quasi 
como  desterros,  nlo  os  visitando  senlo  de  corrida  e  de 
longos  em  longos  intervallos.  Longe  das  herdades  e  dos 
costumes  siítgelos,  ao  passo  que  tantas  distracções  lhes 
iam  apagando  do  coração  o  amor  do  solo  e  do  berço  na- 
tal, o  exercício  ou  a  imitação  das  funcções  aulicas,  que- 
brava-lhes  o  animo  e  enfraquecía-lbes  a  rijeza  do  cara* 
cter  ISo  firme  e  inteiro  em  ontras  eras  K 

0  reinado  de  D.  Sebastião  colheu  os  IVuctos  envenena- 
dos amadurecidos  na  epocha  anterior.  Quando  o  desdi- 
toso mancebo  sonhava  a  conquista  do  império  de  Mar- 
rocos não  lhe  chegavam  já  as  forças  para  sustentar  as 
armadas  e  os  presídios  da  índia,  causa  do  desfòllecimento 
do  paiz.  Da  grande  raça,  que  tantos  prodígios  obrára, 
restavam  apenas  poucos  capitães  illustres  e  um  punhado 
de  soldados  intrépidos.  A  geração  nova,  de  que  no  paço 
eram  representantes  D.  Alvaro  de  Castro,  GhristovSo  de 
Távora,  Francisco  de  Távora  e  outros  mçços,  amoilecl- 
dos  na  ociosidade  da  còrte,  aprendia  o  trabalhoso  exer* 
cicio  das  armas  nos  sai'aus  e  nas  festas,  fugia  da  escola 
pratica  de  Ceuta  e  de  Tanger,  e  simulava  nas  corridas  do 
campo  de  Sant^Anna  as  evoluções  e  combates,  com  que 
se  proponha  vencer  os  árabes,  os  primeiros  cavalleiros 
do  seu  tempo.  Fínghido^se  fragoeíros  e  adustos  para  ca^ 
piarem  a  benevolência  do  monarcha  eram  tSo  mimosos 
e  feminis,  que  por  costume  não  davam  dois  passos  senão 
encostados  ao  bombro  dos  pagens,  como  depois  usaram 

1  Sá  de  Hiranda,  Qtrta  n,  a  Antonio  PMra,  senhor  de  Basto. — 
toiz  de  Gameefl^  Iunádcw,  cant  iy,  dt  zcrr  a  enr* 


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BOt  SÉCULOS  XVU  K  XTID 


367 


as  damas,  mesmo  para  jogarem  a  péla.  Qualquer  movi-  ADobwn 
mento  mais  forte  lhes  arrancava  exclamações  doridas,  e 
a  moda  queria  que  as  falias  imitassem  a  suavidade  e  o 
requebro  da  voz  mulheriL  A  maior  parte,  resolvida  a  fii- 
nesta  expedíçSo  de  1578,  só  coídou  em  se  singnlarísar  pelo 
gosto  e  lustre,  não  só  das  telas,  mas  dos  feitios  e  inven- 
ções dos  vesiidus.  Dos  quaiiueentos  e  cincoenta  homens, 
os  mais  deiles  fidalgos»  de  que  se  compunha  o  esquadrão 
de  Glirislovfio  de  Távora,  nem  um  s6  deixára  de  empe- 
nhar todos  os  bens  para  apparecer  deslumbrante,  no- 
tando com  raslo  os  observadores  doestas  loucuras,  que 
mais  se  assimiliíavam  a  convidados  de  um  noivado  real, 
do  que  a  cavaiieiros  aífcitos  á  aspereza  e  rigores  da  guerra 
activa. 

Não  se  viam,  affirma  uma  testemunha  ocular  do  suc- 
eesso,  senSo  brocados  de  oiro  e  prata,  velludos,  damas- 
cos e  tecidos  de  seda  custosos,  realçados  com  rendilhas, 
passamanes,  torchados  e  alamares,  Ijotões  preciosos, 
tranças  de  chapéus  ornadas  de  rubis,  diamantes  e  esme- 
raldas, camafeus,  medalhas  e  cadeias  de  oiro  de  grande 
valia,  couras  bordadas  com  enfeites  de  pérolas  e  de  crys- 
tal,  capotes  de  setim  com  torçaes  de  oiro,  arreios  de  ca- 
vallos  magníficos,  mudiilas  e  mandis  de  velludo,  e  atrás 
de  cada  um  doestes  abortos  das  modas  toda  a  sua  gente 
vestida  de  raxa  de  mescla,  ou  de  grS,  com  a  libré  das  co- 
res da  flunília,  e  um  séquito  numeroso  de  escadeiros, 
pagens,  lacaios  e  escravos  com  gíb?^es,  calças  e  meias  de 
seda.  Na  escolha  das  annas  igual  primor.  Cru  pos  de  aço 
com  os  brazões  de  cada  fidalgo  em  campo  de  esmalt»), 
couras  e  coUetes,  de  anta,  couraças  de  laminas,  sáías  de 
malha  e  gibanetes  lavrados,  rodlellas  tauxeadas  de  oiro, 
lanças  com  os  contos  e  engastes  doirados,  espadas,  ter* 
çadus  e  montantes  de  ímá  tempera  e  das  melhores  íabri* 


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a68 


HISTORIA  DE  POUTUGAL 


kvuhmA  cas  attrahiam  e  encantavam  a  vista.  Até  as  tendas  de 

guen'a  piuclamavam  a  vaidade  dos  doiius  feitas  de  seda 
com  giimpas  doií-adas  e  bandeiras.  Dir-se-ía  que  toda?» 
aquelias  companhias  partiam  para  um  torneio,  e  que  se 
confiavam  mais  das  pompas  e  apparatos  luxuosos  para 
derrotar  os  inimigos  do  que  do  esforço  pessoal  e  da  ri* 
jeza  do  íerro  *. 

Foi  com  estes  descendentes  degenerados  dos  Alhu- 
querques,  dos  Almeidas,  dos  Pa  checos  e  dos  Castrob, 
que  o  ultimo  rei  cavalleiro  aportou  ás  praias  africanas, 
aonde  a  morte  o  estava  esperando.  Continuar  as  proezas 
de  AffonsoYcom  os  homais  que  se  vangloriavam  da  sua 
fragilidade,  corno  seus  avós  se  tinham  ufanado  do  vigor 
corporal  e  do  soffrimento,  ei  a  intentar  empreza  mais  do 
que  temerária  e  de  antemão  condemnada.  O  desastre 
provou-o  desgraçadamente.  A  ignorância  da  sciencia  da 
guerra,  a  frouxidão  dos  laços  da  disciplina,  e  a  falta  de 
uso  das  armas. inútil isaiani  o  valor  dos  ([ue  Fabiani  com- 
bater, e  desculparam  os  que,  não  sabendo  pelejar,  sou- 
beram morrei'  ao  menos.  Tudo  desappareceu  em  poucas 
horas,  e  Portugal  achou*se  de  repente  desarmado,  sem 
1*61  e  sem  defensores  f  O  maior  peso  da  catastropbe  recaía 
sobre  a  nobreza.  A  derrota  de  Alcácer  não  só  decepára 
n'aquelle  malfadado  campu  a  lloi  d;i  mocidade,  esperança 
das  casas  mais  antigas,  como  \eiu  acabar  de  atleuuar 
com  o  captiveiro  de  centenares  de  íidaigos,  cujo  resgate 

^  Caria  de  um  átihade  da  Beira  a  «m  amigo  em  noticias  da 
ctirte  de  D.  Sebaeíião,  Bibltotbeca  Real  da  Ajaàa,  códice  n.« 
Caria  de  Guia  de  Coiodoe  por  D.  Francisco  Manuel  de  Mello,  nova 
ediç.  Lisboa,  1S53,  pag.  ^i.-^Rtíaçõo  da  Jornada  de  Elrey  D,  Se- 
.  hasiUto  e  do  ApparaÊo  da  armada  e  ffente  que  por  seu  mandado  se 
fez  para  pasior  a  Africa  no  ano  de  1578,  BibliophilO;  n."  1,  al)ríl 
de  i8&9,  pag.  91  a  98. 


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DOS  SBCULOS  XVn  £  XVfll 


369 


custou  avultadas  sommas,  os  rendimentos  de  muitas  Anobreia 
(i'eUa$.  Os  poderosos,  para  lisoDjearem  o  rei»  tinham  - 
gasto  qaantias  superiores  ás  suas  rendas.  Estas  despezas 
tínham-os  forçado  a  vender  muitas  herdades  e  casaes,  ou 
a  hypothecar  os  bens  por  baixo  preço,  e  a  empenhar  as 
commendas  e  os  morgados  por  muito  menos  do  que  va- 
liam os  rendimentos  alienados»  desfazendo-se  ao  mesmo 
passo  até  das  baixelas  e  dos  moveis  preciosos  pelo  que 
lhes  offereciam.  Quando  o  immenso  revés  de  agosto  de 
1578  feriu  o  reino  quasi  todas  as  familios  j:í  lutavam  com 
gr  andes  apuros»  e  a  necessidade  de  aggravar  estes  sacri- 
ticios  com  os  gastos  enormes  dos  resgates  pagos  na  Bar** 
bería  foi  um  novo  e  profundo  golpe,  que  as  esgotou,  con- 
strangendo-as  a  esbanjarem  o  resto  das  rendas  e  das  pro- 
priedades, a  íim  de  pôr  teniio  ao  captiveiro  dos  [íarentes  *. 

Os  capítulos  das  côrtes  de  Thomar  descrevem  com  ver- 
dade o  estado  das  ciasses  media  e  aristocrática»  quando 
Filippa  II  subiu  ao  throno.  Os  fidalgos,  imaginando  achar 
a  salvação  no  domínio  estrangeiro,  acceitaram-o,  não  se 
esquecendo  de  estipular  as  clausulas  mais  vantajosas  ao 
seu  engrandecimento  futuro  e  á  prompta  restaurarão  da 
sua  fortuna  decaída.  O  rei  catholico  n3o  lhes  regâteou 
ent^o  as  mercês,  nem  as  promessas.  Âs  cédulas,  citadas 
por  Fai  ia  e  Sousa,  e  a  correspondência  do  duque  de 
Ossuna  e  de  Christavão  de  Moura  mostram  até  onde  che- 
gou a  sua  avidez.  Da  sua  parte  o  rei»  por  mais  alto  que 
fosse  o  preço,  não  julgava  comprar  cara  a  unidade  poli- 
tica da  península  ibérica.  O  estado  da  nobreza  requereu, 
que  segundo  o  uso  da  còrle  de  Borgonha,  o  monarcha 
admittisse  no  serviço  do  paço  os  iidalgos  portuguezes 


1  Carta  de  Um  Abbade  da  Beira  a  Um  Amigo j  Bibliotheca  tíeal 
da  Ajuda,  códice  n.«  B-1. 

TOMO  V  'ik 


370 


HISTORIA  Di!.  POhlDGAL 


i  qoe,  vagando  bens  da  corèa»  os  nio  eneorporasse,  mas 

os  concedesse  aos  i^ai  ciiícs  dus  que  os  tivessem  fruido, 
e  que  longe  de  serem  supiii  imidas  as  tenças  vagas,  as 
desse  a  pessoas  dignas  de  premio  por  seus  merecimentos. 
As  tres  sappUcas  encerravam  o  mais  essencial  para  a 
conservação  e  augmento  de  suas  regalias  pecuniárias. 
Acerca  dos  benefícios  providos  pelo  mestrado  das  ordens 
militares  insistiu,  em  que  se  guardasse  a  leti  a  dos  esta- 
tutos e  das  definições,  não  se  auçtorisando  dispensa  das 
provas»  senSo  em  remuneração  de  grandes  serviços  prés- 
timos na  guenra,  ou  na  administrarão.  Quanto  às  capitanias 
da  Mina,  S.  Thomé,  Cabo  Verde,  Brazil,  e  ilbas  do  arehi- 
pelago  dos  Açores,  pediu  que  todas  as  nomeações  recaís- 
sem em  fidalgos  antigos,  e  não  em  magistrados,  como  ul- 
timamente se  praticára»  recommendando  ainda  as  pessoas 
nobres  com  exclusão  de  quaesquer  outras  para  os  car- 
gos de  almotacés  mores,  contadores  mores,  coudeis  mo- 
res, provedores  dos  armazéns,  lhesoureiros  mores,  pro- 
vedores da  casa  da  índia,  provedoies  da  alfandega,  e 
capitães  das  naus  de  viagens  e  das  armadas,  ollicios  e  com- 
missões»  que  pelo  seu  lucro  e  representação  a  casta  pri- 
vilegiada entendia  pretencerem-lhe  quasí  de  direito.  Por 
ultimo,  lembrando  a  urgência  de  um  preceito  legal  para 
atalhar  o  abuso  dos  dotes  excessivos  nos  casamentos  das 
mulheres  nobres,  e  a  conveniência  dos  mosteiros  e  igre- 
jas serem  compeliidos  dentro  do  praso  da  Ordenação  a 
venderem  as  heranças  de  bens  de  raiz,  ainda  procurava 
proteger  os  interesses  das  casas  illustres,  diminuindo-lhes 
os  encargos,  e  facdii  imlo-lhes  o  meio  de  airedondarem 
os  seus  domiuios  rmaes  K 

•  Patmte  das  Mercês,  Giaças,  e  hHvil0gm,deque  El-RnD,fÍ' 
lippcj  Nmo  Setihor,fez  mercê  a  estes  seits  RmoSflâthoi^ 


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V 


DOS  SECUL08  XVn  E  XTUI  37i 

D.  Filippe  não  contrariou  abertamente  nenhum  dospe-  Auobrou 
didos»  Bias  reservou  em  mente  para  si  e  para  os  successo- 
res  a  liberdade  de  procederem  segundo  a  occasiSo  e  as  cir- 
cuinstandas  aconselhassem.  Filippe  III,  que  ainda  temia 
o  desconteiilainento  dos  súbditos,  respeitou  as  apparen- 
cias,  e  aljsteve-se  de  romper  abertamente  com  a  no- 
breza, rasgando  a  carta  de  seus  fóros  jurada  em  Thomar; 
mas  Filippe  IV»  seguindo  os  conselhos  de  Olivares^  e 
cansado  de  disfarçar,  tratou  os  fidalgos  portuguezes, 
como  tratava  os  hespanhoes,  niío  poupando  aos  mais 
soberbos  ns  demonstrações  de  desagrado.  A  politica  do 
conde  duque  propunha-se  debellar  osprincipaes  elemen- 
tos de  resistência,  e  enfraquecer  as  classes  poderosas» 
dimlnuíndo-lheâ»  quanto  possível,  as  riquezas  e  os  meios 
de  influencia.  Pouco  receioso  da  hostilidade  do  clero,  n3o 
duvidou  ofifender  ao  mesmo  tempo  a  aristocracia,  ferin- 
do-a  na  vaidade  e  nos  interesses.  A  carta  regia  de  23  de 
junho  de  16âi  obrigou  os  detentores  de  bens  da  corôa 
a  justificarem  a  legitimidade  da  posse  e  a  submetterem 
os  seus  titulos  a  exame,  a  fim  obterem  a  confirma^ião  regia. 
As  dividas  á  fazenda  foram  cobradas  rigorosamente  e  pre- 
miado o  zelo  das  denuncias  e  execuções.  Os  cargos  mais 
elevados  eram  providos  nos  amigos  e  clientes  do  ministro. 
A  còrte  de  Madrid  n9o  fazia  caso  dos  brazões,  nem  dos  ser- 
viços. Desprezando  as  capitulações  de  Thomar,  concedia 
os  oliicios,  os  governos,  e  os  commandus  reservados  por 
ellas  aos  nacionaes  a  hespanhoes  e  a  italianos,  e  uma  es- 
pécie de  ostracismo  calculado  desviava  de  todas  as  posi- 
ções eminentes  as  famiiias  mais  antigas.  As  honras,  as 

Cnpitulos  das  Cortes  celebradas  na  villa  de  Thoinar  em  abrU  dê 
1581,  encorporados  a'éÚA,  CapUuhs  do  Estado  da  Noirrna  m,  iv^ 
V,  X,  zi  e  XY. 


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372    HISTORIA  0£  PORTUGAL  DOS  SKGULOS  XTIl  E  XYiU 

Aoobreu  comiiiendas,  e  os  habitus  das  oi  deiis  militares  davam-se 
quasi  em  almoeda,  sendo  constante  o  leilão  das  graças.  A 
estes  aggravos  juntava-se  o  atrazo  nos  pagamentos  das 
tenças,  moradias,  dotes  e  padrões  de  juro,  roubando-se 
a  muitas  casas  a  base  essencial  da  sua  representação.  A  co- 
ròa,  não  contente  com  isto,  apretexto  de  pedidos,  ou  com 
apparencías  de  empréstimo  voluntário,  arrancava  qoasi  to- 
dos os  annos  avultadas  sommas  aos  menos  arruinados.  Os 
senhores  donatários,  alem  das  derramas  extraordinárias, 
pagavam  ao  íisco  a  quarta  parte  do  rendimeuio  dos  bens 
da  corôa  e  das  coinmendas  sem  contar  os  quartéis  de  ten- 
ças e  de  juros  de  padrões»  comprados,  ou  concedidos  em 
remuneração  de  serviços,  que  o  estado  lhes  retinha,  eos 
preceitos  dú  imposto  da  meia  .'miiata,  ou  direitos  de  merctí, 
extorquido  de  todos  os  despachos  rendosos,  ou  honorifi- 
cos  pela  lotação  de  metade  dos  proventos,  ou  pela  taxa 
de  uma  pauta  aonualmente  revista.  Fundando-se  a  opu- 
lência das  famiHas  pela  máxima  parte  nas  r^das  dos  mor^ 
gados,  e  dos  prédios  rústicos,  nas  dos  bens  de  corôa  e  or- 
dens, e  nos  honorários  dos  grandes  empregos,  não  será 
facíl  apreciar  o  estado  de  attenuação,  em  que  muitas  se 
achariam,  vendo  systematicamenta  cerceados  os  seus  ca- 
bedaes,  e  desfalcados  os  recursos,  de  que  podiam  valer- 
se  Aposição  das  classes  medias  e  do  povo  era  mais  cruel 
ainda,  como  mostrámos^.  A  declinação  precipitava-se,  ar- 
rastando a  todos  na  sua  quéda.  A  destruição  améaçava  ser 
geral  e  completa  em  pouco  tempo. 

í  Manifef^Ui  do  Heino  de  Portuyalj  Lisboa,  1641,  João  Pinto  Ri» 
beu'o.  —  I  surpação,  Edenção,  Restauração  de  Portugal ,  pag  2o  v. 
e  26.—  TnrUo  piiriiKiiicz  por  D.  Francisco  Manuel  de  Mello,  liv.  m. 

^  Sobre  o  eslado  (iecadeate  das  classes  medias  e  do  povo  ud  pri- 
meira parte  do  século  xvii,  vejam-se  os  cap.  m,  iv,  v,  do  Uv.  vi, 
no  tom.  IV  á'esU  Historia. 


L^iyui<-cu  L/y 


GAPiniLO  m 


o       AS  COBTES  £  OS  AUIILIAEES  £0  GOYEMO 

RevolaçSo  operada  nas  instítuiçdes  politicas  pelos  progWMW  diunMaiteiitniiaTdiiei.— 
O  poder  real.  As  côrtes.  O  principio  da  hereditariedade  da  copOt.— PariagunUM 
nacionaes.  Epocha  da  entrada  n\>lli;s  do  estado  popular.  Carrtcfcr  e  altribaições 
das  cortes.  Causas  do  mfraqaecimrnfn  líf»  suas  prerogativas.  —  Forma  di  elcirào 
e  da  legalisa^  dos  poderes  dos  procuradores  aa  sexuada  metade  do  século  xvi  e 
MiniiMirado  xTn.  C^posiçlo  Mcreta  do  podarical  ao  deanvolfiflifoto  danpra- 
aenlaçio  nackmal. —Novos  prineifrios  prodanados  m  iHl,  EVmnalidadn  naa  de» 
liberações  dos  estados  e  relaçQes  d'clles  entre  si  e  com  a  corôa.  —  O  conselho  po- 
litico dos  monarchas  nos  séculos  xv  ^  ^vi.  Creaçio  do  conselho  d'estado.  Filippe  II. 
Fundação  do  conselho  de  Portugal  cm  Madrid.  Pessoal  d'elle.  FoncçOes.  Reformas 
por  qne  passos.  O  «onaflUio  dTedado  qnaai  aenwllado  «mUaboa.  Ganiaa  dadeior» 
ganl«a|ílio  da  administraçlo  Mpetier.— Escri^aeadapBiidada.  Saenlariai  doestado. 
Atlribuições  especiaes  d'eilas  caifo*  a  a  soa  iofliMncia.  Seonlarios.  IHfiilodos  m* 
fotíoa  pelas  ioeretariae. 

Entre  a  monarchia  portugoeza  do  século  xv  e  a  dos  se- 

culos  xvi  e  xvii  as  differenças  eram  gi  andes  e  profundas. 
O  tl)rono,  que  na  gloriosa  epocha  de  D.  João  I  se  levan- 
tava rodeado  do&  grandes  vassallos  e  da  milícia  bellicosa 
dos  concelhos,  ergaia-se  agora  desamparado,  e  qnasi  des- 
penhado, no  meio  do  silencio  e  da  obediência  passiva  de 
todas  as  classes.  Estavam  extiactas  as  reluclancias,  e  até 
esquecida  a  idéa  de  luta.  Ninguém  cuidava  que  valesse  a 
pena  defender  os  fòros  próprios  e  muito  menos  os  alheios. 
Em  volta  do  sólio,  affeiçoado  â  imita^So  do  throno  dos  Ge- 
sares  romanos,  viam-se  ministros  mais,  ou  menos  aptos, 


374 


HISTORIA  DE  P0BTU6AL 


O  R«i  corteiSos  mais,  oa  menos  servis,  clientes  de  todas  as  ca- 
tegorias, cuja  voz  soava  só  em  louvor  e  para  adulaçlo 

das  paixões  e  dos  erros  dos  soberanos.  Conselheiros  fir- 
mes poucos  se  honravam  de  o  ser,  e  súbditos  Hvres  quasi 
que  não  existia  um.  Os  reis,  depositários  supremos  de  to- 
dos 08  poderes  e  senhores  absolutos,  senão  da  bolsa  e 
dos  bens  dos  povos,  que  ainda  por  algum  tempo  simula? 
ram  respeitar,  pelo  menos  dos  destinos  da  nação  penden- 
tes de  uma  palavra,  ou  de  um  aceno,  absorviam  na  sua 
individualidade  todas  as  forças  vivas,  dispunliam  d  elias 
*  como  queriam,  e  não  encontravam  diante  de  si  senão 
frontes  inclinadas  e  submissas.  As  fórmas  defensivas  da 
liberdade,  falseadas  na  pratica,  ou  viciadas  na  origem, 
haviam-se  tornado  puros  simulacros,  e  os  príncipes,  en- 
ganados com  o  prestigio  das  grandezas,  derivando  de 
Deus  todos  os  direitos,  já  não  admíttiam  entre  a  coròa  e 
o  paiz  nenhum  moderador,  nem  entre  a  sua  vontade  e  a 
execução  d'ella  nenhuma  resistência.  Lei  viva  para  todos, 
estendiam  o  sceptro  sobre  as  cabeças  mais  alias,  obrigan- 
do-as,  'assim  como  as  humildes,  a  sujeitarem-se  á  igual- 
dade mais  niveladora  que  se  conhece,  a  igualdade  do 
goTorno  pessoal. 

  administração  politica,  civil  e  económica  ainda  recor- 
dava a  variedade  de  elementos,  que  na  mela  idade  tinha 
concorrido  para  a  sua  existência,  porém,  modiíicadus, 
pela  acção  do  tempo,  peia  mudança  dos  costumes  e  pelas 
transformações  soccessivas  operadas  nas  idéas  e  nos  fa- 
ctos. O  principio  tríumpbante  da  unidade  monarchica 
fôra  incansável  em  fundir  umas  após  outras  todas  as  insti- 
tuições no  cadinho  das  doutrinas  e  das  tendências  da  es- 
cola imperialista  arraigada  em  Hespanha  pelos  arbítrios 
de  Carlos  V.  Percorrendo  a  legislação  promulgada  desde 
08  fins  do  século  xv  atè  á  prim^  metade  do  século  xvi^ 


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DOS  SÉCULOS  XVn  B  XTIU  m 

consaltando  a  organisa^io  dos  tribimaes  superiores»  eana-  oan 

lysando  o  verdadeiro  sentido  das  reformas  e  das  innovações 
introduzidas  nos  reinados  de  D.  Manuel,  de  D.  João  III,  de 
D.  Sebastião  e  de  Filippa  II,  facilmenle  se  aprecia  a  im* 
mensa  distancia»  que  separava  já  o^aquelles  dias  a  socie- 
dade portttgaeza  das  epochas,  em  que  ás  palavras  da  lei 
correspondia  a  realidade,  e  nSo  o  sophisma,  e  em  que  os 
códigos,  confrontados  com  os  interesses  e  com  as  aspira- 
ções dos  povos,  expi  ímiam  a  harmonia  entro  os  vassallos 
e  o  estado,  e  não  a  absorpção  das  immuoidades  dos  sub« 
ditos  pelas  invasões  da  exagerada  ampliaç8o  da  preroga- 
tiva  real  e  pela  abdicação  das  classes  a  quem  mais  de  perto 
cumpria  velarem  pela  conservação  das  liberdades. 

Uma  revolução  lenta  e  hábil  em  pouco  mais  de  um  sé- 
culo havia  demolido,  ou  alterado  ns  bases  da  antiga  mo- 
narchia  temperada.  Esta  revolução  teve  por  executores 
os  confidentes  mais  íntimos  dos  imperantes,  e  por  instru* 
mentos  activos  o  clero,  a  nobreza  e  a  ordem  judiciaiia, 
qne  pelo  predominin  cí  iMstiluia  já  uma hierarchia influente, 
ligada  com  a  coròa  peias  necessidades  da  sua  posição,  e 
pela  Índole  das  suas  opiniões.  A  diíferença  entre  as  attri- 
buições  da  realeza,  quasi  illimitadas  nos  séculos  xvi  e  xvn, 
e  o  exercício  da  soberania  moderado  pelo  voto  e  pelo  con- 
selho das  classes  preponderantes  desde  o  século  xn  até 
mais  de  metade  do  xv,  depressa  cavou  um  abysmo  entre  o 
passado  e  o  renascimento.  Os  reis  para  se  assenhorearem 
da  plenitude  do  poder  absoluto  não  precisaram  de  appellar 
para  o  auxilio  de  meios  violentos.  Debellada  por  D.  João  n 
a  resistência  dos  grandes  vassallos,  e  granjeada  por  va- 
ii()^as  cuiicés.NÒes  a  adhosuo  do  clero,  o  caminho  ficou 
desobstruído  o  não  era  preciso  esforço  notável  para  o  tri- 
Uiar  sem  receio.  Os  municípios  illudidos  deixaram-se  illa«> 
quear  sem  desconfiança,  e  até  offereceram  os  pulsos  aos 


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376  HISTORIA  DE  PORTUGAL 

O  Bti  óculos  na  apparencia  affectuosos  com  que  os  foram  ma- 

nietando. 

A  monarchia  pnra  adianíou-bè  com  precaução  e  sem 
roido,  salvando  sempre  as  exterioridades  e  affectando 
respeitar  o  que  minava,  ou  destniia.  Cobriam-a  os  raios 
luminosos  da  gloria  de  seus  capitães,  e  as  usurpações 
mais,  uu  menos  disfarçadas,  fam  substituiíidí;»  as  ficções 
ás  realidades  sem  provocarem  queixas,  uem  aggi'avos. 
Aproveitando  com  destreza  as  prerogativas,  geralmente 
acceitas,  e  medindo  os  passos  para  não  arriscar  nenhum 
em  falso,  a  pouco  e  pouco  apoderou-se  dè  todo  o  terreno, 
e  alcançou  por  fim  uma  Victoria  completa.  Comparando 
os  códigos  e  a  letra  das  leis  dir-se-ia,  que  a  velha  erga* 
nisação  se  conservára  intacta  no  essencial,  e  que  nenhuma 
liberdade  importante  succumbíra,  mas,  baixando  a  vista 
para  o  modo  pratico  da  applicação,  logo  se  apercebia  a 
rede  artíQciosa  de  restricções  e  de  interpretações  caijcio- 
sas,  que  envolviam,  ou  pervertiam  tudo.  O  sophisma  já 
não  se  podia  esconder,  e  a  decoraçíão  mentirosa,  rompen- 
do-se,  mostrava  a  verdade  nua  e  o  engano  desmascarado. 

Uma  das  bases  mais  solidas  da  antiíja  constituição  era 
a  convocação  dos  principaes  bracú>  do  estado  pelo  sobe- 
rano, a  iim  de  deliberarem  em  commum  sobre  os  assum- 
ptos graves  relativos  á  honra  da  nação,  ou  á  prosperi- 
dade publica.  Estes  congressos  eram  compostos  dos  ba- 
rões, dos  ricos  liomens,  dos  chefes  politicos  e  militares, 
do  clero  representado  pelos  bispos  e  abbades,  e  dos  pro- 
curadores das  víllas  e  cidades.  O  direito  de  os  convocar 
competia  exclusivamente  ao  rei,  que  os  reunia  quando  se 
tinha  de  proceder  á  eleição  de.novomonarcha,  quando 
este  se  ungia  e  coroava  prestando  juramento,  quando  o 
principe  reinante  se  propunha  abdicar  nos  íiliios,  ou  pa- 
rentes, determinava  dividir  os  estados  por  testamento,  ou 


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DOS  SÉCULOS  XYII  £  XVUI 


377 


queria  designar  o  successor*.  Congregavam-se  também  or« 
para  nomearem  tutores  ao  herdeiro  da  corôa  menor  de 
qoatorze  annos,  se  q  imperante  fallecia  sem  disposição 
expressa,  para  prorogarem  a  cobrança  das  contribuições 
temporárias,  e  para  votarem  os  tributos,  ou  os  subsídios 
precisos  para  occorrer  ás  despezas  extraordinárias,  ou  á 
escassez  dos  rendimentos  ordinários.  Eram  ouvidos,  Unal- 
mente,  sobre  o  modo  de  prover  â  segurança  geral»  á  de- 
cadência e  despovoamento  do  paiz,  á  ruina  do  commercio 
e  da  agricultura,  á  corrupção  dus  costumes,  e  sobre  a 
necessidade  de  fazer  novas  leis,  ou  de  mudar,  cori  igir, 
ou  alterar  as  antigas.  Ás  côrtes  nunca  exerceram  directa- 
mente o  poder  legislativo,  e  só  tinham  o  direito  de  sup- 
plica  e  de  representação,  consultando  e  aconselhando  ao 
rei  o  que  julgavam  util  e  vantajoso,  e  recordando-llie  com 
respeito  as  suas  obrigações.  Cada  um  dos  braços  expunlia 
em  separado  os  seus  aggravos  e  os  geraes,  e  pedia,  ou 
propunha  os  remédios  opportunos.  N*estas  conferencias 
se  adoptavam  as  resoluções  em  virtude  das  quaes  se  re- 
digiam as  leis,  promulgadas  sempre  em  nome  do  sobe- 
rano, porque  os  actos  das  assembléas  não  podiam  obrigar 
senão  confirmados  pela  corôa  e  com  a  sancção  d'e)la^  As 
leis  publicadas  pelos  reis  n3o  careciam  do  consentimento 

^  Â8  côrtes  datavam  da  monarchía  gothiea,  ciqoa  ooneílios  con- 
tinuaram na  monaiehia  neo-gothica  successivamente  modificados. — 
A  lei  II  do  tit  vn,  liv.  vi  da  Recopilação  explica  o  fim  e  as  attribni- 
ções  doestas  assembléas  com  toda  a  clareza.— O  prologo  das  Cârtes 
de  PaUnda  de  il29  6xp06  com  grande  lucidez  o  objecto  dos  con* 
gressoB  nacionaes,  declarando  as  classes  de  que  se  compunham,  e  a 
quem  competia  convoca-los.  Vide  Entayo  Biitoríeo-Critieo  sobre  la 
anHgua  l^shciou  y  principales  cuerpo»  legalet  de  los  reputs  de  Leon 
y  Castilla,  por  el  dr.  D.  Francisco  Martinez  Marina.  Madrid,  1806. 

*  Marina,  Ensaco  BistoriahCritico,  pag.  48  e  49. 


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378  HISTORIA  DE  PORTUGAL 

OM  dos  subditos*  Ao  monarcha  competia  privativamente  m 

todo  o  reino  o  supremo  senhorio  da  justiça  e  da  adminis- 
tração, e  o  supi  emo  império.  Mas  se  as  leis  dictadas  por 
elle  deviam  ser  obedecidas  pelo  facto  de  emanarem  da 
sua  vootade,  nunca  se  reputaram  perpetuas,  como  as  nas- 
ddas  do  accordo  das  côrtes.  As  que  elle  díctava  só  exe- 
cutavamn^e  com  o  caracter  de  pragmáticas,  ordenações, 
alvarás,  provisões  e  cartas  regias,  porém  não  sendo  de 
sua  natureza  inalteráveis  o  monarcha  reinante,  ou  os  seus 
successores  podiam  reforma-las,  ou  revoga-las.  O  que  as* 
segurava  desde  o  tempo  dos  godos  ás  leis  a  força,  a  ex- 
tonsUo  e  a  perpetuidade  era  a  approvação  dos  eoneiUos, 
ou  congressos  nacionaes  *. 

Na  velha  monarchia  gothica  predominava  para  a  esco- 
lha do  rei  o  principio  electivo.  Nem  sempre  os  filhos  suc- 
cediam  aos  paes,  e  n3o  existindo  na  legislação  civil  o  di- 
reito de  primogenitura  o  direito  de  successão  hereditária 
tauibcíu  se  nao  encontrava  n'ella.  Os  concilios  confirma- 
vam a  eleição  dos  reis  e  assistiam  ás  ceremonias  da  sa- 
gração.  No  começo  do  século  xii  ainda  não  havia,  ao  que 
parece,  em  LeSo  e  Gastella  lei  fundamental  expressa  sobre 
este  ponto,  nem  costume  fixo  e  determinado*  Morto  Af-* 
fonso  VI  sem  nomear  successor,  os  castelhanos  discuti- 
ram livremente  se  devia  reinar  a  infante  D.  Urraca,  ou 
Affonso  Raimundo,  seu  filho,  prova  de  que  nenhuma  dis- 
posição explicita  os  siyeitava.  Em  Portugal,  desde  a  fun* 
daçSo  da  monarchia  prevaleceu  o  principio  da  heredita^ 
riedade,  mas  sem  preceito  conhecido  e  authentico,  que 
o  estabelecesse,  ou  regulasse  como  regra  fundamental. 
Sancho  I  succedeu  a  seu  pae,  Alfonso  II  a  Sancho  I,  e 
Sancho  II  a  D.  Alfonso.  A  norma  seguida  constantemente 

1  Marina,  Entayo  Butoneo-CrUieo,  pag.  48  e  49. 


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POS  SECOU»  Xm  E  XTUI 


era  o  soberano  desi^ar  no  seu  testamento  o  príncipe,  o 
que  havia  de  succeder-ihe,  não  se  desviando  da  íórma 
antiga  quanto  d  preferencia  dos  prímogeDitos  e  á  proxi- 
midade das  linhas.  As  rasSes  allegadas  pelo  dr.  Joio  das 
Regi  as  cm  1385  nas  côrtes  de  Coimbra  contra  D.  Bea- 
triz e  contra  o  infante  D.  João  nâo  contrariaram  esta  regra. 
Tendiam  a  obter  que  se  declarasse  o  throno  vago  pro- 
vando o  adultério,  ou  a  iliegitimídade,  em  que  oa  dois  pre- 
tensores  tinham  sido  procreados,  argumento  decisivo  pe- 
rante o  direito  publico  da  epoclia.  Nos  primeiros  tempos 
alguns  monarchas  associaram  os  herdeiros  ao  governOi  e 
mais  tarde  fizeram-os  jurar  pelas  côrtes,  modo  habii  e  pru- 
dente de  conciliar  a  obediência  dos  súbditos  com  a  affirma* 
çâo  do  direito  hereditário  pelo  voto  das  asseaibiéas  nacio- 
jaaes  *. 

As  leis  gotbicas  não  consentiam,  que  as  rainhas  viuvas 
tomassem  parte  no  governo.  Estas,  fallecidos  os  maridos, 
âe(viam  despir  os  ornatos  e  as  pompas  e  encerrarem-se  em 
um  claustro.  Ninguém,  nem  o  ju  incipn  herdeiro,  podia  ca- 
sar com  elias.  Este  costume  observou-se  nos  reinos  de  Cas- 
tella  e  de  Leão  até  ao  século  x.  O  primeiro  exemplo  de 
regência  de  mulheres  deu-se  em  D.  Elvira,  tía  de  Rami- 

i  Marina,  Bmayo  ífiifortnhCrtltoD^pag.  M  e  8S.— No  tealameiito 
de  Sancho  I  publicado  na  part.  ir  da  íionardUa  I/usUana,  escrí* 
ptnra  ii,  e  noa  de  Affonso  II,  Affonso  III  e  D.  Diniz,  Monarchia  Lu- 
sitana, part.  IV,  escripturaxiii  e  escriptura  ultima,  e  part.  v,  escríptu- 
ras  XXXIV  e  xxxv,  estfio  as  provas  da  asserção,  que  aventui  ámos  no 
texto. — Imprimis  mando  (diz  Sancho  I),  ut  fUius  meus  domnus  Affm* 
sus  habeat  regnum  meum  cum  eellarin  et  reditibusj  eíc— Affonso  U 
vai  mais  longe,  porque  accrt  scenla  depois  de  nomear  o  infaiito 
D.  Sancho  seu  successor.  —  Et  .s{  morhis  fuerit  sine  semine  legitimo 
maicr  filins  quirmiijne  habuero  de  regina  D.  Urraca  habeat  re* 
gnum  .  .  .  Et  si  filium  masctdum  nua  habuero  . . .  filia  mta  ínfans 
D.  Liamr  quam  de  ipsa  regina  habto,  habeat  regnum. 


380 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


ORd  ro  m.  A  falta  de  pessoa  apta  para  assumir  o  poder,  e 

o  conceito  formado  da  sua  capacidade  determinaram  a 
eleiçSo.  Na  menoridade  de  AtÍDnsoV  governou  também 
sua  mãe.  Afifooso  o  sábio»  conformando-se  com  estes  fa- 
dos» estabeleceu  nas  snas  cPartidasi,  que  ficando  rei 
menor  a  mHe  regesse  o  estado.  No  codicillo  do  seu  tes- 
tamento D.  Diniz  dispoz,  que  a  rainha  D.  Izabel  fosse  re- 
conhecida tutora  dusprincipes  D.  Affonso  e  D.  Constância, 
seus  íiihos»  governando  o  reino  até  á  maioridade  do  her- 
deiro da  corda.  A  lei  salica  nunca  vigorou  em  Portugal. 
Affonso  II  no  seu  testamento,  depois  de  declarar  succes- 
sor  a  D.  Sancho,  accrescentava,  que,  se  eliefallecesse  sem 
descendência  legitima,  occupasse  o  throno  o  ii  ruão  que 
se  lhe  seguisse  em  idade,  e  não  havendo  filho  varão, 
que  cingisse  a  corôa  a  infante  D.  Leonor.  A  exclusão  das 
princesas  casadas  com  estrangeiros  não  consta  de  nenhum 
monumento  authentico  das  primeiras  epochas.  Se  exis- 
tisse, não  podia  ser  ignorado  em  1385,  e  o  di .  João  das 
Regras,  tão  lido  no  direito  pátrio,  de  certo  o  teria  in- 
vocado nas  côrtes  de  Coimbra  contra  D.  Beatriz,  e  no 
pleito  da  successão  em  i579  os  defensores  dos  direitos 
da  duqueza  de  Bragança  D.  Gatharina  seguramente  teriam 
lançado  mão  de  um  argumento  decisivo,  que  excluía  da 
lide  Filippe  II,  o  mais  poderoso  dos  contendores  Fo- 

1  Marina,  Emayo  Histórico- Critico,  pag.  56  e  57. — Part.  ii,  tit.  v, 
lei  III. — Monarcha  Lusitana,  part.  iv,  escriptura  xiii,  part.  v,  es- 
crípturaxxxv. — c Mandamos  e  outorgamos,  que  a  rainha  D.  Izabel, 
minha  mulher  seja  guarda  e  titor  de  D.  Affonso  e  de  D.  CostSça, 
voem  lilhoe  e  seus,  e  dos  outros  se  nolos  Deus  der,  e  mandamos  que  08 
guarde  e  críi,  e  os  defenda  e  rega,  e  adeience  os  nossos  reynos  até 
que  D.  Affonso  nosso  filho  seja  de  revora  e  de  idade  Udima  e  com- 
prida, ou  aquel  filho  que  dever  ser  nosso  herdeiro...»  Fernão  Lo* 
pei,'—Chrmka  de  El^RH  D.  João  I,  cap.  clxxiv  e  ctxxnc  oon* 
tendo  as  rasOes  de  JoSo  das  Regras. 


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DOS  SÉCULOS  xva  £  XVlll 


38i 


raiii  as  curtes  do  lG4i,  advei  lidas  pela  dolorosa  expe-  o 
rieiíoia  do  passado,  que  propozeram  as  bases  da  lei  de 
successuo,  que  ainda  boje  vigora,  regulando  o  priacipio 
da  hereditariedade  da  corôa  por  modo  tal,  (jae  só  os 
príncipes  nascidos  no  paíz  e  obrigados  a  residir  n^elle 
podessem  reinar  com  exclusão  formal  e  explicita  dos  es- 
traugeirps  e  de  seus  iiihos.  Os  estados  do  remo  justiâca- 
r9m  estes  preceitos  com  as  memorias  do  governo  de 
0.  João  III,  em  que  se  discutiram  regras  análogas,  que 
por  desgraça  não  chegaram  a  ser  sanccionadas 

Em  algumas  das  cortes  celebradas  em  Leão  e  Castella 
desde  os  princípios  do  século  xi  até  ao  reinado  de  S.  Fer- 
nando não  âguraram  só  os  prelados,  os  hcos  homens  e 
os  grandes  senhores.  As  vilias  e  cidades  também  toma- 
ram parte  n'ellas,  assistindo  aos  congressos  por  meio  de 
seus  procuradores.  No  século  xui  a  concorrência  dos  re- 
presentantes dos  concelhos  era  já  tão  numerosa,  que  Fer- 
nando III  foi  obrigado  a  regularisa-la.  Em  Portugal  tudo 
inculca,  que  os  procuradores  dos  povos  não  entraram  nas 
côrtes  nos  primeiros  Ires  reinados ;  mas  sabemos  por  um 
documento  insuspeito,  que  já  deliberavam  com  os  ricos 
homens  e  os  conselheiros  da  cúria  do  rei  nas  côrtes  de 
Leiria  reunidas  por  ÂfTonso  III.  Esta  assembléa,  aberta  nos 
fins  dc  íeveieiro  de  1254  e  encerrada  nos  principies  de 
abril,  attendeii  n'este  curto  praso  aus  assumptos  mais  im- 
portantes da  administração  interna.  Não  admira  que  só  no 
melado  do  século  xiii  começassem  os  concelhos  a  intervir 
na  gerência  dos  negócios,  como  membros  vivos  do  corpo 

1  Capituhs  Geraes,  apresentados  a  £l*Rei  D.  João  IV  nas  côrtes 
celebradas  em  Lisboa,  em  28  de  janeiro  de  1641,  cap.  ii  e  iii  do 
Estado  dos  Povos  e  cap.  i  e  ii  do  Estado  da  Nobreza,  e  xiv  do 
Estado  EccleMabliCO.  Respostas  de  Ei-Uei,  em  ii  de  betciiibro  de 


I1I8T0BU  D£  POaTUGAL 


ORri  politico,  |nji'(|ueno  reinado  do  conde  de  Bolonha  é  que  u 
elemenio  popular»  lentamente  constituído  nas  epochas 
interiores,  assumiu  a  importância  relativa,  que  devia  de- 
cidir o  soberano  a  reconhecer  a  sua  influencia  K  NSo  se 
cuide,  porem,  que  os  procuradores  dos  concelhos  exer- 
ciam nas  aní?í?as  côrtes  .1  mesma  acção,  que  mais  tarde 
lhes  proporcionaram  as  circumstancias,  ou  que  no  exer- 
cício de  suas  íkmcçOes  os  estados  do  Reino  reproduzis* 
sem  na  sua  parte  essencial  as  attríbnições,  que  nas  monar* 
chias  representativas  modernas  constituem  a  força  e  a 
importância  do  poder  legislativo.  Em  primeiro  logar, 
como  notámos,  as  antigas  còrtes  não  deliberavam,  consul- 
tavam. O  único  e  supremo  legislador  era  o  rei.  Em  se- 
gundo logar,  mesmo  em  matéria  de  novos  impostos,  ou 
de  subsídios,  a  unciativa  não  lhes  competia,  e  sómente 
eram  ouvidas  sobre  as  sommas  pedidas  pela  corôa,  e 
sobre  o  modo  menos  violento  de  serem  cobradas.  N'es- 
tas  occasiOes  a  voz  do  povo  érguia-se  mais  de  uma  vez 
queixosa,  ou  severa,  contra  as  prodigalidades  dos  sobe- 
ranos, sustentava  a  necessidade  da  diminuição  das  des- 
pesas supérfluas,  e  apontava  os  abusos  e  escândalos  fla- 
grantes. Os  ministros  promettiam  em  nome  do  rei  emenda 

1  Marina,  pag.  77  e  7S. — Lafuente,  Historia  Omeral  de  EtpaUãf 
tom.  V,  part.  ii,  líy.  ii  cap.  xiii. — Herculano,  Historia  de  Portugal, 
tora.  III,  liv.  III,  Liv.  I  de  Affonso  III,  fl,  6  v.  Antes  das  Córtes  de  Í3õ4 
só  existem  vestígios  de  tres  convocarões :  das  de  Guimarães  no  tempo 
do  conde  Henrique,  em  que  figurara  exclusivamente  ovtnes  próceres 
portucalenses,  das  de  Coimlwa  de  12H,  a  que  assistiram  os  prela- 
dos seculares,  os  homens  de  religião  e  os  barões  e  vassallos  da  coi  óa, 
e  (ias  de  Coimhra  tambeu)  celebradas  ern  1228-1229  nas  quaes  se 
acharam  reunidos  muUitKdo  episcoporum,  prucerum,  el  alioruin  no- 
bilitm.  A  assembléa  de  12o7  parece  ler  sido  uma  espécie  de  oôr- 
teii  só  composta  de  bai  óes  e  lidalgos.  Vide  Historia  de  Portugal ,  pelo 
sr.  A.  Herculano,  toin.  m,  liv.  vi,  pag.  34,  nota* 


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DOS  SÉCULOS  xvil  E  xvm 


38a 


prompta,  apressavam  o  voto  dos  tributos,  ou  dos  dona-  om 

tivos,  e  simulavam-se  abrasados  em  zêlo  reformador, 
illudindo  de  ordinário  a  boa  fé  dos  representantes  das 
villas  e  cidades.  Fechadas  as  côrtes  caía  tudo  no  esqueci- 
mento» menos  o  sacrificio  consentido  epontuabnente  exi- 
gido, nSo  existindo  meio  de  lhes  tomar  effectiva  a  respon- 
sabilidade, porque  se  cobriam  com  o  manto  inviolável  da 
realeza. 

Concorriam  para  o  enfraquecimento  do  que  hoje  se 
diama  a  prerogativa  parlamentar  causas  mui  diversas  e 
variadas,  sendo  uma  das  mais  poderosas  a  Incerteza  das 
convocações,  porque  a  reuniSo  das  eòrtes  nio  tinha  epo- 

chas  fixas,  e  dependia  inteiramente  da  vontade  dos  rno- 
narchas.  A  educação  popular,  por  muito  atrazada  e  alheia 
das  questões  mais  altas  de  direito  publico,  e  as  idéas 
communs  e  acceitas  em  toda  a  Europa  nKo  ftvoredam, 
ou  ^citavam  qualquer  tentativa,  que  aspirasse  a  modi- 
ficar em  beneíicio  do  povo  e  do  paiz  a  or^anisação  e  os 
poderes  das  assemblea^  iiacií  inacs.  Os  jjrocuradores  dos 
concelhos  nos  dias  de  crise  e  nas  boi  as  de  amargura,  mais 
escutados,  propunham  remédios  heróicos  e  até  superio- 
res ás  forças  do  enfermo;  mas  dissipada  a  cerração  e  des* 
viado  o  maior  golpe  da  tempestade,  os  interesses  oppos- 
tos  das  outras  classes,  o  egoísmo  dos  imperantes  e  as 
tendências  irresistíveis  da  escola  dominante  no  governo 
annullavam  sem  custo  as  promessas,  e  a  na^So,  que  nKo 
sabia  apreciar  amda  os  seus  direitos,  nio  os  defendia,  e 
entregava-se  resignada  nas  mãos  dos  que  olhava  como 
seus  guias  naturaes.  Foi  assim  que  a  resolução  tomada 
nas  côrtes  de  Torres  Novas  de  1438  de  reunir  todos  os 
annos  uma  delegação  da  assembiéa  composta  de  dois  pre- 
lados, cinco  fidalgos  e  oito  cidadãos,  nunca  passou  de 
um  bom  desejo  sem  effeitos  práticos.  O  mesmo  aconte* 


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HISTORIA  DE  PORTUGAL 


O  Rfli  ceu  no  reinado  de  D.  João  UI^  qaando  nas  côrtes  de  i5!2õ 
e  de  1S35  se  ordenou  a  convocação  do  pariamento  de  dez 

em  dez  aimos.  O  ciúme  da  coròa,  a  opposição  dos  seus 
conselheiros  e  o  receio  de  animar  resistências  perigosas, 
assegurando  representação  permanente  aos  estados  do 
reino,  e  mais  que  tudo  ao  braço  popular,  sempre  estor- 
varam a  satisfação  d*este  voto  expressado  em  mais  de 
uiiia  asseiiiblca  especialmente  no  século  xv*. 

Não  podendo  as  côrtes  ser  convocadas  senão  pelo  rei, 
era  elie  portanto  o  juiz  único  da  necessidade  da  reunião,  e, 
por  assim  dizer,  o  arbitro  dos  assumptos  sujeitos  ás  con- 
sultas  das  assembléas,  porque  as  cartas  convocatórias, 
nSo  só  declaravam  de  ordinário  o  logar  e  a  epocha  da 
celebração,  mas  ate  u  numero  dos  procuradores  que  as 
terras  haviam  de  enviar,  os  podeies  que  lhes  deviam 
conferir,  e  ás  vezes  o  motivo  da  reunião.  Nem  todos  os 
concelhos  mandavam  delegados,  competindo  sómente 
esta  apreciada  prerogativa  a  algumas  viUas  notáveis,  ou 
ás  que  por  foral,  ou  privilegio  tinham  assento  nos  gran- 
des conselhos  da  liagao.  No  reinado  de  D.  João  III,  no 
anno  de  1535,  os  logares  eram  noventa,  divididos  por 
dezoito  bancos.  Ás  côrtes  de  i642  sabe-se  haver  concor- 
rido maior  numero.  O  costume  era  nomear  cada  con- 
cellio  dois  procuradores,  mas  citam-se  exemplos  de  mais 
e  de  menos,  suijsidiados  por  conta  dos  constituintes,  que 

1  Jo8ò  Pedro  Ribeiro,  Memoria  tobr$  as^Fonies  do  Código  Filip- 
phio^  aeeç.  i,  «Disaertaçáo  preliminar  sobre  as  côrtes  em  geral», 
tom.  n  das  Mmoriat  de  lÀUeratwa  da  Academia  Real  doe  Sden* 
eku  de  lÀéoa. — Meauaiat  para  a  Hitioria  e  Jheoria  dat  Cáries 
geraes,  que  em  Portttgál  ee  cdebraram,  etc,  pelo  Tisoonde  de  San- 
tarém, Lisboa,  1S27,  parL  i.  Os  povos  requereram  a  reimiSo  annual 
das  côrtes  lui  assembléa  de  Coimbra  de  1385  no  cap.  vni,  e  pedi- 
ram na  de  Lisboa  de  1371  a  sua  convocaçSo  tiiennal.  Nenhuma  das 
snpplicas  foi  deferida. 


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DOS  S£CULOS  XVU  G  XVIU 


pai*a  esse  fim  lançavam  urna  finta  especial,  quando  as  ohm 
rendas  do  municipio  não  chegavam.  A  pouca  fidelidade 
de  alguns  procuradores  fez  com  que  as  camarás  discutis- 
sem e  assignassem,  antes  de  lh*os  entregarem,  os  cader- 
nos especiaes  do  concelho,  e  até  os  dos  negócios  de 
interesse  geral.  Os  cadernos  nas  primeiras  côrtes  de 
Afiíonso  lY  chamaram-se  aggravamentos,  depois  até  ás 
côrtes  de  Guimarães  de  1301  intitularam-se  ariigos,  e 
desde  as  de  Santarém  no  anno  de  4406  capUulas,  D'es- 
tes  capítulos  os  geraes,  propostos  em  nome  de  todos  os 
concelhos,  depois  de  resolvidos  afiirmativamente,  tinham 
força  de  lei,  e  ião  podiam  ser  revogados  sem  expressa 
menção  por  cartas  ou  alvarás.  Os  especiaes,  apresentados 
em  nome  de  uma  província,  de  uma  villa  e  até  de  um 
grupo  de  operários,  depois  de  approvados,  vigoravam 
como  privilégios,  uma  vez  que  d'elles  tirassem  instru- 
mento authentico  os  interessados.  Finalmente  o  formulá- 
rio das  resoluções  do  soberano  também  variou  bastante, 
segundo  as  epochas.  Em  algumas  representações  as  res- 
postas quasi  que  foimam  uma  espécie  de  dialogo.  Em 
outras  são  dadas  pelos  ministros.  Os  monarcbas,  alem 
dos  capitules  apontados  pelos  estados,  dictavam  de  motu 
próprio  as  providencias  reputadas  utefs,  ou  convertiam 
em  lei  geral  as  decisões  em  que  deferiam  ás  supplicas 
dos  súbditos 

Na  eleição  dos  procuradores  votavam  os  homens  bons 
dos  concelhos  e  os  magistrados  populares  em  listas  assi- 

gnadas,  cujo  apuramento  se  fazia  perante  o  juiz  da  terra. 
Eram  elegíveis  as  pessoas  principaes  pela  sua  qualidade 
^  e  riqueza.  Por  isso  nos  séculos  xvi  e  xvu  se  introduzú:a 


í  Joiio  Pedro  Ribeiro,  Memorta  sobre  as  Fontes  do  Codtgo  Filip' 

puíOj  «Dissertação  prelimiuar». 

Tone  r  35 


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m 


Hv  o  1190  do  terceiro  eslado  deaigoar  para  seus  represaDUm* 
tes,  não  só  os  fidalgos  resídeotes  nas  terras,  raas  os  litii- 

lai  es  e  os  .seuhuics  da  mais  distincta  nobreza  da  còrle, 
conciliando  a  economia  com  a  satisfação  de  uma  vaidade. 
NIo  podiam  ser  eleitos  os  julgadores  presentes»  aem  o 
juiz  de  fóra  sem  licença  regia,  nem  individuos  que  Dio 
possuíssem  bens  de  rala,  oa  que  por  seu  procedimento 
tivessem  má  fama.  Filíppe  II  valeu-se  d'6sta  clausula  para 
delermiuar  a  exclusão  de  homens  conhecidos  pela  slih 
lealdade  ao  prior  do  Crato.  Os  bispos  e  arcebispos», 
aeesar  de  pertencerem  ao  braço  ecclesiastico,  também 
podiam  ser  eleitos  para  o  braço  popular,  e  preferiam 
8«Bpre  a  honra  de  o  representarem,  assentando-se  bo 
lespeciivo  banco.  Se  a  eleição  se  não  conformara  com  as 
solemnidades  do  estylu,  ou  euvolvia  suborno,  qualquer 
podia  embarga-la,  e,  não  lhe  recebendo  os  embargos,  po- 
dia aigravar  para  o  desendiargo  do  paço.  Esta  jurispru* 
deneia  foi  estabelecida  na  segunda  metade  doaeeole  xvil 

O  exame  da  legalidade  dos  poderes  competia  ao  tiibunal 
do  desembargo  do  paço,  o  qual  encarregava  u  procu- 
rador da  coroa  da  verificação  dos  defeitos  de  fórma«  aa 
os  havia,  para  decidir  a  eicluaio  do  procurador,  quando 
oe  reputasse  insanáveis.  As  procurações  do  braço  da  na» 
breza  eram  legalisadas  pelo  escrivão  da  puridade,  e  nlo 
deviam  ser  conferidas  senão  aos  que  de  direito  tivessem 
assento  nas  cadeiras  d'aquelle  estado.  Os  menores  eram 
representados  pelos  tutores.  As  procurações  do  braço  do 
devo,  constituidas  aos  ecdestasticoa  pelos  seus  cabidos  e 
mandadas  ao  secretario  d*estado,  deviam  seretáminadas 
pelo  procurador  da  curôa  *.  No  século  xvi,  e  provavei- 

tugtd,  pelo  visconde  de  Santarém,  |g  C.**,  7.%  9**  e  10.*- 


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Hf»  8SCUL0B  XVÚ  E  XVHI 


387 


mento  muito  ant^s,  os  reis  abriam  as  cortes,  rodeados  de  obm 
liQCÍa  a  pompa  a  magestade.  Um  prelado»  ou  um  magU* 
trado  prenuiuÂava  a  fàlla  de  abertura,  ou  a  proposição,  e 
um,  ou  mais  deputados  respondiam  em  nome  d'eiles.  O 
costume  de  cada  braço  se  reunir  em  separado  para  deli- 
bar^F  eoBata  de  tempos  mais  moderuos  K 

X  epoiâia  ^»|ignalada  pela  gaem  da  iudependeucta  è 
pela  acclamaçlo  de  D.  Joio  I  foi  uma  das  mais  notáveis 
da  possa  historia,  tanto  pelos  briosos  feitos  que  a  enno- 
breeeram,  eugio  peio  rejuvenescimento  dos  elementos 
PQiilíooa  0  sociaea  B'oatd  aeguudo  período  da  meia  idade 
portagueia.  As  eonvocacOea  das  cArtes  foram  frequentes, 
porque  o  mestre  de  Aviz,  lembrado  de  que  devia  em 
grande  parte  ao  bi  ciro  dos  concelhos  a  sua  ccwm,  quiz 
^IPipr^  ^  tpdos  0$  lances  arriscados,  e  em  todas  as  rar 
formas  importantes  consultar  a  opinião  d'elle.  Á  eip»- 
rl^ooia  dos  males  recentes  e  a  eminência  do  perigo  forti- 
ficaram a  intUiencia  das  yssembléas  nacionaes,  e  a  coroa, 
intimaoiente  ligada  com  os  seus  deíensores,  acceitou  sem 
hesitação  as  nove  bases  de  governo  propostas  pelos  esta-^ 
dos  do  Coimbra  am  13W.  Estas  bases,  sendo  fiehnente 
cumpridas,  podiam  afiançar  os  principies  essenciaes  da 
monarcbia  reírenerada.  O  conselho  do  rei  havia  de  ser  com- 
posto dos  cidadãos  mais  conspícuos  das  terras  principaes 
do  roiop,  os  povos  haviam  de  ser  ouvidos  sobre  todas  as 
matérias  de  interesse  commum,  e  não  se  lhes  lançariam 
tributos  sem  com  seu  voto  se  buscar  o  modo  mais  suave 
de  os  distribuir  e  arrecadar.  Por  ullimu  o  soberano  não 
bria  a  guerra,  nem  ajustaria  a  paz  sem  o  consentimento 

1  Vejam-se:  Fana  e  Sousa,  Europa  Portuguesa,  toiíi.  ii.  pai  t.  in, 
cap.  III. — Barbosa,  Memorias  de  El  Rey  D.  SebastiUo,  part  a,  liv*  i, 
cap.  xn,  côrtes  de  i64i,  i642,  i645,  etc. 


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388  mSTOftIA  m  PORTUGAL 

O  Kci  do  paiz  *.  Estas  condições  coniii  madas  pela  promessa  do 
Doestre  de  Âviz  não  foram  illudidas»  e  no  seu  tempo  as 
côrtes  reunidas  vinte  e  duas  vezes,  peio  menos»  tomaram 
eonbecimento  de  todos  os  assumptos  graves.  D.  Duarte 
chamou-as  quatro  vezes  em  cinco  annos  de  governo,  e 
D.  MoDâO  V  vinte  e  três ;  nrias  D.  João  II  somente  as  con- 
vocou tres  vezes— em  1481  e  i4S2,  em  1483  e  em  1490, 
e  D.  Manuel  apeias  quatro  em  vinte  e  seis  annos  de  rei- 
nado. A  ultima  assembléa  do  seu  governo  foi  a  de  Lis- 
boa em  4502.  O  descobrimento  da  Índia  e  as  grandezas 
do  vasto  império  oriental,  enriquecendo  a  corta  e  a  ca- 
pital, e  dispensando  a  cooperação  dos  estados  para  novos 
subsidies,  abriram  o  longo  interregno  de  vinte  annos, 
em  que  o  poder  real,  senhor  absoluto  de  todos  e  de  tu- 
do, resolvtíu  os  negócios  de  maior  vulto  sem  consultar 
os  conselhos  da  nação  K 

As  c6rtes  procuraram  sempre  sustentar  a  sua  preroga- 
tiva,  e  slo  visíveis  nos  dias  de  Affonso  Vos  vestígios  de 
suas  lutas  com  a  corôa  nos  congressos  de  i  451  c  de  1455, 
sendo  arguido  o  monarcha,  por  haver  feito  e  revogado 
leis  geraes  fóra  das  assembléas  nadonaes.  Mas  as  q[ueixas 
feriam  ouvidos  surdos.  As  circumstancias  favoreciam  e 
ammavam  as  invasões  da  auctoridade  real,  o  se  não  fosse 
o  ruinoso  estado  da  íazeiída  publica,  é  provável  que  o  so- 
berano reunisse  menos  vezes  ainda  os  procuradores  dos 

1  Ribeiro,  Memoria  sobre  as  Fontes  do  Código  Fiiippim,  passim.— 
I).  Agostinho  Manuel,  Vída  do  Serihor  D.  João  II,  pag.  55,  67  e  se- 
guiiiles. — Soares  da  SUva,  Memorias,  liv.  i,  cap.  xltii.  —  Prouas  da 
Deducção  chronologica,  n."  52,  pag.  121,  etc.  El-rei  D.  Manuel  ou- 
sou mesmo  laiiçar  impostos  fóra  das  córtes.  Resistiu-lhe  o  famoso 
João  Mendes  Cecioso.  Vide  Damião  de  Goes,  Chronica  de  El-Rey 
D.  Manml,  part  iv,  cap.  lkxxvi,  e  Faria  e  Sousa,  Europa,  tom.  H, 
pari  IV,  cap.  i. 


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DOS  SÉCULOS  XVU  £  XVUI 


389 


concelhos,  censores  incommodos,  que  só  tinham  o  me-  o 
recimento  de  franquearem  a  bolsa  do  povo.  A  nobreza 
e  o  clero,  m  auge  do  valimento»  olhavam-os  como  inimi- 
gos natmnes»  e  seguros  de  obterem  do  príncipe  quanto 
desejavam,  saerificaríam  sem  escrúpulo  o  direito  de  re- 
presentarem os  interesses  geraes  quasi  sempre  oppostos 
aos  seus  como  ciasses  privilegiadas.  Finalmente  os  juris- 
consultoSi  já  preponderantes»  imbuídos  nas  doutrínas  dos 
códigos  romano  e  canónico,  consideravam  a  menor  limi- 
tação do  poder  dos  imperantes  como  um  attentado,  e  a 
existência  das  côrtes  como  uma  superfluidade  quasi 
monstruosa.  Para  legislar  bastavam  elles  e  o  rei.  Tudo  o 
ouiis  se  lhes  figurava  nocivo,  e  envolvia,  a  seu  ver, 
grande  (piebra  na  superioridade  inconcussa  do  mando 
supremo.  D.  João  II,  affeclando  apoiar-so  no  voto  dos 
concelhos,  para  debellar  a  resistência  da  nobreza,  e  ser- 
vindo-se  da  alliança  do  povo  contra  ella,  soube  manter 
illesa,  todavia,  a  prerogativa  real,  e  engrandece-la,  con- 
vocando apenas,  como  dissemos,  as  côrtes  tres  vezes  nos 
quatorze  annos  que  reinou,  e  D.  João  III  ainda  foi  mais 
longe,  porque  em  trinta  e  seis  annos  somente  as  reuniu 
tres  vezes.  Todas  as  tendências  e  todos  os  actos  se  enca- 
minhavam a  converter  em  fiches  e  em  puras  formalida- 
des  as  antigas  instituições.  O  rei  jurava  na  sua  accla- 
mação  o  respeito  dos  foros  e  liberdades  dos  súbditos, 
e  obedecia  ao  costume  de  convocar  as  assembléas  da  na- 
ção para  reconhecerem  o  seu  successor,  ou  para  conce- 
derem subsídios  e  proporem  os  aggravos  do  paiz,  mas 
na  verdade  tudo  isto  se  reduzia  quasi  a  um  ceremonial 
vasio  e  sem  eífeito  pratico,  e  o  povo,  esquecido  do  que 
íôra  e  do  que  era,  zelava  tão  pouco  os  seus  direitos,  e 
guardava  tSo  mal  as  velhas  immunidades,  que  ao  cabo  de 
vinte  annos  de  Meneio  e  de  indifferença,  desde  1505  até 


390  HiSlOai  D£  POEIUGÂL 

eiici       dava-se  por  eontente  eôm  a  {iromessa  da  etí^  m 

unir  as  côj  les  dc  dez  em  dez  aiinosí  Nôlftlêso  obteve  *i 
A  miiioridade  e  o  governo  de  D.  Sebastião  cóntintia* 
ram  as  máximas  dos  reinados  anteriores.  Às  côrles  de 
4579  retinidas  em  Lisboa,  e  as  de  tdSO  eonvéeàdáâ  m 
Albieiíim  deixaram  suspensa  a  questSo  gráviáSlillà  dá 
successlo,  6  quando  Phêbud  Moniz,  appellando  para  o 
exemplo  da  assembléa  de  1385,  sustentou  o  direito  de 
eleição  do  rei  por  parle  dos  concelhos,  uma  provisão  dos 
governadores  do  reino  dissolveu  o  congresso.  Seguiu-sé 
a  entrada  das  tropas  bespanbolas,  e  a  derrota  dàs  Ibl^s 
insubordinadas  do  priot*  do  Cratb.  Filippi  II  pfòpi^ié 
legitimar  a  occupação  armada,  e  para  esse  fim  coíivdCótt 
etn  Thomar  a  assembléa  de  1581.  Eleita  debaix(3  da 
ameaça  da  espada  de  seus  soldados»  e  etcluidos  dos  ban- 
cos populares  por  ordem  eipressa  todos  os  partidaHos 
de  D.  Antônio,  a  assetiibléa  de  Thomâr  apenas  sígbidicM 
um  simulacro  de  representação  nacional.  Cada  classe  pe- 
diu para  si,  e  só  o  paiz  é  que  não  teve  quem  devéras  es- 
tipulasse a  firmeza  e  segurança  de  seus  fóros  e  liberdéh 
des.  O  rei  oatholico  prometteu  mante-los,  rèspeita-lôs  d 
onvir  sobre  os  negócios  monàénlosos  o  vdtó  dos  vással< 
los;  mas  a  promessa  nSo  se  cumpriu,  e  eni  sedsentà  àb* 
nos  de  dominação  só  duas  vezes  se  congregàrdm  os  es- 
tados, em  1583  para  jurarem  o  príncipe  D.  Filippe,  e  em 
1649  para  reconhecerem  como  herdeiro  da  corôa  o  pri^ 
mogenito  de  Filippe  III.  Os  soberanos  da  easa  de  Austtiai 
mo  ousando  abolir  abertamente  as  cÔrteSf  nèiâ  offóndél' 

1  Marina,  TheoHa  de  Uu  Cárta  ò  Grandn  Jun»a$  Nèdom/kt^ 
tom.  I,  «Discirno  Preliininar.» — Ribeiro^  Memoria  ai  FoHtè$ 
âó  Cbd(^  PilippiníL-^YíiconâA  áe  Saniáréni,  MénMà  porá  à  #it» 


Digrtizeo  Ly  <jOOgle 


DOS  SBGULOS  Xm  B  IVHl  3M 

em  seus  princípios  fundamentaes  a  antif^a  constituição  por  ofcn 
um  aUentado  puhliro,  preferirom  espaçar  o  mais  possí- 
vel as  convocações,  annuiiando  por  todos  os  modos  a  ac- 
(16  e  a  influencia  dos  estados.  A  subserviência  dos  sub* 
ditos  coadjuvou  o  SKito  d'este  plano  K 

A  revoldçlo  do  I.*  de  dezembro  de  i640  vera  mudais 
de  repente  as  condições  politicas  de  Portugal.  A  nova  di- 
nastia, elevada  pelo  esforço  heróico  do  reino,  só  nos  bra- 
ços da  nação  podia  achar  forças,  para  combater  o  pode- 
roso isontendor  que  tinha  diante  de  sía  D.  io9o  lY  reunitl 
immediatamente  as  côrtes  em  janeiro  de  4644,  e  sem  tae*  ' 
sitar  acceitou  os  princípios  em  nome  dos  quaes  ellas  con-  • 
firmaram  a  legitimidade  do  seu  direito  hereditário.  O 
assento  dos  tres  estados»  faltando  linguagem  nova  até 
áqueila  epocha»  proclamou  a  doutrina  da  soberania  na* 
donal,  declarou  o  poder  dos  reis  emanado  na  origem  da 
vontade  do  paiz,  e  todas  as  questões  relativas  á  succes- 
são  da  corôa  dependentes  da  sua  decisão.  Sustentando  0 
grande  e  também  novo  principio  da  íiscalisaçlo  da  obser- 
vância das  leis  pelos  delegados  da  naçSo»  aiiinnon»  como 
odnsequencia  d'el]e,  que  os  povos  podiam  negar  a  dbe^ 
dieneia  ao  monarcha,  quando  pelo  mau  governo  elle  s^ 
tornasse  indigno  de  reinar.  Uma  das  accusações  mais  fbr- 
tés  contra  o  regimen  castelhano  era  o  ter  vexado  os  po- 
vos com  tributos  nlo  consentidos  pelas  côrtes,  e  uma 
conquistas  mais  importantes  da  revoluçSo  foi  estabè^ 
leeér,  oomo  base  fundamental  da  administração,  que  èé 
novas  coíili  iliiiiríjes  não  podessem  ser  lançadas  e  cobra- 
das senão  de  accordo  com  os  evNtados  do  reino.  Em  todo 
t>  reinado  de  D.  João  IV  e  no  inquieto  e  infeliz  governo 

í  ProvíUi  da  Híòiuria  Getiealogica,  tom.  ui,  p£4j.  429. — Manna, 
'ítona  de  las  Cortes. 


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392 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


oad  d6  seu  filho  a  prerogativa  pariamentar  rão  perdeu  ne* 

nhuma  occasião  de  se  engrandecer,  e  em  1688  o  seu  ar- 
rojo subiu  de  ponto  coin  a  deposição  de  AlTonso  VI.  D.Pe- 
dro U,  aproveitando  os  resultados»  e  temendo  o  instru- 
mento, decidiu  pô-lo  de  parte,  e,  nSo  se  atrevendo  a 
quebra-lo  publicamente,  dispenaou-se  de  ò  empregar 
desde  1698.  Neni  D.  Mo\,  nem  D.  José  I  convocaram 
côrtes 

As  formalidades,  que  regiam  as  deliberações  dos  es- 
tados, eram  curiosas.  Parece  que  desde  o  tempo  de  AP 
fmisoV,  pelo  menos,  cadabrago  remiia  em  separado  para 
conferenciar.  No  do  povo  exercia  as  lancções  de  presi- 
dente o  procurador  de  Lisboa  mais  graduado,  quasi  sem- 
pre um  fidalgo,  propondo  as  matérias,  dando  licença  aos 
membros  para  fallarem,  sujeitando  as  questões  á  votaglo, 
e  nomeando  as  pessoas  que  deviam  de  redigir  as  minu- 
tas  das  consultas.  No  braço  ecclesiastico  presidia  o  pre- 
lado mais  qualificado,  e  no  da  nobreza  o  secretario  eleito 
para  esse  fim.  Os  estados  comniunicavam-se  por  meio  de 
embaixadores,  nomeados  para  darem  conhecimento  dos 
negócios,  projectos,  e  consultas  resolvidos  em  cada  um 
dos  grémios.  Os  embaixadores,  admittidos  no  recinto  em 
que  estavam  os  deputados  da  ordem  a  que  eram  enviados, 
podiam  acompanhar  as  mensagens  de  curtos  relatórios 
oraes,  mas  nunca  assistiam  ás  disciissues  dos  assumptos 
sobre  os  quaes  vinham  chamar  a  sua  attenção.  As  commu- 
nicações  do  rei  ás  côrtes  eram  feitas  por  decretos  lidos  pe^ 

t  Justa  Âcdama^  do  Sertnmimo  Bey  de  Portitgal  D.  João  IV, 
pelo  dr.  Francisco  Yekwo  de  Gonveia,  —Attmlo  feito  em  Câr- 
te$  pelos  ires  Estados,  part  i,  {f  l.«  a  ft.* — Dedveção  Chronotogiett, 
parL  I,  dÍT.  zn,  desde  o  g  646.*  O  Buurqnez  de  Pombal  attriboe  aos 
jeanitaa  eatea  novos  prineipU»  e  hoiiorífla*8e  d'eUe8.  / 


DOS  SÉCULOS  XVU  E  XVIU  393 


rante  a  assembléa,  e  as  consultas  sabiam  á  presença  do  om 

soberano  apresentadas  quasi  sempre  por  uma  depulação, 
cujo  presidente  expunha  eoncisaniente  ao  monarrlia  o  seu 
obijecto,  respondendo  este  de  ordioario  em  termos  va» 
gos,  e  deferindo  a  decisão  para  depois  de  ouvido  o  seu 
conselho.  As  còrtes  duravam  por  costume  um  mez,  mas, 
se  a  aíTluencia  dos  negócios  requeria  maior  praso,  o  rei 
concedia  a  prorogação  por  outro  mez,  ou  por  quinze 
dias. 

O  monarcha,  antes  do  encerramento  podia  dissolver  um 
dos  braços,  mandando  continuar  as  conferencias  dos  ou* 

tros.  Assim  succedeu  em  1563  com  o  do  clero.  O  se- 
cretario de  estado  vinha  ao  seio  de  cada  ordem  propor 
os  negócios,  ou  formular  as  respostas  do  príncipe,  e  ape- 
nas se  retirava  discutia-se  logo  e  resolvia-se  o  que  elle 
expozera  â  apreciaçSo  dos  deputados.  As  consultas  das 
côrtes,  em  fórma  de  capitules  geraes,  ou  de  capítulos  es- 
pecíaes,  eram  examinadas  pelos  ministros  a  quem  o  rei 
commettia  especialmente  o  encargo  de  as  estudar  e  de 
redigirem  as  respostas.  Nas  de  i525  e  de  1535  D.  João  III 
incumbiu  esta  missSo  a  Bernardim  Esteves,  procurador 
da  fazenda  e  auctor  de  vários  regimentos,  dos  foraes  das 
alfande^ras  e  das  leis  promulgadas  em  harmonia  com  as 
resolurries  dos  estado^.  Ás  das  còrtes  de  1641  e  de  1642 
responderam  Thomé  Pinheiro  da  Veiga,  Sehastião  Cesar 
de  Menezes»  Pedro  Vieira  da  Silva  e  Antonio  Paes  Viegas, 
sendo  substituídos  nos  seus  Impedimentos  alguns  d'elles 
por  Luiz  Pereira  de  Castro  e  Jorge  de  Araujo  Estaco.  Para 
as  despezas  da  residência  na  côrte  foram  abonados  aos 
procuradores  dos  concelhos  de  Coimbra  e  Porto  2)5500 
reaes  diários.  Galculava-se,  que  os  povos  e  cabidos  do 
reino  em  1642  gastavam  com  os  seus  deputados  nas  côr- 
tes 100,000cruzados,elançava-se  em  rostoa  muitos  d'el- 


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I 


3H  HISTORIA  DE  PORTDGAL 

0R«i  les  espaçarem  as  deliberações,  e  occiiparera-se  com  pre- 
juizo  geral  e  falta  de  decoro  de  negócios  particulares,  des- 
etirando  os  pnblicos  K 

Nlo  sô  lias  matérias  graves,  mas  até  para  o  exame  dos 
negócios  ordinários  costmnavam  os  reis  oavír  o  seu  con- 
selho, e  o  voto  dos  homens  de  maior coníiança,  aos  qiiaes 
encarregavam  da  gerência  das  cousas  publicas.  A  existên- 
cia do  conselho  datava  das  primeiras  epocbas,  da  monar- 
chia,  escolhendo  os  soberanos  entre  os  prelados  e  ricos 
homens  aqnelles  com  qnem  desejavam  illustrar-se,  econ> 
sultando-os  sobre  as  difíiculdades  do  governo,  tanto  in- 
ternas, como  externas.  Querem,  porém,  alguns  escripto- 
res,  que  a  organisaç3o  mais  regular  do  conselho  do  rei, 
como  coipo  politico  permanente»  n9o  remonte  alem  do  rei- 
nado de  D.  JoHo  I,  citando  como  prova  a  rennião  con- 
vocada em  Torres  Vedras  para  apreciar  as  vantagens  e  os 
inconvenientes  da  empreza  de  Ceuta.  O  argumento  nlo 
nos  parece  concludente,  nem  o  exemplo  decisivo,  nlo 
sendo  difllcílallegar  outros  anteriores.  O  conseltio  existiu 
desde  a  Amdaçao  da  monarcliia,  e  todos  os  reis  nos  mo* 
mentos  críticos  escutaram  a  opiní9o  dos  vaifles  prudentes 
e  experimentados,  embora  seguissem  depois  a  dos  vali- 
dos e  confidentes.  Monso  Y,  apesar  de  haver  nomeado 

1  Meinvrins;  para  n  Historia  6  Tlinyfia  dm  Cortea  GeraeSy  etc.,T^\o 
visconde  de  Santarém,  16  ".  IS  ".  iO.-,  23.%  26.",  31.«  31«,  33.« 
O  mais  antigo  cxeniplo  da  separação  dos  braços  nas  conferencias  data 
pelo  menns  das  côrtes  de  1Í55.  Na?  do  1563  observou-se  a  mesma 
pratica,  issirn  como  nas  de  Lisboa  o  Almeirim  no  reinado  do  Cardeal 
D.  Henrique. — João  Pedro  Rilieiro,  Memoria  subre  as  Fofites  do  Ce- 
digo  Filippino,  pag.  100,  110  e  111.  — Papel  de  El-Rei  D.  JoãoIY 
para  se  lançai*  na  ar  ca  das  Côrtes  cuin  o  nome  do  procurador  dos 
descaminhos,  Historia  Genealógica  da  Casa  Realf  tom.  iv  de  provas, 
n.*  Í30.«,  pag.  280. 


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um  conselho  numeroso,  composto  de  homens  re?peitadoS|  oliA 
atteDdia  de  preferencia  o  voto  do  cardeal  D.  ioif  e  dá 
CSDètá  nos  pontos  de  administrado  elvil  e  ecclesiastiòa,  e 
o  do  desditoso  duque  de  Jira^^ança  D.  Fernando,  espe- 
cialmente em  tudo  o  que  dizia  respeito  ás  facções  de 
guerra.  D.  João  li  nunca  admíttiu  privados,  e  seguia  as 
ot»ini5é8  que  reputava  mais  oppottdnas.  As  listas  extrahi- 
das  dò  livro  das  moradias  da  sua  casa  mostram,  que  o  con^ 
selho  de  1484  se  compunha  de  dezoito  indivíduos.  O  de 
Affonso  V  também  lôra  numeroso.  D.  Manuel,  desejoso 
de  attraliir  as  classes  nobres»  prodigalisoo,  como  mercô 
honoriBca,  os  titules  do  lionselho.  A  fflatficdla  dos  mó^ 

radores  da  sua  casa  accusa  no  primeiro  quartel  do 
anno  de  <518  nada  menos  de  quatrocentos  cavalieiros 
do  conselho  ^  Mas  os  conselheiros  eííectivos,  encar- 
regados de  o  auxiliarem  no  despacho,  eram  apenas  em 
1591  o  conde  de  Vimioso,  o  baiHo  de  Alvito,  o  conde  de 
Villa  Nova,  o  conde  de  Tarouca  e  D.  Antonio,  escrivío 
da  puridade.  Christovão  de  Távora,  e  li.  Vasco  da  Gama 
tanibem  pertenceram  depois  a  este  corpo  limitado  e  es- 
colhido. D.  Jo3o  III  conservou  os  consélbeiros  de  sen 
pae  8  apenas  substituiu  os  fallecidos,  concedendo,  com- 
Indo  a  D.  Luiz  da  Silveira  e  a  D.  Antonio  de  Alhaide, 
conde  da  Castanheira,  influencia  decisiva.  A  rainha  D.  Ga- 
tharina  de  Áustria  nos  fins  do  reinado  asstunitt  grande 
importância,  assistindo  a  todos  os  conselhos,  ajudando 
El-Rei  no  despacho,  e  resolvendo  até  em  mateiias  de 

1  Historia  Genmlogica  da  C(ua  Hea!,  }h  ovas,  tom.  iv,  Trigoso, 
Mevwria  sobre  os  secretariou  dos  Heis  de  Poi'tugal  desde  os  antigoê 
tempos  até  á  acclamação  de  D.  João  IV ^  loiíi,  i,  part.  i  da  2."  =;erie 
dâs  Mmorioi  da  Academia  Eeal  das  Sdeneioi  de  lÀsboa,  pag.  3i 
a34. 


396 


HSSTOiUA  D£  POETUGAL 


O  Rei  perdões  e  de  administração  dcjuáliça,  como  se  fosse  o 
monarcha «. 

Na  minoridade  de  D.  Sebastião  o  conselho  da  regente 
D.  Gathaiina  de  Áustria  era  formado  do  conde  da  Casta- 
nheira, do  bispoD.  JuliSode  Alva,  de  Pedro  ^'Alcaçova 

Carneiro,  de  Martim  Aftonso  de  Sousa,  de  D.  Gil  Eannes 
da  Gosta,  e  de  Jorge  da  Silva.  Em  13  de  dezembro  de 
1^2  D.  r«atharina  abdicou»  e  foi  investido  nas  íuncções, 
que  ella  exercia,  o  infante  D.  Henrique,  o  qual  inrovavel- 
mente  para  dispensar  sem  ruído  o  serviço  dos  homens 
que  tinham  cuadjinado  sua  cuaiiada,  instituiu,  á  imita- 
ção do  que  o  imperador  Carlos  V  em  Í5i6  creára  em 
Gastella,  um  novo  conselho,  que  denominou  de  estado, 
nomeando  logo  para  elle  Lourenço  Pires  de  Távora,  pes- 
soa do  seu  seio  honrada  com  elevados  cargos.  Quando 
D.  Sebastião  eui  iO  de  janeiro  de  1558  tomou  posse  do 
governo,  propoz-ihe  sua  avó  para  ministros  e  conselheiros 
a  Pedro  da  Alcaçova,  Thomé  de  Sousa  e  D.  JulUlo  de  Alva, 
mas  a  opposiçio  do  cardeal  prevaleceu,  e  o  rei  moço. 
saindo  repentinamente  de  Almeirim  em  1509  para  se 
apartar  de  D.  Catharina,  nomeou  D.  João  de  Castro  e 
D.  Martinho  Pereira,  e  restaurou  o  ofiicio  de  escrivão  da 
puridade,  conferlndo-o  a  Mártím  Gonçalves  da  Gamara. 
Este  acto  afastou  para  sempre  do  despacho  a  viuva  de 
D.  João  III.  No  mesmo  anuo  deu  el-rei  corpo  ao  ensait), 
que  seu  tio  esboçára,  dictando  pela  provisão  de  8  de  se- 
tembro ao  conselho  de  estado  o  regimento  por  que  havia 
de  proceder  ao  exame,  expediente  e  resolução  dos  negó- 
cios. Os  secretários  d'estado  assistiam  ás  sessões  sem 
voto,  tomavam  nota  dos  despachos,  e,  communicando- 
os  ao  soberano,  lavravam  em  livro  especial  a  resolução 

1  Trígoso,  Memorias  sabre  os  Secretários  de  Estado,  pag.  38a43. 


« 


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DOS  SÉCULOS  X?il  E  XVm  397 

ácerca  de  cada  tim.  No  corto  interregno  de  soa  ephemera  o 
dominação  o  Prior  do  Cialo  designou  Diogo  Botelho  e 
Cypriano  de  Vasconcellos  para  conselheiros  doestado  K 

Filippa  lí  alterou  prohiadamente  as  fórmas  do  governo, 
intentando  molda-las,  quanto  possível»  em  harmonia  com 
o  pensamento  apparenle  da  reconciliação,  e  procurando 
respeitar  o  orgulho  nacional  e  os  foros  mais  apreciados 
dosportuguezes.  Aorganisação  do  conselho  de  Portugal, 
cuja  séde  devia  ser  em  Madrid,  côrte  do  monarcha,  nas- 
eeu  d'esta  idéa,  córada  com  o  pretexto  de  manter  a*  in- 
dependência do  paiz  e  de  a  reconhecer  nas  mais  ailas 
espheras  da  administração.  Â  realidade  não  correspon- 
deu ás  promessas.  D.  Manuel  em  1499,  por  occasião  de 
sua  presumida  successUo  nos  reinos  de  Castella,  bavia 
traçado  o  plano  de  um  tribunal  similhante  destinado  a 
acompanha-lo  em  Hespanha.  O  que  o  rei  catholico  esta- 
beleceu era  composto  de  um  ecclesiastico,  de  um  védor 
da  fazenda,  de  um  chanceller  mór,  de  dois  desembarga- 
dores do  paço  e  de  um  secretario,  todos  portugueses,  os 
quaes  deviam  seguir  o  monarcha  para  despacharem  com 
elle  os  negócios  da  coioa  de  Portugal.  O  vice-rei,  ou  os  go- 
vernadores do  reino  haviam  de  ser  também  portuguezes, 
salvo  se  o  soberano  escolhesse  par^  esse  elevado  cargo 
príncipe,  filho  seu,  irmSo,  sobrinho,  ou  tio  Os  primeiros 
ministros  nomeados  para  o  novo  tribunal  /apenas  D.  Fi- 
lippe  chegou  a  Madrid  lòram  D.  Jorge  de  Athaide,  bispo  de 

i  BarlKwa,  Memeriat  dê  El^BH  D,  SdfOiHSo,  tom.  m  —Huioria 
dos  Varíhi  Nkutrei  do  appàUidíí  de  Tao€ra,^Pnmt  do  Shhría  Cr«- 
Mologica,  tonL  n,  pag.  S37. — Trigoso,  Memoria  ttbre  ai  SeerdUaioê 
de  Eeiado,  pag.  47  e  85. 

<  Trjgoso,  Memoria  tábre  os  Seerdariot  de  Etlado,  pag.  63.— 
D.  Francisco  Maniiel  de  Mello  Axda  PoUtiea,  S  17,  pag.  11,  edição 
de  Lisboa,  aono  de  1790. 


»  « 

osii  v|zea«  p.  Çbristovlo  de  Mourq»  depoia  marques  de 
lello  Rodrigo,  e  os  ouvidores  Pedro  Barbosa  e  Franciseo 

Nogueira.  Para  secretario  escolheu  Nuno  Alvares  Pereira 
com  dois  escrivães  de  fazenda  e  dois  escrivães  da  ca- 
mará. O  regimento  do  conselho  isaíu  em  %1  de  abril  de 
1586  e  o  da  secreMuiapubUcoa-se  na  mema  data  K  Juataa 
eOBsidera(^6a  fl?;arai9  díapeBwir  a  Qomeaglo  do  dia^ 
ler  mór  e  riscar  este  offido  do  quadro.  O  eenselho  de 
estado  continuo  a  em  Lisboa,  entrí^ndo  n'elle  o  bispo  de 
Viz^u  e  D.  Ghnstovão  de  Moura,  alem  dos  governadores 
do  reíoo  escolhidos  em  iô93,  que  eram  D.  Miguei  de  Cas- 
tro, erpebispo  de  Lisboa,  o  coode  de  Portalegre,  D.  Joio 
da  SUv4,  o  de  Saata  Cruz,  D.  Franoísco  Masearenhas,  o 
de  Sabugal,  D.  Duarte  de  Castello  Branco,  tí  o  escrivão 
da  puridade.  Miguel  de  Moura*. 

£m  maio  de  1602  deu  o  duque  de  Lerma  nova  orga- 
mâa(j9o  ^  seeretam  do  conselho  de  Portugal»  dividiedo 
os  negócios  por  quatro  repartições,  eada  ama  com  sem- 
tario  especial,  competindo  á  primeira  os  de  estado  e  jus- 
tiça, á  segunda  os  ecclesiasticos  e  das  ordens  militares,  á 
quarta  as  petições  e  mercês,  e  á  terceira  o  património  e 
faseada  real.  Os  secretários  despachavam  em  conseUio^ 
epviavam  as  consultas  a  el-rei,  e  commonicavam  depois 
á  mesa  as  suas  resoluções.  Os  conselheiros  jurísconsvdtos 
não  podiam  votar  em  matérias  de  estado.  Au^niuTUado  ex- 
cessivamente desde  e^ia  reíorma  o  numei  o  dos  conselhei- 
ros, e  contando-se  a  mais  do  quadi  o  legal  quatro  minis- 

1  Trígoflo,  Mmnia  fofttv  <»  Sientamt  ã$  ÈOnâo»  pag. 
B.  FiapciscQ  Ifamiel  de  Meilo,  ^sàa  PdUiía,  |  i7,  p$.  li,  «ii(i<íi 
de  lÁúm,  anuo  de  Í7t0. 0  oonaelho  teve  novo  regimenfo  datado  d» 
16  de  oiitubiQ  de  iW,  mfinnado  pelo  alveri  de  88  de  jidba  de 
l^ii— Vide  P.  Fnpcm  Ifanmi,  EjNH^piira  Mtim* 

<  THgoeo,  Jtfmom  tobre  ot  Swreíaríot  d»W«(iki  pag*  gSí 


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DOB  &(Gam  lyn  e 


tros  e  dois  secreUriQS  supra&umerarioti»»  íoi  craacU  âiu  o 
1607  qma  junta  para  propor  a  soa  reorgaoisaf^o»  ciqn 
consulta,  datada  de  32  de  setembro,  mereceu  a  approva« 

ção  de  el-rei.  Em  virtude  d'ella  o  numero  dos  conselhei- 
ros tornou  a  ser  limilado  ao  antigo  quadro,  nomeou-se 
presidente  ao  tribunal,  que  o  não  tinha,  e  decidiu-se  que 
08  vogaes  magistrados  deliberassem  e  votassem  sobre  to*» 
das  as  questões.  Os  quatro  legares  de  secretários  ficaram 
reduzidos  a  dois,  as  repartições  da  secretaria  também  a 
(luas,  tí  paiii  íacilitar  a  execução  da  i  tJÍorma  ajjontou  a 
junta  em  31  de  outubro,  que  um  dos  conselheu  os  supra- 
uiiiiierarios,  Alfonso  Furtado  de  Meodonça,  passasse  a 
presidente  da  mesa  da  consciência»  e  que  o  outro,  Hen* 
rique  de  Sousa»  fosse  governador  da  casa  do  Porto 

Em  IGIO  uulia  juala,  composta  do  commendador  mór 
de  Leão  e  do  confessor  de  ei-i  ei,  Fr.  Luiz  de  Alliaga,  ou- 
vida sobre  proposta  do  marquex  de  Castello  Rodrigo, 
eutlo  vice-rei  de  Portugal,  suggeriu  novos  alvitres  para 
desaccumular  do  conselho  o  pessoal  a  mais,  que  ooerava 
a  fazenda,  e  complicava  o  serviço.  Uma  das  disposições 
lembradas  foi  que  coubesse  sempre  a  presidência  a  um 
prelado,  e  que  se  fixasse  por  uma  vez  o  quadro  do  tri« 
bunaí. 

No  reinado  de  Filippe  IV  a  prepotência  do  conde  duque 

não  respeitou  estas  bases,  introduzindo  a  confusão  e  a 
anarchia  no  expediente,  especialmente  quanto  aoò  negó- 
cios ultramarinos.  A  presidência  do  conde  de  Ficalho, 
duque  de  Villa  Hermosa,  a  nomeação  em  i634  de  Diogo 
Soares  para  secretario,  o  seu  valimento  wai  OUvms»  e 
as  contestações,  que  rebentaram  entre  elle  e  o  conde  de 
Linhares  aniquilaram  quasi  mteirameute  a  importância  do 

1  Xrígoso,  Mmoria  sobrê  ot  Secretários  d'EiMità      ^  ^  ^ 


I 


400  HISTORIA  DE  PORTUGAL 

O  Bá  conselho.  Em  1^7  tun  decreto  encarregou  de  novo  Diogo 

Soares  da  secretaria  dc  estado  do  tr  ibunal,  e  Gnliriel  de 
Âlmeida  da  da  fazenda,  sendo  transferido  para  Lisboa  na 
qualidade  de  secretano  das  mercês  Francisco  de  Lucena» 
victíma  doeste  despacho  calculado  para  proclamar  a  in* 
fhencia  de  Soares O  conselho  de  estado  nunca  deixára 
de  funccionar  em  Lisboa,  e  em  1633,  fallecendo  o  arce- 
bispo de  Lisboa,  ordenou  ei-rei  por  carta  regia  de  10  de 
junho,  que  o  conselho  assumisse  o  governo  do  reino  ató 
22  de  julho  seguinte,  em  que  tomou  posse  D.  Diogo  de 
Castro,  tonde  de  Basto*. 

Os  defeitos  e  a  duplicação  de  serviços,  que  a  existência 
e  a  analogia  das  attnbuições  do  conselho  de  Portugal  e  do 
conselho  de  estado  comprefaendiam,  aggravadas  pela  dis* 
tanda  a  que  o  primeiro  funccíonava  da  séde  dos  negócios, 
desde  lo^o  se  temaram  visíveis.  Collocado  em.Madrid,  e 
sujeito  ás  su^i^^e  -toes  mais,  ou  menos  directas  dos  ministros 
e  dos  clientes  dos  ministros,  a  independência  e  a  imparcia- 
lidade dasopiniões  do  conselho  de  Portugalhavlamdevacil* 
lar  com  frequência,  e  suas  consultas  resentirem-se  dafalta 
de  informação  pi oxima  e  immediata.  Não  se  ijovema  com 
acerto  e  opportunidade,  quando  se  é  obrigado  a  ver  pelos 
olhos  de  outrem,  e  se  está  longe  do  momento,  em  que  os 
foctos  pedem  maior  zélo  e  yigílancia.  Ouvido  sobre  o  pro- 
vimento definitivo  dos  oílicios,  sobre  as  concessões  de 
hábitos  e  commendns  das  ordens  militaies,  e  sobre  pré- 
mios e  recompensas,  o  tribunal  a  cada  instante  podia  ser 
iliudido,  e  de  feito  o  era,  umas  vezes  por  omissões  vo- 
luntárias nos  processos,  outras  por  artiflcios  calculados 
para  iiiaquear  a  sua  boa  fé.  Exposto  ás  ciladas  dos  inte- 

t  Trigoso,  Memoria  toltre  m  Searekarios  deEtiado,  pag.  66  a  73. 
2  Ibidem,  pog.  79. 


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DOS  SÉCULOS  Vm  E  XYOI  401 

resses  pessoaes,  ávidos  e  nada  escrapulosos,  sísmpre  o 
saía  vencedor,  e,  tendo  de  altender  ao  mesmo  tempo  ás 

providencias  mais  altas  de  organisação  da  fazenda,  de 
fiscalisação  administrativa  e  judicial,  e  de  defeza  e  con- 
servação da  monarclúa  e  de  suas  possessões»  repartia  a 
attenção  e  os  cuidados  por  tantas  províncias  diversas  do 
governo,  que  não  admira  errar  muito  e  muitas  vesees,  e 
deixar  fugir  as  occasidesde  occorrer  ás  necessidades  mais 
urgentes. 

O  conselíio  dc  estado,  ausente  o  rei  em  Madrid,  e  avo- 
cadas á  corte  todas  as  matérias  de  governo  para  final  de- 
cisão» pôde  dízer-se  que  apenas  era  a  sombra  do  que  fôra« 
Impotente  para  o  bem,  e  cúmplice  em  muitos  casos  dos 

males,  que  desejaria  evitar,  via  os  seus  votos  postos  de 
parte,  as  suas  iiidicaçues  esquecidas,  e  a  torrente  das  des- 
graças publicas  engrossada  sem  remédio.  Os  conseibeiros 
reduzidos  quasi  ás  honras  e  regalias  do  cargo  serviam  sã- 
mente nos  lances  mais  apurados  para  esclarecerem  os 
vice-reis,  ou  os  governadores  do  reino,  e  para  fazerem 
soar  em  Madrid  poi*  vozes  conceituadas  as  suppiicas,  sem- 
pre desattendidas,  que  a  gravidàdo  das  crises  dictava. 
A  demora  nas  decisões,  as  despezas  exigidas  por  qual- 
quer pretensão,  a  soberba  e  a  arrogância  dos  empregados, 
e  o  desleixo,  venalidade  e  confusão,  com  que  os  negócios 
cori'iam  no  conselho  de  Portugal,  haviam  tornado  o  tri- 
bunal assas  odioso,  e  a  sua  auctoridade  mais  parecia  aos 
súbditos  uma  invenção  para  os  vexar  e  punir,  do  que  uma 
instancia  superior  creada  para  os  proteger  e  salvar.  Diogo 
Soares  não  concorrera  pouco  para  isso,  e  o  conde  duque, 
animando-lhe  os  excessos  c  ousadias,  provara  claramente, 
que  o  secretario,  e  não  os  conselheiros,  é  quem  possuía  o 
segredo  de  seus  desígnios  secretos. 
No  despacho  e  informação  dos  assumptos,  e  na  divisão 


402  HISTORU  DE  PORTUGAL 


6  attribuições  das  secretarias  de  Madrid  e  de  Lisboa  os 

inconvenientes  saltavam  do  mesmo  modo  a  vista,  repro- 
duzindo, como  não  podia  deixar  de  ser,  em  vez  da  mii- 
dade  de  pensamento  e  uniformidade  dos  methodos  as 
diYergeocias,  as  antinomias  e  as  resistências,  qiie  toma- 
vam t3o  absurda  e  nociva  na  pratica  a  dualidade  do  go- 
verno instituída  por  Filippe  II,  mantida  e  exagerada  por 
Olivares,  talvez  com  a  idéa  reservada  de  apressar  peio 
desengano  a  epocha  da  plena  encorporação.  No  século  xn 
e  na  prim^a  metade  do  ivn,  a  organisaçSo  da  adminis^ 
trarào  superior  não  coniiecia  ainda  as  proporções  dema- 
siado symetricas,  e  o  encadeamento  de  liierarcluns,  que 
O  abuso  da  centralísaçSo  modernamente  multiplicou.  O  ex- 
pediente era  muito  menos  papelista,  os  quadros  dos  em- 
pregos muito  mais  modestos,  e  as  responsabilidades  muito 
menos  repartidas.  O  numero  dos  funccioiiarios  menores, 
sem  comparação,  muito  inferior  ao  que  foi  depois,  não 
Absorvia  as  avultadas  sommas  que  hoje  custa.  De  ordi<» 
natío  os  chefes  é  que  remuneravam  os  trabalhos  de  copla 
e  a  coadjuvação  dos  amanuenses,  chamando-os  e  despe- 
dindo-os  livremente.  A  formação  das  secretarias  de  estado 
e  a  distrit)uição  por  ellas  dos  negócios,  foi  r  br  i  do  tempo 
e  de  longos  e  hiterrompidos  ensaios,  fim  1640  já  tinha 
adiantado  passos  importantes  para  se  approximar  do  que 
'  havia  de  ficar  sendo  no  xvm  século,  emt)ora  estivesse 
ainda  bastante  distante  da  formação  dos  miinsterios,  que 
nas  monarchias  constitucionaes  representam  por  assim 
dizer  os  orgSos  vitaes  do  poder  executivo. 

Na  cúria  dos  reis  da  primeira  dynastía  duas  figuras, 
muitas  vezes  pouco  appai  entes,  o  chanceller  e  o  notário, 
guiavam  o  braço  dos  monarchas  nas  contestações  com  a 
Santa  Sé»  com  o  clero  e  com  a  nobreza,  tomando^se  tão 
decisiva^  a  sua  influencia  em  alguns  conflictos  que  a 


.  _  j  I.  d  by  Google 


DOS  SÉCULOS  XYU  K  XVUl 


diaiiLclIaria  romana  ião  hesitava  em  accusar  os  ministros  otn 
pelos  erros  dos  soberanos.  Das  attrihuições  dos  notários 
reaes,  especilicadas  na  lei  7.*  da  Partida  ii  de  Aífonso  o 
Sabio,  e  de  parte  das  do  chaocelier,  como  confidentes  a 
etecutores  da  Vontade  real,  nasceu  com  o  tempo  o  officio 
de  escrívio  da  puridade,  ainda  no  reinado  de  Affonso  I¥ 
inteiramente  subordinado  ao  chanceller  e  circumscripto 
no  sen  exercício  a  lineamentos  yn^os,  (jue  variavam  se- 
gundo as  circiunstaDcias  e  a  inclinação  dos  imperantes  ^ 
Entretanto  no  tempo  de  D.  Pedro  1  já  o  cargo  tinha  as* 
sumido  certa  importância,  como  attesta  Fem9o.  Lopes^ 
descre\endo  o  modo  por  (pie  el-rei  costumava  regular  o 
despacho.  Todas  as  littiçôes  eram  entre^^mes  a  Gonçalo 
Vasques  de  Goes,  e  distribuídas  por  eiie  passavam  ás 
mãos  de  um  dos  escrivães  menores,  o  qual  as  enviava 
aos  desembargadores  a  quem  pertenciam.  As  nlio  eon* 
tenciosas  expediam-se  logo,  e  as  que  envolviam  conces*- 
sKo  de  praça,  ou  mercê  sul)iam  para  um  dos  vedores  as 
lançar  em  ementa,  e  o  magistrado  competente  propor  a 
resolução  na  presença  do  chanceller.  O  escrivão  dapuri*" 
dade  abria  a  correspondência  diplomática,  e  a  qualquer 
hora  podia  entrar  na  camará  do  rei.  O  costume  de  firmar 
com  o  sêllo  menor,  ou  de  camafeu  as  cartas,  e  de  as  remet* 
ter  assi^niadas  peio  soberano  por  via  do  escrivão  em  todos 
os  negócios  não  judiciaes,  diminuiu  muito  a  influencia  do 
chanceller,  augmentando  a  da  repartição  da  puridade '4 
D.  Fernando  pouco  innovou,  ou  nada,  n'esta  parte,  mas 

1  As  Partidas  uoucluidas  em  1258  exprreram  grande  inniipii- 
ria  na  legislação  e  costumes  de  Portuj^al.  Vide  Trigoso,  Memona 
sobre,  os  Escrivães  da  Puridade  dos  Rris  de  Portugal,  no  tom.  xii, 
pari.  I  das  Memo)  um  da  Academia  ikal  das  Sciencias  de  Lisboa j 

2  llíidem,  pag.  IGl  a  163. 

»* 


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404  ,  HISTORIA  DL  PORTUGAL 

Bli  D.  João  I,  desejoso  de  organisar  melhor  o  serviço  dos 

«oíliciaes  do  governo»,  que  eram  u  escrivão  da  purida- 
de, os  vedores  da  íazenda  e  o  vedor  da  sua  casa,  consul- 
tou as  memorias  de  Álvaro  Gonçalves  para  conciliar  a 
reforma,  qae  meditava,  com  as  tradições  de  seu  pae  e  de 
seu  ayô.  O  oíGcio  de  escrivão  da  puridade  era  exercido 
SBn  regimento,  e  por  isso  os  seus  encargos  se  trocavam 
e  conÍQíididin  murtas  vezes.  Vé-se  da  resposta  de  Alvaro 
Gonçalves,  que  o  escrivão  cobrava  os  emolumentos  das 
escrípturas,  e  pagava  aos  empregados  os  salários  que 
suppunha  rasoaveis,  que  acompanhava  o  rei  ao  conselho, 
mas  sem  voto,  e  que  expedia  as  cartas  do  serviço  de  Deus 
e  de  el-rei,  isto  é,  todos  os  documentos  relativos  á  ad- 
ministração ecclesiastica  e  civil.  Quando  td-rei  assistia  às 
audiências  da  Keiação  estava  ao  seu  lado,  assim  como 
sempre  estava  presente  ao  despacho  dos  negócios  da  fa- 
zenda, e  ao  das  mercês  de  moradias  e  ajudas  de  custo  para 
casamentos  de  pessoas  nobres.  Recebia  da  mão  de  el-rei 
os  papeis  e  petições  para  os  distribuir  aos  desembarga- 
dores. Nos  dias  do  mestre  de  Aviz,  Gonçalo  Lourenço  de 
Gomide,  e  depois  seu  filho  João  Gonçalves  de  Gomide, 
foram  muito  estimados  no  desempenho  d'estas  funcçõ^s, 
confiando  o  monarcha  do  primeiro  os  maiores  segredos, 
commettendu-lhe  a  direcção  das  cousas,  eiu  que  punlia 
mais  cuidado,  como  lez  com  as  obras  do  mosteiro  da  Ba- 
talha e  dos  paços  de  Cintra,  e  ordenando  até  que  elle  o 
substituísse  no  exaine  das  contas  dos  vedores.  Doesta  ac- 
cumulação  de  occupações  resultou  elevarem-se  cada  vez 
mais  as  preeminências  do  logar,  á  medida  que  o  favor  do 
príncipe  e  a  aptidão  dos  indivíduos,  honrados  com  a  sua 
confiança,  lhe  alargavam  a  esphera  de  acção 

1  TrígOíK),  Metmria  sobi^e  os  Eicrwõis  da  Puridade,  pag.  171  a 


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DOS  SÉCULOS  ivn  £  xvm 


405 


Apesar  d'isso  até  ao  reinado  de  D.  Duarte  nâo  se  en-  or« 
contra  notícia  de  regimento,  que  lhes  definisse  as  attri- 
buições»  regeiido  o  costume  em  m  de  lei.  Na  compila- 
ção das  Ordenações  concluída  na  regência  do  infante 
1).  Pedro  lêem-se  os  regimentos  dos  oíTiciaes  do  reino  e  . 
da  casa  real,  mas  não  se  encontra  uma  S(')  disposição 
ácerca  d'elies,  continuando  excluídos  dos  privilégios  das 
pessoas  do  conselho»  do  desembargo  do  paço  e  dos  chan- 
cellerès  K  Foi  Âffonso  Y  quem  dictou  as  primeiras  re- 
gras, e  por  assim  dizer  quem  discriminou  as  bases  da 
jui  isdicção  e  competência  dos  escrivães  da  puridade  no 
regimento  passado  a  Nuno  Martins  da  Silveira  logo  no 
principio  do  seu  governo.  £m  virtude  d'elle  pertencia 
aos  escrivSés  da  puridade  a  ^arda  do  sélio  maior  e  a 
attribuição  de  sellarem  as  cartas  e  papeis  do  seu  officío, 
pertencia-lhes  receberem  da  mm  de  el-rei  e  conservarem 
os  documentos  diplomáticos  e  as  cartas  dos  embaixado- 
res e  todas  as  petíções  e  papeis»  dando-lhes  o  destino 
conveniente;  proporem  os  escrivães  da  camará,  não  po- 
dendo os  que  vencessem  moradias  exceder  o  numero  de 
quatro ;  nomearem  dois  escrivães  para  auxiliares  do  tra- 
balho, retribuídos  por  elles;  cobrarem  os  emolumentos 
das  escrípturas  e  repartirem  parte  d'elles  pelos  escrivães, 
segundo  os  merecimentos;  despacharem  com  el-rei  os 
negócios;  superintenderem  o  serviço  dos  escrivães;  re- 
ferendarem as  cartas,  alvarás  e  privilégios  expedidos.  O 
oflicio  da  escrevanínha  da  puridade  era  y\  tão  importante 
n  este  reinado,  que  o  bispo  de  Coimbra  se  prezou  de  o 

173.  Mâiiuscripto  da  livraria  da  casa  de  Castello  Melhor,  citado  na 

unrsnia  Memoria. 

•  lí  idem,  pag.  185.  —  Ordenação  Affonsina,  liv.  ii,  tit.  lxiv. — 
Um  de  D.  João  I  encorporada  aa  Ordenação  Affomim,  liv.  Jii*  tit.  iv. 


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406 


HISTORIA  D£  PORTUGAL 


OM  exercer,  e  que.  no  se^^uiiile  D.  João  da  Silveira,  barão  de 
Alvito,  do  conselho  de  D.  JoSo  11,  o  serviu  eraquanto  vi- 
veu, e  o  deixou  por  morte  a  seu  filho  Fernão  da  Silvei- 
rt.  No  ceremooial  estabelecido  para  o  preito  dos  alcaides 
m6res  quem  lia  em  voz  alta  a  formula  das  menagens  era 
o  escrivão  da  puridade*. 

El-rei  D.  Manuel  regulou  o  despaciio  e  revestiu-o  das 
exterior  idades  pomposas  a  que  era  inclioado  em  todos 
08  actos  da  realeza.  Dava  assignatura  tres  vezes  por  s&> 
mana  em  publico  com  o  escrívSo  da  puridade  e  os  ve- 
dores da  fazenda  ajoelhados  a  um  e  outro  lado  da  cadiu- 
ra,  e  com  os  escrivães  da  camará  e  da  fazenda  lambem 
de  joelhos  em  roda  da  mesa.  As  audiências  sempre  as* 
sistiam  o  escrivão  da  puridade  e  um  dos  vedores  da  fa- 
zenda, ajoelhados  ambos  á  sua  ilharga.  N'est6  reinado  o 
officio  de  escrivão  da  puridade  conquistou  os  íúros  dt» 
primeiro  na  jerarchia  administrativa,  e  a  ordenação  ma- 
nuelina assim  o  reconheceu,  mandando  que  o  chanceiler 
mAr  prestasse  o  juramento  nas  mãos  da  pessoa,  que  o  exer^ 
cesse,  6  tratando  dos  funccíonaríos  a  quem  eram  concedi- 
dos privilégios  e  liberdades  esix^ciaes  enumera  por  suaor- 
d^m  o  reíredor  e  o  governador  da  casa  da  supplicação,  o 
escrivão  da  puridade  e  o  chanceiler  mór.  Uma  das  obri- 
gações do  escrivão  consistia  em  figurar  em  todos  os  actos 
públicos  e  solemnes  da  c6rte  para  os  reduzir  a  escripto  e 
os  legalisar.  No  governo  de  D.  João  III  serviram  este  cargo 
D.  Antonio  de  Noronha,  condo  de  Linhares,  e  D.  Miguei 
da  Silva,  demittido  em  154i  por  sair  do  reino  sem  li- 
cença  regia»  levando,  diz  uma  carta  do  soberano,  datada 

1  Trigoso,  Mmoria  sobre  os  Escrivães  da  Puridade,  pag.  174, 
177,  186  e  18S.  ManuBcripto  da  livnuiA  da  casa  de  Castello  Melhor, 
citado  n'eUa. 


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DOS  mmm  x\u  «  ;^yoi  W 

de  â6  de  janeiro  d'aquelle  anno,  escripturas  de  muita  QM 
substan(úa  e  segredo,  O  logar  não  foi  provido,  e  Pedro 
da  Alcaçova  GarDeiro  exerceu  junto  do  monarcha  aa 
ínncçues  d'eUe,  intítulando^se  secretario  de  el^rei,  do 
seu  conselliu  o  seu  jiablico  notário  geral  nos  reinos  de 
Portugal  6  S6US  dominios.  Na  regência  de  D.  Gatharinii 
de  Áustria  continuou  o  officio  vago,  apesar  das  côrtea  dd 
1568  terem  requerido  que  se  restaurasse,  e  de  LoureuQo 
Pires  de  Távora  na  regência  do  cardeal  infante  haver  re* 
novado  a  bupplica  no  papel,  f|iift  entregou  a  D.  Henrique, 
acerca  do  bom  governo  do  paiz.  Em  1569  attendeu  D.  Se» 
bastião  estea  votos,  nomeando  Martim  Gonçalves  da  Ça^ 
mara  seu  escrivio  da  puridade,  e  confiando-lhe  os  nego* 
t'ios  mais  gi  aves  da  monarchia;  mas  sete  annos  depois, 
em  Itj/Ó,  tendo  perdido  o  valimento,  e  sendo  supplan- 
tado  pelo  partido  dos  lidaigos  moços,  Martim  Gonçalves 
resolveu  retirar*se  do  paço,  e  apartou-se  de  toda  a  acçio 
politica.  O  ultímo  escrivão  da  puridade,  que  houve  no  se^ 
culo  XVI,  íoi  Miguel  de  Moura,  o  qual  chegou  ^  ^çançar 
ainda  o  reinado  de  Fiiippe  Uí  *. 

0  escriviio  da  puridade,  espeoialmeute  desde  ps  rebub 
dos  de  D.  Jo3o  II,  D.  Manuel  e  D.  Joio  m,  exerceu 
grande  predomínio,  e  podia  reputar-se  o  ministro  prin- 
cipal, porque,  dadas  as  diííerenças  do  tempo,  o  seu  cargo 
equivalia  ao  dos  actuaes  ministros  do  reino,  Mas  já  nos 
dias  de  D.  Miguel  da  Silva,  em  1^25,  as  $m&  ettríl)uições 
deviam  reputar-se  mais  apparentes,  do  que  effectívas.  O 
bispo  de  Vizt  Li  notou,  que  os  seus  emulos  as  tinham  re- 
duzido puramente  aos  actos  externos  e  oíSci^es,  (X}r* 

1  Trigoso,  Memoria  sobre  o$  Escrivães  da  Puridade,  paff.  492  a 
'   198. — Barjjosa,  Menunia  de  Elrey  D.  SebaUião,  tom.  lu. — Vida  de 

Miguêl  dê  Movera. 


* 


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408 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


oiw  rendo  os  negócios  de  vulto  e  os  segredos  mais  importan- 
tes do  estado  pelas  mios  de  AntOQÍq  Carneiro,  e  depois, 
pelas  de  sea  filho  Pedro  da  Alcaçova,  que  eram  verda- 
deiramente os  que  possuíam  a  Confiança  do  monarcha  e 
com  cila  a  realidade  do  poder.  O  officio  de  secretario  de 
el-rei,  que  ambos  desempenharam,  já  então  encobria 
sob  a  modéstia  do  titulo  uma  notável  influeocia,  mais 
qúe  tudo  recaindo  em  pessoas,  que  por  sua  capacidade 
e  experiência  sairiam  realça-lo,  tornando-se  indispensá- 
veis. No  governo  de  AíTonsoV  o  expediente  foi  despa- 
cl)ado  pelos  escrivães  da  puridade  muitas  vezes,  e  não 
poucas  também  pelos  secretários,  ou  pelos  escrivães  da 
camará,  ou  da  fazenda  de  el-rei,  sem  dependência  dos 
chancelleres  móres,  salvo  rm  que  respeitava á publicação 
dos  diplomas.  Entretanlu  os  secretários  occupavam  o  se- 
gundo grau  da  escala  entre  os  escrivães  da  puridade  e  os 
da  camará,  reconhecendo  certa  superioridade  nos  pri- 
meiros, e  expedindo  ordens  aos  segundos.  Parece  que 
lia\ia  até  uma  tal,  ou  qual  espécie  de  accesso.  subindo  os 
escrivães  da  camará  a  escrivães  da  fazenda,  e  elevando- 
se  alguns  depois  â  posição  mais  invejada  de  secretários. 
Pedro  da  Alcaçova,  sogro  de  Antonio  Carneiro,  foi  escri- 
vão da  fazenda  de  Affonso  V  e  de  D.  João  II,  antes  de  ser 
secretario  de  D.  Manuel.  Antonio  Carneiro,  seu  gemo, 
capitão  donatário  da  ilha  do  Príncipe  e  do  conselho  de 
el-rei,  alcançou  pela  sua  aptidão,  alem  das  preeminências 
do  officjo,  a  importância  de  verdadeiro  ministro  de  esta- 
do, despojando,  como  vimos,  o  escrivão  da  puridade  da 
parte  politica  e  administrativa  mais  essencial.  Pedro  da 
Alcaçova,  seu  iilho  segundo,  era  já  secretario  em  vida  do 
pae  e  repartia  com  elle  o  valimento  do  soberano  K 

1  Trigoso,  Mmoíia  sobi^e  Oijsl&crivãe»  da  Puridade,  pag.  48  a  03. 


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DOS  SÉCULOS  xva  E  XVIU  409 

Foi  talvez  no  reinado  de  D.  Sebastião,  pelo  que  podé-  om 
mos  depreheoder»  que  os  secretários  principiaram  a  en- 
carregar-se  de  repartições  distinctas,  n3o  sendo  facíl  in- 
dicar, porém,  quaes  fossem  os  negócios  commettldos 
a  cada  uiuii.  O  oíricio  das  petições,  por  exemplo,  que 
pertencia  a  uni  secretario,  sabemos  ter  sidu  exercido  ás 
vezes  por  um  escrivão  da  fazenda,  como  succedeu  na  re- 
gência de  D.  Catharina  com  Manuel  Quaresma,  nomeado 
para  substituir  André  Soares.  Mais  tarde  Manuel  Quares- 
ma obteve  a  propriedade  do  cargo  com  o  titulo  de  se- 
cretario das  mercês,  ao  passo  que  Miguel  de  Moura,  in- 
vestido na  direcção  politica  superior^  era  considerado 
como  secretario  do  reino,  igual  em  assento  e  voto  aos 
governadores  nomeados  por  D.  Sebastião,  e  honrado 
com  o  deposito  da  boceta  do  sêllo  real.  Preeminências 
tão  altas  fazem  suppor,  que  as  attribuiçíjes  d'esta  secreta- 
ria correspondessem,  pouco  mais,  ou  menos,  ás  dos  mo- 
dernos ministros  do,  reino  e  da  justiça.  Por  esta  epocha 
existia  já  também  um  secretario  privativo  dos  negócios 
da  fazenda.  Em  1578  D.  Nuno  Alvares  Pereira  desempe- 
nhava as  funcções  d'este  cargo  em  Badajoz  junto  de  Fi- 
lippe  II.  Assim  o  expediente,  ao  que  parece,  dividia-se 
por  tres  secretarias,  a  do  reino,  a  da  fazenda  e  a  das 
mercês,  e  cada  um  dos  secretários  despachava  com  o  so- 

beiaiio. 

A  nova  organisaçâo  traçada  em  1581  pelo  rei  catho- 
lico  depois  da  união,  instituindo  em  Castella  o  conse- . 
lho  de  Portugal  com  secretaria  e  repartições  especiaes, 
reduziu  as  do  reino  sdmente  a  duas,  denominadas  do  es- 
tado e  (las  mercês.  Quando  rebentou  a  revolução  de 
1640,  Miguel  de  Vasconcellos  presidia  a  primeira  com 
amplos  poderes,  e  Francisco  de  Lucena,  transferido  de 
Madrid,  regia  a  segunda,  descontente  pela  inferioridade 


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^iO    HISTOIUA  DE  rO^TUGAI.  D03  SEGUL03  XVH  B  XVUI 

iw  do  serviço  a  que  o  condemnira  a  má  vontade  de  Diogo 

Soares  e  do  conde  duque  *. 

Esboçámos  os  Iraçus  [u  iiaipaes  administração  po- 
litica superior,  e  apontámos  as  molas  importantes  que  a 
moviam*  Um  pensamento  único  dominou»  se  aão  nos  en* 
ganâmos,  todas  as  modiflcações  operadas  desde  os  fins 
do  século  XV,  Foi  o  da  concentração  dos  poderes  nas 
riiãos  (lo  rni,  <'  o  da  successiva  annullação  clo>  elementos, 
que  na  meia  idade  representavam  o  principio  da  resisten^ 
cia  legal,  moderador  necessário  das  usurpações  recipro* 
cas  das  diversas  classes  e  freio  salutar  dos  excessos  da 
auctoridade  real.  A  unidade  monarchica  triumphou,  e 
seus  passos  encaminliaraiii-se  depois  para  u  estabeleci- 
mento do  governo  absoluto,  valendo-se  de  todas  as  ar- 
mas para  isso  e  do  favor  das  circumstancias.  Das  garan- 
tias aGançadas  na  antiga  constituição,  e  solemnemente 
juradas  pelos  soberanos  quasi  nenhuma  nos  fins  da  se- 
gunda rnetade  do  século  xvi  passava  já  de  ficção,  ou  de 
pura  formalidade.  Tinham  desapparecido  as  cousas  e  fi- 
cado só  as  palavras.  Os  resultados  foram  tristes.  D.  Se- 
bastião expiou  como  rei  os  erros  do  poder  pessoal,  O 
paiz,  cúmplice  voluntário  na  própria  abdicação,  e  entre- 
gm  freios  que  deviam  dtÍLíude-io,  pagou  com  a  indepen- 
iluncia  o  silencio  e  a  docilidade. 


1  Vida  dê  Migud  de  Mnvra. — Trigoio,  Memoria  fíàrê  ot  &rri' 


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« 


CAPITULO  IV 

INSTITUIÇÕES  ADMINISrilA TÍVAS,  JlíDICIAiáS 

Divisio  administrativa»  jadielal  c  occhsinstira  «lo  reino  em  16il.~VaiÍL)s  flLiiuntna 
de  qae  nasr^ji  ain  as  in<itiluiç503.— As  anli^as  rori  pif  fSes  e  a  reforma  de  D.  João  III. — 
As  municipalidaJí"!  f  a>-  rn  ífo-i  dos  ronrplld»^.  Os  provedores  o  os  contadores  das 
comarcoi.  -  Tnbuiiaeá  ^iutteriureâ.  u  desuni barj^u  do  paço,  a  cn&n  da  supplica(ãO, 
a  rdaçio  do  Porto,  a  chaoMllaria  mór  e  a  mesa  da  oonseicooia  e  ordens.— 'I^ibii- 
naas  menores.  Jiiizos  da  alfande^M,  da  rasa  da  Iihli  i,  iI>>civol  e  do  crinio  de  Lisboa. 
Kíleitosda  subdivisão  das  jurisdii  .  nos.  Tnsuflirirni  i  i  i\ii>  ordfri:u?05:.  rorniprSo  dos 
julgadoreá  e  dos  offimcn  do  justiça. — Auirmeulo  dos  voncimenloseinulilidadLMVclIe, 
ConsuKa  do  consellio  de  Portugal  em  i6ilá.  —  Eslado  da  jurisprudeacuedoforo.— • 
Systama  da  administraçio  da  ISsienda.  Causas  da  stia  ooinplicafio.— CoDsdbo  da 
fiiunda.  Casa  dos  contos.  Antífas  vedorias.  Contadores  e  rOMbcdores  das  oomar> 
cas,  Tenlativ.is  di'  icrnrnia  ivt<;  rppnrficiV'  ítipmoreá.  —  impostos;  iiidircdo^  p  sua 
administrarão.  Tribunal  daalfandega.  Setecasa*.  ri^a»]  i  Imli  i.-  .Noiici  ida^ron- 
tribuiçõCH  no  .scculozvii.  Directas.  Jugadasccoliicita:».  ludnc-daji.  Situ».  Ttibutos 
monicipaes  de  veoda,  eonsqmo  e  transito.  Novos  impostos.  Consulado.  Beal  sobre 
a  earoe  c  o  vinho.  Meia  annata.  iJenclicio  do  lMga(0  da  MOitona.  •^BjStemadaar* 
rematarão  das  rendas  publicas.— Receitas  e  despesas; 

O  reino  de  Portugal  em  1644  dividia^se  em  seis  pro- 
víncias desiguacs  na  extensão,  na  i niueza  e  na  quantidade 
-dos  fogos,  e  contava  dezoito  cidades  iniixutaiilos,  qua- 
trocentas e  oito  viUas  e  duzentos  conceUio;iS  A  círcum- 

,    1  Duarte  N^inosdoLeão,l}etmp^o/Íofi6ttioddPof1t(^jCap.  XI.-- 
Fr.  Nicolau  de  Oliveira,  Grandezas  de  lAiboa^  tr&t.  n,  cap.  n.  A& 
maiores  das  seis  provinciaa  eram  as  do  Alemtejo,  E^^tianadura  d 
Beira.  Uma  das  mais  pequenas,  a  de  Entre  Douro  e  Minho,  medi'^ 
apenas  90  kUometros  de  comprido  e  60  de  laigo. 


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412 


HISTOBIA  DE  PORiaGilL 


iBttiuiiçoes  scrípção  ecciesiastica  abraçava  ires  arcebispados,  Lisboa, 
Braga  e  Évora,  e  onze  bispados,  Porto,  Coimbra,  Lamego, 
Vizeu,  Guarda',  Pinhel,  Miranda,  Leiria,  Portalegre,  Elvas 

e  Silves*.  As  seis  províncias  subdividiam-se  em  vinte  e 
sett»  comarcas,  ou  correições,  e  um  documento  contem- 
porâneo calcula  em  grosso,  e  de  certo  exageradamente,  a 
população  total  do  paiz  em  dois  milhões  de  habitantes^ 
A  província  do  Minho  já  ent3o  era  reputada  uma  das  mais 
opul(  iit;is  ciji  lavuuras  e  cabedaes.  Em  >uas  aldeias  pro- 
jiagavaiii-se  ann  exlrerria  rajiidez  as  lamilias  ruràes.  O 
arcebispado  de  Braga  em  Í6â0  sustentava  cinco  coUegia- 
das,  treze  mosteiros  largamente  dotados,  e  mil  quatro- 
centas e  sessenta  parochias.  A  villa  da  Covilhã  compre- 
licndla  no  seu  termo  trezentas  e  sessenta  aldeias.  A  cidade 
do  Porto  avultava  pelo  seu  trato  mercantil.  A  vilia  de  Se- 
túbal, apesar  de  decaída,  considerava-se  ainda  assás  rica  e 
negociosa.  Coimbra  resplandecia  como  séde  principal  dos 
estudos  secundários  e  superiores.  Évora,  depois  d*ella, 
recommendava-se  pelas  aulas  da  universidade  e  do  colle- 
gio  dos  jesuítas,  e  pelas  casas  antigas  e  distlnctas  herda- 
das com  grandes  bens  de  raiz. 

A  administração  geral  e  a  local  ainda  se  resmitiam  da 
variedade  e  confusão  dos  elementos,  que  as  haviam  con- 
stituído, e  a  legislação  retratava  fielmente  a  espécie  de 
cahos,  d'onde,  desde  a  primeira  metade  do  século  xv, 

1  Desrnpruo  tio  Remo  iJe  Portuíjal,  ii.  O  auctor  apouU  oiize  bis- 
pados, mas  na  enumeração  sóiut  iili^  cita  dez. 

2  Duarte  Nunes  conta  vinte  '  sft»^  romarrns,  Osrnpitulos  ix  exdas 
côrtes  dp  4641  aitreseiitados  pelo  rst  nlo  da  iiuhri'/.;!  nnlani  apenas  20'. 
Acerca  imIcuIo  lif  díim  inillífus  il-'  habiLantrs  K-m  1641  consulte- 
se  o  p  ipi  l  junto  ao  tlecreto  de  10  de  julho  de  íf)'*?.  publicado  na 
curiosa  Synopíip  dos  Deci^etas  do  exíincto  Comelho  dt  Ouena  peio 
sr^  Cláudio  Chaby. 


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DOS  SÉCULOS  XVil  E  Xm  413 

começaram  a  sui^  com  a  promulgação  do  código  Affoil-  loiUtuíciíM 

sino  os  lineamentos  de  uma  organisação  menos  incobe- 
l  eiile  e  mais  regular.  GoUi^nndo  das  leis  geraes  publicadas 
desde  o  reiaado  de  AíTonso  II  as  que  o  tempo  e  as  cir- 
cmnstancias  não  tinham  abolido»  abrangendo  as  resolu- 
ções das  côrtes  e  as  concordatas  celebradas  com  o  clero, 
attendendo  ainda  ás  disposiçíjes  dos  antit.M)s  foraes  e  aos  • 
velhos  usos  em  vigor,  e  consultando  como  íontes  princi- 
paes  o  direito  romano  e  o  direito  canónico,  as  Ordenações 
-  de  AffonsoV  riscaram  um  monumento,  que  nas  propor- 
ções, no  estyto  e  nas  tendências  representava  com  ver- 
dade o  estado  politico,  social  e  económico,  isto  é,  a  tran- 
sição da  meia  idade  para  a  renascença,  cujos  clarões  bem 
frouxos  começavam,  comtudo,  já  a  allumiar  a  Europa; 

Sessenta  e  oito  annos  depois  mandava  D.  Manuel  rever 
o  primeiro  código,  e  os  seus  jurisconsultos,  assim  como  os 
de  Filippe  II  mais  tarde,  respeitando  a  divisão,  o  systema, 
o  espirito  e  os  princípios  geraes,  limitaram-se  a  corrigir 
os  maiores  defeitos  de  redacçlo,  e  a  incorporár  as  pro- 
videncias decretadas  no  intervallo  decorrido  entre  uma 
e  outra  compilação.  Mas  as  idéas  tinham  progredido,  e  as 
alterações,  sanccionadas  pelos  legisladores,  ou  propostas 
por  elles,  cada  dia  accentuavam  com  mais  ciares»  o  pensa-  ^ 
mento  da  unidade  monarcfaica.  Ás  instituições,  conservan- 
do na  máxima  parte  ds  mesmos  nomes,  haviam  mudado 
quasi  inteiramente  de  significação,  e  a  distancia  moral,  que 
separava  os  séculos  xu  e  xui  dos  séculos  xvi  e  xvu,  cada 
vez  se  ia  tomando  mais  larga  e  expressiva.  Nem  os  ho- 
mens, nem  as  cousas  se  pareciam  com  a  antiga  sociedade, 
cujas  feições  a  letra  morta  das  rubricas  apenas  recordava. 
Outra  alma,  outros  costuuií  s,  e  outras  aspirações  domi- 
navam a  nova  epocba.  Do  passado  sobreviviam  somente 
palavras  com  applícação  diversa,  ou  tradições  quasi  obli- 


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414  HISTORIA  DE  PORTUGAL 

iiistiini$&e>  teradas,  de  qoe  os  mais  eraditos  difiBcultosameDte  já  íd- 

leipretavam  o  sentido 

A  oxaclidão  doestas  asseiçues  pôde  verificar-se,  com- 
paraudo  os  factos  e  confirontando  o  modo  de  ser  dos  pri- 
meiros séculos  da  monarchía  com  os  da  idade,  qae  se 
lhe  seguiu.  Rei,  còrtes,  ttibunaes,  magistrados  locaes, 
íuucçues  publicas,  relações  <r,'raes  e  par(ic!ilai"cs,  senli- 
menlos,  nsos  e  civilisaçãu,  ludo  sc  mudiíicáia  mais,  ou 
menos  pi  ofundamente  debaixo  das  mãos  do  grande  trans- 
formador chamado  tempo.  Entre  a  vigorosa  constituição 
dos  municípios  dos  séculos  xxn  e  xiv,  tio  ciosos  de  seus 
fóios,  e  Ião  hostis  á  quebra  d'e!les,  e  a  existência  niuni- 
cipal  quasi  sem  iniciativa  e  Ião  apagada,  que  nosrexela 
o  título  Lxvi  do  livro  i  da  ordenação  Filippina,  resaitam 
differenças  tão  características,  que  não  carecem  de  ser 
individuadas.  Â  independência  desapparecéra  e  a  autono- 
mia dos  concelhos,  palavra  que  tinha  valor  antes,  porque 
linha  signiíicação,  acbava-se  reduzida  a  uma  sombra.  Al- 
gumas commissões  temporárias,  que  a  urgência  das  crises 
locaes,  ou  as  exigências  da  necessidade  geral  tinham  tor- 
nado úteis,  arreigando-se  a  pouco  e  pouco,  haviam-se 
converlido  em  logares  permanentes.  Os  juizes  de  fora  em 
todas  as  terras  importantes  substituíam  os  juizes  ordi- 
nários, e  julgavam  as  causas  commettidas  pelos  antigos 
foraes  aos  homens  bons  dos  concelhos,  estendendo  não 
poucas  vezes  a  jurisdicção  muito  alem  do  território  da  sua 
alçada.  Introduzidos  talvez  anles  do  governo  de  AíTonsu  IV, 
e  alguns  até  por  suppiica  de  povos  opprimidos  pelas  jus- 

í  N5o  lizemos  de  propósito  nienráo  especial  da  ultima  refonna 
da  Onloijação  publicada  em  tOOiJ  por  Filippe  III,  poi*qup  eui  tudo 
lhe  são  applicaveis  as  reflexões  suscitadas  pela  Manueliua,  que  rl!a 
seguiu  e  completou  uo  pensamento  de  ampliar  e  fortiíicar  o  princi- 
pio  monarchico  com  sacrificio  das  antigas  liberdades. 


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DOS  SÉCULOS  IVU  £  XVm  415 

tinas  (las  terras,  os  juizes  de  lóra  só  se  generalisaram  no  iMiitniçaes 
reinado  de  D.  Manuel,  o  qual,  por  assim  dizer,  os  creou 
de  novo,  declarando  o  seu  exercício  triennal,  assígnando- 
lhes  ordenados  pagos  pelas  rendas  municipaes,  ou  pela 
fazenda  pabtica,  prohibindo  <|ae  fossem  naturaes  do  ter- 
mo, em  que  servissem,  e  exi-íindu  como  hal)ilitaçâo  de 
capacidade  o  grau  em  alguma  das  faculdades  jurídicas 
Nomeados  e  demittidos  livremente  pelo  rei,  e  tirados  da 
ordem  judicial,  cujos  princípios  representavam,  eram  ou- 
tros tantos  auxiliares  do  poder  pessoal,  sujeitos  ao  arbí- 
trio do  príncipe  pela  sua  posição,  e  dedicados  á  conser- 
vação e  ampliação  das  regalias  e  usurpações  da  coroa 
pelas  idéas  e  pelo  interesse. 

Um  elo  superior  ainda  apertava  mais  a  cadeia  hierar- 
cbica  das  magistraturas  locaes.  AUudimos  aos  corregedo- 
res das  comarcas.  Em  tempos  anteriores  a  administrarão 
dos  districtos  também  se  dividia  em  correições,  porém 
muito  mais  extensas.  No  reinado  de  Monso  III  existiam 
seis  em  todo  o  reino,  comprehendendo  o  Algarve.  Em 
1385  sabemos  que  apenas  eram  cinco.  Mas  quando  al- 
guma occorrencia  extraordinária  o  exigia,  ou  as  conve- 
niências politicas  o  aconselhavam,  as  mais  largas  circum- 
scripcôes  subdividiam-se»  e  um  magistrado  especial  da 
escolha  do  soberano  recebia  a  missão  de  as  reger.  Varia" 
vam  muito  os  limites  d'estes  districtos.  Umas  vezes  abra- 
çavam mais  do  que  províncias  inteiras,  como  as  de  Entre 
Tejo  e  Guadiana,  de  Entre  Douro  e  Miotio,  e  de  Entre 
Douro  e  Tejo»  tendo  por  demarcaçíSo  as  grandes  linhas 

1  iosé  Anastácio  de  figueiredo,  Mimaria  Mbrg  a  Úrigm  dos  /tit- 
set  àe  Fôra,  no  tomo  i  das  Memória»  dê  tÀUenÉwra  áa  AsOidema 
Heol  áa»  SekneUu  de  ÍAtboa,  pag.  31  a  60.  O  titolo  lxv  do  livro  i 
da  Ordenação  Fã^^pkia  encena  o  JRejftmM»  dosJmge»  de  Fóra. 


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416  HISTORIA  DE  PORTUCAL 

imtuiiicOM  iluviaes,  outras  vezes  só  abrangiam  a  área  correspon- 
dente, pouco  mais  ou  menos,  á  das  modernas  divisões 
do  território,  ou  ainda  mais  restrícta,  como  nos  dias  de 

do  AlToiíso  IV  as  de  Entre  Douro  e  Tâmega,  de  Kiiti  c, 
Doui  o  e  Ave,  e  de  Entre  Douro  e "Vizela.  Nos  tilulus  con- 
feridos ás  pessoas  encarregadas  de  os  governar  liavia 
grande  diversidade  nas  denominações,  cliamando-se  em 
umas  epochas  meirinhos  môres  e  regedores  de  justiça,  e 
em  outras  vedores  de  justiça,  adiantados  e  ^governadores. 
O  rei  quasi  sempre  designava  para  estes  cargos,  por  via 
de  regi  a  perpétuos,  fidalgos  principaes  e  guerreiros  dis- 
tinctos.  D.  João  II,  accedendo  ás  petições  das  còrtes  de 
1481  a  i482,  supi)rimiu  os  adiantados,  cortando  uma  das 
influencias  decisivas  da  iioljroza. 

Entrado  o  século  xvi  adianlou-se  com  elie  o  pensamento 
de  concentrar  e  tomar  mais  forte  a  acção  da  realeza,  es- 
treitando as  relações  entre  o  throno  e  os  seus  delegados 
-  em  todo  o  paiz.  A  demasiada  extensão  dos  antigos  dis- 
trictos  do  Alemtejo,  Extremadura,  Entre  Douro  e  Minho, 
Traz  os  Montes  e  Algarve,  e  a  desigualdade  notada  entre 
elies  quanto  á  povoação  e  riqueza,  inculcavam  a  oppor- 
tunidade  de  uma  reforma,  que,  augmentando  o  numero 
das  grandes  unidades,  facilitasse  ao  poder  real  os  meios 
de  governo  e  depredominio.  D.  João  III  intentou  realisa-la. 
Precedeu  a  divisão  administrativa  e  judicial  (porque  nas 
idéas  do  tempo  a  justiça  era  inseparável  da  administração) 
de  um  recenseamento  ordenado  em  julho  dé  Í5â7,  e,  co- 
Ihidos  os  subsidios  indispensáveis,  foram  nascendo  suc- 
cessivamenle  as  novas  comarcas,  desmembradas  das  an- 
tigas correições,  e  postos  n  ellas  com  exercício  triennal 
magistrados  formados  em  direito.  Para  simplificar  o  ser- 
viço 6  diminuir  o  pessoal  el-rei  ordenára  que  os  corre- 
gedores accúmulassem  as  funcções  de  provedores  e  de 


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DOS  SÉCULOS  xm  £  xvm       ,  417 


contadores,  e  que  seus  vencimentos  corressem  por  conta  insutuiçôes 
das  roAdas  das  localidades.  Queixaram-se,  porém»,  os 
povos  da  união  de  attribuíções  fôo  amplas  em  mna  só 
aactorídade,  e  representaram  contra  os  encargos  pecuniá- 
rios, que  ella  significava.  Ambas  as  supplicas  foram  atten- 
didas.  Em  1555  estavam  outra  vez  separados  os  ofllcios 
de  provedor»  de  contador  e  de  corregedor»  e  os  ordenados 
dos  que  os  serviam  eram  pagos  pelo  thesouro  K 

0  officio  dos  corregedores  comprehendia  fiincçQes 
muito  diversas  nas  espheras  judicial,  administrativa  e  eco- 
nómica. Gompetia-lhes  conhecerem  e  devassarem  dos  ei- 
ros  e  abusos  dos  juizes  das  terras,  reverem  os  processos 
suspeitos  de  peita,  ou  de  parcialidade,  sustentarem  a  juris- 
dicção  real  contra  as  invasões  dos  donatários  e  do  clero, 
conterem  os  excessos  e  malfeiloi  ias  dos  poderosos,  e  fis- 
calisarem  o  cumprimento  dos  deveres  das  camarás  dos 
coDceUios  e  dos  empregados  inferiores.  Representantes 
da  realeza,  instituídos  para  corrigir  os  aggravos,  e  cohibir 
a  soltura  e  a  impunidade  das  classes  privilegiadas,  a  lei 
abria-lhes  a  entrada  das  honras  e  coutos,  e  deferia  ao  seu 
exame  o  procedimento  das  justiças  locaes  até  nos  iogares 

1  Joáo  Pedro  Ribdro,  Reflexões  Hitíoríeat,  pari  n,  n.*  l.^Jíe- 
morta  tobre  a  guhditnfão  das  Corregedoria»  no  reinado  de  D.  João  III, 
Para  se  formar  uma  idéa  approxímada  da  extensflo  e  importância  das 
antigas  divisões,  vamos  eitar  as  que  existiam  em  1322  e  em  1527.  Em 
4522  a  correição  do  Alemtejo  (Entre  Tejo  e  Guadiana)  niodia  838 
léguas  quadradas,  e  contava  79:182  fogos;  a  da  Beira  726  loguas 
com  67:308  fogos:  a  do  Minho  262  léguas  e  22:256  fogos ;  a  de  Traz 
os  Montes  337  léguas  e  21:440  fogos,  e  a  da  Extrernatlura  C07  lé- 
guas e  50:040  fo^^os,  o  a  do.Algarve  180  léguas  c  11:235  fogos.  Eni 
1527  a  corieição  da  Extreuiadura  locensoava  04:178  fogos^  a  do 
Alenitfjo  48:804,  a  dc  Traz  os  Montes  35:016,  a  de  Entre  Douro  e 
Minho  55:066,  o  a.  do  Algarve  16:000.  Estes  algarismos  justilicam  a 
subdivisão  decretada  por  .D.  João  lli. 

«wo  Y  917 


416         •  HISTORIA  DC  PORTUGAL 


bi«itoi«;oes  aonde  n^o  era  pemiitUdo  penett  arem  os  nfíenti  ^  ordiná- 
rios da  coroa.  Protectores  dos  fracos  e  dos  humildes,  de- 
positários de  poderes  amplíssimos^  e  só  dependentes  da 
confiança  do  monarcha,  a  sua  intervenção  suavisára  mui- 
tos males,  e  reprimira  attentados  escandalosos,  restabe-  . 
lecendo  o  prestigio  da  auctoridade  real  pelo  uso  de  suas 
mais  altas  e  mais  nobres  attribuicõcs.  Os  corregedores,  en- 
carregados varias  vezes  de  missões  extraordinárias,  e  con- 
fidentes discretos  de  actos  políticos  transcendentes,  foram 
em  momentos  graves  o  braço  visivel  do  príncipe,  os  men- 
sageiros da  sua  vontade,  e  os  restauradores  da  ordem  e 
da  paz.  No  século  xvi  a*boa  memoria  d'estes  serviços  não 
concorreu  pouco  para  a  reforma,  que  determinou  a  sob- 
divislo  das  comarcas,  e  estabeleceu  em  cada  uma  a  vigi- 
lância activa  de  ministros  incumbidos  de  velarem  pela 
segurança,  policia,  prosperidade  e  harmonia  das  circum- 
scripções^ 

As  municipalidades  nenhuma  resistência  oppozeram  na 
parte  politica.  Satisfeitas  com  as  regalias  salvas  do  nau* 

fragio,  em  que  tinha  perecido  quasi  tudo  o  que  na  meia 
idade  constituia  a  sua  força,  suspiravam  pelo  repouso, 
olhavam  a  obediência  como  uma  de  suas  primeiras  obri- 
gações, e  nlo  se  afastavam  um  passo  da  estrada  indicada 
pelos  magistrados  reaes,  cuja  influencia  reconheciam  e 
acatavam.  A  eleição  dos  vereadores  era  indirecta,  esco- 
lhendo a  assembléa  dos  homens  bons  e  do  povo  nas  oita- 

lit.  t,  tit  xtnst  também  encerra  o  regim^to  dos  corregedores,  qae 
primeiro  foi  promulgadev  ^  parece  em  grande  parte  redigido 
pelás  bases  do  regimento  ordenado  por  D.  Fernando  talvei  no  prin- 
cípio do  sen  governo,  sepndo  suspeita  o  douto  I080  Pedro  lUbeí- 
to,^lH$$ertaçõe9  Chmuíogieas  e  Criiiea$,  tom.  m,  documento  n.«  37, 
pag.  93  a  láS. 


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DOS  SÉCULOS  XVU  £  XYUI  419 


VHs  (lu  iNiUal  cada  aiino  os  seis  procuradores,  (jue  em  insuiaiç»» 
sen  nome  haviam  de  designar  as  pe>soas  mais  aptas  para 
serem  inscriptas  na  pauta  do  governo  local,  O  corregedor, 
e  na  sua  lalta  o  juiz  de  fóra,  presidia  ao  escratinio.  Os 
cargos  mtinicipaes,  alem  dos  da  vereação,  eram  os  de 
procurador  e  thesoureii'o  do  concelho,  os  de  juiz  e  escri- 
vão dos  orphãos  (aonde  se  nomeavam  por  eleição),  e  os 
de  juizes  dos  hospitaes  nos  iogares,  em  que  não  cabia  esta 
ftincçSo  aos  juizes  ordinários.  Os  vereadores  repartiam  en- 
tre si  a  adminístraçSo  em  pelouros,  reuniam-se  em  sessKo 
duas  vezes  por  semana,  regulavam  a  pi  licia  do  Iraii^ito, 
das  feiras  e  dos  mercados,  geriam  os  bens  concelhios  e 
suas  rendas,  e  proviam  por  ultimo  á  construcção,  reparo 
e  manutenção  das  estradas,  pontes,  chafarizes  e  calçadas, 
e  á  arborisacâo  dos  baldios,  publicando  as  posturas  mais 
adequadas  á  boa  economia,  t;i\;)[ido  os  preços  aos  officiaes 
mechanicos,  e  as  soldadas  aos  jornaleiros  e  creados,  or- 
denando as  despezas  e  lançando  fintas  para  acudir  ás  obras 
extraordinárias  de  interesse  conunum.  Os  almotacés,  si- 
milhantes  aos  edis  romanos»  tirados  do  seio  das  weações 
e  seus  delegados,  promoviam  o  exacto  cumprimento  das 
posturas,  puniam  e  multavam  os  infractores,  inspeccio- 
navam os  mercados,  açougues  e  casas  de  venda,  e  man* 
tinham  a  observância  das  taxas,  a  lealdade  dos  pesos  e 
medidas,  e  a  limpeza  e  conservação  da  terra  e  de  seus 
edilicios*. 

Entr  e  os  corregedores  e  os  juizes  de  lói  a,  exercendo 
funcções  administrativas,  e  competindo-lhes  o  seu  con- 
tencioso, figuravam  os  provedores  e  os  contadores  das 
comarcas,  instituídos  por  D.  Manuel  em  Gmnpria- 

1  Ordenação  FiUppina,  liv.  I,  tit  LXVI,  ttVU  e  Livm.— Ordtf* 
nagâo  Agomna,  liv.  ^  tit  xzvn* 

17. 


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HISTORIA  DE  PORTUGAL 


iMtitiiic8M  lhes  fiscalísarem  a  execnfão  das  disposições  testamentá- 
rias relativas  a  legados  pios  e  á  gerência  dos  bens  dos 
orphãos  e  ausentes,  assim  como  á  das  capellas,  hospi- 
taes,  albergarias  e  confrarias.  Tinham^  alem  doestas  attri- 
buições  também  de  visitar  todos  os  amios  a  circumscrí- 
pçâo  da  provedoria  para  verificarem  o  pagamento  pontual 
das  terras  dos  concelhos,  a  de  examinarem  as  suas  contas 
e  a  conformidade  d'ellas  com  os  documentos  de  despeza, 
a  de  approvarem  as  posturas,  e  a  de  repartirem  as  fintas 
pelas  freguezías^  Um  chanceller  e  um  escrivão  serviam 
com  o  provedor.  Finalmente,  no  ultimo  grau  da  escala  en- 
conlniv.iui  >e  os  juizes  da  vintena,  nomeados  pelos  ma- 
gistrados municipaes  nas  aldeias  para  julgarem  verbal  e 
summariamente,  sem  appellação,  até  á  quantia  de  400 
reaes,  o  máximo,  os  pleitos  ruraes,  as  coimas  e  os  dam- 
nos  commettidos  pelos  moradores*. 

Nas  instituições  centraes  accenluavam-se  caracteres 
análogos.  O  mesmo  pensamento,  que  na  administração 
local  a  pouco  e  pouco  fôra  introduzindo  e  confirmando 
as  conquistas  da  auctoridade  monarcbica,  cunhava  com 
mais  vi^^or  ainda  a  iuíluencia  nas  espheras  superiores. 
A  c<)mi»ilaçáo  aliousina  começára  no  século  xv  a  dese- 
nhar as  tendências  da  reacção,  então  iniciada  apenas  em 
alguns  títulos  e  regimentos  encorporados  no  livro  i,  as- 
sentando como  principio  fundamental,  que  todas  as  ma- 
gistraturas e  oílicios  derivavam  a  sua  jurisdicção  do  rei, 
e  só  ú'd\e  recebiam  a  força  e  o  poder.  Nas  honras  e  nas 
terras  coutadas  os  donatários  disputavam  ainda  á  corôa  a 
prerogativa  da  acção  absoluta  e  suprema  da  justiça  em 
nome  de  seus  privilégios,  e  a  da  livre  nomeação  e  demis- 

1  Ordenação  Affontina,  Uv.  i,  tit.  Dcxx. 

2  Ibidem,  liv.  i,  tit.  lxv,  gg  73.»  ^74.* 


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DOS  SÉCULOS  XTII  B  XVin  . 


421 


São  de  todos  os  funccíonârios  como  delegados  de  suacon-  insutotcsM 
fiança.  Mas»  vencida  a  nobreza  e  interpretados  esses  pri- 
vilégios pelos  jurisconsultos  dedicados  ao  throno»  toma- 

ram-se  mais  raras  as  resistências  de  anno  para  anno,  e 
os  conrelhos,  que  viam  no  soberano  o  protector  das  li- 
berdades individuaes  e  o  defensor  dos  direitos  de  segu- 
rança e  de  propriedade  contra  a  prepotência  dos  grandes 
vassallos,  menos  zelosos  das  antigas  immunidades  cone- 
ctivas, deixaram-as  coarctar,  diminuir  ou  sophismar,  es- 
quecidos du  preço  por  que  as  iiaviam  alranrado. 

Os  tribunaes,  que  representavam  na  corte  a  orgauisa- 
ção  superior,  exerdam  promiscnamente  funcções  politi» 
cas,  àdministrativas  e  judiciaes,  em  virtude  da  máxima 
'  acceita  geralmente,  de  que  todos  os  magistrados,  embora 
não  fossem  juizes,  eram  competentes  para  tomarem  co- 
nhecimento do  contencioso  das  matérias  da  sua  reparti- 
ção. O  mais  qualificado  de  todos  esses  tribunaes  era  a 
Mesa  do  Desembargo  do  Paço,  presidida  por  um  fidalgo 
principal.  No  século  xv  ainda  ella  funccionava,  como 
prova  o  titulo  iv  do  livro  i  da  Ordenação  Affonsinay  ea- 
corporada  com  a  Casa  da  Supplicação,  e  ídrmava  (|uasi  o 
que  diríamos  hoje  uma  secção  d'ella.  D.  João  II,  ou 
D.  Manuel  separaram-a  e  definiram  em  um  regimento  es- 
pecial suas  elevadas  attribuições  ^  Competiam-lhe  entre 
outras  a  de  rever  em  ultimo  recurso  as  sentenças  da  Gasa 
da  Supplicação,  a  de  consultar  sobre  o  provimento  dos 
logares  de  corregedores,  provedores  e  juizes  de  fóra,  e 

1  Coelho  da  Rocha,  Ensaio  sehn  a  Hulom  do  Governo  êdaLe» 
giáação  dê  Portugal,  epoch.  vi,  art.  5.*  e  6.*— José  Anastácio  de 
Figueiredo,  SynopsU  Chronoloffiea,  tom.  n,  regimento  novo  dos  des* 
emhaifadores  do  paço  de  t!  de  jullio  de  1581 --Fr.  Nicolau  de 
Oliveira»  Orandesoã  de  Luhoa,  trat  vt,  cap.  v. — Ordenação  Ha- 
iiii«Imm»j  liv.  I,  tiL  III,  «Dos  deaembargadorea  do  paçç». 


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tímORlk  DE  POBTUGAL 


iQiúiuifôes  julgar  os  processos  de  residência,  a  de  despachar  os  ne- 
gócios de  justiça,  nssim  como  tudo  o  que  dizia  respeito  a 
privilégios»  perdões»  cartas  de  legitimação  e  de  perfilha- 
mento,  cartas^tuítivas  e  de  restituiçlio  de  fama,  e  insi- 
nuações de  doações.  Pertencia-líie  o  conhecimento  e  de- 
cisão das  duvidas  e  conflictos  suscitados  entre  os  juizes 
da  Casa  da  Supplicaçâo  e  os  da  Relação  do  Porto»  e  por 
ultimo  campria-lbe  emíttir  voto»  ou  conselho  sobre  todos 
os  assumptos  relativos  á  administração  judicial  e  ásju- 
risdicções  sobre  que  el-rei  mandasse  ouvi-lo. 

O  l)i  st^nibargo  do  Paço,  como  supremo  tril)unal,  era 
o  depositário  das  tradições  juridicas  mais  auctorisadas»  e 
o  encarregado  de  velar  pela  conformidade  dos  julgamen- 
tos com  os  princípios  de  direito.  Era  o  conselheiro  nato 
do  rei  no  exerci  cio  da  mais  beila  prerogativa,  a  commu- 
tação  e  o  perdão  das  penas,  despachando  com  elle,  ou 
em  nome  d'elle  as  petições.  Assistindo  ás  provas»  cha- 
madas leituras»  dos  bacharéis  que  se  propunham  para  os 
logares  de  letras,  e  inculcando  os  mais  dignos,  seguia-os 
desde  os  primeiros  passos,  e  pelos  resultados  das  residên- 
cias, que  subiam  ao  seu  conhecimento,  habiliiava-se  para 
avaliar  a  capacidade  e  as  prendas  moraes  de  cada  um» 
abrindo-lhe,  ou  cerrando-lhe  a  carreira,  porque  as  nomea- 
ções judíciaes  dependiam  de  consulta  e  proposta  sua  em 
lista  tríplice.  De  entre  os  juizes  de  ])rimeira  instam  la,  que 
serviam  com  distincçâo,  eram  escolhidos  os  mais  aptos 
.  e  bem  reputados  para  os  cargos  de  provedores  e  de  cor- 
regedores, attendida  a  antiguidade  em  iguaes  circum* 
stancias,  mas  preferindo  o  mento,  quando  se  tomára  re- 
Itivante.  Da  classe  dos  corregedores  e  provedores  saíam 
de  ordinário  os  juizes  para  os  conselhos  e  tribunaes,  e  as 
informações  do  desembargo  do  paço  não  iníluiam  menos 
para  estes  despadios»  do  que  para  os  primeiros.  Pôde  af- 


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DOS  SÉCULOS  XVU  £  XVUI  423 

firmar-s6,  por  isso,  sem  receio  de  exagerado»  qae  Unha  hmiíhíiíií 

eiri  suas  inàos  a  lioiira,  a  illustração,  o  prestigio  e  emíim 
a  sorlo  (la  magistratura  i)()rtugueza 

A  Relação  ou  Casa  da  Supplicação,  também  presidida 
por  um  âdalgo  illustre»  denominado  regedor  da  justiça» 
oompmiha-se  de  vinte  e  cinco  desembargadores,  dez  dos 
aggravos  e  (juinze  extravagantes,  dos  dois  corregedores 
do  crime  e  dos  dois  do  cível  da  côrte,  dos  quatro  ouvi- 
dores das  appellações  crimínaes,  do  procurador  dos  fei*  ^ 
tos  da  justiça»  do  juiz  da  cbanceliaria»  do  promotor  da 
justiça  e  de  oito  escrivães  dos  aggravos,  sem  contar  o 
distribuidor,  o  contador,  o  Ibesoureiro  dos  depusiLos,  u 
e-scrivào  das  íiancas  e  os  empregados  menores.  Tinbam 
assento  e  voz  no  tribunal  o  procurador  da  coròa  e  o  da 
fazenda,  e  serviam  junto  d'eUe  na  (pialidade  de  procara- 
dores  letrados  quarenta  e  ás  vezes  mais  agentes  encarta* 
dos,  conforme  o  beneplácito  do  rei,  do  qual  dependiam 
as  aomeagôes.  A  Relação  coiibecia  por  appellaçio  desfei- 
tos, recorridos  por  aggravo  da  casa  do  Porto  nas  causas 
eiveis  com  alçada  atè  á  quantia  de  iOOfjíOOO  réis  em  bens 
moveis  e  de  80($000  réis  em  bens  de  raiz.  Gonbecia  igual- 
mente das  appellações  eiveis,  inleipustas  das  sentenças 
dos  juizes  do  eive!  e  dos  orpbâos  de  Lisboa,  assim  como 
das  de  ouli  os  magistrados.  Julgava,  por  íim,  em  ultima 
instancia  todos  os  processos  eiveis  da  capital  e  do  reino, 
não  comprehendidos  na  jurisdicção  da  relato  do  Porto. 

Esta  iiliiiiia  iMbd  existira  em  Lisboa,  dispensada  da 
obrigaçàu  de  seguir  a  corte  em  suas  viagens,  como  a  Sup- 
plicação, até  ao  governo  de  Filippe  II,  apesar  das  repeti- 
das representações  dos  povos  no  tempo  de  AffonsoY, 

1  Ordenofõú  ManueUm,  liv.  i,  tiU  m,  «Dos  desembaigadores  do 
paço». 


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HISTORIA  D£  PORTUGAL 


insutuições  D.  João  II  e  D.  João  III,  fundadas  nas  despezas  e  violên- 
cias, que  padeciam  os  habitantes  da  Beira,  de  Entre  Douro 
e  Minho  e  de  Traz  os  Montes,  coagidos  a  snsteotarem  na 
capital  todos  os  pleitos  e  aggravos.  As  côrtes  de  Tbomar 
renovaram  a  petição,  e  o  rei  catbolico  accedeu,  transfe- 
rindo em  1582  pela  lei  de  27  de  julho  a  Casa  do  Cível 
para  o  Porto  com  a  sua  chancellaria,  e  organisando-a 
com  quatorze  desembargadores,  oito  dos  aggravos  e  seis 
extravagantes,  com  os  corregedores  do  críme  e  do  eivei 
da  cidade,  com  os  dois  ouvidores  do  crime  e  com  doze 
escrivães,  dois  meirinhos  e  um  contador.  Esta  Relação  foi 
estal)elecida  para  conhecer  em  segunda  instancia  das  cau- 
sas das  tres  provindas  do  norte  com  alçada  no  crime  e 
'  no  eivei  até  iOOiSOOO  réis  nos  bens  moveis  e  80^9(000  réis 
nos  de  raiz.  Nas  causas  eiveis  de  maior  valia  aggravava- 
se  d'ella  para  a  Siipplicação.  O  seu  presidente  tinha  o  ti- 
tuio  de  governador,  e  como  os  do  Desembargo  do  Paço 
e  da  Relação  de  Lisboa  era  nomeado  sem  limitação  de 
tempo 

Para  o  cargo  de  chancetter  mòr  escolhia  o  soberano  de 

ordinário  um  dos  magistrados  mais  antigos  e  conspícuos. 
Decaído  em  parte  das  grandes  pieemmencias,  que  na 

1  Fr.  Nicolau  de  Oliveira,  Grandezas  de  Lisboa^  trat  vi,  cap.  ui. — 
Coelho  da  Rocha,  Ensaio  iobre  a  Historia  do  Governo  e  da  Legisla- 
ção de  Portiifjal,  epoch.  vi,  art  6.*,  e  epoch.  vii,  art.  5.*» — Figuei- 
redo, Synopsis  Chronologica,  tom.  ir,  pag.  198  e  207.  Antes  de  1551 
'  no  reinado  de  D.  João  III  a  Casa  da  Siipplicacão  era  composta  do 
regedor,  do  ehanceller  mór,  de  cincoenta  e  dois  desembargadores, 
trinta  e  quatro  escrivães,  dois  distribuidores,  dois  contadores»  um 
recebedor,  seis  inquiridores  e  serviam  junto  d'ella  trinta  procura- 
dores letrados,  e  outras  vezes  mais»  porque  não  tinham  numero 
certo.  Vidè  Stimmario  de  algumas  cousas  ecclesiasticas  e  seculares 
da  cidade  de  lÀAoa  por  Gbristovfio  Bodrigues  de  Oliveira,  Casa  da 
SupplicaçAo. 


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DOS  SÉCULOS  XVn  E  XVUI  4S8 

meia  idade  tomavam  este  logar  talvez  o  mais  importante  iiwiitiiifO« 
do  conselho  dos  soberanos,  ainda  conservava,  comtudo, 
multa  preponderância,  senão  na  direc^So  política  dos  ne- 
gócios, pelo  menos  na  esphera  judicial,  porque,  alem  do 
séllo  de  todas  as  sentenças  proferidas  nos  tribunaes  da 
còrte»  e  de  todos  os  privilégios,  mercês,  alvarás  e  cartas, 
tinha,  como  orgSo  vivo  da  lei,  o  direito  de  suspender 
com  o  seu  veto,  ou  glosa,  a  execução  dos  actos,  que  jul- 
gasse contrários  á  legislação,  estylos  e  costumes  do  reino. 
A  influencia  dos  chancelleres  móres  começára  a  diminuir 
no  reinado  de  D.  Pedro  I,  em  que  a  dos  escrivães  da  pu- 
ridade principiou  a  crescer  e  a  arraigar-se.  No  governo 
do  mestre  de  km  as  circumstancias  e  as  qualidades  pes- 
soaes  do  doutor  João  das  Regras  e  do  bispo  do  Porto, 
D.  Fernando  da  Guerra,  elevaram-a  de  certo  ao  maior 
auge,  mas  depois  sómente  o  conservaram  na  ordem  ju- 
diciaria, deixando  o  chanceller  de  assistir  mesmo,  como 
ministro  do  despacho,  ao  expediente  da  assignatura  real. 
Em  todo  o  caso  D.  João  III,  repartindo  ^ande  parte  da 
jurisdicção  antiga  da  chancellaria  mór  pelo  Desembargo 
do  Paço  e  pelo  chanceller  e  juiz  da  chancellaria  da  Sup- 
plica(3o,  creados  de  novo,  ainda  attenuou  bastante  as  re- 
galias d'esta  dignidade.  O  officio  do  regedor  da  casa  da 
supplicação  desde  a  Ordenação  Manuelina  considerou-se 
como  o  pnmea  o  e  principal  oflicio  de  justiça  da  monar- 
chia^. 

Em  dezembro  de  1532  instituiu  D.  João  III  o  tribunal, 
que  intitulou  da  iMesa  da  Consciência  e  Ordensi .  Foram 

1  Trigoao,  Mêmoria  tobre  m  GumetUeres  M6re$  Ío»  Rm  de  Por- 
tugal, no  tom.  xif,  part.  ii,  das  Memorkê  da  Aeadmia  Real  das 
Seieneiat  dê  Luboa,  pag.  91  ft  107. — Ordemição  Affonsina,  11  v.  i, 
tit  n. — Ordenação  ManuàUm,  liy.  i,  tit.  i  e  il — Ordenação  Ftbji- 
pina,  liv.  I,  tit  I  e  u. 


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4S6 


mSTOBU  UB  PORTUGAL 


imtittticOiM  seus  primeiros  vogaes  o  bispo  de  Lamego,  mestre  Affonâo 
do  Prado,  lente  de  theoiogia  da  umv^sidade,  Joio  Mon* 
teiro,  desembargador  do  paço,  Rodrigo  Gomes  Pinheiro» 
o  bispo  de  Angra,  e  Antonio  Rodrigues,  prior  de  Mon* 
santo,  e  sen  primeiro  presidente  o  bispo  do  Funchal, 
Gaspar  do  Casal.  Serviu  o  legar  de  secretario  Manuel 
Coelho  Yelloso*.  Em  1582  Filippe  II  concedeu  ao  presi* 
dente  os  privilégios  de  desembargador  já  conferidos  aos 
deputados ^  Filippe  III,  mandando  rever  em  1607  os  an- 
tigos regimentos,  dictou  outro  mais  accummuiiado  au 
tempo  e  ás  circumstancias  peio  alvará  de  23  de  agosto. 
O  tribunal  da  Consciência  eín  muitas  das  suas  attribui- 
çQes  exercia  jurísdicçlo,  e  tinha  prerogatívas  iguaes  ás  do 
Desembargo  do  Paço.  Consultava  sobre  o  provimento  de 
ofiicios  e  de  varias  liitu  ces,  exercitava  o  mais  amplo  po- 
der sobre  a  universidade  de  Coimbra,  hospitaes,  alber- 
garias, mercearias,  administração  das  capeUas  reaes,  bens 
de  ausentes  e  defuntos  e  redemp^ão  de  captivos  e  pro- 
punha as  nomeações  para  todos  os  empregos  que  lhes 
diziam  respeito.  Creado  para  examinar  os  actos  dos  iri- 
bunaes,  que  julgasse  oíTensivos  da  justiça,  ou  de  encargo 
para  a  consciência  do  soberano,  devia  eipor-lhe  suas  ad- 
vertências sobre  este  ponto  melindroso,  como  recom- 
mendava  expressamente  um  dos  artigos  do  regulamento. 

A  Mesa,  no  desempenho  das  funcções  que  constituíam 
a  segunda  parte  da  sua  instituição,  representava  o  rei  em 
tudo  o  que  se  referia  ao  governo  das  ordens  militares 
com  auctorisaçlo  apostólica,  usando  das  largas  faculda- 
des em  que  a  Santa  Sé  e  os  monarchas  a  investiram, 

^  Hú  lona  õenêahsiM  da  Com  Real,  tom.  m,  pag.  48i  e  485. 
'  Alvant  de  2S  de  novembro  de  1081.-^LiTro  vi  da  cm  da 

supplicaçâo,  fl.  206  T. 


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tanto  na  designarão  das  pessoas  mais  idóneas  para  os  imuimm 
offidos  e  os  beneficies,  como  na  jurisdição  sobre  as  cau* 

sas  e  os  crimes  dos  cavalleiros,  competindo-lhe  o  julga- 
mento em  segunda  instancia  dos  dii(]nes,  marquezes, 
condes,  o  de  todos  os  fidalgos,  desembargadores  do 
paço  e  da  supplicação^  que  fossem  cavalieiros  das  or** 
dens  e  o  de  todos  os  indivíduos  professos  em  alguma 
d'ellas. 

Cumpria-lhe  igualmente  apreciar  as  provas  da  pureza 
de  saogae  e  de  qualidade  dos  que  requeressem  mercês 
de  babitos,  excluindo  os  cbristSos  novos  e  os  que  tíão 

justificassem  os  requisitos  exigidos  para  recaírem  n^elles 
as  graças.  A  Mesa  tinha  aiictoridade  para  passar  cartas 
de  fiauça  e  de  perdão,  e  na  superintendência  dos  bens 
dos  mestrados  podia  tomar  contas  aos  tbesoureiros  ge- 
raes  e  particulares  do  continente  e  do  ultramar  ^  Era 
fonnada  de  cinco  deputados,  dois  clérigos  {mu  canonista 
e  liH)  tlitMiiogo)  e  de  tres  deseiiibargadores  cavalleiros 
das  tres  ordens  de  Ghristo,  S.  Thiago  e  Aviz.  O  seu  pre- 
sidente sempre  havia  de  sér  um  fidalgo  principal,  eccle- 
slastico,  de  grandes  letras  e  prudência.  O  secretario  ge- 
ral com  tres  secretários  especiaes  dirigia  o  expediente,  o 
primeiro  na  qualidade  de  escrivão  do  despacho,  o  se- 
gundo na  de  escrivão  da  camará  da  ordem  de  Ghristo,  e 
o  terceiro  como  escrivio  das  de  Áviz  e  S.  Thiago.  Os  em- 
pregados menores  eram  o  contador,  o  thesoureiro,  o 
porteiro  e  o  cursor,  ou  correio.  A  Mesa  celebrava  tres 

1  Alvará  de  23  de  agosto  de  1607,  incluindo  o  novo  regimento 
da  mesa  da  conaciencta.— Carta  regia  de  23  de  deiembro  de  1623 
iòtn  atírihnicõos  da  iriosa. — Trigoso,  Colecção  de  Legislação^ 
tom.  V,  doe.  IS. — Fr.  NiooUu  dc  Oliveira,  Grandezas  de  lÀêboa, 
tnl  VI,  cap.  iT. --Borges  Gameiro,  Besum  Chnmologieo,  tom.  iii, 
pag.  31ff. 


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4S8  HBTOHU  DB  PORTUGAL 

iHititai(8M  sessões  por  semana  ás  segundas  e  quartas  feiras  e  aos 
sabbados  K 

Estes  eram  os  tribunaes  de  maior  categoria  por  onde 
corriam  os  iiogocios  jiidiriaes,  ecclesiasticos  e  admini:^- 
trativos,  e  todo  o  seu  contencioso.  Outros  existiam  amda, 
postoque  de  menor  vulto,  assás  importantes  como  au- 
litiares  indispensáveis  do  complicado  e  conftiso  systema 
das  instituições  da  epocha.  Citaremos  entre  elles  o  Juizo 
da  Alfandega,  aonde  se  processávamos  delictos  íisi  aes 
perante  um  ouvidor,  cuja  alçada  não  excedia  10(9^000 
réis,  subindo  as  causas  por  aggravo  á  Relato,  e  o  Juízo 
da  índia,  Mina  e  Guiné  com  tres  escrivães,  um  distribui- 
dor, dois  meirinhos  e  iim  escrivão  das  justificações  com 
a  mesma  alçada,  aonde  eram  sentenciados  com  dois  des- 
embargadores da  supplica(3o  os  pleitos  comprebendidos 
na  sua  jurísdicçlo'.  O  Juizo  do  Givel  de  Lisboa,  encarre- 
gado da  ordem  e  segurança  da  cidade,  tinha  dois  juizes, 
nove  escrivães,  dois  distribuidores  e  oito  inquiridores. 
O  Juizo  do  crime  contava  quatro  magistrados,  quatro  es- 
crivães e  um  contador.  Dois  corregedores  do  eivei  com 
seis  escrivães  e  quatro  corregedores  do  crime  julgavam 
as  causas  da  sua  competen*  ia  anu  recurso  de  aggravo 
para  a  supplicação.  Os  dois  juizes  dos  feitos  da  coroa  e 
fazenda  proferiam  suas  sentenças  na  relação  e  no  conse- 
Ibo  da  fazenda,  O  juiz  dos  feitos  das  ordens  militares  tam- 
bém despachava  em  relação.  Havia  mais  o  provedor  dos 
residuos  e  captivos  com  quatro  escrivães,  o  dos  orphãos, 
capellas  e  albergarias,  o  juiz  do  Asco,  o  juizo  da  casa  da 

1  Trigoso,  Collecção  de  Legislação,  tom.  v,  doe.  18. — Fr.  Nicolau 
de  Oliveira,  Grandezas  de  Lisboa,  trat.  vi,  cap.  iv. — Borges  Car* 
neiro,  Resumo  Chronohgico,  tom.  iii,  pag.  315. 

2  No  juízo  da  alfandega  serviam  oito  escrivães  e  um  distribuidor. 
Fr.  Nicolau  de  Oliveira,  Grandezas  de  làsboa,  trat  vi,  cap.  ii. 


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DOS  sficuLOs  xvn  £  xvm  429 

moeda  e  os  dois  juizes  denominados  das  propriedades,  insuiuivões 
que  tiubam  a  seu  cargo  os  pleitos  suscitados  ácerca  das 
obras  da  capital»  demolições,  coDStruccões  e  reedifica- 
ções.  As  varas  orphanologicas  eram  cinco,  tres  no  re- 
cinto de  Lisboa,  e  duas  no  termo  com  seis  escrivães, 
doze  empregados  incumbidos  dos  inventários  e  partilhas, 
chamados  «partidores»,  um  solicitador  e  um  distribuir 
dor.  Dois  corregedores  do  eivei  e  outros  dois  do  crime 
da  côrte,  com  dez  escrivães,  despachavam  os  feitos  rela- 
tivos aos  processos  das  pessoas  privilegiadas  com  o  fôro 
da  casa  de  el-rei,  e  julgavam  os  delictos  commettidos  dos 
logares,  aonde  residia  o  soberano  e  cinco  léguas  em  re^ 
dor,  com  poder  de  passarem  cartas  de  seguro,  e  de  man- 
darem presos  para  as  cadeias  publicas  todos  os  querela- 
dos compreheiidiíios  na  sua  jurisdicção,  pronunciando  as 
sentenças  em  Relação  com  todos  os  juizes,  ou  com  parte 
d'e)les,  e  mu  voto  do  regedor  da  justiça  sem  appellação 
nem  aggravo  *. 

Esta  subdivisão  quasi  infinita  de  attribuições  por  tan- 
tos juizos  e  pequenos  tribunaes,  este  immenso  pessoal  de 
empregados  judiciaes,  esta  variedade  confusa  de  juris- 
dicções  distinctas,  cada  uma  com  seu  fôro  próprio,  longe 
de  tornarem  a  acção  da  justiça  fácil  e  prompla,  serviam 
unicamente  de  oppressão  ás  partes,  as  mais  das  vezes 
veiadas  e  espoliadas.  Não  admira,  portanto,  que  as  cor- 
tes se  queixassem  do  excessivo  numero  de  magistrados 
e  escrivães,  e  da  pouca  auctoridade  com  que  applicavam 
o  direito.  Nas  de  Tliomar  o  braço  do  povo  em  tres  capi- 
tulos  difíerentes  representou  a  urgência  da  reducção  dos 
quadros  da  magistratura,  a  conveuienoia  de  serem  esco- 
lhidas para  os  cargos  de  corregedores  pessoas  qualificadas 

^  Fr.  Nicolau  de  Oliveira,  Grandezas  de  Lisboa,  trai.  vi,  cap.  ii. 


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490  HUTOAIA  OK  PORTUGAL 

in>utiti(«ês  e  dignas  da  confiança,  e  os  mans  resultados  dos  jiilpradores 
nomeados  para  as  devassas  serem  depois  os  juizes  d  elias. 
Filippo  II  annuiu  a  todas  estas  supplicas^  e  prometteu 
attende4as^  Nas  côrtes  de  1641  os  procuradores  do  ter- 
ceiro estado  ainda  foram  mais  expiicitos,  e  os  ftmdamen* 
tos  fie  suas  líetirões  revelam  o  desconceíto  e  decadência 
a  que  a  ordem  judicial  baixára  n'aquelle  tempo.  Os  povos 
lembraram  a  visita  trienoal  dos  tríbunaes  para  premio  dos 
bons  e  castigo  dos  maus  }mm,  a  dindnoicao  das  con- 
servatórias dos  contratos  que  etemisavam  as  causas,  a 
suppressão  das  commissões  extraordinárias,  ou  alçadas, 
como  instrumentos  de  ódios  e  de  vinganças,  as  residências 
obrigatórias  tiradas  de  tres  em  três  annos  dos  escrivães, 
offlcíaes  de  justiça  e  empregados  dos  juízos  ecciesíastieos 
da  legacia,  do  ordinário  e  das  ordens  militares,  e  por  ul- 
timo a  necessidade  dos  opnetarios  dos  ollicios  os  ser- 
virem pessoalmente;  salvo  nos  casos  de  legitimo  impedi- 
mento*. 

De  feitoi  um  dos  resultados  da  multiplicidade  dos  tri- 
bonaes,  dos  juizes  e  dos  officiaes  de  justiça  eram  a  ve- 
nalidade e  a  corrupção,  ciue,  desculpando-se  com  a  in- 
sufficiencia  das  retribuições,  nem  quasi  disfarçavam  a 
oomípcSo.  O  braço  popular»  nas  côrtes  de  Thomar,  alle- 
gamdo  o  grande  augmento  nos  preços  das  subsistências, 
pediu  ao  rei  que  acrescentasse  os  ordenados  dos  desm- 
bargadores  e  dos  magistradDS,  que  não  podiam  susten- 
tar-se  com  os  que  recebiam,  sendo  esta  uma  das  causas 
salHdas  de  muitos  inconvenientes,  e  da  administração  da 

1  Céiu  de  Tkmar,  cap.  %yi,  XVu  e  tvin,  «Í>o  estado  do  povo». 

^  Pàiente  emqUeiMo  encorpcràdtn  òt  Capiiuhs  Geraei  áos  Tm 
Estados  e  Respoúa»  a  elUs  dadas  em  eáiiet  de  tâtboa  emifdete^ 
ttfmòro  cfo  iaH>  cap.  six  a  ixui.  * 


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BOS  8ICUL0S  xvn  I  vm  431 

justiça  nâo  correr  com  inteireza.  O  estado  ecclesiastico  imtituirfte* 
insistiu  nas  mesmas  idéas.  D.  Filippe  respondeu  que  pro» 
veria  com  brevidade,  e  cumpriu  a  promessa,  dobrando 
08  vencimentos  dos  juizes,  e  em  1983  acrescentando  os 
salários  dos  empreírados  e  olliciaes  de  justiça,  com  exce- 
pção sómente  dos  escrivães  do  desembargo  do  paço,  e 
dos  escrivães  da  matricula  das  moradias  e  dos  âlhamen- 
tos,  do  da  cbanceliaria  e  do  thesoureiro  mór^ 

0  remédio  n9o  foi  comtudo  efficaz.  ^te  annos  depois, 
em  1012,  attesta  um  documento  insuspeito,  que  o  mal  não 
só  linha  progredido  e  ramificado,  como  invadira  as  mais 
elevadas  regi5es  da  magistratura.  Este  documento  é  a  con- 
solta  do  conselho  de  Portugal  de  12  de  julho»  relativa  ao 
modo  de  restaurar  a  recta  administrai  ãD  da  justiça.  As 
accusações,  que  refere,  emanavam  do  vice-rei,  do  chan- 
celler  mór,  do  regedor  da  casa  da  supplicaçSo,  do  mar- 
quez  de  Castello  Rodrigo,  do  conde  de  Sabugal,  e  de 
D.  Luiz  de  Lencastre,  conselheiro  de  estado  mais  antigo, 
e  comprehendiam  os  tribunaes  de  justiça,  cuja  séde  era 
Lisboa.  Os  magistrados,  na  sua  maioria,  nlío  ci]m[)riam 
os  deveres  do  cargo.  Ao  desembargador  Pedro  Barbosa 
notava-se  o  fausto,  em  que  elle  e  o  filho  viviam,  tendo  co- 
che e  cavallos,  servindo<«e  as  partes  de  mercadores  para 
o  peitarem,  e  de  presentes  de  colchas  ricas»  estofos  va- 
liosos e  dinheiro.  Os  desemliar^rad  i  ts  Lançarote  Leitão, 
Antonio  de  Carvalho  e  Gonçalo  Gil  Velho  também  não  pro- 
cediam com  integridade,  e  ao  juiz  da  Índia  e  Mina,  Fran- 
cisco Cardoso,  a  voz  publica  nlio  era  favorável  igualmente. 

1  Cdiiet  âe  Thomar,  cap.  xv,  «Do  estado  do  poroji  e  vm,  «Do 
estado  ecdeÉiutieo».~^Lei  de  7  de  julho  de  15^  deelintoria  dá 
qae  dòbrára  os  «klmoe  aos  empregadoe,  a  i^erímento  dos  potos 
em  Lisboa  nas  cArtes  em  que  Ibi  jurado  o  priaeipe  D.  filippe  (30 
de  jandro  de  1683).— ^fnoptií  QunmúíogiWi  tom  n,  pag. 


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432 


HISTORIA  D£  PORTUGAL 


intítai$6«  O  corregedor  da  corte,  Luiz  da  Gama,  causava  escândalo 
pelo  accordo  conliecido,  que  existia  entre  elle,  o  porteiro 
e  o  guarda  mór  da  supplicação,  infamados  como  seus  cor- 
retores. Carlos  Brandão»  juiz  da  coròa  e  fazenda,  dava 
tavolagem  em  casa,  e  á  sua  banca  apontavam  os  nego- 
ciantes que  havia  de  julgar.  O  desembargo  do  paço,  mal 
conceituado,  dizia-se,  que  despachava  as  petições  com  su- 
borno sabido,  servindo  os  creados  dos  magistrados  de  in- 
troductores  aos  requerentes.  O  mais  accusado  dos  juizes 
era  Fernando  de  Magalhles,  e  o  mais  puro  Sebastião  Bar- 
bosa. A  fama  dos  empregados  menores  ainda  padecia  mais. 
Os  iiitMos  propostos  para  acudir  a  tão  extensa  degenera- 
ção provam,  que  as  forças  d'ella  assustavam  o  governo, 
o  qual  nunca  se  atreveu  a  combate-la  senão  com  palliati- 
vos  e  com  providencias  indirectas^. 
'  A  verdade  era,  qué  a  posição  dos  magistrados  e  dos 
officinos  de  justiça  pouco  melhorara  com  o  augmento  de 
vencimentos  decretado  em  1582  e  1583.  Na  Mesa  da  Con- 
sciência só  em  1603  se  arbitrou  ao  presidente  o  ordenado 
de  kOOSOOO  réis  por  anno,  e  só  em  1607  foram  elevados 
os  salários  dos  deputados  até  perfazerem  300^000  réis 
annuaes*.  Os  desembargadores  da  Supplicação  no  mesmo 
anno  requereram  augmento  de  retribuição,  mas  o  rei  adiou 
o  despacho  para  quando  viesse  á  capital,  o  que  equivalia  a 
escusar  a  petição.  Alem  dos  ordenados  os  juízes  estavam 
no  uso  legal  de  receberem  propinas  e  espórtulas,  que  de 
alguma  fórma  compensavam  a  escassez  dos  honorários,  e 
á  proporção,  que  diminuiam  e  se  atrazavam  os  pagameu- 

1  Consulta  do  conselho  de  Portugal  em  Madrid  sobre  o  procedi- 
menlo  de  alguns  ministros  do  dito  reino.  Manuscripto  moii. 

'  Cartas  regias  de  dO  de  seteud>ro  de  i603  e  de  24  julho  de 
1607.— Lítio  de  registo  da  mesa  da  conscieiícia,  11.  32  e  li8  v. 


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w»  SBCULOS  XVII  B  xvm 


433 


tos  do  erário,  cresciam  e  alargavam  as  propinas.  £m  i609  insutatcoei 
foi  augmeDtada  a  que  denominavam  da  f  consoadai  pelo 
assento  da  Gasa  da  SuppHcação  de  22  de  setembro.  Por 

outro  assento,  datado  de  28  de  maio  d'aqQelle  anno,  ar- 
bitraram-se  3dOOO  réis  a  cada  juiz  par'a  a  compra  de  sa- 
cos, em  que  trouxessem  os  autos  para  a  Relação.  A  pro- 
pina, chamada  «dos  óculos»,  subiu  em  1604  de  200  a  500 
réis,  «por  causa  da  alteração  e  maior  valia  d^aquelle  ar* 
tigo».  Finalmente,  ciii  1607,  um  assento  da  Casa  da  Sup- 
plicação  de  11  de  dezembro,  invocando  a  íaita  de  paga- 
mentos e  as  necessidades  e  apuros  dos  magistrados,  or- 
denou, que  a  Rela(ão  désse  dez  cruzados  a  cada  juiz  por 
anuo  para  botica,  alem  das  propinas.  O  costume  era  sub- 
sidiar o  tribunal  dois  médicos  para  visitarem  os  magis- 
trados enfermos*.  JNa  maneira  de  contar  e  de  extorquir 
as  «espórtulas»  commettiam-se  grandes  abusos  e  até  ini- 
quidades. O  alvará  de  26  de  setembro  de  1606  poz-lhes 
termo,  decretando  a  tabeliã  em  virtude  da  qual  deviam 
ser  cobradas  de  futuro*. 

A  reforma  das  aOrdenações»,  determinada  por  Fiiip- 
pe  11,  logo  no  principio  do  seu  governo,  concluída  e  pro- 
mulgada pelo  seu  successor  em  1603,  nUo  cortára  pela  raiz 
os  defeitos  do  Codino  Manuelino,  seguiiido-o  quasi  litteral- 
mente  na  distribuição  das  matérias  e  na  sua  classilicação 
e  redacção.  Adoptou,  á  similbança  d'eile,  como  subsidia- 

1  Assentos  da  Casa  da  Supplicaç3o  de  22  de  selpinhro  de  1609, 
de  28  de  maio  de  16il,  de  30  de  janeiro  de  iti04  e  de  íl  de  de- 
zembro de  1007. 

2  Alvará  de  26  de  setembro  de  IGOti  subn-  :\s  espórtulas  dos  jui- 
zes. Manda,  que  dos  feitos  de  201000  nté  60i(KX)  i  lií  cada  lun  d  os 
julgadores  possa  levnr  .'iOO  j  uis,  de  bO^OOO  atr»  lOOáíXiO.  1  òÕOO  réis, 
e  dos  feitos  de  100^000  réis  para  cima,  S0:6U0()  n  is  >  juiz  da  causa 
e  30^000  réis  cada  um  dos  coUegas.  Liv.  vu  da  supplicação,  tl  58  v. 

TOMO  Y  '  m 


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.  UlfiTOBlA  DE  PORTUGAL 


Itiiiiuiyu0ã  l  i  os  O  direito  romano  e  o  dii  eito  canónico,  e  aonde  fossem 
omissos  as  glossas  de  Accurcio  e  Bartholo,  quando  o  voto 
commom  do8  doutores  se  não  oppozesse,  conferindo  já 
no  século  xvn  auctoridade  eitrínseca  ás  opiniões  con- 
demnadas  desde  o  secolo  xvi  pelos  jurisconsultos  da  es- 
cola de  Cujacio.  Estes  queriam  com  todo  o  íuík lamento, 
qae  as  decisões  nascessem  do  espirito  e  da  rasão  das  leis, 
e  não  do  arbitrio  dos  commentadores.  Similhante  atrazo 
nos  princípios  da  interpretação  jurídica  nSo  procedia  só- 
mente  da  incúria  dos  compiladores,  mas  das  doutrinas 
ensinadas  na  universidade,  cuja  decadência  apontámos. 
As  consequências  d'esta  disposição  na  pratica  forense»  tor- 
nando-se  desastrosas,  fiiToredanoi  de  certo  modo  a  má 
dos  juizes  ponco  Íntegros.  Defendendo-se  com  o  texto 
do  código,  e  não  consultando  nas  espécies  duvidosas  a 
rasão  e  a  equidade,  desattendiam  o  sentido  e  a  analo- 
gia das  leis»  embrenhavam-se  em  labyríntos  de  dtagões 
e  referendas,  Aiglam  da  clareza  para  as  trevas,  e  prece- 
diam as  sentenças  de  longas  enumerações  de  auctores, 
chamando  não  só  â  collação  os  jurisconsultos,  mas  até 
os  moralistas  e  os  casuistas,  o  que  na  linguagem  da  epo- 
eha  se  dizia  consultar  a  opinião  commmn. 

As  dlegações  dos  advogados,  trilhando  os  mesmos  ca- 
minhos, ílrmavam-se  na  máxima  parte  na  accurnulação 
extensa  e  fastidiosa  de  remissões  intermináveis,  quasi 
sempre  copiadas  e  moitas  vezes  impertinentes.  A  este  vi- 
do, já  de  si  fão  fonesto,  jmitou-se  outro  não  menos  per- 
nicioso, o  de  decidir  pelos  casos  julgados  sem  exame 
prévio  e  escrupuloso  da  identidade  da  espécie,  ru  rii  dos 
motivos  iegaes  da  sentença  invocada  como  exemplo.  As 
remoras,  as  cilladas  e  os  subterfúgios  forenses  forjados 
pelos  advogados  e  procuradores  mais  peritos  na  táctica 
fabiana  dos  auditórios,  eteruisavam  os  pleitos,  e  arruina- 


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DOS  SECCLOS  XVii  £  XVilI 


vam  qaasi  sempre  os  contendores.  À  folha  da  justiça,  in-  initíioiíMi 

cluiíido  os  juizes  de  fura,  os  provedores,  os  corregedores 
e  os  juizes  dos  diversos  tribunaes,  sommava  \n)v  anno 
14:400^1000  réis.  Esta  diminuta  somma  explica»  sem  a 
justificar,  tanta  venalidade  e  corrupção. 

O  systema  de  administração  da  fazenda  também  accu- 
sava  a  variedade  de  princípios,  que  tinha  concorrido  para 
a  sua  formação.  O  que  sobrevivia  dos  elementos  da  meia 
idade  quasi  sempre  lutava  com  as  innovações  successi- 
yamente  introduzidas  em  harmonia  com  o  pensamento 
centralisador,  especialmentè  desde  o  ultimo  quartel  do 
XV  século.  A  revolução,  Iraballio  lento,  e  bastantes  vezes 
imperceptível,  mas  nunca  interrompido,  operada  era  todas 
as  relações  politicas,  sociaes  e  económicas,  alcançara  na 
segunda  metade  do  século  xvi  uma  Victoria  completa, 
como  notámos,  e  desde  «sse  período  vão  cessára  de  cu- 
nhar com  mais  força  as  suas  idéas  na  forma  da  distribuição 
e  cobrança  das  contribuições,  procnr;mdo  substiluii'  á  con- 
fusão a  unilbrnúdade  K  ImpeUiam-a  para  esta  direcção  as 

*  Na  conta  de  receita  e  despeza  do  anno  de  1557  appareceni  m 
seguintes  verbas  assris  curiosas :  Para  o  n  u i  dor  da  justiça  3: 7773^800 
reaes,  e  para  45  desembargadores,  com  os  do  paço  e  da  fazenda; 
para  o  governador  da  casa  do  cível  e  24  desembargadores  e  6  al- 
caides, e  100  homens  e  outros  offiriacs  de  justiça  1:664;;5200  reaes. 
Estcf?  alsrarisnios  provam  quão  insulliciente  era  também  no  século  xvi 
a  retribuição  dn^  jnizfs  p  dos  empregados  judiciaes.  Archivo Nacio- 
nal, gâv.  2.%  maç.  ix,  n."  'òt. — O  quadro  dos  desembargadores  da 
Casa  da  Supplicação  naquella  epocha  era  já  mui  crescido,  como  vi- 
mos^ e  existiam  também  já,  alem  da  Casa  do  Civel  em  Lisboa,  os  Juí- 
zos da  alfandega,  da  índia  e  Mina,  da  moeda  e  dos  resíduos,  e  os  do 
civel  e  do  crime,  dos  orphãos  e  das  propriedades.  Havia  ern  ioda  n  ci- 
dade 46  tabelliiíes  de  notas^  numero  a  que  só  acrpsrrrrmi  nuiis  2  (18) 
no  século  xvii.  Todo  este  pessoal  mal  pago  e  quasi  íámiiito  coibia  de 
meios  iUicitoâ  uma  subaistencÍA  parca  e  precária. 

18. 


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436 


ai:áTORIA  DE  PORTUGAL 


httitaíssw  theorias  na  essência  líveladoras  do  poder  absoluto,  e  as 

necessidades  cada  dia  iiiais  apertadas  da  fazenda,  mas, 
coarctavam-lhe  ainda  bastante  os  vôos  as  resistências  da 
nobreza  e  do  clero,  ímmunespor  seus  privilégios  de  todos 
os  sacriMos  tribalarios»  e  o  respeito  das  tradições  e  cos- 
tumes do  povo,  que  seria  arriscado  contrariar  abertamente 
em  tão  melindroso  assumpto.  Não  ;i<iinii  a,  portanto,  que 
as  inslituiçncs  íinanceiras  revelassem  nas  base»  e  sua  ap- 
piicação  as  duas  tendências  oppostas»  e  que  na  existência 
e  attribuíções  dos  tribunaes,  nos  regimentos  díctados  por 
consulta  d'elles,  e  nos  meios  de  os  executar  se  denuncias* 
sem  grandes  compiicaçues  e  uma  espécie  de  anarchia,  fdha 
até  em  vários  casos  da  contradicção  flagrante  das  Íeis  com 
os  factos,  e  em  outras  circumstancias  das  repugnancias, 
que  ainda  separavam  o  estado  social  da  situação  artifi- 
ciosa, que  tentava  impor-se-lhe.' 

A  união  a  Castellafoi  unia  das  epoclias,  em  que  as  trans- 
formações iniciadas  por  D.  João  li  e  D.  Manuel  adianta- 
ram os  maiores  passos.  Fiiippe  n,  talvez  o  representante 
mais  activo  e  inflexivel  dos  princípios  da  auctoridadé  real 
e  da  obediência  passiva  na  Europa  cuidou  sempre  desde  o 
começo  do  seu  governo  em  Portugal,  em  o  aflirmar  em  to- 
das as  manifestações  da  vida  politica  e  da  administração. 
Nas  suas  formas  e  em  todos  os  seus  actos  encontrámos 
caracterisadas  n'este  sentido  as  máximas  inculcadas  por 
Carlos  Y,  máximas,  que  não  só  reconheceram,  mas  exage* 
rai  am  os  reis  seus  successores,  a  ponto  de  as  tornarem 
absurdas,  ou  odiosas.  Se  os  duques  de  Lernia  e  de  Uzeda 
ainda^uberam  disfarça-las,  o  conde  de  Olivares  profes- 
sou-as::eom  a  violência  própria  da  sua  índole,  e  acabou  por 
insurgir  em  nome  d*ellas  e  contra  ellas  o  principado  da  Ga- 
talunha  e  os  reinos  de  Portugal  e  de  Nápoles.  Fiiippe  II 
na  reforma  das  Ordenações  de  D.  Manuel,  na  revisão  dos 


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DOS  SÉCULOS  XVU  E  XVIQ  437 

antigos  regulamentos  fiscai.^s,  e  na  reconstrucção  de  al-  inuituiçftos 
guDS  dos  serviços  públicos,  nunca  hesitou  em  assignalar  a 
influencia  doestas  idéas  e  a  submissão  dos  súbditos  anxi- 
liou*o.  £  verdade  que  os  reinados  de  D.  Jo9o  III  e  de 
D.  Sebastião  tinham  concluído  metade  da  empreza,  e  que 
a  nação,  vencida,  e  sem  iniciativa,  se  entregara  nas  mãos 
do  governo  pessoal,  que  a  perdêra  em  i  578,  e  que  a  oppri- 
miu  nos  sessenta  annos  de  dominação  da  casa  de  Áustria. 

O  rei  eatholico,  no  grau  mais  elevado  da  administra$ão 
de  fazenda  collocou  um  tribunal  com  jurisdicçãd  privativa 
e  independente,  investido  nas  funcções  de  prover  e  con- 
sultar sobre  os  negócios  relativos  à  gerência  dos  bens  da 
corda,  e  á  inspecção  e  melhoramento  das  rendas  do  tbe- 
souro,  conferíndo-lhe  poderes  amplos,  ecommettendo4be 
todo  o  contencioso  de  tão  vasto  e  laborioso  encargo.  Foi 
o  conselho  da  fazenda  creado  em  159i  para  substituir  as 
vedorias,  extinctas  n'aquella  data,  pelas  quaes  corria  em 
separado  o  expediente  das  questões  do  continente  e  do 
ultramar.  Gentralisando  em  uma  só  junta  as  attribuicSes 
repartidas  antes  por  ministros  e  repartições  distinctas, 
D.  Filippe,  ao  passo  que  suppunha  facilitar  a  resolução 
de  matérias  tão  importantes,  confiava  que  um  corpo  as- 
sim formado  prestaria  cooperação  mais  prompta  e  eiiicaz 
aos  desígnios  do  monarcha,  fazendo  chegar  mais  vigo- 
rosamente a  toda  a  parte  a  sua  vontade  K  Gomptinha-se  o 
tribunal  de  conselheiros  sem  numero  determinado,  alguns 
d'elles  desembargadores  e  letrados,  chamados  de  «capa 

*  Fr.  Nicolau  de  Oliveira,  Grandesasde Lisboa^  trat. vri,  cap.Yi. — 
Sousa  de  Macedo,  Flores  de  Etpana,  ExceUencia$  de  FÕrtvgal, 
cap.  X.— Alvará  de  20  de  novembro  de  1591,  incluído  no  decreto 
de  7  de  janeiro  de  1641,  pelo  qual  Filippe  II  creou  o  conselho  da 
iazenda. — José  Justino,  Coller  rã  o  Chronoiíogiea  da  Legislação  Por- 
tii^uexa,  anno  de  1641,  pag.  13. 


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438 


HISTORU  DB  PORTUGAL 


iMUtuijõcs  e  espada»,  do  procuiador  da  fazenda  com  voto  e  assento, 
de  escrivães,  ou  amanuenses  ordinários,  de  alguns  supra- 
numerários para  servirem  no  Impedimento  d'estes,  e  de 
vários  empregados  subalternos.  Em  4  631  nomeou  o  conde 
duque  outra  jnnta  donominada  (uln  íazt  iiilaw,  e  formada 
do  conde  de  Ci.síello  Novo,  conselheiro  de  estado  e  presi- 
dente do  senado  de  Usboa,  de  Thomas  de  Hibio  Calderon, 
e  dos  desembargadores  Cid  de  Almeida  e  João  Pinheiro 
da  Gasa  da  Supplicação.  Devia  fnnccionar  em  uma  das  sa- 
las  do  Paço  da  Ribeira,  observando  nas  conferencias  e  pre- 
cedências os  lurmularios  do  conselho  da  fazenda,  e  cele- 
brando tres  sessões  por  semana,  mas  só  de  tarde  K  Suas 
attribuicões,  separadas  das  que  pertenciam  ao  conse- 
lho, eram  apurar  as  receitas  livres  de  consignações,  e 
propor  os  meios  opportimos  de  melhorar  e  aii^inenlar  os 
rendimentos  públicos,  applicando-os  ás  despezas  das  ar- 
madas contra  os  boilandezes,  e  mais  em  particular  ao 
soccorro  de  Pernambuco.  Tocavam  ao  seu  expediente  o 
emprego  das  sommas  livres  do  imposto  do  consulado, 
o  das  terças  dos  concelhos,  o  dos  direitos  do  assucar  nos 
Açores  e  Madeira,  e  os  sobejos  das  sizas  do  Porto,  Aveiro 
e  Yianna,  e  foi  auctorísada,  igualmente,  a  junta,  a  ap- 
provar  os  contratos  de  composição  com  os  arrematantes 
alcançados  das  rendas  reaes,  e  a  proceder  á  compra  dos 
galeões,  e  do  material  de  marinha  e  de  guerra  necessários 
para  as  expedições^.  Em  13  de  abril  de  1633  todas  as  il- 

» 

1  F^.  Nicolau  de  Oliyeira,  Grandezas  de  Làhoa,  trat.  vir,  cap.  vl — 
Sousa  de  Macedo,  Floret  de  EspaSía,  Excdlendae  de  Poriugtd, 
cap.  X.— -Alvará  de  26  de  juibo  de  1631,  instituindo  uma  junta  de 
fiuenda. — CoBeefào  Chronologiea  de  lêgiàafio  Pofiusueza,  anno 
de  1631,  pag.  206  a  207,  liv.  cc  da  casa  da  suppllcaçAo,  il.  196 

2  Alvará  de  22  de  junho  de  1631. — Pegas  á  ordenação,  tom.  m, 
pag.  476. 


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DOS  SÉCULOS  XVII  E  XVHI 


439 


lusões  estavam  desfeitas,  e  uma  carta  regia  declarava  ex*-  Uimaím 

tinctas  a  junta  da  fazenda  e  a  coiiipanhia  do  commercio, 
outro  sonho  de  Olivares,  e  incorporava  suas  funcções  no 
Gonseibo  da  fazenda,  já  presidido  em  1637»  não  por  um 
vedor,  como  até  abi,  mas  por  um  fidalgo  principal,  a 
conde  de  Miranda,  aposentado  da  intendência  das  naus  6 
da  fabrica  das  armadas  para  se  occupar  exclusivamente 
doeste  serviço  *. 

Seguia-se  a  Gasa  ou  tribunal  dos  Ciontos,  especialmente 
incumbido  de  processar  e  liquidar  as  contas  dos  adminis- 
tradores de  rendas  reaes,  tanto  no  reino,  como  na  índia 
e  nns  conquistas.  O  quadro  do  pessoal  correspondia  á  im- 
portância do  encargo.  Era  composto  de  um  contador  mór, 
doze  contadores,  dezeseis  escrivães,  cinco  provedores, 
quatro  procuradores,  ou  requerentes,  um  juiz  descontos, 
sempre  desembargador,  e  outros  oíTiciaes,  superintendi- 
dos pelo  contador  mór,  ao  qual  competia  o  exame  e  ap- 
provação  das  contas  feitas  e  apuradas  pelos  contadores  e 
o  julgamento  das  differenças.  N'este  tribunal  estava,  pois, 
centralisada  toda  a  contabilidade  da  fazenda  publica,  tanto 
do  continente,  como  do  ultramar.  Parece  quasi  indubitá- 
vel, que  a  Casa  dos  Contos  fosse  instituída  na  epocba  de 
D.  João  I.  Nos  antigos  documentos  não  se  encontram  an- 
teriormente vestígios  d'6lla,  e  o  primeiro  regimento,  que 
se  Ibe  passou,  e  de  que  ba  memoria,  è  datado  de  22  de 
março  de  1434  no  reinado  de  D.  Duarte.  Outros  diplomas 
de  1420  mostram,  que  já  existia  e  funccionava  a  esse  tem- 
po, e  mesmo  trinta  e  um  annos  antes,  porque  em  i389 

*  Carta  regia  de  13  de  abril  de  1633. — Alvará  de  7  de  outubro 
de  i637.  Do  conselho  assim  organisado  dependiam  os  tiibuiiaes  dos 
contos,  da  alfandega,  da  índia  e  Mina,  doaalmazens,  sete  caflas,  paço 
da  raadeiía,  tenencia,  casa  da  moeda,  casa  dos  cídoo  e  portos  seccoe. 


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440  HISTORU  DB  PORTUGAL 

iMtitoiçsei  nma  carta  datada  do  1.^  de  julho  dirigida  a  EstevSo  Ao- 
nes  Lobato,  entSo  almoxarifé  das  avenças  da  cidade  de 
Lisboa,  estabelece  o  que  haviam  de  vencer  os  empregados 
dos  coutos 

Os  logares  de  vedores  da  fazenda,  extinctos  no  goverio 
dosFilippes,  e  restaurados  logo  depois  4a  acclama^o  de 
D.  JoSo  IV,  representavam  em  parte  as  attribuições  re- 
partidas entre  os  antigos  ovençaes  do  rei  e  os  thesourei- 
ros  mores,  e  começam  a  iigurar  distinctamente  no  reinado 
de  D.  Fernando.  Os  vedores  despachavam  com  o  sobe- 
rano, e  na  qualidade  de  ofiiciaes  superiores  da  fazenda 
tratavam  de  todos  os  negócios  relativos  á  gerência  finan- 
ceira  (lo  Ucino  e  da  Africa,  dos  contos  e  das  terças,  e  da 
índia,  arsenaes,  e  armadas.  Nas  ordenações  fiscaes  de 
D.  Manuel  datadas  de  17  de  outubro  de  1516  vem  in- 
cluído o  regimento  doestes  funccionaríos,  cujas  attribui- 
ções os  equiparavam  aos  ministros  do  thesouro  e  fazenda 
modoinos,  salvas  as  variedades  próprias  da  epoclia.  Ser- 
viam sujeitos  á  sua  inspecção  o  contador  mór  de  Lisboa, 
o  vedor  da  fazenda  do  Porto  e  Algarve,  e  os  provedores, 
contadores,  thesoureiros,  almoxarifes,  recebedores,  ren- 
deiros, escrivães  e  mais  oíficiaes  do  fisco,  podendo  no- 
mear pai  a  todos  os  cargos  de  sua  dependência,  menos 
para  os  de  contadores,  almoxarifes,  recebedores,  escri- 

*  Fr.  Nicolau  de  Oliveira,  trat.  vii,  cap.  i. — Sousa  de  Macedo, 
Excellencias  de  Portugal,  chancellaria  dc  D.  João  I,  liv.  v,  fl.  113  v., 

nomeaçíío  de  thesoureiro  ni(')r  a  Vasco  ^íai  Uns,  em  que  alliide  aos 
contos.  —  Regifiieiilo  d.i  mesma  daki  (14iO)  ao  thesoureiro  mór,  liv.v, 
íl.  ().  —  Carta  a  Estevão  Annes  Lobato  do  de  julho  de  1389,  manda 
abonar  aos  contadores  dos  conlos  1(X)  bbras  a  cada  um,  ao  juiz  100 
libras,  aos  escriviles  50.  e  aos  mocos  25.  Estes  diplomas  encontram- 
86  na  integra  no  relatório  publica Ju  polo  sr.  SanfAuna  e  Vascoacel- 
los  sobre  o  ImjmtoJ^  consumo,  Lã$boa;Ji870. 


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DOS  SÉCULOS  XTU  £  XYIU 


44i 


\ães  dos  contos  e  das  alfandegas,  juizes  das  sizas  de  Lis-  UMtfim 
boa  e  Santarém,  e  oíTicios  da  índia,  Guiné  e  Arsenaes,  e 
escrivães  dos  parinos,  das  herdades»  e  da  marçaria.  In- 
cumbia-ibes  attender  ao  provímenlo  de  subsistências» 
miinIçOes,  e  obras  dos  logares  de  Africa,  á  fiscalisaçUo  e 
cobrança  das  rendas  e  direitos  reaes  dos  Açores  e  Madeira, 
ao  serviço  de  todns  ns  ♦'[iipiegados  de  fazenda,  á  execu-  ^ 
ção  pontuai  dos  contratos,  ás  contas  e  entradas  dos  the- 
soureíros  e  recebedores,  e»  finalmente»  ao  reparo  das  le- 
zírias, valias,  paúes,  paços,  armazéns,  tercenas,  castellos 
e  fortalezas,  e  ás  arrematações  das  rendas  reaes  com  am- 
pla jurisdição  administrativa  e  contenciosa*.  Os  vedores 
arrecadavam  para  si  avultados  emolumentos  por  direitos 
de  mercê  em  virtude  dos  despachos  de  todos  os  officios 
de  fazenda.  Em  15  de  fevereiro  de  IS03  D.  Manuel,  al- 
legando  o  aumento  progressivo  dos  rendimentos  publi-  ^ 
cos,  concedeu  ainda  mais  GOíJOOO  reaes  de  ordenado  a 
cada  um,  assentados  no  trato  de  Arguim,  nas  rendas  de 
Setúbal»  Évora  e  Beja,  e  oas  decimas  dos  officios*. 

0  pessoal  empregado  na  administrarão,  flscalisaçlo  e 
cobrança  das  rendas  publicas  em  todas  as  localidades  do 
reino  era  assas  numeroso,  e  suas  attribuições  variavam 
segundo  a  Índole  do  cargo  e  a  diversa  natureza  dos  im- 
postos. Os  mais  importantes  doestes  funccionarios,  os 
contadores  das  comarcas,  arrematavam  no  i.^  de  janeiro 
de  cada  anno  os  direitos  reaes,  assentavam  as  dividas 

1  Ordena^  de  Fazenda  de  El'Rei  D.  Manuel  de  17  de  oatubro 
de  Í5i6^  cap.  vin  e  ix  a  xv,  xx  e  xkl  Estas  ordenações  ainda  vi- 
goravam na  primeira  metade  do  século  xviii  em  grande  parte. 

3  Ordenação  da  Fazenda  de  17  de  outubro  de  1516.  No  se* 
cuk)  xn,  em  iãâi,  a  casa  dos  contos  constava  de  nove  contadores» 
dei  etemSe»,  um  contínuo  e  um  porteiro.  Christovâo  Rodrigues  de 
Oliveira,  Swmario,  «Da  casa  dos  contos  da  cidade». 


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ut 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


lHiiBi(OM  dos  contratos  anteriores,  rlesignavara  os  recebedores  pro- 
visórios na  falta  de  licitantes,  oii  quando  julgavam  os  lan- 
ços lesivos,  tomavam  contas  annuaes  aos  almoxarifes  e 
recebedores,  nomeando  pessoas  idóneas  para  substitui- 
rem  os  que  achavam  alcançados,  visitavam  as  comarcas 
para  descobrirem  os  dolos,  usurpações,  descaminhos  ou 
,  .  sonepfaçôes  de  capellas  e  padroados,  jugadas,  fóros,  tri- 
butos, censos  e  direitos,  e  coa.Líirein  a  sua  restituição. 
Deviam  ter  um  registo  ou  tombo  minucioso  das  terras» 
doações,  e  rendas  e  as  darezas  necessárias  para  o  bom 
exercício  do  loí?ar.  Em  cada  comarca  havia  uma  casa, 
denominada  dos  contos,  aonde  estes  empregados  despa- 
chavam tres  vezes  por  semana,  ouvindo  as  partes.  Ti- 
nham todas  escrivão  e  porteiro.  Os  contadores,  por  ulti- 
mo, eram  obrigados  a  prestar  contas  de  dois  em  dois 
annos  perante  os  vedores,  passando-se-lhes  quitação  em 
presença  dos  livros  e  documentos.  Em  iri  lô  apenas  exis- 
tiam as  contadorias  de  Lisboa,  Santarém,  Leiria,  Alem- 
quer,  Setúbal,  Évora,  Beja,  Coimbra,  Vizeu»  Guarda, 
Porto,  Guimarães,  Moncorvo  e  Algarve.  Desde  o  tempo 
de  D.  João  III,  subdivididas  as  antigas  correições  admi- 
nistrativas e  judiciaes.  augmentou  provavelmente  tam- 
hmi  o  numero  das  comarcas  íiscaes 

Inferiores  em  jerarcbia,  mas  ainda  munidos  de  grande 
acção,  os  almoxarifes  expediam  em  suas  cireumscrípçlHes 
ordens  aos  escrivães  das  sizas  e  aos  recebedores  e  ar- 
rematantes das  rendas  publicas,  vcriíicavam  as  íianças, 
percorriam  o  districto  para  exigirem  as  contas  dos  rece- 
bedores, pagavam  aos  quartéis  as  despezas  legaes  assen- 
tadas na  folha  da  sua  gerência  e  passavam  recibos  ás  par- 

1  Regimento  dos  contadores  das  comarcas,  dictado  por  £1'R6Í 
D.  Manuel  e  indoido  nas  auaa  Ordenações  de  Fazenda^ 


* 


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Dog  SÉCULOS  xvn  E  xvm 


448 


tes.  Os  almoxarifes  não  podiam  recebe^  os  dinheiros  das  in«tttiii$8« 
rendas  reaes  senão  na  presença  dos  escrivães.  Os  escri- 
vães dos  almoxarifados  percebiam  649  reaes  de  ordena- 
do, alem  dos  emolumentos  do  officio,  cpie  avultavam 
muito.  Os  recebedores  venciam  em  ras?ío  de  uma  per- 
centagem sobre  as  sommas  cobradas,  1:500  reaes  o  má- 
ximo. Os  escrivães  das  sizas  ganhavam  1:000  reaes  por 
anno,  afora  os  emolumentos.  Os  escrivães  dos  almoxari- 
fados tsci  ipUiiavani  -iimnalmente  toda  a  receita,  e  tanto 
a  elles,  como  aos  almoxarifes,  recebedores  e  mais  offi- 
ciaes  de  fazenda,  era  rigorosamente  probibido  acceitarem 
peitas  em  dinheiro,  ou  em  valores»  ou  negociarem  sohre 
mercadorias  e  rmidas  reaes.  Eram-Ihes  vedadas  também, 
assim  como  aos  thesoureiros,  a  alienação  dos  bens,  ou 
quaesquer  fianças  que  obrigassem  suas  propriedades, 
emcpianto  estivessem  no  exercício  dos  cairos. 

Os  contadores  e  almoxarifes,  recebedores  e  porteiros 
podiam  entrar  nas  terras  coutadas  dos  fidalgos,  prelados 
e  commendadores,  para  citarem,  emprazarem,  ou  penho- 
rarem os  devedores  das  sizas,  ou  de  quaesquer  direitos. 
Aos  contadores  e  almoxarifes  concedeu  el-rei  D.  Manuel, 
em  4514, 15|j(000  réis  de  augmento  annual  nos  ordena- 
dos, e  em  especial  favoreceu  os  de  Lisboa  com  maiores 
vantagens.  Afora  estes  empregados,  os  mais  responsáveis 
e  considerados,  engrossavam  as  fileiras  do  pessoal  da  ad- 
ministração fiscal  os  recebedores  e  escrivães  dos  portos, 
os  escrivães  da  Ribeira  e  guardas  das  caravellas,  os  por- 
teiros das  lezirias  e  re^niengos,  os  pedidores  de  pão,  os 
homens  das  terceaas  de  Lisboa  e  das  dos  almoxarifados 
do  reino,  os  selladores  de  pannos  e  vários  outros^. 

1  Regimfnto  para  os  almoxanfei^  e  recebedores,  «De  como 
vem  servir  seus  oflicios  e  de  tiidn  o  rpio  hor  ditos  oflirio^  porteuce 
isaer*»  CoUecção  do$  Regimentos  Heaesj  tom.  i,  pag.  62  e  seguintes. 


444 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


D.  Manuel,  na  sua  ori^^aiiisação  tinha  procurado  intro- 
duzir alguma  ordem  no  cabos,  deliíiiiuio  as  atlrihuições 
dos  diversos  agentes  íiscaes,  e  determinando  as  bases  da 
sua  responsabilidade,  mas  resistíam  â  letra  da  lei  multas 
vezes  os  costumes,  e  repugnavam  meompatibílidades  de- 
rivadas da  natureza  das  cousas  e  da  força  das  Iradicões. 
A  confusão  das  funcçoes  de  exactor  com  as  de  adiiiuiis- 
trador»  e  a  absurda  accumulação  na  pessoa  dos  mesmos 
empregados  da  arrecadação  e  da  guarda  e  deposito  dos 
rendimentos  com  a  sua  applica^  ás  despezas,  tornava 
impossível  a  verdadeira  fiscalisação,  e  illusoria  a  contabi- 
lidade, mesmo  montada  sem  tantas  omissões  graves  e 
com  outros  elementos  de  clareza  e  de  exactidão.  Para  se 
formar  idéa  do  que  siguiOcava  na  realidade  aquelle  sys- 
tema  em  vigor  por  mais  de  duzentos  trinta  e  nove  annos 
bastará  sabermos,  que  os  almoxarifados  do  reino  eram 
trinta  e  um,  e  que  muitos  abrangiam  em  suas  circum- 
scripçôes  cinco,  oito  e  dez  vilias,  trezentas  e  mais  aldeias, 
e  muitos  concelhos  e  julgados.  Ajuntemos  depois  a  va- 
riedade e  a  multiplicidade  das  receitas,  que  entravam  nos 
cofres  da  corôa,  parte  em  dinheiro  e  parte  em  prestações 
de  géneros,  como  trigo,  cevada,  azeite,  vinho,  legumes, 
aves,  peixe,  assucar,  queijos,  sabão  e  até  escravos.  A 
longa  enumeração  dos  artigos,  considerados  como  direi- 
tos reaes,  comprehendendo  desde  os  pedidos  de  subsí- 
dios extraordinários  e  o  lançamento  de  novas  contribui- 
ções até  ás  portagens  e  recova<íens  cobradas  nas  barreiras 
dos  municípios,  é  mais  do  que  suâicienle  para  nos  dar 
idéa  da  rede  de  tributos  locaes  e  geraes,  que  oneravam 
as  populações,  e  da  diversidade  de  encargos  e  obrigações, 
que  os  almoxarifados  deviam  atlender  *. 

1  Consuitem-se  ácerca  da  extensão  dos  direitos  reaes  e  da  fórina 
das  liquidações  das  contas  dos  exaetores  os  capítulos  das  Ordena- 


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D(w  s£GULOs  xm  £  xvm 


445 


Não  deve  espantar,  que  us  inconvenientes  visíveis  de  instituições 
simiUiaute  organisação  se  denuaciassem  na  pratica,  e  que 
os  abusos»  encaneceDdo,  se  fossem  eoraizando.  £m  1621 
já  eram  elles  visíveis,  tanto  em  referencia  á  demora  e  dif- 
ficaldade  das  liquidações  para  o  ajuste  das  contas  dos 
exactores  e  responsáveis,  como  em  relação  á  urgência  de 
rever  e  melhorar  os  regulamentos.  A  carta  regia  de  ^0 
de  maio,  nomeando  uma  junta  de  reforma  composta  de 
Ruy  Lourenço  de  Távora,  do  doutor  Simão  Soares  de 
Carvalho,  do  conselho  da  fazenda  e  de  Luiz  de  Figueiredo 
Falcão,  e  incumbindo-a  de  propor  com  audiência  de  pes- 
soas experimentadas  e  sabedoras  o  modo  opportuno  de 
simplificar  e  de  abreviar  os  processos  e  promover  a  co- 
brança das  dividas  ao  thesouro,  è  a  prova  evidente  do 
mau  estado  d*este  ramo  de  administração.  Em  46^  ín- 
stitiiiu-se  nova  jiiiiLa,  mas  não  coi  respondeu,  segundo 
se  depreiíende  dos  seus  trabalhos,  e  em  i633  o  governo 
resolvia  crear  quatro  commissões  na  Gasa  dos  Contos,  en* 
carregadas  do  apuramento  das  dividas  e  alcances  contra 
a  fazenda 

Nasceram  logo  conflictos  entre  ellas,  e  para  se  remo-  ■ 
verem  foram  todas  encorporadas  em  uma  só  junta  for- 
mada de  cinco  deseoibargadores  e  dois  provedores,  e 
investida  nos  poderes  mais  amplos  de  avocar  todos  os  fa- 
ctos executivos,  autos,  denuncias  e  tomadias  no  estado 
em  que  se  achassem  perante  quaes(juer  tribunaes,  com 
alçada  absoluta  sobre  os  contadores  e  recebedores,  e  au- 
ctorisações  para  çoliocar  ins{»ectores  de  sua  confiança  em 

çdeÈ  da  Fazenda  ,  jiuhlicados  em  1516,  cap.  nnxxXTO,  e  CLXXXVI 
a  CLXXxix,  e  o  Be^inmio  dot  Vedores  da  Fazenda,  cap.  XLm  a  XLvm 
*  e  L  a  LU. 

1  Carta  regia  de  SO  de  maio  de  1621. — índice  Chronokigieoj 
iouL  it,  pag..307. 


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446 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


intíiiiiftiii  todas  às  comarcas  do  reino.  Continuaram,  porém,  as 

queixas  mesmo  depois  crestas  providencias,  e  os  do- 
cumentos são  conformes  em  accusar  a  repetição  de  iguaes 
e  peiores  defeitos  na  gerência  e  fiscalisação  das  rendas 
publicas.  O  alvará  de  7  de  outubro  de  1637  pouco  ou 
nada  atalhou  estes  males  K 

Na  administração  e  na  liscalísação  dos  impostos  indire- 
ctos superintendiam,  alem  do  tribunal  da  alfandega,  as 
r^artiçdes  das  sete  casas  e  da  casa  da  índia»  com  um  pes- 
soal numeroso  e  largas  attribuiçdes,  que  também  abran- 
giam o  contencioso.  O  tribunal  da  alfandega  governa- 
va-se  pelo  foral  decretado  em  15  de  outubro  de  1587 
por  Filippe  11  em  129  capítulos,  e  comprehendia,  sujeitas 
á  jurisdicção  do  seu  provedor»  a  «Gasa  do  Paço  da  Ma- 
deira»» aonde  se  despachavam»  alem  dos  artigos  incluí- 
dos debaixo  d'esta  denominação,  como  arcos,  aduelas, 
lenhas  preciosas,  o  bacaliiau  e  as  fmctas  sêccas  de  fóra 
do  paiz,  como  nozes,  avelãs  e  peros  da  Galiiza,  a  «Mesa 
dos  Portos  Seccos»»  na  qual  se  pagavam  as  taxas  das 
mercadorias  entradas  por  elles»  a  «Mesa  das  Entradas»» 
em  que  se  fozia  o  registo  dos  navios  e  fazendas,  presidida 
por  um  guarda  mór,  e  encarregada  da  visita  e  vigilância 
da  caiga  e  descarga  das  embarcações,  a  «Mesa  Grande» 
com  as  mesas  pequenas  do  despacho  do  sal  e  do  consu- 
lado» a  «Mesa  dos  Pesos»»  aonde  se  aferiam  na  balança 
08  volumes  que  pagavam  pelo  peso,  como  o  assucar,  e 
por  nlliiiK)  a  «Casa  dos  Cinco»,  na  qual  se  arrecadava  o 
qumto  das  mercadorias  transportadas  por  terra»  como 

1  Caria  regia  de  17  de  novembro  de  1633  e  alvará  de  20  de 
iiiarço  de  1634.  Ein  1628  e  1631  outras  providencias  tinham  jd  ten- 
tado a  reforma  parcial,  que  dois  annos  depois  se  mnsummoii.  O  al- 
vará de  7  de  outubro  de  1637  adoptou  providencias  de  pequena  im- 
portância» mais  em  referencia  ao  expediente»  do  ^ue  ás  attribui^ Oes. 


I 


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DOS  BECULOS  XVn  E  XVIU 


447 


pannos  da  Covilhã,  de  Portalegre,  Segovia,  Toledo  e  ou-  io«tiioiçih» 
tras  pailes>  paoDOS  de  linho  e  ferragens. 

Dois  grandes  armasens  recolhiam  as  fozendas  de  maior 
preço  até  á  saída  para  o  consumo.  As  apprehendidaspor 
tomadia  tinham  deposito  esfiecial  com  um  escrivão  e  um 
guarda,  e  o  assiicar  era  arruinado  em  seis  espaçosas  casas 
exclusivamente  destinadas  para  elle.  Ás  mercadorias,  que 
váo  corriam  perigo  expostas  ao  tempo,  ficavam  no  pateo 
interior.  O  quadro  de  todas  estas  estações  compunha-se 
do  provedor,  do  guania  mór,  de  dezoito  escrivães,  qua- 
tro thesoureiros,  um  juiz  do  peso,  seis  leitores,  dois  al- 
moxarifes, quatorze  guardas,  seis  sacadores  e  um  medi- 
dor, pagos  quasi  todos  pelo  cofre  da  alfandega  que,  alem 
da  folha  própria,  occorria  directamente  á  satisfaço  de 
vários  juros,  tenças  e  outras  despezas,  entre  as  quaes  fi- 
guravam os  ordenados  da  magistratura  e  dos  officiaes  de 
justiça.  No  século  xvi  (1550),  em  que  o  movimento  com- 
mercial  de  certo  í6ra  muito  mais  activo,  o  pessoal  d'esta 
casa  fiscal  acudia  a  todo  o  serviço  com  um  provedor,  iiiii 
juiz,  um  thesoureiro,  dez  escrivães,  dois  feitores,  (juatro 
sacadores  e  quatorze  guardas.  O  trabalho  J}raçal  empre- 
gava Tinte  carregadores  efièctivos,  e  os  extraordinários 
qae  se  tomavam  precisos.  Em  Belém  assistiam  um  mei- 
rinho, um  escrivão  e  quatro  guardas  *. 

Na  repartição  já  n  aquella  epocha  denomiuada  das 
«Sete  casas»  despachavam-se  os  géneros  de  consumo  da 
cidade,  cobrando-se  os  direitos  de  portagem  e  siza  do 
vinho,  azeite,  carne,  pescado,  fructa,  carvão,  lenha  e  es- 
cravos. Dividia-se  em  diversas  mesas.  Eram  estas  a  das 

1  Fr.  Xicolau  de  Oliveira,  Grandezaft  de  Lishoa,  trat  vn,  cap.  ii. — 
Summario  das  comas  ecdesiadicas  e  wculares  da  cidade  de  Lisboa 
•Casa  da  aiiaudega». 


448 


HISTOBIA  DE  POBTUGAL 


iMiiidi«8M  «casas»,  das  «Fructas»,  dos  «Escravos»,  da  «Portagem», 
da  «Imposição  nova  e  velha»,  do  «Real  de  agua»,  das 
«Carnes»  e  do  «Pescado » .  A  cada  uma  das  mesas  presidia 
ma  almoxarife.  A  escripturação  corria  pelas  mãos  de  vinte 
e  dois  escrivães,  auxiliados  por  mais  ciuco  chamados  das 
entradas  e  por  quatorze  feitores.  Alem  d*estes  fancciona- 
rios  havia  um  juiz  tia  l)alança,  e  um  chanceller  ( uiii  o  seu 
escrivão.  As  quatro  mesas  da  «Casa  da  índia»  exerciam 
cumulativamente  fancções  fiscaes,  administrativas  e  con* 
tenciosas. 

Na  primeira  ou  «principal»,  em  que  tinha  assento  o  pro- 
vedor com  dois  escrivães,  um  lhesoureiro  e  um  olheiro, 
despachavam-se  as  roupas  e  pedrarias  da  Asia.  Na  segun- 
da, a  das  «Drogas»,  as  especiarias  e  artigos  da  índia;  na 
terceira,  a  da  «Armada»,  matriculavam  os  soldados,  que 
iam  servir  nas  conquistas;  finalmente,  na  ultima,  a  da 
«Cuiiiadoria  ethesouraria»,  escriptnravam-se  e  davam  en- 
trada todas  as  quantias  produzidas  pelos  direitos,  para  se- 
rem applicadas  ás  consignações  do  cofre.  O  provedor  ven- 
cia 2(^4^  reaes  de  ordenado,  o  guarda  mór  3(^(000 com 
a  propina  de  10;$000  para  um  escravo  e  para  uma 
arroba  de  especiaria,  o  juiz  da  índia  e  Mina  tinha  43^500 
reaes  por  anno,  o  lhesoureiro  95i$000,  e  o  guarda  livros 
30f$í000.  Cada  um  dos  sete  escrivães,  incumbidos  dos  as- 
sentos e  escripturação,  recebia  4OiSI000  reaes  por  anno, 
e  cada  um  dos  dezeseis  guardas  24^)1000.  O  serviço  bra- 
çal occupava  sessenta  e  cinco  homens  permanentes  e  mais 
quarenta  na  occasiâo  da  descarga  das  naus  ^. 

1  Fr.  Nicolau  de  Oliveira,  Grandezas  de  Lisboa,  trat.  vit,  cap.  iii 
e  IV.  No  século  xvi  ainda  as  repartições  fiscaes  do  imposto  de  con- 
sumo da  cidade  não  estavam  encorporadas  em  uma  só  casa,  corno 
no  século  xvii.  Existiam,  pois,  em  separado  as  «Tres  casas  de  A  ver 
do  peso,  Marçam  e  Herdades*  da  «Siza  da  fructa»,  da  «Siza  da 


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uúb  dLCiJLua  XVU  £  XVIU 


Resta  esboçarmos  uma  noticia  abreviada  ácerca  da  in-  ímuí«í|8ií 

dole  e  importância  das  contribuições,  e  da  fórma  por  que 
eram  administrada^,  as  receitas  publicas  na  primeira  me- 
tade do  século  XVU.  A  classiíicaçâo  dos  impostos»  e  o  modo 
por  que  se  lançavam  e  arrecadavam  em  harmonia  com 
o  atrazo  das  idèas  económicas  da  epocha,  reproduziam 
ainda  na  maior  parte,  em  sua  diversidade  multíplice  e  le- 
siva, as  feições  da  organisaçâo  tributaria  da  meia  idade. 
D.  DiuiZy  deânindo  no  começo  do  século  xiv  em  que  con- 
sistiam as  immunidades  dos  territórios  coutados,  distri- 
buia  os  encargos  dos  n3o  isentos  em  tres  categorias,  que 
na  realidade  os  abrangiam  a  iodos  n  aquelle  periodo. 
Eram  a  Hoste,  Fossado  e  Anaduva,  serviço  pessoal  de 
peões  e  cavalleiros  para  a  defeza  commum;  o  Fôro,  isto 

todos  os  outros  serviços  pessoaes  e  tributos  pecuniá- 
rios, ou  em  géneros,  directos,  oú  indirectos,  impostos  so- 
bre a  terra  como  instrumento  de  pruducção,  e  sobit  os 
valores  creados  pela  agricultura,  pelas  artes  labris  epelo 
commercio;  íinalmente  a  Peita^  expressão  equivalente 
de  eaiuimma,  que  resumia  as  numerosas  multas  penaes 
applicadas  ao  fisco,  formando  uma  parte  avultada  das 
contribuições  municipaes. 

Estas  bases,  modificadas  e  alteradas  nos  séculos  xv  e 
XVI,  ainda  mais  quauto  aos  accidentes,  do  que  em  rela- 
ção aos  elementos  capitães,  representavam  no  século  xvii 
um  dos  aspectos  mais  valiosos  do  systema  fiscal.  Mo  ol- 
videmos,  também,  que  n^aquelle  século  a  nobreza  e  o 
clero  continuavam  a  desíi  uctar  com  seus  beus  as  largas 
mercês  e  doações  da  corôasem  concorrerem  com  o  povo 


eaniejj.  do  "Paço  da  madeira»,  da  «imposição  nova  e  velha»,  da 
«Siza  do  ppixH«  e  da  «Siza  do  peixe  do  duque».  Summario  dat  oou- 
iOi  ecciesiasiicas  e  seculare$  da  cidade  de  Ltsboa. 

TOMO  T  ^ 


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HISTOMA  D£  POBTUGÁL 


i  pira  a  soluto  de  nenham  encargo.  O  privilegio  traçava 
entre  as  classes  iiniiiuiies  e  o  geral  da  população  uma  li- 
nha divisória,  que  as  leis  e  os  soberanos  não  ousavam 
Uanspor,  laas  que  procaravam  a  pouco  e  pouco  ir  estrei- 
la&doe  apagado.  O  imposto»  como  observa  o  sr.  A.  Ber- 
«Olano  em  referenda  á  meia  idade,  era  o  marco  de  sepa^ 
ração  erguido  para  estremar  o  hoiaein  dc  liabalho  das 
aristocracias  que  o  expioravam.  A  vilania  resumia-se  no 
imposto,  a  fidalguia  na  isenção  d'elle,  e  n'e&ta  parte  a  in- 
4ole  intima  da  sociedade  pouco  se  transformára.  Havia 
a^s  privilegiados,  mas  existiam  menos  priviiegios^ 
Duas  contí  itiiiii  òe^  directas,  uma  de  quota,  a  jugada, 
e  outra  de  repartição,  a  colheita,  feriam  o  trabalhador  con- 
vertido em  pmprietark)  livre.  Nos  foraes  do  typo  ou  for- 
WBkíL  ée  Santarém,  a  distribuição  das  leiras  era  sempre 
acompanhada  da  distincçlo  ordinária  entre  jugadeiros  e 
não  jugadeiros,  attribuiíido  o  pafiameiiio  iln  laiposto  pre- 
dial aos  primeiros  e  o  servicn  militar  aos  segundos,  k  ju- 
gada devia  ser  satisfeita  até  ao  natal,  dando  o  contri- 
iHUttte  um  moio  de  trigo,  de  milho  ou  de  cereal  cultivado 
por  cada  jugo  de  bois.  O  que  lavrava  de  parceria  com 
um  cavalleiro,  não  possuindo  h^is,  nãi)  pagava.  Ao  íia- 
balhador  de  enxada  pedia  o  íisco  uma  teiga  de  trigo  ou 
de  milho,  e  ao  peão  a  oitava  parte  do  vinho  e  do  linho, 
lá  se  vé,  pois»  que  a  jugaâa  significava  um  tributo  mo- 
irei  e  proporcional  em  relaçSo  à  extenso  das  proprieda- 
des, elevando-se  para  os  grandes  lavradores  conforme  o 
numero  das  charruas,  transformando-se  para  os  peque- 

í  Archivo  Xacional,  Chancellaria  de  D.  Diniz,  liv.  lu,  fl.  7f. — 
Vido  A.  (".aeíano  do  Amaral,  Memoriff^  di  Academia  Rfiol  das  Snen- 
das  de  Lisboa  ,  tom.  vi,  part.  ii,  pag.  120,  e  o  sr.  A.  Hercuiâiu^  -fito- 
toria  de  Portugal,  tom.  iv,  liv.  na,  part.  m,  pag.  i/H. 


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UOi»  »líJ(XUm  XVU  K  XYUl 


m 


nus  eui  contribui gào  lixa.  Ao  linho  e  no  vinho  a  quota  iBsiitaicMi 
era  determinada  pela  abundância,  ou  líela  escassfv.  da 
produção Nas  municipalidades  da  ExireoMduni  ape- 
nas peneirou  o  typo  do  foral  de  Santarém,  ao  passo  qtte 
se  estendeu  muito  pelas  terras  do  sd.  Entretanto,  mesnin 
n*eslas,  e  em  alj^umas  das  mais  importantes,  como  Beja, 
Extremoz,  Silves,  Castro  Marim,  Faro,  Loulé,  Tavira  e 
outras,  os  foraes  declaram  dijugada  abolida. 

A  cMeitã,  jatUãr,  ou  parada  do  rei  era  ins  dos 
poslos  mais  antigos,  e  dos  que  o  cFÒro  velho  de  Gastetta» 
considera  annexosao  summo  imf)erio.  Este  imposto,  mais 
gerai  que  u  da  jugada,  era  pa^t»  <'ni  iodos  os  dislrictos, 
aonde  aquelle  dho  estava  estabelecido,  liirecto»  mas  não 
individual,  e  não  aíSectando  uma^  classe  com  exeinsto 
das  outras,  a  eolkeita,  paga  collectivamente  peio  eonon* 
lho,  repartia-se  entre  os  seus  moradores  na  proponção 
do  que  possuía  cada  um  d  elles.  É  provável,  mas  nio 
pôde  ailirmar-se,  comtudo,  que  a  jugada  sub^tiluisse 
este  imposto  nos  grandes  municípios  da  primetra  foi«»> 
ia,  porque  á  sua  universafidade  e  ao  prineipto  absoluto, 
em  que  assentava,  se  juntam  provas  irreíragaveis  de  ha- 
ver sido  cobrado  em  grémios,  cujo  foral  o  nao  refere, 
dobram  nos  concelhos  da  segunda  Ibrmula,  e  ainda  nos 
das  outras  os  testemuÉtos  para  mostranem,  fie  m  exi- 
§tàOf  i^esar  das  cartas  conslftaltvas  da  povoaçio  o  ain 
citarem.  A  fórma  é  que  variava.  £m  uns  municipios  logo 
no  acto  da  organisação  se  determinava  a  quota,  coín  que 
cada  um  dos  vlunUos  devia  conttibuir,  e  a  obn^açio  osl- 

1  Historia  de  PartugtUj  tom.  m  e  iv,  part  m,  Ur»  m  A.CM9- 
naçãoFilippina  inseriu  no  liv.  11,  tit.  xxxiii  o  regimento  para  a  ar- 
noada^^  das  jugadafl,'  a  ao  g  l.<*  declara,  ^pié  4  misito  de\'«  ler  ein- 
coenta  e  seis  alqueires  pela  mt^dida  velha  usada  em  GoimiiiaeSlfr 
tarem  no  tenpe  de  D.  Manueâ. 


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UíSTOhlA  DL  POhíLGAL 


MMiifOM  lectiva  quasi  se  convertia  assim  em  encargo  individual  K 

Em  outros  enunciava  o  foral  a  totalidade  da  colheita, 
quando  em  vez  de  ser  pa^a  em  géneros,  se  reduzia  a 
mna  quantia  certa  em  dinheiro.  Os  ricos  homens  e  os 
prela(k)s  também  recebiam  dos  colonos  a  coUieiia  como 
fòro  ou  pensão. 

A  medida  que  as  victorias  contra  os  sarracenos  foram 
Hbertando  o  paiz  dos  flagellos  da  conrjuista,  e  que  a  se- 
gurança publica,  a  facilidade  das  permutações,  e  os  outros 
indícios  de  um  grau  mais  elevado  de  civilísação  se  mani- 
festaram, tanto  os  encargos  que  significavam  o  serviço 
pessoal,  como  os  que  eram  solvidos  em  géneros,  se  mo- 
dificaram por  composição  entre  o  rei  e  os  concelhos,  e 
uma  somma  lixa  e  annual,  repartida  pelos  habitantes  re- 
presentou a  sua  importância*  Esta  revolução  na  íórma  do 
imposto  e  na  sua  admínbtraçio  principiou  a  apparecerno 
reinado  de  Sancho  II.  Cada  vez  mais  acceita  continuou  a 
arreigar-se  nos  de  Alfonso  III  e  D.  Diniz,  conquistando 
sempre  terreno  até  se  generalisar^.  Havia  para  isso  moti- 
vo. A  transformação,  não  só  facilitava,  símplificando-a 
muito,  a  percepção  dos  impostos,  mas  era  prenuncio  vi- 
sível da  prosperidade  progressiva  e  material  do  povo,  e 
mais  um  fiador  valioso  das  condições  de  liberdade,  que 
ia  alcançando.  Por  estes  contratos  ou  substituições,  os 
grandes  concelhos,  e  depois  até  as  aldeias  de  pequeno 
vulto,  conseguiram  resgatara  dos  vexames  da  cd>rança 
das  rações,  direituras,  foragens,  colheitas  e  de  todos  os 
multiplicados  ónus  locaes,  que  as  opprlmiam,  a  troco  de 
uma  renda  certa  em  oiro  ou  prata.  Ao  mesmo  tempo  a 
aristocracia  bm*gueza,  que  se  começava  a  robustecer, 

1  Historia  de  Portugal,  peio  ar.  A.  Herculano,  tom.  iv,  liv.  vni, 
pari  III. 

2  Ibidem,  tom.  iv,  liv.  viu,  part.  ui,  e  tom.  ui,  liv.  ?i. 


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DOS  8EGUL08  XYH  B  Tfm 


453 


comprava  por  este  prego^  embora  em  muitos  casos  sape-  iMtttai90« 
ríor  aos  encargos  remidos,  garantias  solidas  contra  a  pre- 
potência dos  ricos  homens  e  dos  prestameíros,  e  contra 

os  abusos  dos  oíriciacs  do  rei.  O  fisco,  vendo  iia  terra  a 

principal  e  (juasi  a  única  fonte  de  receita,  procurava  tirar 

d  elia  o  maior  proveito. 
Alem  dos  serviços  pessoaes  da  milicia,  e  das  jugadas 

e  colheitas  que  constituíam  o  tributo  predial  de  quota  ou 
(1 '  repartição,  mais  rendoso,  mui  las  contribuições  locaes 
pesavam  directaineiíle  sobre  a  producção  agrícola,  ou  so- 
bre as  artes  dependentes  d^eUa.  Entre  ellas  figuravam  o 
moniado^  direito  real  pago  pelos  rebanhos  apascentados 
nos  termos  de  alguns  concelhos,  e  o  eonéMOs  menos 
commum,  lançado  sobre  a  caça,  a  pesca,  o  mel  e  a  côra 
dos  enxames  alpestres.  Ainda  não  era  tudo.  Se  muitos 
municípios  concorriam  para  as  despezas  publicas  com  es- 
tes impostos  e  a  avultada  verba  das  multas  criminaes, 
arrancados  sempre  com  a  desigualdade  e  as  irreíralari- 
dades  pro()rfas  de  uma  administração  ainda  nos  rudimen- 
tos, em  outros  grémios,  e  até  em  districtos  inteiros  sobre- 
viviam algumas  imposições  anteriores  á  sua  fundação, 
como,  por  exemplo,  em  Traz  os  Montes  a  martinadega, 
quota  fixa  solvida  pelo  cabeçada  família,  quando  a  renda 
annual  excedia  um  certo  limite,  e  como  em  outras  pro- 
vincias  a  almocremria^  recovagem  ou  carreira  gratuita 
exigida  dos  almocreves  para  o  serviço  do  rei.  Libertarem- 
se  de  todas  estas  taxas,  mediante  uma  somma  fixa  e  de- 
terminada, paga  aos  quartéis,  era  um  grande  allivio  para 
os  contribuintes  e  um  grande  passo  para  o  principe.  Am- 
bos lucravam  muito  ^ 

l  São  niilosrís  estes  contratris  de  snbsfitnirõps,  (juf  alguns  fscri- 
ptores  pouco  attentos  confundiram  coia  os  diplomas  de  fundarão  de 
iioyoft  momcipioft.  £m  Melgaço  o  rei  justou  com  o  concelho  em 


L.iyui<-cu  Google 


164 


HiSXOlUA  DE  PORTUGAL 


hmú0m  Outra  fonte  tambeíii  copiosa  para  a  corôa  eram  as  suas 
propriedades,  ou,  mais  exacto,  os  bens  do  estado,  consti- 
liiiilos  noa  primeiros  tempos  da  moDardiia  pelas  terras 
doa  nouros  teocidos,  pelas  terras  fiscaes  dos  sarracenos, 
pélM  que  és  partieiiiares  podiam  perder  i)or  crimes,  ou 
por  motivos  analof^os,  e  pelas  que  o  direito  de  matiínha- 
ãego,  ou  manerin  fazia  cair  nu  doiniiiio  real,  assim  como 
pertenc&am  iguatmente  a  esse  domioio  os  tributos  lis- 
caes,  as  contribuições  sobre  eompras  e  vendas,  as  por- 
tagens, as  multas  eríminaes  e  as  heranças  jacentes.  As 
terras  da  corôa  produziam  luira  a  íaziuda  real  como  qual- 
quer prédio  particular  para  seu  dono,  e  a  sorte  dos  seus 
cultivadores  oão  se  reputava  ipellior,  que  a  dos  colonos 
que  subsistiam  do  dominio  util,  ou  a  dos  malados  que 
agricultavam  os  terrenos  do  clero  e  da  nobreza,  k  posi- 
ção dos  primei n  i>  em  pouco  ou  nada  diíTeria  da  dos  se- 
gundos. Os  prédios  da  corôa,  em  geral,  reduziam-se  a 
tres  classes:  a  dos  reguengos  simplices,  cujo  titulo  era  a 
avoenga  ou  a  residência  dos  antepassados;  a  dos  reguen- 
gos aforados,  e»  que  havia  certa  translação  parcial  do 
dominio,  e  aonde  se  aílirmava  de  novo  a  hereditariedade 
em  virtude  de  iiin  i  espécie  de  adscripção  voluntária,  e 
a  dos  reguengos  Uansteridos  a  colonos  ingénuos  em  tem- 
pos remotos  por  contratos  livres.  As  terras  usufruídas 
sem  liiulo  podiam  ser  tiradas  e  aforadas  de  novo,  e  por 
vexes  as  que  um  colono  desamparava  por  causa  do  ex- 
cessivo peso  dos  encargos,  ou  de  que  era  expulso  pelos 

converter  lu  renda  certa  de  350  morabitinos  todos  os  fóros,  calU' 
mnias  e  direitos.  Em  Vianna,  por  t :  100  morabitinos,  e  em  Vinhaes,  por 
600  libras.  Em  1261  o  concelho  dc  Leiria  dissolveu  a  conversão  por 
lesiva.  D.  Diniz  contratou  com  o  concelho  de  Lamego  a  somma  an- 
nual  de  100  libras  em  troca  da  colheita.  UisfariadiPíHiugalg  tornam, 


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não  solver,  se  convertiam  em  herdamentos  jugadeiros,  ou  ítt44U»içô«» 
se  arrendavam  aos  annos  por  quotas  de  fructos  e  rações. 

Os  reis,  alem  d'estes  bens  tinham  tambm  os  que  erao 
propriamente  patrímoniaes,  herdados»  con^prados»  ou  ad- 
quiridos por  doaçiSo  ou  por  industria,  e  podiam  dispor  li- 
vremente d'elles,  dando-os,  vendendo-os  ou  alienando-os. 
Os  da  coroa,  porém,  inalienáveis  por  sua  natureza,  erapro» 
hibidopeiasleisfundamentaes  dissipa-los  sobqualquer  pre- 
texto. Gomtudo,  as  necessidades,  do  governo,  a  raridade 
da  moeda,  e  as  idéas  religiosas  da  epocha  influíram  logo 
nos  primeiros  séculos  na  prodigalidade  com  que  os  sobe- 
ranos distribuindo  avultada  parte  d'elles  ás  igrejas  e  nM>s- 
teiros,  aos  ricoshomens,  e  ás  ordens  militares  desfalcaram 
o  seu  cumulo.  Nas  epocbas  seguintes  o  predomínio  das 
classes  privile^Madas,  a  escassez  de  meios  pecuniários  para 
lhes  pagar  as  quantias,  e  outras  circumstancias  nlo  con- 
correram menos  para  os  próprios  da  coroa  e  as  contri* 
buições  municipaes  serem  desbaratadas  pela  excessiva  e 
reprehensivel  largueza,  com  que  foram  concedidos  em  al- 
caidarias,  em  prestamos,  em  jurisdiccôes  e  em  muitas  ou- 
tras íóraias  de  Jiiercês  lucrativas  aos  senhores  ecciesias- 
ticos  e  seculares,  não  diminuindo  só  e  estancando  os  ma- 
nanciaes  mais  abundantes  da  receita  publica»  mas  ferindo 
essencialmente  os  príncipios  de  harmonia  e  de  subordi- 
nação do  coi  po  politico  ^  I J  i^slas  diversas  e  variadas  ver- 
bas de  rendimento,  mais  ou  menus  modificadas  pela  le- 
gislação, pelo  tempo,  e  pela  alteração  das  idéas  e  dos 

1  Herculano,  Apontamento  para  a  BUtoría  dos  foraett  e  àoi  hem 
da  eoréa,  no  jornal  o  Panorama. — Marina,  EnMOffoHktorko^mHeo 
tobre  la  antigvu  leyislacion  y  prindpales  cuerpos  legaie$  de  loe  rey» 
710$  dê  I^on  ff  CaMía,  etc,  pag.  dl  a  64.»irfSfom  de  Portugal, 
p.elQ  ar.  A.  Herculano,  tom.  ni,  liv.  viii,  e  tom.  nr,  liv.  vi  e  vn.— Fr< 
NicoUn  da  Oliveira»  GrandeMoi  do  Uthoa,  trai  ix,  cap.  il 


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456 


HISTORIA  DE  POBTUGAL 


lastHmQOM  costuíues,  SB  coHipunhain  as  receitas  dos  almoxarifados 
no  século  xvi  e  na  primeira  metade  do  século  xvii,  arre- 
cadando em  rendas  dos  reguengos,  jogadas,  lezírias  e 
paúes»  lermo  médio  jpor  anno»  dois  mil  e  duzentos  moios 
de  trigo  e  mil  cento  e  cíncoenta  de  cevada,  sem  contar 
setecentas  e  setenta  e  sete  arrobas  de  cera  das  propinas, 
e  as  qu;iii(ias  pagas  em  moeda. 

Os  impostos  indirectos  sobre  impuriagòes  e  exporta* 
çQes  de  mercadorias  estrangeiras»  sobre  compras  e  ven- 
das por  grosso  e  por  miúdo,  sobre  a  mntaçSo  dos  bens 
de  raiz,  e  sobre  o  consumo,  de  origem  municipal  ou  de 
preceito  geral,  representa v;im  desde  o  século  xv,  espe- 
cialmente» uma  parle  avultadíssima  dos  rendimentos  pú- 
blicos, sem  a  qual  a  administração  não  poderia  manter-se, 
nem  occorrerao  augmento  progressivo  das  despezas.  En- 
tre estes  impostos  sobresaía  o  das  asizas>s  sempre  mal 
visto  dos  povos  pela  oppressão  da  cobrança,  detestado 
das  classes  aristocráticas,  porque  não  haviam  sido  eiu^- 
ptaadas  d'eUe,  quando  se  decretara,  e  defendido  pelos 
monarchas  e  seus  vedores  da  fazenda  como  a  ancora  mais 
segura  de  todo  o  syslema.  Daremos  uma  rápida  informa- 
rão «icerca  do  n iodo  por  que  Ibi  introduzido,  da  maneira 
por  que  alleciava  os  contribuintes  e  da  fórma  por  que  se 
procedia  na  sua  arrecadação.  O  estabelecimento  das  si- 
zas,  como  contribuição  geral,  representou  um  passo  im- 
portante adiantado  na  organisação  da  fazenda  e  um  pro- 
gresso scnsivel  no  sentido  da  igualdade  de  todos  os  súb- 
ditos perante  o  imposto,  porque  d'esta  vez  os  privilegiados 
foram  comprehendidos  no  rigor  da  lei  sem  exclusão  de 
nenhum  ^ 

1  M(».capitulos  (los  fidalgos  na»  córtea  de  Coimbm  de  1398  figu- 
ram as  queixas  contra  as  sizas,  e  sSo  claras  as  referencias  á  sua  exis- 
tendft  no  tempo  de  Affonso  IV,  Pedro  I  e  D.  Feinando.  A  clausula 


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DOS  SÉCULOS  xm  E  xvin 


o  tributo  não  era  novo  e  tinha  sido  ensaiado  parcial  e  iMtitiií绫i 
temporariamente  no  governo  do  Âíibiiso  IV,  de  D.  Pedro  i 
e  de  D.  Feroanâo.  Âcciamado  rei  em  1385,  e  a  braços 
com  a  guerra  da  independência,  D.  João  I  alcançou  que 
as  côrtes  de  Coimbra  de  1387  lhe  concedessem  sizas  ge- 
raes  para  as  despezas  da  resistência  nacionaí  e  [>ara  os 
outros  encargos  da  administração,  e  que  no  mesmo  anno, 
em  novembro,  as  de  Braga  se  obrigassem  ao  pagamento 
d'6llas  dobradas.  Nas  còrtes  de  Coimbra  de  1390  e  nas 
de  Évora  de  1408,  os  povos,  apesar  de  queixosos  dos  ve- 
xames da  cobrança,  cuuíii  iiinram  o  sacrifício,  e  em  1408 
restaurou  el-rei  com  assentimento  d  elles  o  terço  das  si- 
zas quitado  no  princípio  da  tregoa  ajustada  com  o  reino 
de  C^stella,  applicando-o  á  reparação  das  fortalezas,  orí* 
gem  do  imposto  permanente  denominado  depois  «terças 
dos  cm la  lhos».  Terminada  a  liitn,  i'  assegurada  a  paz,  en- 
tenderam os  contribuintes  que  tmha  cessado  a  rasão  da 
nova  taxa,  e  requereram  a  soa  abolição,  ailegando  as  ex- 
torsões a  que  os  sujeitava ;  mas  nem  D.  João  I,  ou  D.  Duar- 
te, nem  Aflfonso  V  podiam  dispensar[uma  receita,  com  que 
acudiam  ás  necessidades  mais  urgentes,  e  todos  os  pedi- 
dos foram  escusados  com  pretextos  difíerentes.  Naassem- 
bléa  de  1 481-í  482  os  procuradores  dos  concelhos  renova- 
ram a  supplica,  e  no  capítulo  cxxiv  encareceram  os  males 
que  resultavam  ao  paiz  da  arrecadação  das  sizas,  e  parti- 
cularmente dos  nnilios  e  tropelias  dos  exactoi  es  judeus, 
com  os  quaes  os  monarchas  contratavam  as  arrematações 
locaes.  D.  Joio  ii  foi  mais  sincero  do  que  alguns  dos  seus 

mais  oíTensiva  para  o  clero  e  os  nobres  era  a  generaUdade  do  im- 
posto, e  D.  João  I  na  soa  resposta  mostra,  que  e]Ia  fôra  sempre  ob- 
servada nos  tres  reinados  anteriores  sem  cxcepçSò  de  fidalgos  e  clé- 
rigos, e  até  do  rei,  da  rsinba  e  dos  infantes.  Ordenação  Aftmtma^ 

,  liv.  II,  tii  LIX. 


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fBttítpitiw  pred^eessores,  e  sem  a  menor  lie»U(9o  declarou,  que  o 

iniposlo  (Ins  si/.ns  seria  mantido  como  essencial  á  coDser^ 
vação  do  Bslado.  Em  4498  D.  Manuel,  sustentando  os 
loosmofi  {iriivcipios.  indeferiu  Uiml>em  o  capituk>  xm  das 
côrtes  de  Lisboa,  notando  que  o  producto  d*esta  e  de  to* 
das  as  rendas  publicas  revertia  em  proveito  dos  povos, 
que  teriam  sempre  de  occorrer  pni  ([u  iiquer  modo  á  sa- 
tisíação  dos  encargos  da  administração  ^. 

Os  regulamentos  e  as  declarações  decretadas  para  pre* 
venir  e  aDouIlar  as  fraudes,  e  tornar  o  imposto  mais  ren- 
doso, apertavam  cada  vez  mais  os  rigores  fiscaes,  e  D.  Ma- 
iiiiel,  colliíifindo  em  (>  de  março  de  1509  toda  a  legislação 
sobre  o  assumpto,  íormou  d'ella  quasi  um  verdadeiro  có- 
digo posteriormente  emendado,  interpretado  e  additado 
em  conselho  dos  vedores  e  letradospor  el-rei  D.  Sebastião. 
Cresciam  entretanto  os  clamores  contra  a  sua  execução,  o 
nas  cortes  de  4525  (  »>  povos  pedi  i  am  e  obtiveram  de 
D.  João  111  em  Torres  Novas,  que  demiltisse  dos  exacto- 
res  reaes  a  cobrança,  transterindo-a  por  contrato  de  uma 
somma  determinada  para  os  concelhos,  que  requeressem 
este  beneficio,  os  quaes  n9o  eram  todos,  nem  talvez  a 
maioj  ia  dos  do  reino.  Na  assembléa  de  Évora  de  1535, 
dez  annos  defmis,  já  arrependidos  da  reforma  que  a  expe- 
riência lhes  provara  ser  mais  oppressiva,  do  que  os  males 
anteriores,  o$  procuradores  do  terceiro  braço  solicitaram 
a  revogação  dos  contratos,  achando  menos  lesiva  a  acção 
dos  mmistros  do  rei,  do  que  a  repartição  concelhia  dO 
enc^go  calculada  poi*  certo  em  quantias  superiores  ao 

•  Córtes  i\n  1481- 1  'i8:f,  Archivo  Nacional,  maç.  3  de  ctlrtes,  n."  5. 
cap.  cxxiv,  e  resposta  de  Kl-Rei. — C«>i  tes  de  Lisboa  de  Í49b,  cap.  xiii, 
e  resposta  Uc  £l'Rei,  Archivo  Nac^ional,  maç.  4  de  aoJamagto  e  cOf - 
tdft,  4. 


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producto  da  contribuição  arrecadada  pelo  estado.  Annuiu  in*tàittiíõ*i 
o  soberano,  e  a  lei  17.^  das  cortes  de  1535  veiu  satisfazer 
os  votos  da  assembléa.  Mas  era  grande  a  vaotagem  de 
aaferír  uma  renda  segara,  afiançada  pela  responsabilidade 
■  eollectiva  dos  concelhos,  e  no  governo  de  D.  Sebastilo, 
ao  qual  este  rarnu  de  admiaistração  mereceu  nrn  cuidado 
especial,  o  systema  da  arrecadação  por  via  dtt  i  endeií  os 
foi  abolido,  substituindo-o  o  dos  «encabeçamentos», 
partidas  pelos  moradores  proporcionalmente  as  sommas 
fixadas  em  harmonia  com  o  regimento  promulgado  para 
facilitar  a  execução  do  novo  principio 

A  origem  das  sizas,  introduzidas  em  Castella  por  San- 
cho IV,  como  tributo  real,  datou,  segando  vimos,  daepo- 
cha  de  D.  Joiio  I;  porém  a  saa  existência  como  imposto 
popular  e  concelhio  remontava  pelo  menos  a  1311,  con- 
forme aííirma  o  chronisla  Fernão  Lopes,  citando  entre 
outros  exemplos  o  da  vi  lia  de  Setubnl.  A  cidade  de  Lis- 
boa valeu-se  d'e$te  meio  pnocipaimente  para  acudir  no 
tempo  de  D.  Fernando  aos  encargos  da  guerra  e  ás  es- 
treltezas  do  cerco  posto  pelos  castelhanos.  As  sizas  con- 
sistiam em  ló  por  centit  (i  soldos  por  lihra),  sobre  todos 
os  artigos  comprados,  vendidos  e  trocados,  menuà  pão 
cozido,  oiro  e  prata,  pagando  o  comprador  5  e  o  vende- 
dor outros  5,  e  isto  tantas  vezes  quantas  esses  artigos 
entrassem  em  venda,  ou  em  troca.  Os  preços  estipulados 
entre  as  partes  serviam  de  base  á  contribuição  nas  compras 
e  veadas,  e  á  avaliação  previa  que  recaía  sobre  as  per- 

*  Regulamento  das  sizas  de  6  de  março  de  1509,  impresao  eu  a 
mui  nobre  e  sempre  leal  cidade  de  Lisboa  em  casa  de  Manuel  Joam, 
anno  mdlvi.— Côrtes  de  Torres  Novas  e  de  Évora  de  Í525-I535, 
cap.xcv,  e  resposta  de  El-Rei. — Regimento  dos  encabeçamentos  das 
sizas,  provisão  de  i3  de  janeiro  de  i30&— -  Sjfstema  ou  coUecçio  de 
liaiBMHitne  geay,  tom,  l 


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460 


HISTORU  I»E  PORTUGAL 


iBsutuiçòes  mutações.  O  sal  devia  dar  10  libras  por  alqueire.  O  tri- 
buto abrangia,  portanto,  na  sua  generalidade  todas  as 
mutações  de  propriedade  e  todos  os  géneros  de  consumo, 
e  em  especial  os  de  maior  uso  e  de  primeira  necessidade. 
NIo  havia  transac^^o  em  que  o  fisco  ião  interviesse,  nem 
valor  creadu  i)ela  agricultura,  pela  industria,  ou  |)elo  com- 
mercio  que  elle  não  ferisse.  Nos  cereaes  o  imposto  co- 
brava-se  no  momento  da  circulação.  No  vinho  repartia- 
se  entre  o  comprador  e  o  vendedor,  em  partes  iguaes, 
quando  se  negociava  em  grosso,  e  caía  sómente  sobre  o 
dono  quando  se  consumia  a  retalho  ou  atavernado. 

O  lavrador,  ao  que  parece,  não  era  collectado  pelo  vinho 
gasto  em  sua  casa,  ou  bebido  pelos  trabalhadores  occupa- 
dos  no  amanho  das  fazendas.  A  quota  da  contribuição  su- 
bia mais  alto  em  Lisboa,  do  que  nas  outras  localidades,  e 
as  pipas  só  podiam  entrar  na  cidade  por  uma  das  cinco  por- 
tas de  Santo  André,  da  Cruz,  de  S.  Vicente,  de  Santo  An- 
tão e  de  Santa  Gatharlna.  As  que  saíam  do  reino  pagavam 
direitos  de  exportação.  Nas  carnes  a  imposição  affectava 
igualmente  a  venda.  Dos  carniceiros  arrecadava-se  a  siza 
pela  compra  do  gado  e  pelo  talho,  e  dos  creadores  no 
acto  da  venda  para  o  açougue.  O  peixe  não  satisfazia  só  o 
tributo  ao  fisco  no  mercado,  mas  até  o  pagava  na  saída 
por  mar  ou  por  terra  das  villas  e  logares.  Finalmente,  o 
imposto  do  sal  recaía  também  sobre  a  venda,  dividido  em 
partes  iguaes  entre  o  comprador  e  o  vendedor,  mas  este 
ultimo  é  que  respondia  pela  totalidade.  D.  Manuel,  para 
facilitar  o  abastecimento  de  Lisboa  e  da  côrte,  isentou  de 
direitos  de  siza  e  de  portagem  as  aves  domesticas  e  as  de 
caça,  e  de  dizima  e  siza  as  carnes,  legumes,  queijos  e 
manteiga  de  íúi  a  do  paiz,  e,  logo  depois,  com  a  idéa  de 
captar  as  s}  mpathias  do  clero,  declarou-o  exceptuado  do 
pagamento  da  siza,  portagem  e  dizima,  mercê  a  qae  os 


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DOS  8EC0L0S  XVU  E  XTin 


461 


íQteressados  se  moslraram  gratos.  No  século  xvit,  até  tatutuicsM 
i640,  as  alterações  na  contribuição  geral  de  consumo  fo- 
ram de  pequeno  vullo  e  só  tendentes  a  exacerbar-lhe  o 
rigor*. 

As  conlnbiiições  muaicipaes  de  consumo,  de  venda  e 
de  transito,  consignadas  nas  cartas  de  foral  dos  conce- 
lhos, muito  anteriores  ao  tributo  das  sizas,  continuaram  a 

ser  arrecadadas  em  todo  o  xvi  século,  e  na  primeira  me- 
tade do  XVII,  com  as  moililicações  inseridas  í)ela  reforma 
de  D.  Manuel  para  esclarecimento  dos  pontos  duvidosos 
em  relação  a  alguns  encargos,  â  variação  dos  antigos  pesos 
e  medidas,  e  á  moeda*  Estas  pautas  locaes,  diversas  umas 
das  outras,  e  muitas  vezes  hostis  até  contra  determinados 
grémios  e  classes,  colleclavam  á  entrada,  á  saídíi,  oa  nos 
mercados  os  géneros  de  consumo,  e  restringiam  de  pro- 
pósito deliberado  em  muitos  logares  a  liberdade  das  trans- 
acções. De  ordinário  estas  taxas  indirectas  moldavam-se 
em  três  formas  distinctas,  que  eram  a  portagem,  a  açou- 
gagem  e  a  passagem,  A  portagem  recordava  o  moilci  no 
direito  de  iiarreiras,  até  porque,  sendo  as  villas  muradas 
e  fortificadas,  se  arrancava  também  ás  portas.  A  açou^ 
ga^em  cobrava-se  no  sitio  do  consumo,  na  praça,  ou  mer- 
cado diário.  A  passagem  ou  peagem^,  em  alguns  docu- 
mentos denominada  partagem,  era  ás  vezes  direito  de 
transito,  de  que  apparecem  íúra  dos  concelhos  vestigios 
frequentes,  e  pesava  sobre  as  mercadorias  entradas  nas 
terras,  embora  sem  destino  de  serem  vendidas  n'eUas'. 

*  FernSo  Lopes,  Chronica  de  El-Rei  D,  João  I,  paií.  ii,  cap. 
cem.- — Regimento  das  sizas  de  6  de  março  de  1509,  cap.  i,  xxii,  Lvir, 
e  cap.  II,  X  e  lvhi.  —  Ordenações  da  fazenda  de  17  de  outubro  de 
1316,  cap.  ccxxii. — Coelho  da  Rocha,  Eiisaio  sobre  a  Hútoria  da 
Legislação  e  do  Governo  de  PortuyaI ,  ''pijc.  \  i,  ai  t. 

*  A.  Herculano,  Histoi  ta  de  Fm^tugai,  tom.  iv,  iiv.  viii,  paiU  lu. 


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«KToaià  M  mitJâAL 


£  inutíl  acrescentar»  que,  sendo  a  variedade  o  caracter 
essMKial  das  institulç^tes  da  meia  idade,  a  acougagem  em 

nns  municípios  era  assás  coiíiniuiii,  a  passagem  não  exis- 
tia em  outros,  e  a  put  tiujvín  vigorava  em  todos,  não  ha- 
vendo» porém»  ttniíormidade,  nem  quanto  á^quota  do  tri- 
bulo,  nem  quanto  aos  géneros  collectados. 

O  principio  mais  seguido  em  relação  á  portagem  con-* 
sistia,  peio  menos  com  resjjeito  a  diversos  objectos,  em 
í>e  pagarem  direitos,  tanto  pela  entrada,  como  pela  saída, 
e  nas  operações  duplas,  isto  é,  de  importação  e  exporta- 
çio,  em  serem  sã  oneradas  as  mercadorias  importadas. 
Os  mercadores  naturaes  do  concelho  por  melo  da  soldada, 
espécie  de  avença,  podiam  liliertar-se  do  vexame  das 
barreiías.  (|ue  oppi  iHua  (juasi  exclusivamente  o.>  tie  fóra 
do  municipio.  Mas  não  se  reduúam  só  a  isto  as  exacções, 
qoe  entorpeciam  e  «nbaraçafam  os  actos  de  compra  e 
venda,  e,  se  nio  oocorria  vulgarmente  a  aocumulaçao 
de  todas  no  mesmo  concelho,  em  nenhum  deixavam  de 
coexistir  comtudo  algíunas.  A  alcavala,  a  alcaidaria, 
o  jul§êdú^Q9L  relegagem,  ou  relego,  appareciam  com  mais 
frequência  acompanhadas  de  vestigios  de  outras  da  mes- 
ma índole  como  as  aehaws  e  fangas.  As  feiras  captivas, 
semanae®,  feitas  em  <lias  determinados  nos  armazéns, 
ou  alíandeíías  reaes,  e  sujeitas  ás  foragens  cpie  se  íjue- 
riam  impòr  ao  mercado,  completavam  o  quadro,  mos- 
trando até  onde  aicançava  a  per^icada  fiscal  para  en« 
xertar  novos  irihntos  ao  tronco  dos  geralmente  acceítos. 
Grandes  defeitos  accusavam  este  systema,  ou,  mais  exa- 

Os  direitos  de  passagem  sao  mais  vpzfs  nliudidos  nos  íoraes  para  os 
abolir,  (lo  que  para  08  manter.  Os  tiabitantes  do  concelho  podiam  in- 
troduzir livreiDeáte  ^  IractoB  ée  mas  prédios  ruraes  para  o  cos- 
sumo  dojaestieo. 


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eto,  eâta  espécie  úe  cahos  tributário.  O  primeiro  era  o  tMiMnii^wi 
exereito  de  agentes  e  de  exactores  lançado  eontfà  os 

contrilmintes,  aggravando  ainda  o  mal  a  pratica  das  ar- 
rematações, que  subslituiam  o  interesse  particular  ao  éo 
âsco  na  cobrança.  O  segundo  derívava-se  daisençlo  co^ 
cedida  aos  vizinhos  de  maitos  conoeltios  e  aos  homens  e 
eòlooos  dos  fidalgos  e  clero  de  pagarem,  privilegio  de 
que  nasciam  mil  fraudes  e  contestações.  As  pautas  e 
os  iiri[)Ostos  municipaes  sobre  o  consumo  oppunham  um 
obstáculo  permanente  aos  progressos  da  lavoura  e  da 
indtt^ria  e  paralisavam  a  circula^  e  o  commerdo,  co- 
Ihendo-os  em  uma  linha  de  postos,  que,  separando  qnasí 
como  individualid;nles  estranhas  e  adversas  as  povoações 
umas  das  outras,  estei)diam  sobre  todo  o  paiz  o  braço  dos 
exactores  para  lhes  suffocar  o  desenvolvknento.  Na  prí- 
men  metade  do  século  xvii  a  tetra  e  ^  encargos  éos 
fSoraes  reformados  ^Istíam  ainda.  A  vida,  a  força  e  a  hi- 
cíativa  e  que  haviam  deixado  ha  muiio  aqueiles  corpos 

*  A  Alcavala  coiisislia  em  uns  Uulos  dinheiíos  sobre  a  carne 
vendida  no  inorcado,  c  por  isso  andava  unida  á  açougagem.  A  al- 
caidaria  era  uma  foragoni  estalickM-ida  em  favor  do  alcaide  mórde 
2  dinheiros  por  cada  carga  de  peixe  posta  na  pmra.  O  julgado  vi- 
nha a  ser  igual  á  alcavala  e  análogo  a  í//eííítí«r «a,  porque  sepa^^ava 
ao  magistrado  jurisdicional  em  vez  de  aleaide  niór.  A  reiegayem  liuha 
por  objecto  facilitar  a  venda  do  viídio,  que  o  eslado  receljia  do 
tributo,  marcando  o  praso  de  (res  mezes.  do  1.'  de  janeiro  até  ao  1." 
de  abril,  para  o  exclusivo  do  mercado  real.  N*este  praso  nenhum 
particular  podia  vender  o  seu  género.  Esta  prohibirão  abrangia  só 
a  producçâo  do  couceiiio,  a  de  íóra  entrava  e  veudia-sc  pagaiido  um 
almude  de  relegagem  por  carga.  Vide  sobre  o  relego  no  século  xvii 
a  Orden.  Filip.,  liv.  ii  tit.  xxix.  O  tributo  das  ocliarns  era  um  di- 
reito sobre  os  géneros  vendidos  ao  alqueire,  ou  ao  alruude  nns  fan- 
pas,  mercado  especi?^!  do  <»ereaes,  aonde  concon'eriawi  em  âíHi- 
mas  partes  íructas  d«  casca  e  iegumes. 


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464  UiSTOUâ  DK  MftTOOàL 

buttaífOM  Os  direitos  de  importação  e  de  exportação  iião  eram 
menos  pesados  e  lesivos,  e  cobravam-se  ás  vezes  sobre  o 
mesmo  artigo  em  muitas  estações  fiscaes.  O  commercío 

uppniiiido  por  elles  e  pelos  vexames  da  íiscalisação  mal 
podia  respirar,  \arias  mercadorias  pagavam  10  e  em  mui- 
tos casos  20  por  cento  do  valor,  compreheodeudo  a  siza 
e  a  decima*  Sobre  o  vinho  exportado  recaía  a  taxa  da  im- 
portância de  almude  e  meio  em  dinheiro  por  tonel  na 
casa  da  Portagem.  Os  pannos  e  estofos  do  lã  registados  e 
selladus  nos  logaies  da  producção,  alem  do  imposto  de 
*èO  por  cento  (de  decima  e  siza),  não  traospuntiam  as 
fronteiras  sem  serem  ioscriptos  e  dizimados  nas  alfande- 
gas dos  portos  seccos.  As  pautas  feriam  sem  dlsttnc^ão  á 
tiíitrada  e  á  saida  os  artigos  fabris  e  os  géneros  alimen- 
ticios.  Foram  exceptuados  unicamente  da  regra  os  cereaes 
estrangeiros,  que  entravam  livres  de  direitos,  a  cortiça 
despachada  em  Lisboa,  que  só  pagava  5  por  cento  de 
siza,  e  iO  de  decima,  o  tabuado  para  constnic^s  quite 
de  tributo  e  as  armas  fabricadas  em  Biscaya.  Ás  madei- 
ras da  America  poi  tugueza  e  ao  pau  Brazd  não  so  pedia 
senão  metade  da  siza,  ou  ô  por  cento  K  Ás  especiarias  ven- 
didas em  Lisboa  não  ae  exigia  também  senio  meia  siza, 
devendo  circular  depois  sem  novos  ónus  ou  despachos. 
As  laxas  calculavam-se  sobre  o  valor  das  mercadorias 
avaliadas  pelos  feitores  sobre  declai  ação  dos  interessados, 
e  a  lei  concedia  o  deposito  e  os  pagamentos  em  prasos. 
As  fazendas  de  AUemanha,  Flandres  e  Inglaterra  não  po- 
diam entrar  por  terra,  e  as  de  Gastella,  satisfeitos  na  raia 
20  por  cento  de  siza  e  decima,  transitavam  sem  outro 

^  No  lom.  Pí,  Uv.  VI,  cap.  iv,  v  e  vi  se  eneoairurio  laigamfinie 
dBMVohidas  todas  as  notieias  rdativaa  ao  ngímeD  dat  aUuidfigai 
deaâe  o  aeeulo  ziv  até  á  primaira  matade  do  xva. 


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DOS  SÉCULOS  XVU  S  XTOI  465 

embaraço  pelo  interior  do  reino  munidas  das  respecti*  biUtwgBw 
vas  guias  * . 

£m  io92  (á8  de  novembro)  creou  Filippe  II  em  Lis- 
boa o  tribuaal  denomiDado  do  cGoDsalado»,  instituido» 
diz  elle,  á  similbança  dos  que  existiam  em  outras  na- 
ções, composto  de  homens  de  negocio,  de  um  letrado 
accessor,  de  um  juiz  de  appellação  e  de  quatro  conse- 
lheiros com  seus  escrivães,  feitor,  thesoureiro,  conta- 
dor, e  marinho  privativos,  presidido  por  macheie  com 
a  designação  de  prior.  Esta  organisaçio  fôra  planeada  no 
tempo  do  cardeal  rei  D.  Henrique,  e  o  monarcha  hespa- 
nhol,  ao  que  parece,  engrandeceu  o  primeiro  risco.  A 
casa,  ou  mesa  dos  negócios  mercantis  foi  investida  em 
afctribuições  amplissimas,  competindo-ihe  o  julgamento 
das  causas  entre  os  mercadores  e  seus  agentes,  os  pleitos 
dependentes  do  tracto  commercial,  as  duvidas  sobre  câm- 
bios e  seguros,  e  todas  as  questões  sobre  fretamentos  e 
marinhagens.  D.  Filippe,  para  prover  ás  despezas  dos  or« 
denados  do  pessoal  da  repartido  e  sustentação  das  arma- 
das aprestadas  contra  os  corsários  para  segurança  dos  na- 
vios, lançou  um  novo  Imposto,  chamado  do  cconsuladoi, 
sobre  as  mercadorias  ;j})ortadas  a  Lisboa,  ou  a  outros 
pontos  marítimos  do  reino  de  3  por  cento  de  entrada  e 
outros  3  por  cento  de  saída,  alem  dos  direitos  fiscaes  em 
vigor,  lâo  exceptuando  senio  os  ecclesiasticos,  e  obri- 
gando-se  a  abolir  a  taxa  de  i  por  cento  applicada  á  forti- 
ficação dc  S.  Julião  da  Barra,  e  a  auxiliar  a  esquadra  de 
guarda  da  costa  com  ^0:000  cruzados  annuaes  tirados  dos 
seus  cofres^  Filippe  III,  em  1602  achando  óptima  a  contri- 

1  Alvari  fie  28  de  novembro  de  lo9á,  livro  do  registo  do  con- 
sulado, íl.  â. — Dissertações  chronologicas,  tom.  iv,  pag.  199  e  á06. 

2  Alvará  de  13  de  fevereiro  de  1602. — Áictiivo  Nacional^  liv.  ii 
de  leis  de  1593  até  i636,  fl.  54. 

TOMO  V  90 


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HISTOniA  DE  PORTUGAL 

MMiito  bnicSo,  e  superflao  o  tribunal,  que  servira  para  a  introAa- 

zir,  extinguiu  em  13  de  fevereií  o  o  juizo  do  consulado,  e 
maiidou  (jiie  as  matérias  da  sua  competência  corressem 
perante  o&  tribuuaes  ordinários.  É  inútil  acresceiilarmos, 
que  ao  imposto  escrupulosamente  arrecadado  se  deu  mui* 
tas  vezes  destino  diverso  da  sua  aprof»*iação,  e  que  os 
corsários  impunes  nunca  interromperam  os  roubos  e  sal- 
tos ás  iiu^sas  costas. 

Ao  imposto  de  um  real  sobre  cada  arrátel  de  carne  e 
oada  canada  de  vinho,  consumidos  no  paiz>  deu-se  tam- 
bém a  côr  de  contribuição  de  defeza,  allegando  fil-Reios 
immensos  gastos  das  frotas  enviadas  nos  últimos  annos 
em  soccorro  das  conquistas  c  os  encargos  das  consigna- 
ções estabelecidas  para  o  pagamento  dos  juros  dos  «m- 
•  préstimos.  £ste  imposto,  que  abrangia  as  compras  a 
retalho  de  dois  géneros  de  consumo  qaasi  geral,  f6ra 
proposto  pela  cidade  de  Lisboa  como  o  mais  suave,  que 
podia  (iecrclar-se.  Para  velar  sobre  a  sua  fiscalisação  e 
cobrança,  e  obstar  ás  fraudes  e  d  escarninhos  em  todas 
as  cidades  «  villas,  o  procurador  da  camará  foi  incum- 
bido 4as  funcções  de  administrador  com  a  percenta- 
gem de  1  por  cento  sobre  as  receitas,  que  entregasse. 
Os  juizes  de  fora  deviam  todos  os  mezes  conferir  os  li- 
vros dos  exactores  do  real  com  as  contas,  e  o  dinheiro 
arrecadado  em  um  quartel  havia  de  entrar  nos  cofres  dos 
recebedores  das  cidades  e  villas  dentro  de  vinte  dias,  o 
mais  tardar,  cabendo  aos  provedores  das  comarcas  a  su- 
periiilciidencia  da  nova  imposição  ^  O  tributo  sobre  o 
«Bagaço  da  Azeitona»,  cujo  regulamento  saiu  em  iú  de 
outubro  de  Í6d0,  consistia  em  o  Estado,  á  shniihança  do 

í  Regimento  de  31  de  outubro  de  id3ti  em  35  artigos,  artigos 
1.%  1»,  3.»,       26.«  a  29.»  e  3i.» 


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DOS  SECDLOS  XVU  £  XVUl 


467 


que  pratíeára  em  Gaatella  em  4699,  emnprar  o  bagaço  paio  iMiitiitiNt 

preço  médio  de  cada  moio  no  mercado,  ou  por  avalia- 
ções seguidas  de  expropriação  e  em  o  tornar  a  espremer 
nos  lagares»  pagando  as  moediiras  e  indemnisando  com 
a  quarta  parte  do  producto  bruto  os  lavradores  forçados 
a  promptíficar^  novos  apparelhos.  O  caleulo  aliás  fal- 
livel  dos  alvih  istas  afiançava,  que  do  Irabalbo  de  uiua  vai  a 
em  um  dia  se  tirava  bagaço  para  uma  moedura  nocturna  K 
Em  1631  segundo  regulamento  com  o  titalo  de  «Addiçlo» 
dictava  preceitos  ainda  mais  rigorosos  ao  admioistrador 
geral  e  aos  administradores  das  comarcas  e  dos  lagares. 
£^  odiusa  e  absurda  especulação  do  íisco  não  conse- 
golu»  joaturalisar-se  comtudo,  vencida  pela  resistência 
passiva  dos  povos  ^ 

As  mesmas  rasões,  que  desculparam  o  estabelecimento 
d'estes  tributos,  delenuinaram  cui  1631  (31  de  maio)  a 
taxa  decrelada  com  a  denominação  de  «Meia  Annata», 
equivalente  aos  modernos  direitos  de  mercê,  >e  igual  ao 
valor  de  metade  dos  ordenados,  4iFeito8  e  emolumeiitoa 
de  um  anuo  sobre  todos  os  offioíos  e  cargos  meiios4« 
ecclesiaslicos  e  os  soldos  dos  soldados.  O  regimento  de 
1^  de  setembro  d  aquelie  auuo  tornou  o  novo  iiK^[)0Sto . 
extensivo  ás  9|judas  de  casio,  serventias  de  offictoeeierar 
pregos  de  justiça,  incluindo  escrivães,  alcaides  e  juizes 
ordinários,  licenças  de  renuncia  de  cargos  eni  parentes, 
procuradores,  almotacés  e  solicitadores.  Por  ultimo  a 

1  Regimento  para  a  admissão  dobeaefido  do  bagaço  da  aieitoiía 
jq;»plicado  á  real  fazenda  nos  reinos  da  corda  de  Portugal,  datado 
de  i5  de  outobro  de  1630  em  56  artigos,  Trígozo. — CoUteçSo  ds  lê* 
guia(tt0j  tom.  vi,  doe.  30,  traz  appensa  a  fórma  de  obter  o  benefleio. 

*  Aááksão  de  28  de  julho  de  i6dl,  Tiigo«».-O)lb^  éâ  U- 
§ÍÊlaçSo,  toBL  VI,  doe  33. 

ao. 


468 


BBTOUIA  DB  PORTUGAL 


iMiiiyittM  carta  regia  de  2  de  dezembro  de  1631  revogou  a  exce- 
pção feita  em  favor  dos  empregos,  cujo  salário  nSo  exce- 
desse cincoenta  cnizados  *.  O  alvará  de  4  de  agosto,  orde- 
nou o  estanco  do  sal  por  conta  da  fazenda  com  prohibíção 
ao8  particulares  de  o  venderem,  ou  comprarem  por  gros- 
so» ou  por  míttdo,  adquirindo  o  fisco  a  terça  parte  de  todo 
o  que  se  lavrasse  no  reino  pelo  preço  taxado  em  cada  anno 
pelos  seus  ollioiaes.  As  inslrucções  para  a  execução  fo- 
ram datadas  de  1  de  dezembro  do  mesmo  anno,  e  a  mais 
severa  observância  recommendada  cuidadosamente*.  Se 
a  estas  fontes  de  receita,  assás  onerosas,  juntarmos  o  qae 
se  arrancava  directamente  da  lavoura  com  os  dizimos, 
primícias  e  oblações  geiíei  alisados  entre  nós  desde  prin- 
cípios do  século  xu,  e  cuja  solução  regida  peio  uso  se- 
gundo a  máxima  do  direito  canónico  variava  de  umas 
para  outras  parochias  na  quantidade  e  na  qualidade,  e  se 
notarmos  todos  os  direitos  arrecadados  por  diversos  títulos 
pelas  chancellarias,  pela  mesa  da  consciência  e  por  vários 
tribunaes,  acharemos  que  o  peso  de  tantas  contribuições 
aggravado  sempre  peio  modo  violento  por  que  eram  iis- 
calisadas  e  percebidas,  devia  ser  intolerável  em  um  reino 
desfaUecIdo  por  táo  repetidas  perdas  e  consumido  de 
forças  pui  tão  cruéis  e  continuadas  calamidades  ^. 

a 

1  Caria  regia  de  31  de  maio  de  iH63.  Livro  da  correspondência 
do  desembargo  do  paço,  fl.  45.  Carta  regia  de  9  de  agosto  e  12  de 
setembro  do  mesmo  aurui  e  o  reí?imento  de  igual  data,  livro  da  cor- 
respoiídeiicia  do  desembargo  do  paço,  fl.  92  e  liv.  Ill  de  leis  do 
Archivo  Nacional,  fl.  179  v. 
,  *  Alvará  de  4  de  agosto  de  1631,  livro  da  correspondência  do 
desembargo  do  paro,  fl.  125. 

5  João  Pedro  liibeiro,  Reflexões  Históricas,  part.  i  n."  9.  Elu- 
cidário, verb.  Decimas.  É  asstóíi  curioso  o  documento  inserido  por 
Santa  Rosa  de  Viterbo,  a  pag.  3o0-3ol. — De  feito  a  constituição  que 


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DOS  8E0DL0S  im  E  xvm 


469 


O  tabaco  de  cheiro  e  de  fumo  constituía  eutão  mono*  kiiiMiict  ' 
poUo  do  Estado.  Pagava  50  reaes  de  direitos  de  entrada 
por  arrátel  e  30  de  direitos  de  moenda,  e  na  exportação 

solvia  a  taxa  de  3  por  cento  de  consulado.  Mais  tarde  é 
que  principiou  a  offerecer  peio  maior  consumo  base  van- 
tajosa aos  calcoios  fiscaes  K  Entretanto,  como  se  ainda 
nSo  bastasse  esta  rede  de  impostos»  que  restringia  de  mil 
maneiras  as  transacções,  paralysava  a  circulação  e  estan- 
cava a  producção  em  suas  origens,  rêde  de  que  apontá- 
mos apenas  as  malhas  mais  fortes,  o  governo  de  Madrid 
não  cessava  de  aggravar  as  más  ciremnstancias  económi- 
cas do  paiz,  amiudando  os  pedidos,  os  empréstimos  for- 
rados e  as  contribuições  extraordinárias.  Citaremos  al- 
guns dos  mais  notáveis  mencionados  pelos  documentos 
da  epocha  no  praso  decorrido  desde  1625  até  1639.  Em 
18  de  janeiro  de  1625  pediu  o  governo  um  milhão  de 
ducados  para  despezas  extraordinárias.  Em  1631  exigia 
um  subsidio  par;!  a  .guerra  do  Hrazil,  e  suspendeu  ao 
mesmo  ternpo  o  pagamento  da»  tenças  e  mercês  lucrati- 
vas. £m  1636  extorquiu  um  donativo  real.  Em  1639,  fi- 
nalmente lançou  um  subsidio  geral  e  um  empréstimo  para 
a  defeza  do  reino.  Estas  incessantes  e  copiosas  sangrias 
em  corpo  tão  desfalcado  apressavam  a  decadência  e  de- 
nunciavam eminente  a  ultima  ruína  ^. 

0  systema  de  arrendar  os  impostos  iocaes  e  geraes, 

D.  Martinho,  art  luspo  de  Braga,  fez  publicar  no  anno  de  1304  so- 
bre o  modo  de  serem  pagas  as  decimas,  assim  reaes,  como  pessoaes, 
e  as  primicias  lança,  grande  luz  sobre  sobrê  o  assumpto. 

1  Alvará  de  3  de  agosto  de  1642  sobre  a  aboiiçáo  do  estanco 
do  tabaco. 

2  Cartas  regias  de  28  de  maio  e  i  de  dezembro  de  1631. — Por- 
taria de  7  de  fevereiro  de  1636,  decreto  do  18  dp  janeiro  de  1625  e 
carta»  fdfstíA  de  IS  de  íevereiro  e  24  de  dezembro  de  i639. 


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470  mnoBUL  DE  ramrGAfr 


taitiuriçM  abdicando  o  Estado  nos  particulares  uma  das  mais  im- 
portantes attribuições,  e  reconhecendo  a  sua  incapacidadB 
como  admimatrador,  junto  á  muhipUcidade  das  reparti- 
ções 6  dos  cofres  fiseaes,  nlo  só  opprimia  os  contribuin- 
tes, como  complicava  a  escriptnração  e  a  contabilidade, 
concorrendo  para  animar  pela  impunidade  os  desvios  e 
as  dilapidações.  0  confrabando»  por  outra  parte»  cada  dia 
mais  solto  e  ousado,  zombava  da  vigilância  e  amiuUava 
08  esforços  empregados  para  promo^  er  o  auginento  dos 
impostos  indirectos.  O  principio  da  arrematação  dostri- 
liiiios  por  quantias  certas  datava  das  primeiras  epochas 
(ia  monarcbia  e  não  influíra  pouco  para  tomar  ainda  mais 
odiosos  6  mal  vistos  os  judeus  e  depois  da  sua  expulsão 
08  ehrístSos  novos,  os  quaes,  por  seus  avultados  capitães 
eraiii  quasi  sempre  os  ren<  h^u  us  preferidos.  Em  1 516  o  ga- 
binete de  Madrid,  desenganado  pelo  mau  êxito  de  alguns 
ensaios  de  administração  directa»  suscitou  de  novo  o  pre- 
ceito geral  da  arrematação  de  todas  as  rendas  publicas,  e 
effectivamente  foram  postos  em  praça  e  contratados  os  im- 
postos mais  jiiii)orlan(es,  como  o  consulado,  osportossec* 
cos  e  molhados,  o  pescado,  as  terças  dos  concelhos,  os  es- 
tancos do  sal  e  das  cartas  de  jogar,  e  diversos  outros.  As 
alfandegas  de  Lisboa  eram  administradas  pelo  governo, 
mas  os  direitos  reaes  de  Lisboa,  assim  como  os  das  outras 
cidades  e  viilas  do  reino,  corriam  arrematados.  Os  re- 
sultados não  corresponderam.  Muitos  rendeiros  ficaram 
alcançados  em  sonunas  de  vulto,  e  os  fiadores  pouco  segu- 
ros não  cobriram  as  perdas.  Só  em  tres  contratos,  o  dos 
portos  seccos,  consiilado  e  cartas  de  jogar,  perdeu  o  Es- 
tado em  menos  de  dez  annos  96  contos.  A  falta  de  uma 
theeouraría  central  bem  constituída,  e  o  uso  vicioso  de 
eonsignar  os  rendimentos  dos  diversos  colVes  ao  paga- 
mento das  despezâs  correntes,  juros,  tenças,  fokias  dos 


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DOS  asGULOâ  XVII  £  vm 


tribunaes,  moradias  e  outros  encargos,  tomando  confosa  lÊãtíiaiifim 
e  quasi  impossível  a  escripturação  e  a  iiscalisaçào, 
gmentavam  as  probabilidades  eontra  o  erário  ^ 

Âs  receitas  publicas  orçavam  na  sua  totalidade  por 
l.744:CMX)^000  reaes,  entrando  para  esta  somma  os  ren* 
dimentos  das  alfandegas  e  casas  fiscaes  com  839  contos, 
os  dos  almoxarifados  com  238  contos  e  os  das  tres  or- 
dens militares  com  638:00CMiO0O  reaes.  A  alfandega  áè 
Lisboa  com  as  do  reino  rendia,  termo  médio,  170  con- 
tos. Em  1553  só  a  da  capital  era  avaliada  em  60  con- 
tos. As  sete  casas  produziam  aiiíiualuieiite  90  contos. 
As  chancellarias  de  Lisboa  e  Porto  7  contos.  O  consu- 
lado arrendava-se  por  80  contos,  e  os  estancos  das  car- 
tas, do  búzio  e  do  pau  brazil  por  3i.  £ntre  os  almoxari* 
fados  os  mais  rendosos  eram  os  do  Porto  e  Évora,  qoe 
davam  mais  dt3  J 1  contos,  os  de  Beja  e  do  Algarve,  que 
davam  9,  e  os  de  Santarém,  Portalegre  e  Braga,  que  não 
baixavam  de  S.  O  maior  numero  oscillava  entre  6  e  7 
contos  de  renda  annual.  As  conquistas  também  concor- 
riam para  a  receita,  Angola  e  o  Congo  com  26  contos, 
a  ilha  de  S.  Thomé  com  li.  a  Mina  com  40  eraquanto 
não  caiu  em  poder  dos  liollaiidozes  e  o  arcliipelago  de 
Cabo  Verde  com  14.  A  índia  ok  ava  por  41^.  Estes  al- 
garismos è  provável,  que  não  fossem  mais  exactos  do 
que  o  são  os  dos  orçamentos  da  actualidade  na  avaliação 
de  alguns  rendimentos,  mas  bastam  para  se  formar  idéa 
.  do  que  a  fazenda  real  cobrava  no  continente  e  nas  pos- 
sessões ultramarinas.  iSo  anno  de  1557  calculavam  os 

1  Carta  regia  de  6  de  setombro  de  1616. — índice  Chronologteo, 
tom.  II,  pag.  29^.  S£k>  repetidas  as  providencias  contra  o  contra- 
bando n'este  período,  e  mais  que  tudo  em  162S. — Vide  Livro  de 
Toda  a  Fazenda  «  Real  PcMmoniOy  lendas  do  reino,  pag.  20  a  i7. 


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472    UISTORU  DE  PORTUGAL  DOS  SÉCULOS  IVU  E  XVm 

MioiçOM  vedores  a  receita  total  em  326:000^000  reaes  e  no  de 
1477,  no  reinado  de  Affonso  V,  em  43:OOOálOOO  reaes. 

Comparado,  pois,  o  rendimento  geral  do  reioo  no  pri- 
meiro quartel  do  século  xth  com  o  qae  se  computava  no 
principio  da  segunda  metade  do  século  xvi,  vé-se  que  em 
58  annos  esse  rendimento  bubii  .i  a  mais  do  quintuplo,  o 
que  nau  se  explica  só  pela  diíTerença  no  valor  da  moeda, 
mas  pela  creação  de  novas  e  copiosas  fontes  tributarias. 
As  despezas  seguiram  a  mesma  proporção.  As  alfandegas 
e  as  casas  fiscaes  gastavam  174  contos,  incluindo  o  paga- 
mento pelos  seus  cofres  das  folhas  da  capella  real,  da  jus- 
tiça e  de  outras  verbas.  Os'alraoxarifados  despendiam  1 34 
contos  em  juros»  tenças,  ordenados,  moradias,  fortifica- 
res e  diversos  encargos.  As  denominadas  Casas  de  Lisboa 
consumiam  521  contos  em  occorrer  ao  soldo  e  provimento 
das  armadas  e  tropas  enviadas  ás  conquistas.  Por  ultimo, 
as  possessões  ultramarinas,  compreliendendo  Ceuta,  Tan- 
ger e  Marzagão,  guarnição»  administração  e  defeza,  ab* 
sorviam  563  contos.  Só  o  Estado  do  Brazil  consumia  por 
anno  54.  Eis  em  resumo  o  quadro.  N9o  cabe  individuar- 
mos aqui  senão  as  feições  mais  proeminentes  ^ 


^  Fr.  Nicolau  de  Oliveira,  Grandezas  de  iÀtboa,  trai  n,  eap.  i, 
n  e  nt  e  trat.  x,  cap.  i  a  v.  Archivo  nacional,  gav.  naç.  9, 
]L««i6  6  3S. 


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LIVRO  X 


PART£  X 


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LIVRO  X 


PART£  X 

INSTHOICÕES  E  COSTUMES  SOCIAES 

CAPITULO  I 

CAIUDADE  £  POLICIA  SANIIABIA 

Ectabel^maatos  do  beneficência.  Hospitaes.  O  de  Todos  os  Santos.— lliMríiedl^nãt. 

A  de  Lisboa.  —  Serviço  de  saude  publicn  na  capital.  -  Policia  iiiodira. — Morta- 
lidade emLUboa. — Mendigos,  vadios  o  ciganos.  Frovideacías  acerca  d' elles. — 
'   Preço  elofsdo  dai  sobtÍBteiMltt. —Pobreza  geral. 

A  caridade,  a  mais  snave  e  formosa  manifestação  da 
lei  moral  ensinada  por  Ghristo,  deveu  entre  nós  e  na  Eu- 
ropa os  mais  valiosos  esforços  na  meia  idade»  não  á  aeçSo 
dos  poderes  poblieos,  mas  á  iniciativa  dos  particulares, 
á  libei  alidade  dos  príncipes  e  aos  aiixilios  das  igrejas  e 
mosteiros.  Junto  das  ricas  abbadias  benedictinas  e  depois 
junto  dos  conventos  das  outras  ordens  e  de  alguns  paços 
episcopaes,  tudo  inculca  que  existiam  casas  destinidas 
a  recolher  e  a  tratar  os  pobres.  A  orgamsaçSo  doestes  aoc^ 
cerros,  inconipíeta  e  quasi  sempre  deficiente,  ou  irregu- 
lar, segundo  as  idéas  actuaes,  se  pódc  merecer  este  nome 
a  cooperação  dos  elementos  dispersos  que  a  constituíam, 
proclamava,  comtudo,  a  excellencia  do  principio  evange^ 
lico — o  amor  de  Deus  e  o  amor  do  próximo. 

As  albergarias,  Inndadas  pela  piedade  de  instituidores 
nobres  e  abastados,  e  quasi  sempre  administradas  con- 
forme a  vontade  d'elles,  abriam  as  portas  aos  peregrinos 
e  passageiros  desfallecidos,  alegados  e  enfermos,  e  acu- 


4 


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476 


HISTORIA  DK  PORTUGAL 


Cvidade  diam  a  suas  misérias  coiii  os  confortos  da  hospitalidade. 
De  ordinário  não  passavam,  porém»  de  pequenos  hospícios 
mantidos  com  esmolas  e  legados,  que  umas  vezes  eram 
um  encargo  e  como  que  um  appendtce  de  rendosos  mor- 
gados, o  í]uo  oulras  depcínliam  das  Sés  e  dos  mosteiros, 
que  as  sustentavam  com  uma  parte  das  rendas  dos  testa- 
mentos e  doações  oneradas  com  essa  condição.  O  tem{X) 
ampliou  as  modestas  proporçQes  de  algumas,  e  acabou  com 
o  maior  numero  d*eUas.  Eram  frequentes  na  mesma  epo- 
clia  também  as  gafarias,  ou  asylos  de  leprosos,  chamadas 
igualmente  casas  de  S.  Lazaro.  Levantadas  fóra  das  povoa- 
ções, e  sequestrando  os  doentes  de  toda  a  communicação 
com  os  outros  homens,  a  mio  benéfica  da  fraternidade 
chhstã  miligava-lhes  os  padecimentos,  e  amaciava-Ihes, 
quanto  possível,  o  supplicio  atroz  da  solidão,  a  que  a  so- 
ciedade os  condemnava  *. 

As  chronicas  são  omissas  em  noticias  ácerca  d'este  as* 
sumpto,  mas  os  documentos  dizem,  comtudo,  o  que 
basta  para  deprehendermos,  que  em  PoituL^il,  á  simi- 
Ihanra  da  Itália,  havia  nos  primeiros  séculos  da  nionar- 
chia  muitos  doestes  hospícios  e  hospitaes.  No  governo  de 
Affonso  III,  o  bispo  do  Porto  e  outros  prelados,  quel* 
xando-se  ao  papa  de  que  o  rei  lhes  usurpava  a  admi- 
nistração e  os  bens  dos  estabelecimentos  pios,  mostra- 
vam bem,  que  esses  não  eram  insigmlicantes.  O  zéio  dos 
benfeitores  não  aíirouxou  com  o  correr  dos  annos.  Os 

*  Vide  FJwidario,  verbos  wAlbergaria»  e  «Gafaria». — Cibrario, 
Histont!  (hl  Kronomia  Politica  na  Meia  Idade,  tom.  i,  liv.  ii,  cap.iii. 
Bartholomeu  i>omingues,  senhor  do  solar  de  Carvalho,  instituiu  a 
aJbergaria  de  Santo  Antonio  do  C  intnro.  Na  Guarda  havia  a  do 
Mondego  chamada  de  Cabadoudi.  D.  TluMeza,  innlhor  rundc  Hen- 
rique, fundou  as  de  Pena  Cova  e  de  Mesão.  Kv.ini  eoniniuiis  as  dei- 
xas em  i)enetioio  dos  leprosos  dos  testamentos  dos  ricos  tiomeos, 


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DOS  SÉCULOS  XYll  E  XVIII 


477 


hospítaes  multiplicaram-se,  e  poucas  seriam  as  terras  cnidMit 

importantes,  que  nao  possiiissem  um,  mas  em  regra  at-  p^J^ 
tendia-se  mal  o  futuro  e  procedia-se  sem  a  prudência 
indispensável  para  prevenir  os  abusos.  Nos  fins  do  sé- 
culo XV  os  perigos  de  temeridades  até  certo  ponto  des- 
culpáveis advertiram  os  soberanos,  e  inspiraram-lbes  a 
idéa  de  intervii  em  de  mais  perto  na  gerência.  Foi  o  que 
praticou  D.  João  II,  encorporaado  no  hospital  de  Todos 
os  Santos  os  principaes  hospitaes  de  Lisboa  com  seus 
rendimentos.  Foi  o  que  D.  Manuel  continuou,  creando 
a  dotação  denominada  da  «obra  pia»,  em  i516,  pela 
deducção  de  1  por  cento  de  todas  as  receitas  publi- 
cas, dotação  augmentada  pelos  seus  successores^  En- 
tretanto, apesar  da  tendência  dos  monarchas  para  centra- 
lisarem  n'esta  parte  a  administração,  algumas  das  casas, 
que  existiam,  con.^ei \;iirim-se  separadas,  e  depois  de 
aberto  o  hospital  de  Todos  os  Santos  encontrámos  ainda 
cinco  assás  antigos,  sem  contar  o  de  S.  Lazaro,  vivendo 
independentes  de  suas  rendas  e  das  esmolas  das  confra- 
rias e  dos  fieis*. 

0  bello  hospital,  fundado  por  D.  João  II,  que  lhe  lan- 
çou a  primeira  pedra  nos  alicerces  em  15  de  maio  de 
1492,  foi  concluído  por  D.  Manuel  em  1501,  pccupando- 
se  activamente  nove  annos  na  sua  edifica(^o.  Formava 
uma  cruz  de  quatro  braços  iguaes  com  quatro  grandes 

1  PfovjsSò  de  f  de  agosto  de  Í57S  e  alvará  de  90  de  março  de 
1579,  ampliando  a  dispodçSo  do  ci^.  ocvi  da  Ordenação  da  Fit- 
zenda  de  Í5Í6. 

>  Estea  hoepitaea  eram:  o  de  Itoa  Senhora  das  VirtodeB  pm 
doentes  incuráveis,  o  de  Sanf  Anna  também  para  incuráveis,  o  dos 
Palroeifos  para  hospido  de  passagdros  pobres,  e  tns  dos  pescado- 
res. Ghristovaò  Rodrigues  de  Oliveira,  Summario,  «Eqnritaes  que 
ha  na  cidade». 


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478 


mmtQÊãà.  W  POMVGAL 


ctdiíit  claustros  nos  aoguios^  Jborta  e  dois  tanques  de  agua.  Um 
(Jas  teaçosdacruz  era  aígr€^>  frooteira  á  praça  do  Ro- 
cio, «ubindo-se  para  ála  por  uma  escadaria  de  pedra  de 

■  \  iníe  (•  um  degraus.  O  templo,  inagiiiíicu,  espaçoso  e  de- 
corado com  opulência,  linlia  entrada  digna  d'elle.  Um 
portai,  DO  estylo  manueliDo,  com  os  pelicaoos,  emblema 
de  el-reí  D.  Jo^  aos  lados  do  baldaquioo  suspenso  so- 
bre a  estatua  coroada  do  monarcha,  e  com  a  divisa  de 
I).  Manuel,  a  espiíera  armilar,  alçada  no  remate  da  fa- 
chada, todo  cobei  to  de  lavores  e  arrendados  custosos, 
jtf^ificava  o  conceito  geral  de  ser  uma  das  obras  mais 
formosas  ii*«ste  género  da  architectura  portugueza  K  A 
administração  compeCía  no  secolo  xvi  a  tres  padres  da 
ordem  de  S.  Juãtj  l]\aii<,íeiista,  um  na  qualidade  de  pro- 
vedor, o  ouli  o  na  de  almoxarife,  e  o  ultimo  na  de  veador 
com  mando  e  alçada  sobre  os-enfermeiros  e  o  despensei- 
ro. -O  edificío  encerrava  tres  muito  grandes  enfermarias 
em  cruz,  a  das  febres  para  os  bomens,  a  das  febres  para 
as  mullieres,  e  a  de  ciriii  f^ia  para  os  feridos.  Alem  does- 
tas seguiam-se  outras  duas  menores  para  tratamento  das 
moléstias  sypbiliticas  de  ambos  os  sexos.  Basgava-se  por 
lMixod'eHas  o  vasto  aposento,  aonde  se  agasalhavam  to- 
dos os  peregrinos  naturaes  e  estrangeiros,  dando-lhes 
somente  a</iia  e  caTiin.  I  odas  as  eiifermarias  comprehen- 
<iiam  cento  e  tres  ieilos,  noventa  e  oito  de  enfermos  avul- 
sos, e  cinco  reservados  para  os  frades  capuchos  de  alguns 
mosteiros  dos  arredores  de  Lisboa.  O  movimento  ordi- 

^  Veja-se  a  estampa  do  portal  na  bella  gravura  do  n."  27  do  jor- 
nal o  Aniltwo  FUtortteOj  tom.  iv,  anu.  1861.  O  papa  Xisto  IV  na 
ImUa  Ex  dMo  ãotídiuéiim  anctorisoa  a  eneorporayâo  de  todos  os 
bens  no  hoqiilal  de  Todoe  ob  Santas  «para  a  caritativa  hospitali- 
dade  .éOÊ  jMèves,  peregiinos,  invaUdos^  eoiienBoiB^  e  outras  pessoas 
miseráveis».  InnocencioYin  confiimoo-a. 


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iM  MdMs  xvit «  vm 


nario  era  de  cento  e  cincoenta  doentes»  e  ás  veees  mis,  Md«dtf 
deitando^  dois  na  mesma  cama. 

0  quadro  do  serviço  medico  comiHiiiiia-se  de  dois  en- 
íem^FOS  môi^es,  dois  médicos,  ires  eirui  giões,  dez  eu- 
fermeiros  e  duas  enfermeiras.  A  casa  ^a  botica  de  par> 
tido.  As  dietas  fiiziam-se  em  doas  cozinhas  secadas,  ad«i9 
febres  e  a  das  doenças  sypliililicas.  Gs  enlermeiros  ven- 
ciam 25  cruzados  por  anno  de  ordenaflo  e  racTío.  Os  mé- 
dicos e  cii  urgiões  recebiam  450  cruzados  e  tinham  mo- 
rada paga.  O  sangrador  ganhava  trinta  alqueires  de  trigo, 
e  a  cristaleira  uma  ajuda  de  custo.  Havia  visita  diária  dos 
etiífM  inos  enl!'ados,  assistinrlo  o  provedor,  os  enfermeiros 
luóres  e  os  médicos.  Capitulava-se  n'ella  a  moléstia,  e  os 
doentes,  depois  de  confessados  e  sacramentados  pelo  cura, 
eram  enviados  para  as  enfermarias.  O  hospital  de  Todos 
os  Santos  recolhia  tamfbem  as  creanças  expostas  és  suas 
portas,  As  da  Misericórdia  e  em  Ioda  a  cidade,  prestando- 
Ihes  os  primeiros  soccorros  duas  amas  eíTectivas,  e  sendo  • 
depois  a  creaçSo  feita  por  mulheres  das  aldeias  vidinhas, 
que  todos  os  annos  na  véspera  do  orago  da  casa  deviam 
comparecer  ])ara  serem  pagas.  Os  expostos  do  sexo  inas- 
culiíio.  (jiie  alcançavam  a  uhúv  da  ad(ile^cenc!a,  ]>assa- 
vam  a  aprender  algum  oâicio  manual,  e  as  rapari^  ti- 
nham dotes,  e,  n!ío  casando,  serviam  «orno  ereadas  com 
a  9<Mada  de  orphiís.  Os  paes  podiam  pedir  os  filhos  en- 
geitados  em  qunlqiipr  tempo,  jurando  que  eram  seus,  e 
satisfazendo,  se  quenam,  as  despezas  da  educação.  A 
casa  dos  doudos  constituía  outra  dependência  do  hospi- 
tal, cujas  rendas  em  l$50  orçavam  por  lO^OOOmizades 
(4  contos  de  réis).  O  numero  dos  expost08ii'acpMllla  ^o- 
cha  oscillava  amiualmente  entre  400  e  500  ^ 

1  GhríitoYad  BDdrigaes  da  Oliveira,  Summam,  «O  Esprítal  de 
toddBososSnilOB». 


UnOBIà  DB  fOnOttAL 


ouiáêà»  Na  primeira  metade  do  século  x?ii  todas  estas  propor- 
ia ções  haviam  quasi  dobrado.  O  deseDvoivimeDto  da  casa 
'  e  do  serviço  acompanhára  em  todas  as  relações  o  desen- 
volvimenlo  da  capital  nus  ulliiuos  oitenta  annos.  A  admi- 
nistração fôra  coiiliada  á  Misericórdia  de  Lisboa  com  o 
direito  de  nomear  e  despedir  os  empregados,  e  o  seu 
provedor  desempenhava  as  funcções  de  enfermeiro  mór. 
Nos  impedimentos  snbstituia-o  o  thesow^iro  da  fazen- 
da  do  hospital,  que  era  sempre  um  fidalgo  principal. 
Dez  irmãos  serviam  por  turnos  mensaes,  um  de  mor- 
domo da  Capella,  outro  da  bolsa»  seis  de  mordomos  das 
enfennarias,  dois  de  mordomos  dos  pleitos  do  estabe- 
lecimento perante  os  tribunaes,  e  dois  de  mordomos  dos 
expostos,  ou  engeitados.  Estes  quatro  últimos  tinham 
exercido  annaal.  Tratavam  dos  doentes  dois  médicos, 
tres  cimigiQes  e  sete  praticantes  de  cimrgia»  que»  depois 
de  examinados  ali,  tiravam  carta  para  cm^rem  em  todo 
o  reino.  Havia  vinte  e  Ires  enfermeiros  e  enfermeiras, 
sem  incluir  as  ajudantes.  O  quadro  abrangia  ao  todo  en- 
tre ofiicios  maiores  e  menores  dentro  e  fóra  do  ediâcio 
^  pessoas.  O  numero  das  enfermarias  também  crescê- 
ra.  Gontavam-se  nada  menos  de  quatro  para  moléstias 
cirúrgicas:  «S.  Cosme,  S.  Damião,  Madre  de  Deus  e  Cor- 
redor»; cinco  de  moléstias  diversas  conhecidas  pela  de- 
signação geral  de  Febres:  cS.  Vicente»  S.  Francisco» 
S.  Bernardino»  Camarentos  e  Loucos»;  tres  de  doenças 
syphiliticas  do  sexo  masculino»  e  uma  do  sexo  femini- 
no; tres  para  mulheres:  «Camarentas,  Chagas  e  Loucas»; 
uma  para  convalescentes,  e  duas  vagas:  «S.  Pedro  e 
S.  Diogo»»  para  occorrer  ho  veifio»  especialmente»  á 
maior  afluência  dos  enfennos*. 

^  Fr,  Nieolaa  de  Oliveira»  Grandtsoi  de  Luboa,  trat  v»  cap.T. 


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DOS  SÉCULOS  xvn  E  xvm  481 

A  vigilância  e  a  íiscalisação  de  todo  o  serviço  das  caridade 
enfermarias  corria  a  cargo  dos  mordomos,  que  as  sii-  ^"[^ 
perintendiam,  dividindo-se  por  cada  um,  segundo  o  tra- 
balho» a  população  e  a  responsabilidade  d  elias.  Âs  die- 
tas consistiam  em  carneiro,  gallinha,  p9o,  ovos,  assucar, 
vinho,  biscQUtos  c  mamieiada,  conformo  as  indicações 
dos  facultativos.  O  movimento  anniial  dos  doentes  rnl- 
culava-se,  termo  médio,  em  3  026,  dos  quaes  faileciam 
620»  e  saiam  curados  â:l50^  O  numero  dos  expostos 
entrados  nunca  baixava  de  200  por  anno.  O  tratamento 
dos  doentes  era,  ao  que  parece,  cuidadoso  c  caritativo. 
A  botica  recebia  600)5000  reaes  todos  os  annos  i)elas 
drogas  e  medicamentos  fornecidos.  O  jantar  no  verão 
dava*se  ás  onze  horas  da  manhã,  e  de  inverno  ás  dez.  A 
ceia  no  estio  era  ás  quatro,  e  na  estação  invemosa  ás 
cinco.  As  raçijes  vinham  repartidas  em  tal)uleiros  para 
os  eníernios.  Os  módicos  e  cirurgiões  venciaiu  por  anno 
réis,  os  enfermeiros  pela  maior  parte  25^000,  e 
as  enfermeiras  I44Í400. 0  hospital^ consumia  annualmente 
cento  quarenta  e  quatro  moios  de  pão,  cento  oitenta  e 
cinco  cântaros  de  azeite,  e  cincocnla  e  seis  pipas  de  vi- 
nho. As  suas  rendas  mon la  vam  in\  inl a  I  idade  a  1 2 : 727^^688 
reaes,  e  as  despezas  ordinárias  a  8:781iS^01.  Os  médicos 
6  dmi^ões  todos  os  dias  visitavam  as  enfermarias,  e 
receitavam  na  presença  dos  mordomos.  Os  outros  hospi- 
taes  do  paiz  procuravam,  a  pouco  e  pouco,  e  na  medida 
de  seus  meios  pecuniários,  a[)])roximar-se  o  mais  possi- 
vel  dos  exemplos,  que  lhes  oííerecia  o  estabelecimento 

'  Fr.  Nicolau  de  Oliveira,  Grandezas  de  Lisboa,  trai.  v,  rip.  v. 
Fr.  Nicolau  refere  estes  dados  estatísticos  no  anno  de  1616-1(>17, 
mas  acrescenta  que  não  deve  espantar  a  quantidade  de  géneros  oon- 
snmidos  pelo  hospital,  porque  o  movimento  dos  enfermos  era  muito 
grande. 

TOXO  T  31 


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1^1  HISTORIA  DE  PORTUGAL 

MM  mais  bem  regido.  Em  outobro  de  4004  um  gnnde  in- 

cendio  abrasou  parte  do  edifício  de  Todos  os  Santos, 
mas  os  estrajros  depressa  foram  reparados^. 

Coube  á  gloriosa  epoeba  de  D.  Manuel  a  realisação  de 
um  dos  mais  nobres  pensamentos,  qae  a  caridade  ebristã 
podia  inspirar.  EmquantoYaseo  da  Gama  suleava  as  so- 
lidSes  ignoradas  do  oceano  e  descerrava  as  portas  do 
oriente,  abria m-se  de  par  em  par  no  reino  as  da  benefi- 
cência aos  infelizes  e  desamparados.  Fr.  Miguei  de  Con- 
treras,  heq[)anbol  de  gerado  distíncta  e  religioso  trínita- 
rio,  foi  o  instrumento  predestinado  de  um  dos  maiores 
progressos  moraes,  que  entre  nós  illustraram  o  alvorecer 
do  século  x?i.  Passando  a  Portugal  em  1481,  os  sermões 
que  prégott,  ungidos  de  verdadeira  eloquência  evangéli- 
ca, edificaram  os  fieis.  Cresceu  a  finna  dos  milagres  da 
sua  palavra,  concorreram  as  multidSes  a  escata*lo,  e  o 
povo  começou  a  appellida-lo  o  «apostolo».  Elevado  á 
posição  eminente  de  confessor  da  rainha  D.  Leonor,  mu- 
lher de  D.  Joio  II,  sua  humildade  ainda  augmentou,  vol- 
tando todos  os  extremos  para  os  desvalidos,  sooeorrendo 
a  pobresa  envergonhada,  as  viuvas  miseráveis,  os  enílw- 
mos  sem  abrigo  e  as  donzellas  orphãs,  e  pedindo  esmola 
pelas  casas  para  acudir  aos  infortúnios  descurados  pela 
sociedade.  Este  léio  não  podia  deixar  de  produzir  fru- 

*  Fr.  Nicolau  de  Oliveira,  Grandezas  de  Lisboa,  trat.  v,  cap.  ?, 
«rDas  rendas  do  hospital— Da  despeza  das  rendas  do  hospital». 
Acfirca  dos  «Engeitados»  é  curioso  o  pedido  dos  povos  nas  eórtes 
de  Lisboa  de  1498  para  que  os  exitostos  não  fossem  enti  pernes  aos 
paes,  ou  mães,  se  os  pedissem,  senão  pagando  primeiro  a  creaçlo; 
e  ficando  com  as  cmnças  até  aos  sete  annos,  qup  as  pessoas  estra- 
nhas, em  cujo  poder  estivessem,  não  as  largassem,  emquanto  os  mo- 
ços, ou  moças,  ou  os  parentes  lhes  não  compensassem  as  despezas 
e  euidados»  cap.  xxti. 


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BOS  SÉCULOS  jm  B  xvm  '483 

ctos  de  ben(ão.  Commoveu-se  o  animo  da  rainha»  cijyo  cmím 
nome  corre  vinculado  á  fundação  de  alguns  dos  nossos 

principaeí?  estabelecimentos  pios,  e  coadjuvaram-o  todas 
as  classes.  Mas  aqiiella  mâo  l)enníica,  mesmo  auxiliada, 
não  conseguia  enxugai  todas  as  iagrimaSi  e  muitos  es- 
trangeiros doentes,  e  até  moribundos,  recolhiam-se  nos 
adros  das  igrejas  debaixo  das  alpendradas  e  sob  os  arcos 
do  Rocio.  Este  doloroso  espectáculo  renovou  os  brios 
e  avivou  os  espíritos  de  Fr.  Miguel.  Subira  ao  thruiio 
D.  Manuel,  e  partira  com  sua  mulher  para  Toledo,  a  lim 
de  serem  jurados  ambos  herdeiros  e  saccessores  da  corôa 
deCastella,  e  ficára  ^carregada  da  regência  a  rainha  viuva 
D.  Leonor.  As  sementes  lançada.^  no  seu  coração  tiiiham 
lido  teinpo  de  germinar,  e  o  confessor,  sem  diflicuidade, 
obteve  d'ella  o  apoio  e  protecção,  de  que  a  grande  idéa, 
amadurecida  em  suas  meditações,  tanto  carecia  para  se 
converter  em  fecunda  applicação.  No  dia  15  de  agosto 
de  1498  foi  instituída  com  solemnidade  no  claustro  da  Se- 
de Lisboa,  na  capella  da  Virj^^em  da  Piedade,  a  confraria 
de  Nossa  Senhora  da  Misericórdia,  e  o  senado  concedeu 
para  asylo  dos  enfermos  sem  amparo  as  casas  junto  de 
Santo  Antonio,  aonde  antigamente  se  faziam  as  audiên- 
cias da  Casa  do  Civel. 

A  confraria,  cujo  compromisso  havia  sido  modelado 
em  parte  pela  instituição  análoga,  que  desde  i'ò'õO  existia 
em  Florença,  afiançava  sob  os  auspicios  da  rainha  todas 
as  promessas  da  Misericórdia  Divina  aos  desgraçados, 
porque  tornava  i^^^naes  e  irmãos  diante  do  Evangelho  to- 
dos os  humens.  (3s  mais  afortunados  uiiiam-se  nos  laços 
do  amor  do  próximo  para  trazerem  consolação  e  alhvio 
aos  que  padeciam.  O  proprietário  repartia  com  o  men^ 
digo,  o  rico  estendia  a  mão  ao  indigente,  o  fidalgo  lavava 
os  pés  ao  mendigo,  o  pae  de  familia  cortava  ao  orphão 

31. 


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484 


HISTOIUA  DE  PORTUGAL 


caiidiíb  uma  fatia  do  pão  de  seus  filhos»  levava  os  remédios  do 

corpo  e  a  esperança  da  alma  ao  alvergue  dos  desditosos, 
acompanhava  os  culpados  sem  deíensores  aos  tribunaes  e 
ao  estrado  do  throno,  e  subia  com  eiies»  condemnados,  os 
degraus  do  patíbulo  para  lhes  adoi;ar  a  aflronta  dos  ulti-  * 
mos  momentos.  Â  fMíserícordia»,  como  Fr.  Miguel  a 
concebeu  e  soube  crea-la,  não  desmentiu  nenhum  dos 
grandes  desígnios  do  instituidor.  As  donzellas  infelizes 
receberam  dotes  para  casar,  as  viuvas  pobres  au&ilio  op- 
portuno,  os  expostos  recolhimento  e  educação,  os  enfei^ 
mos  agasalho  e  curativo,  os  peregrinos  necessitados  pou- 
sada e  ajuda,  os  captivos  resgate  e  transporte  paia  a 
pátria.  Os  presos,  alem  do  sustento  nas  cadeias,  tinham 
advogado  . para  os  tiibunaes,  e  protectores  para  o  derrar 
deiro  recurso  á  corâa.  Os  padecentes  achavam  conforto 
no  oratório  e  no  transito  para  o  supplicio.  Finalmente  os 
mortos  sem  meios  de  se  enterrarem  preces  e  sepultura. 
Eis  em  resumido  quadro  o  que  era  ao  nascer  a  obra  pie- 
dosa do  apostolo  trinitarío»  e  o  que  «m  grande  parte 
continuou  a  ser  em  todo  o  século  xvi  e  na  prhneira  me- 
tade do  XVII 

D.  Maiiuel,  regressando  de  Ilespanha,  quiz  associar  a 
sua  muniíicencia  á  generosa  empreza,  a  que  sua  irmã 
acabava  de  pôr  os  alicerces.  Largo  por  índole  em  to- 
das as  aspirações,  e  t9o  mimoso  da  fortuna,  que  até 
os  impossiveis  lhe  aplanava,  tomou  sobre  si  a  nova 
construcção,  e  traçou-a  com  tanta  magnihcencia,  que  o 

1  Consu1tem-se  sobre  a  instituíçio  da  «Misericórdia»  e  do  sca 
fundador  Pjr.  Uigiiel  de  Contreiras  o  n.*  29  do  jornal  o  Archivo  PU* 
tore$co,  tom.  iv,  ann.  de  1861 ;  Christovão  Rodrigues  de  Oliveira^ 
Summarío  àe  algumm  amm  a$$m  Ecdesiasticas,  como  Sectdares, 
quê  ha  na  ddade  de  Usboa,  a  «Misericórdia»;  Fr.  Niodau  de  Oli- 
veira, Oraundexat  de  Li^toa,  trat  v,  eap.  in. 


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DOS  SÉCULOS  xvn  B  xvm  485 

monumento  de  pedra  correspondeu  nas  proporções  e  na  candad* 
belleza  á  immensa  elevação  do  monumento  humanitário. 
f^o  o  viu  el-rei  concluido,  e  só  treze  annos  depois  da 

sua  morte  é  que  foi  inaugurado,  em  25  de  março  de 
4534,  transferindo-se  para  elle  a  confraria  ainda  hospe- 
dada na  Capella  da  Sé  e  nas  casas  junto  de  Santo  Anto- 
nio. Fr.  Miguel  de  Contreiras  tinha  fallecido  em  1505»  e  a 
única  recompensa  do  grande  acto,  se  alguma  podia  cubi« 
çar  alem  do  êxito,  coiiíeriu-lh^a  a  posleí  idade,  mandando 
debuxar  a  sua  Imagem  após  setenta  annos  nas  bandeiras 
da  Misericórdia  ^ 

0  templo,  que  D.  Manuel  alevantou,  reputava-se,  de- 
pois do  de  Santa  Maria  de  Belém,  o  mais  sumptuoso 
da  cidade.  O  seu  portal  lavrado  no  cstylo  golliico  nondo 
olhava  para  o  oriente»  e  para  avaliarmos  bem  o  que  se- 
ria bastará  contemplarmos  a  porta  travessa»  que  sobre- 
viveu ao  terremoto  de  1755»  e  serve  hoje  de  porta  prin- 
cipal á  parochia  da  «Conceição  Velha».  Vinte  altíssimas 
columnas  de  mármore,  cobertas  dos  primores  do  cinzel, 
seis  dividindo  a  igreja  em  tres  amplas  naves,  e  quatorze 
embebidas  nas  paredes»  sustentavam  a  abobada  toda  for- 
mada em  laçarias  e  artesões,  altemando-se  nos  ornatos  os 
emblemas  da  fé  com  as  divisas  do  fundador.  A^capeliamòr, 

1  Archtm  Pittoresco,  tom.  rv,  ann.  de  i861,  n."  29.  Offerece  a 
estampa  do  baixo  relevo,  que  ornava  o  vSo  do  pórtico  da  porta  tra- 
vessa da  Misericórdia,  hoje  principal  da  parochia  da  Conceição  Ve- 
lha. Este  grupo  de  figuras,  se  corno  obra  de  arte  revela  pouca  per- 
feição de  esculptura,  como  objecto  histórico  e  arclieologico  é  de 
grande  valia,  porque  de  uma  pnrte  representa  o  papa  Alexandre  VI 
e  Fr.  Miguel  de  Contreiras,  e  da  ouh-a  D.  Mnnuei,  a  rainha  D.  Ma- 
ria, sua  segunda  mulher,  e  seus  liliio^.  —  (^íiiislovíTo  Rodrigues  de 
Oliveira,  Sum7na7'io  de  algumas  coKsas  assim  Ecdesiasticas,  coma 
Seculares^  da  cidade  de  LUboa,  «A  Misericórdia»* 


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486 


HISTORIA  DC  PORTUGAL 


Caridade  eni  talha  reicvada  de  esculptura  deslumbrava  a  vista. 
Dois  recolhimentos  de  orphãos,  um  hospital  e  espaçosas 
salas  para  a  secretaria  e  os  cartórios  completavam  com 
vastas  officlnas  o  soberbo  edifício.  Em  i550  a  confraria 
recenseava  ppi  ío  de  trezentos  irmãos.  Entre  elles  todos 
os  ariiios  elegia  treze,  um  fidalgo  para  provedor,  e  seis 
nobres  e  seis  mechanicos  para  constituirem  a  mesa  tres 
vezes  por  semana,  tratando  aos  domingos  dos  presos,  ás 
quartas  feiras  dos  pobres,  e  ás  sextas  da  a|)plícaç^o  das 
esmolas  da  casa.  A  mesa  nomeava  do  seu  grémio  escri- 
vão, thesoureiro  e  quatro  visitadores  dos  doentes  pobres 
e  das  viuvas  desamparadas.  Outros  dois  deviam  duas  ve- 
zes na  semana  ordenar  o  jantar  dos  presos,  p9o,  carne  e 
agua.  Na  cozinha  da  casa  preparavam-se  dietas  para  os 
enfermos  e  rações  para  os  indigentes,  e  tinlia  duas  boti- 
cas, uma  pai  a  us  pobi  es  que  tratava  de  porias  a  dentro, 
e  outra  para  fornecer  os  remédios  aos  infelizes  de  fóra. 
Um  medico,  úm  cirurgílío  e  um  sangrador  com  ordenado 
fixo  deviam  acudir  aos  que  os  irmãos  da  mesa  lhes  desi- 
gnassem. A  Misericórdia  arrecadava  de  esmolas,  termo 
médio,  30:000  cruzados,  havendo  annos  em  que  alcan- 
çou até  o  dobro. 

Em  i640  a  confraria  das  obras  de  misericórdia  não 
contava  menos  de  seiscentos  e  vinte  irmãos,  incluindo  tre- 
zentos nobres,  sendo  o  primeiro  o  rei  de  Portugal  desde 
D.  Manuel,  e  trezentos  inechanicus  uiíiciaes  de  ollicios  e 
vinte  letrados.  O  provedor  e  a  mesa  eram  ainda  eleitos  e 
fiinccionavam  como  no  século  xvi,  com  pequena  difife- 
rença.  Não  podia  ser  admittida  na  irmandade  pessoa,  que 
não  provasse  limpeza  de  sangue  som  quebra  de  parentesco 
judaico,  ou  islamita,  A  maior  igualdade  existia  entre  to- 
dos os  confrades  nos  actos  próprios  da  associação,  ser- 
vindo condes,  marquezes  e  senhores  ao  lado  dos  plebeus. 


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DOS  sficuLOs  xvu  E  xvm 


487 


o  provedor,  fidalgo  seriipre  distincto,  passava  as  cartas  o^úê 
de  guia  aos  pobres  doentes»  que  se  recolhiam  á  terra  natal  ^^1^^^ 
6  ao8  peregrinos  iodigentes  para  serem  agasalhados  nas 
misericórdias,  que  encontrassem  no  camfaiho.  Todas  as 
semanas  mandava  distribuir  5^5000  réis  nas  quartas  fei-  • 
ras  aos  mendigos  que  concorressem  á  portaria.  A  casa 
tinha  vinte  capellães  com  ordenado  certo,  um  mestre  da 
capeUa,  um  organista  e  quatro  moços  para  ajudarem  ao 
serviço  divino.  Em  i6li,  um  dos  mais  escassos  em  ren* 
dimento,  entraram  nos  cofres  42:839  cruzados,  tendo-se 
no  de  1606  elevado  esta  receita  a  ^5:000.  £m  iÔ4^  sur 
biu  a  67:000  de  esmolas»  rendas  e  juros  empregados  com 
grande  acerto  em  acudir  a  todas  as  obrigações  do  instituto. 

Foram  applicados  ás  dotações  necessárias  para  sus- 
tentação do  hospital  de  SanfAnna,  aonde  havia  trinta 
e  cinco  camas  e  duas  enfermarias  com  trinta  e  dois 
doentes  do  hospital  dos  incuráveis,  sob  a  invocação  de 
Nossa  Senhora  do  Amparo»  debaixo  dos  arcos  do  Rocio» 
com  ciricoenta  e  nove  enfermos,  e  o  recolhimento  das 
donzellas  de  Santo  Antonio  com  treze  orphãs,  quatorze 
porcionistas  e  onze  creanças  desamparadas.  N'esse  anno, 
alem  doestas  despezas  certas,  disseram-se  por  conta  da 
casa  tres  mil  duzentas  oitenta  e  dnco  missas,  alimaita- 
ram-se  na  cadeia  setecentos  oitenta  e  oito  presos,  dos 
quaes  os  irmãos  livraram  quatrocentos  noventa  e  nove,  e 
á  custa  da  confraria  embarcaram  cmcoenta  e  oito,  que 
saíram  a  cumprir  degredo,  alguns  com  mulheres  e  filhos» 
correndo  ao  mesmo  tempo  com  as  custas  de  vinte  e  nove 
appeliagões  e  de  muitos  processos  crimes.  Pagaram-se 
mais  de  4  contos  de  réis  de  dotes  ás  orphãs»  mais  de  1 
conto  de  réis  para  resgate  de  captivos,  e  soccorreram-se 
quinhentos  e  noventa  pobres  envergonhados,  e  cento 
quai  eata  6  seis  eiilrevados,  visitados  com  esmolas  sema- 


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488 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


CwUada  naes.  Havia  outros  visitados  todos  os  mezes,  aos  quaes 
a  casa  abonava  botica,  medico  e  dietas*. 

Eram  estes  os  serviços  prestados  peia  coaírai  ia  todos  os 
a&nos  em  nome  da  caridade  evangélica,  e  por  elles  gran- 
geava  a  admiração  e  o  applauso,  não  só  dos  conterrâneos, 
mas  dos  estranhos,  unanimes  no  louvor  de  obra  tão  pia. 
D.  Manuel,  que  a  muitos  respeitus  justiíicou  por  grandes 
acções  e  nobres  instinctos  as  maravilhas  do  seu  reinado, 
não  contente  com  a  protecção  liberallsada  ao  pensamento 
de  Fr.  Miguel  de  Contreiras,  cuidou  com  zélo  sincero  em 
implantar  desde  logo  cm  todas  as  terras  principaes  do 
reino  confrarias  análogas  regidas  por  compromissos  si- 
miihantes  ao  de  Lisboa.  A  sua  carta  á  camará  do  Porto  e 
às  de  outras  viilas  e  cidades  é  um  dos  documentos  mais 
bellos  do  seu  governo,  e  um  dos  mais  fecundos.  D'elie 
nasceu  a  instituição  de  todas,  ou  da  maior  parte  das  mi* 
sericordias,  tão  úteis  n'aquella  epocha  e  tão  efiQcazes  nas 
seguintes  como  auxiliares  dos  progressos  moraes.  £m 
Í6i8  o  gabinete  de  Madrid  approvou  e  confirmou  o  novo 
compromisso  proposto  pelo  provedor  e  irmãos  da  Mise- 
ricórdia de  Lisboa,  alterando,  ampliando  e  melhorando 
o  antigo  estatuto  de  agosto  de  141)8  K 

1  Fr.  Nicolau  de  Oliveira,  Grandezas  de  Lisboa,  trat.  v,  cap.  iii. — 
Impresso  avulso  sobre  a  receita  e  despeza  da  Misericórdia  de  Lisboa 

em  Í642,  inserido  na  CaUpirão  de  LerjUíarão  Portugneza  do  sr.  José 
Justino  de  Andrade  o  Silva,  aiin.  1613  a  1019,  png.  318  a  320.  N'esse 
anno,  aiem  de  muitos  defuntos  poljrcs,  foram  sepultados  de  graça  pela 
confrari.i  duzentos  o  oitenta  escravos.  A  despeza  com  esmolas  orçava 
por  12:000  cruzados  por  anno  e  a  dos  dois  hospitaes  por  3:700. 

2  (>arta  de  el-rei  D.  Manuel  á  camará  do  Porto  em  14  de  março 
de  1499,  no  principio  do  compromi^í^^o  da  Misericórdia  d'aqnolla 
cidcide. — Alvará  de  19  de  maio  do  1618,  impresso  ^ivulso  pm  1674. 
Vide  Cdlecção  de  Legislação  Portvqueza  do  sr.  José  Justino  de  An- 
drade 6  Silva,  ann.  i613  a  1619,  pag.  283  e  seguintes. 


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DOS  SECOLOs  xvn  E  x\m  489 

Lisboa,  como  terra  marítima,  pela  accumulação  dos  caridada 
seus  moradores,  e  pelas  más  coDdições  hygíenicas  da  cob- 
slroc^o  das  casas,  offerecia  alimento  fácil  aos  contágios  e 

epidemias,  e  por  vezes  fôra  cruelmente  despovoada  pelo 
flagello  da  peste.  A  devoção  dos  soberanos  e  dos  habitan- 
tes no  maior  incêndio  do  mal  pimiia  só  o  coração  e  os 
olhos  no  céu,  e  abraçava-se  com  a  fé,  em  umas  occasiões 
promettendo  festas  e  novenas  á  Senhora  do  Rosario  e  em 
outras  soleiíinisando  a  entrada  das  relíquias  de  S.  Roque, 
pedidas  â  republica  de  Veneza  por  D,  Manuel.  Datam  da 
epocha  de  D.  João  111  as  primeiras  providencias  preven- 
tivas, que,  apesar  de  incompletas  e  de  imperfeitas,  já 
moeram  que  alguns  progressos  se  haviam  adiantado  em 
tâo  importante  assumpto.  El-Hei,  notando  que  na  ampla 
bahia  do  Tejo  fundeavam  duzentos  e  mais  baixeis  mer- 
cantes, 6  que  muitos,  e  em  especial  os  do  norte,  navega- 
vam de  portos  ínQcionados,  ordenou,  antes  do  anno  de 
1537  a  primeira  organisação  de  polícia  de  saúde,  creando 
na  igreja  de  S.  Sebastião  da  Padaria,  situada  então  no 
centro  da  capital,  uma  repartição  composta  de  dois  pro- 
vedores,  um  meirinho,  um  escrivão  e  um  medico,  incum- 
bidos de  occorrerem  a  tudo  o  que  dizia  respeito  a  este 
serviço.  Nos  dias  de  sessão  do  senado  assistia  na  mesa 
um  vereador  com  o  titulo  de  provedor  mór. 

Vinte  e  nove  delegados  dos  provedores  com  a  deno- 
minação de  «Cabeças  de  saúde»  cumpriam  e  íiscalisa- 
vam  nas  freguezías  as  ordens  da  junta  central,  passando 
as  guias  para  os  enterros  depois  de  verificados  os  óbitos 
por  certidão  dos  facultativos.  Em  Belém  existia  um  posto 
formado  de  um  provedor,  escrivão,  meirinho  e  dois  guar- 
das, encarregado  da  visita  das  embarcações  entradas.  Os 
capitães  dos  nàvios  não  podiam  seguir  sem  primeiro  lhe 
apresentarem  os  passaportes  acom^auiiados  de  uma  de- 


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490 


HISTOBU  DE  PORTIMUkL 


Círidade  clara çao  jiirada  da  procedência  do  navio,  tempo  da  via- 
gem  e  portos  em  que  tocara.  O  posto,  achando  que  eile 
vinha  de  terra  infestada  de  peste,  expedia  aviso  aos  pro- 
vedores da  cidade,  e  mettia  logo  os  seus  dois  gaardas  a 
bordo.  Uma  quarentena  de  trinta  dias  era  de  ordinário 
prescripta,  mas  sem  cortar  inteiramente  a  coininunicaçSo 
dos  navegantes  com  a  população,  o  qtie  em  grande  parte 
annoUava  o  sea  effeito.  O  senado  pagava  os  salários  dos 
empregados,  e  o  governo  o  dos  provedores,  que  vmiclam 
iO^OOO  reaes  cada  um.  Em  4537  o  alvará  de  3  de  de- 
zembro comniiiiou  a  pena  de  desterro  para  S.  Thomé  e 
de  sequestro  das  fazendas  aos  que  saíssem  sem  licença  dos 
navios  suspeitos,  e  igual  castigo  para  as  pessoas  que  os 
recolhessem  sendo  sabedoras  da  infiracção.  Esta  organí- 
sação  conservava-se  ainda  em  pleno  vigor  na  primeira 
metade  do  século  xvii.  Em  rebentando  um  conta- 
gio em  Málaga,  adoptaram-se  com  certo  vigor  medidas  até 
certo  ponto  acertadas,  mandando  passar  por  vinagre  e  fogo 
todas  as  cartas  e  papeis  recebidos  d'aquella  localidade  e  das 
vizinhas  na  presença  de  um  dos  provedores  da  saúde,  e 
inquirir  do  correio  mór  quaes  os  indivíduos  a  quem  antes 
tivessem  sido  distribuídas.  Vedou-se  por  mar  e  por  terra 
toda  a  correspondência  com  Málaga,  Antequera  e  Izeda,  e 
prescreveu-se  aos  corregedores,  juizes  de  fóra  e  provedo» 
res  das  comarcas,  que  negassem  entrada  pelas  fronteiras 
a  todos  os  passageiros  vindos  d'aquelles  pontos 

Pertencem  igualmente  ao  reinado  de  D.  João  III  as 
leis  promulgadas  para  acautelar  e  prevenir  os  abusos 

1  Fr.  Nicolau  de  Oliveira,  Grandezas  de  Lisboa,  trat  v,  cap. 
Alvará  de  33  de  junho  de  1627  sobre  providencias  contra  a  pesto 
de  Málaga.  Colleeçu/o  de  Moruenhor  Gordo. — Alvant  de  3  de  dezem- 
bro de  1537;  «Dos  que  vem  a  Lisboa  de  terras  impedidas  de  pesle». 
Comp.  de  Duarte  Nunes,  part  iv,  liv.  x. 


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BOS  SBCULOS  Tm  B  xvm 


491 


dos  empiricos  e  charlatães  no  exercício  da  cirurgia  e  me*  cmm»<í 
dicina.  Segundo  as  disposições  do  alvará  de  4  de  novem-  ^.^«^1^ 
bro  de  i545  ninguém,  mesmo  que  fosse  bacharel,  podia 
curar  senão  depois  de  obter  o  grau  de  licenciado  em  ar- 
tes com  oito  annos  de  cnrso  na  faculdade,  seis  para  o 
bacharelado  e  dois  para  a  pratica,  se^i^uindo  a  clinica  de  al- 
gum dos  doutores  da  universidade.  A  multa  de  $0  cruza- 
dos castigava  a  menor  infracção.  Em  1506  foi  modificado 
o  rigor  d'estes  preceitos,  concedendo-se  que  os  estudantes 
approvados  nos  cursos  thooricos  e  práticos  da  ac^d  mia  cu- 
rassem livremente  sem  dependência  de  exame  e  de  aucto- 
rísaçlo  do  physico  mòr.  £m  i56i  foi  probibido  nos  Ioga- 
res  aonde  houvesse  mais  de  um  medico  e  de  um  boticário, 
que  o  medico  vendesse  remédios  manipulados  em  sua 
casa,  ou  receitasse  com  parceria  de  parentesco,  ou  de  in- 
teresse para  qualquer  botica.  Ácerca  dos  cirurgiões  não 
eram  menos  severas  as  provisões,  não  podendo  nenhum 
individuo  usar  da  arte  sem  a  estudar  dois  annos  comple- 
tos no  hospital  de  Todos  os  Santos  de  Lisboa,  salvo  os 
que  frequentassem  as  universidades  de  Coimbra,  Sala- 
manca e  Guadalupe,  os  quaes,  depois  de  exaniíaados  pelo 
cirurgião  mór,  ficariam  dispensados  de  outra  habilitação. 
Ao  cirurgilo  môr  competia  verificar  a  capacidade  dos 
alumnos,  e,  achando-a  sufficiente,  passar-lhes  carta  para 
exercerem.  Os  cirurgiões  e  sangradores  convencidos  de 
curarem  sem  licença  eram  processados  e  julgados  pelo 
.  cirurgião  mór**. 

As  attnbuições  do  physico  mór  definidas  no  seu  regi- 

^  Alvarás  de  4  de  novembro  de  1545  e  de  90  de  março  de  i666 
sobre  o  tempo  de  estudo  doe  médicos. — Alvará  de  7  de  julbo  de 
186i  sobre  parcerias  de  médicos  e  boticários. — Alvarás  de  26  de 
jattio  de  1559  e  de  3  de  mar^o  de  1565  sobre  drargiOes  e  san* 
gradores.  Duarte  Nimes^  part.  iv. 


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49S 


HISTORIA  DE  POBTDGAL 


cari(Ud«  mento  datado  de  25  de  fevereiro  de  1524,  assim  como 
y^^^^.  as  do  cirurgião  mór  consignadas  no  regulamento  de  i'Á 
de  dezembro  de  163i,  alem  das  faiiG(^es  propriamente 
technicas,  abrangiam  as  de  policia  e  de  fiscalisa($ão  me- 
dicas do  reino  com  todo  o  contencioso,  constituindo  uma 
espécie  de  visiriato  assás  absoluto  e  oppressivo.  Cumpria 
ao  physico  múr  visitar  as  diflerentes  províncias^  a  íim 
de  verificar  o  seu  estado  em  relação  á  observância  das 
regras  de  policia  medica»  ordenar  todos  os  triennios  a 
taxa  do  preço  dos  remédios,  compellir  os  facultativos  a 
indica-lo  em  suas  receitas,  e  examinar  as  drojPfas  na  casa 
da  índia  e  na  alfandega  de  Lisboa  para  rejeitar  as  que 
achasse  corrompidas.  Nos  outros  portos  este  exame  per- 
tencia aos  corregedores  das  comarcas.  Era  ainda  attríbui- 
ção  sua,  finalmente,  prohibir  a  concessão  de  cartas  de  cfmr- 
gia  aos  boticários  por  incompatíveis  com  o  seu  oílicio  *. 

Ao  cirargiâo  mór  incumbiam  funcções  quasi  análo- 
gas na  soa  esphera.  Devia  fazer  também  a  visita  do  rei- 
no» e  cohíbir  as  infracções  dos  regimentos  de  saúde  na 
parte  que  lhe  respeitava,  conservar  em  um  livro  espe- 
cial o  assentamento  de  todos  os  cirurgiões  habilitados, 
livres  e  de  partido»  appiicando  a  pena  de  degredo  para 
fóra  de  villa  e  termo  aos  que  curassem  illegahnente»  e 
examinar  com  dois  cirurgiões  escolhidos  por  elle  os  qae 
se  propozessem  para  exercer  a  arte,  uma  vez  que  provas- 
sem saber  latim  e  ter  pratica  de  quatro  annos  no  iiospital 
da  terra.  A  sua  carta  de  approvação  pagava  um  marco 
de  prata  de  direitos  de  chanceilaria.  Assistido  de  dois  bar- 

1  Regimento  do  Physico  mór  de  25  de  fevereiro  de  1321.— AI-  . 
Tnrá  de  29  de  junho  de  1637  sobre  taxas  de  remédios,  e  de  i5  de 
novembro  de  1623  sobre  policia  medica.  O  physico  mÓr  podia  sus* 
pender,  autuar  e  proeessar  as  pessoas  encontradas  em  contraveaçio 
das  lás  em  qualquer  terra  do  reino. 


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DOS  SÉCULOS  XVU  R  XVDI 


403 


beiros  peritos  examinava  igaalmente  os  sangradores,  que  cntdad6 

justi (içassem  dois  aniios  de  bom  exercício.  Por  ultimo,  era 
examinador  também  de  obstetrícia  e  passava  as  licenças 
ás  parteiras,  assim  como  podia  expedir  aos  curandeiros 
de  escrófulas,  chagas  e  feridas  simples  auctorísações  para 
usarem  de  seus  bálsamos  e  unguentos  particcdares.  As 
licenças  custavaiu  tres  cruzados,  e  a  multa  dos  sangra- 
dores sem  titulo  2)Í000  reaes 

Entretanto,  como  notámos  em  outras  parles,  os  estu- 
dos médicos  haviam  declinado  muito  desde  o  ultimo 
quartel  do  século  xm,  e  em  4604  o  governo,  para  os  re- 
animar, decidiu  estabelecer  partidos  destinados  ao  soe- 
corro  dos  alumnos  pobres,  dignos  de  incentivo  pela  sua 
vocação.  Creou  para  isso,  pois,  trinta  legares  de  porcio^ 
nistas  na  universidade  de  Coimbra  e  dois  de  collegiaes 
em  S.  Pedro  e  S.  Paulo  com  ^0^)000  reaes  por  anno 
cada  um  em  tres  pagamentos.  A  admissão  dependia  de 
óptimas  informações  locaes  tiradas  pelo  reitor  e  tres  len- 
tes de  medicina,  devendo  os  candidatos  provar  capaci- 
dade, pureza  de  sangue  e  procedimento  irreprebensivel, 
e  prestar  fiança  de  frequentai  em  até  final  appi  uvação  to- 
dos os  cursos.  Os  que  perdessem  algum,  ou  o  interrom- 
pessem, alem  da  suspensão  do  subsidio,  ficavam  obriga- 
dos a  restituir  o  que  houvessem  recebido.  O  fim  doesta 
instituição  era  habilitar  sujeitos  aptos  para  clínicos  e  pro- 
fessores. Crearam-se  mais  vinte  pensões  para  boticários 
com  i6i$000  reaes  annuaes  por  espaço  de  seis  annos  e  a 
condirão  de  praticar  quatro  em  Coimbra,  ou  em  outra  ci- 
dade. A  despeza  total  subia  a  l:600(jMX)0  reaes  reparti- 
dos pelos  concelhos  e  comarcas  mais  ricos,  e  arrecadados 

1  Begimeiilo  do  círaigiâo  mór  de  12  de  dezembro  de  1631.  Coí- 
kefão  de  Rê^inm^  Reaes^  tom.  vi,  pag.  343. 


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491 


aiSTORU  DE  PORTUGAL 


pdo  prebMidarío  da  oniversidade.  Apesar,  camtiido, 
d'esta  disposição  benéfica,  e  das  restricções  e  seveiida- 

des  penaps,  o  exercido  da  medicina  p  dn  cinir^ia  nas 
terras  pequenas  e  nas  aldeias  corria  peias  mãos  dos  em- 
píricos, e  das  maUieres  de  virtude,  e  a  rudeza  popular 
fugia  dos  facultativos  habiUtados  para  os  que  promettiam 
alliviar«1hes  as  dores  com  segredos  e  orações,  e  ás  vezes 
com  sortiloírioí?. 

As  razms  poiíciaes  do  pbysico  mòr  e  do  cu  urgião 
mór,  dODunciadas  a  tempo,  raras  vezes  coibiam  os  in- 
firaetores,  e  a  cumplicidade  do  povo  cobria  do  castigo 

os  que  mais  abusavam  da  sua  boa  fé.  O  atrazo  da  scien- 
cia  p  a  ignoraucia  anatómica  e  pharmaceutica  dos  mi- 
uistraiites  habilitados  tornavam  alem  d'isso  tão  nocivas 
e  arriscadas  suas  prescrípções,  que  os  enfermos  tre- 
miam. Dão  sem  motivo,  de  caírem  debaixo  da  ferula  dos 
esculápios  leí.'aes.  A  mortabíiadt'  accusava  todos  os  dias 
a  sua  incompetência  *.  O  numero  dos  médicos  que  exer- 
ciam clinica  em  Lisboa  em  i5âi  orçava  por  cineoenta  e 
sete^  o  dos  drurgiOes  por  setenta  e  o  dos  boticários  por 
quarenta  e  seis.  Em  4620,  isto  é,  sessenta  e  nove  annos 
depois,  a  capital  contava  sessenia  jjhysicos,  ou  médicos, 
cento  cineoenta  e  tres  barbeiros  de  lanceta  com  loja  aber- 
ta, quarenta  cirurgiões  e  quarenta  e  tres  boticários.  Ape- 
sar doesta  facilidade  de  soccorros,  a  mortalidade  accusava 
as  más  condições  hygienicas  e  a  alimentação  insufficiente, 
ou  nociva  das  classes  populares,  subindo  poí-anno  us  óbi- 
tos, termo  médio,  a  rini  o  mil,  sem  contar  os  dos  hos- 
pitaes  e  das  galés  e  prisões,  proporção  assás  elevada  para 

1  £ncontra-se  o  Regimento  dos  Partidos  de  Médicos  e  Boticarin 
no  fím  cios  estatutos  da  universidade  de  ifiôl  e  aviilao  nas  ooUec- 
(ôes  de  Tiigoflo  e  Moiueiihor  Gofda 


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DOS  SÉCULOS  XVn  E  XVttí 


wna  população  que  não  excedia  cento  sessenta  e  cinco 

mil  almas,  porque  representava  só  por  si  uma  perda  con- 
stante e  avultada,  perda  de  certn  muito  maior  se  podes- 
semos  incluir  todos  os  algarismos,  que  deveriam  escapar 
ás  imperfeitissimas  estatísticas  da  epodvi^ 

A  mendicidade,  pondo  todas  as  mascaras,  e  cobrindo- 
se  com  todas  as  capas,  invadia  as  terras  príncipaes,  e  era 
o  flagelio  das  povoações  abastadas,  sobretudo  das  ruraes, 
aonde  esta  lepra  se  alastrava  com  menos  pejo,  bio- 
qaeando  as  portas  das  casas  mais  ricas.  Nas  viUas  e 
ddades  os  pedintes  enxameavam  nas  portarias  dos  con- 
ventos, á  entrada  das  igrejas,  e  pelas  ruas  mais  concop- 
ridas.  A  sua  destreza  em  simularem  chagas  asquerosas, 
aleqdes  e  moléstias  repugnantes,  a  fim  de  attrabirem  a 
eompaixlo»  era  tal  que  chegava  a  constituir  ama  arte, 
assim  como  a  vida  de  mendigo  constituia  uma  profissão 
lucrativa.  O  governo  intentou  oppor-se  aos  maiores  abu- 
sos; mas  a  obsLiiiaçào  dos  exploradores  por  um  lado  e  a 
credulidade  dos  illudidos  pelo  outro,  frustravam  na  exe*> 
cução  as  melhores  disposições,  e  o  numero  dos  que  fol- 
gavam á  custa  do  património  dos  verdadeiros  pobres  to- 
dos os  dias  augmentava.  Em  1604  os  excessos  tocaram 
o  extremo,  e  auctoridade  para  os  cohibir  publicou  uma 
provido  bastante  severa.  Ninguém  podia  esmolar  sem  ^ 
ceoça  dos  corregedores  e  dos  ouvidores  das  comarcas,  sob 
pena  de  açoutes  e  degredo  para  dez  Icguas  de  distancia 
da  terra,  aonde  a  infracção  fosse  commettida.  £m  todas 
as  localidades  deviam  os  magistrados  mandar  lançar 
pregão,  citando  os  cegos,  os  velhos  e  os  aleijados,  ím- 

&  Christoviò  Rodiifues  de  Oliveiía,  Summam,  «Gente  de  offl- 
eioa  ^  ba  on  liaboa.— Fr.  Nicoian  de  OUvoira,  Ormidejun  dê 
Luèoa,  tnk,  iv,  cip.  vm  e  vl  No  hoqiital  de  Todot  ot  Statos  or« 
çsfi  a  wiwiiflHdadt  por  rinwfmla  indivíduos  por  hmi» 


4M 


mSnilIA  DB  FOttTUGAL 


possibilitados  de  trabalhar»  para  comparecerem  em  dia 
certo  em  um  logar  determinado,  e  só  d^ts  de  exami- 

uados  se  expedia  a  cad  i  um  licença  por  seis  mezes  para 
iovocar  a  caridade  publica.  A  licença  não  podia  ser  re- 
novada sem  o  parocbo,  ou  o  cura  attestar  a  miséria  do 
individuo.  Estas  prescrípções  depressa  ficaram  qnasi  em 
letra  morta,  e  decorridos  quatro  annos,  em  1608,  o  al- 
vará de  25  de  dezembro  suscitava  a  sua  observância, 
avivando  o  zéio  dos  juizes  do  crime  dos  bairros  de  Lis- 
boa contra  os  pedintes,  que  arrancavam  esmolas,  não  só 
fingindo  enfermidades,  mas  valendo-se  de  caixas  com 
imnpens  de  santos  pintadas,  e  de  biocos  liypocritas  para 
arnuii  eni  i\  devoção  dos  fieis*. 

I^ão  menus  impotentes  tinbam  sido,  e  continuaram  a 
seir,  os  esforços  empregados  para  expeiiir  do  reino  as 
quadrilhas  de  ciganos  que  pululavam  por  toda  a  parte,  e 
especialinenti.'  nos  districtos  do  sul  e  do  centro,  zombando 
do  rigor  das  leis,  que  desde  o  primeiro  quartel  do  sé- 
culo ivi  não  baviam  cessado  de  comminar  em  vão  penas 
contra  os  que  entrassem  de  novo,  ou  insistissem  nas  abo- 
minações de  sua  existência  errante.  Estes  homens,  conhe- 
cidos em  França  pela  denominação  de  «egypciost  e  de 
cbohemios»,  em  Itália  pela  de  «zíngaros»,  e  em  Inglaterra 
peia  de  cgypsies»,  descendiam  de  uma  raça  emigrada  dos 
paizes  do  Levante,  que  no  xv  século  se  espalhàra  pela  Eu- 
ropa, raça  exótica,  tenaz  na  conservação  da  individuali- 
dade do  seu  typo,  e  incorregivel,  então,  como  hoje,  no 
exercício  das  industrias  illicitas,  dos  roubos  furtivos  e  dos 

1  Provisão  4e  9  de  janeiro  de  iG04,  contendo  o  regulamenío  r!a 
mendicidade  auctorísada, — Alvará  do  25  de  dezembro  dc  1608, 
art  i3.%  provocando  a  obsenanria  d'f  lie.— Coliccrão  Galhardo 
junto  á  lei  de  25  de  julho  de  1760.— Carta  regia  dc  29  de  janeifo 
de  Í6i9,  auscitaiuio  a  execução  das  leia  vigeates  contra  oa  vadios. 


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DOS  SÉCULOS  XVlí  E  XVIII  49? 

contratos  fraudulentos.  As  mulheres  liam  a  huena  dicha,  caridada 

iiiti  oduziani-se  nas  casas  e  facilitnvani  o  cnmiiiho  aos  seus.  ^^^^ 
Os  ciganos,  sem  crenças  reli^nusas,  mal  conceituados  com 
motivo,  e  iião  se  c  onrundindo  com  neoimm  outro  povo  por 
allianças  matrimouiaes,  justificavam  com  seus  costumes 
torpes  e  más  artes  a  aversSo  geral  e  a  aspereza  com  que 
os  poderes  i)ul)licos  os  puniam.  A  perseguição  começou 
contra  elles  em  Pui  lugal  em  15á6  e  em  1538,  e  recru- 
desceu em  1557  e  m%  D.  João  111,  O.  Sebastião  e  Fi- 
lippo II,  auxiliados  pela  inquisição,  muiliplicaram  as  di- 
ligencias para  varrerem  do  nosso  território  aquelles  acam- 
pamentos de  nómadas,  parecidos  com  os  aduares  dos 
árabes  salteadores,  que  sempre  deixavam  apoz  si  tristes 
vestígios. 

Resistência  passiva,  soílrimento,  astúcia  e  perseve- 
rança superior  aos  maiores  obstáculos  foram  as  armas 
que  lhes  oppozeram  os  proscriptos,  armas  invencíveis 
por  que  triumptiaram  })or  lim  das  leis  e  dos  seus  exe- 
cutores. Debalde  se  dictaram  prasos  fataes  á  sua  saída  e 
se  decretou  até  a  pena  de  morte  contra  os  que  fossem  en- 
contrados em  rancíios  peias  terras,  a  própria  exageração 
do  castigf)  desarmava  os  juizes,  e  o  rei  em  1606  era 
obrigado  a  estranliar  a  muitos  d  elles  a  concessão  de 
«cartas  de  vizinhança  a  ciganos»  e  o  esquecimento  da  or- 
denação penal.  Em  4613  succedia  o  mesmo,  e  nem  os 
látegos  dos  verdugos,  nem  os  ferros  das  galés  alcançaram 
nunca  desterrar  do  reino  estas  colónias  de  vagabundos  tão 
audazes  no  furto  e  tão  babeis  na  dissimulação  do  crime  ^ 

1  Em  1838  ealculava-se  ainda  em  4  milhflés  de  alnias  a  populaçSo 

errante  doe  ciganos  na  Asia  e  na  Europa. — Alvari  de  13  de  mxrço  de 

:Lei  24.*  das  de  26  de  novembro  de  1S38.— Ordenaçãio,  Uv. 

tit  LXtx. — Alvarás  de  i7  de  agosto  de  i^7, 14  de  março  de  1573  e 
tom»  T  31 


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498 


HISTOHIÀ  DC  PORTUGAL 


A  miséria,  porém,  era  em  grande  parte  verdadeira,  e 

de  anno  para  aimo  crescia  mais  que  tudo  nas  províncias 
pela  diminuição  e  raiDa  da  lavoura.  Lisboa  disfarçava  me- 
lhor a  decadência,  mas  os  padecimentos  das  classes  infe- 
ríores  traduziam-se  no  augmento  da  mendicidade  e  na 
insuíBciencia  da  alimentação.  Se  havia  quem  gastasse  o 
supérfluo  e  deslumbrasse  a  vista,  provocando  a  inveja,  a 
maioriâ  escassamente  acudia  ao  necessário,  e  a  pobreza 
envergonhada  chorava  em  mnitas  casas,  aonde  a  fome 
nmica  entrára,  e  qae  o  aperto  e  a  desgraça  dos  tempos  ha- 
viam deixado  sem  meios.  Os  preços  dos  artigos  indispen- 
sáveis subu'am  gradualmente,  e  tornavam  ainda  mais  dilfi- 
cil  e  dolorosa  a  vida  das  famílias  arruinadas  pela  guerra 
marítima  e  pela  declinação  do  commercio,  consequência 
inevitável  d'ella.  Por  1552  o  tr  igo  vendia-se  nos  annos  re- 
gulares em  Lisboa  a  67  reaes  o  alrpieire,  e  a  4?>000  o 
moio,  o  milho  a  40  reaes  o  alqueire,  e  a  cevada  pela 
mesma  quantia.  Saíam  por  dia  do  terreiro,  aonde  se  de- 
positava e  media  o  pão,  420  moios,  e  por  anno  3:456*. 
O  consumo  do  milho  calculava-se  em  5:000  moios,  e  o 
da  cevada  rui  I <»:()( )0.  Os  moinhos  da  cidade  e  dos  ar- 
rabaldes reduziam  aanualmenle  a  farinha  51:560  moios 
de  trigo,  avaliados  a  rasão  de  61SIOOO  reaes  o  moib  em 
327  contos  de  réis.  Mas  os  annos  regulares  cada  vez  iam 
sendo  menos  freijuentes.  A  popidarão  da  capital  tinha-se 
elevado  de  100:000  almas,  recenseadas  na  primeira  me- 
tade do  século  XVI,  a  105:000,  ou  mais,  no  século  xvn 
(4620-1640).  A  revolução  operada  pela  diíFerença  do  va- 
lor nos  metaes  preciosos,  junta  a  todas  estas  causas  con- 
de 28  de  agosto  de  1592.— Alvará  de  7  de  janeiro  de  i606  e  carta 
regia  de  29  de  janeiro  de  JGiO. 

*  Manuscripto  d;i  Bibliolhcca  .Nacional  de  Lisboa,  sem  Utuiu  e 
referido  á  csULiblica  de  LisJjoa,  no  anno  de  iòòi. 


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DOS  SÉCULOS  XVII  £  XVIII 


499 


corria  para  todos  os  géneros  encarecerem,  aggiavando  a  caridade 
posição  dos  infelizes*.  ^Yuàa, 

0  moio  de  trigo,  queem  1G67  valia  iâiJOOOreaes»  custa-  . 
vanos  dez  annos  decorridos  desde  1626  até  1636, 19^500 

e  205000  reaes.  O  niuio  de  milho,  que  na  mesma  epocha 
se  vendia  na  capital  por  i-yÀOO  reaes,  não  se  comprava 
ao  período  que  apontámos,  por  menos  de  lljíSOO.  O  vi- 
nho em  1552  orçava  por  8^000  reaes  o  tonel  de  doas  pi- 
pas, e  entre  a  cidade,  Alfòma  e  a  Mouraria  gastavam-se 
por  aaao  10:080  pipas.  Em  1617  uma  pipa  de  vinho  nlo 
descia  de  7^000  reaes.  Em  a  1636  baixára  muito, 
porque  não  excedia  k^2&0  e  5^000,  mas  do  mais  ordi- 
nário. O  azeite  também  quasi  que  dupiícâra  o  preço.  A 
carne  igualmente.  Em  1534  nlo  passava  de  5  reaes  o  arra- 
iei, e  em  1620  quadruplicara.  Em  1620  a  imposição  sobre 
o  vinho  rendia  ao  fisco  40  contos,  e  o  real  de  agua  10.  A 
Siza  da  carne  arrendava-se  por  23  e  a  do  pescado  produzia 
14.  No  açougue  publico  decepavam-se  por  anno  100:000 
carneiros,  1 1:000  bois,  24:000  porcos  e  15:000  chibatos. 
Os  mercados  da  fnicta,  da  hortahça,  das  aves  e  do  peixe 
eram  abundantes,  e  vendiam  peia  taxa  lixada  pelo  senado, 
á  excepção  do  pescado,  que  era  livre  como  pediam  as 
circumstandas  espedaes  de  uma  industria  sujeita  a  tão 
grande  variedade  de  contingências  ". 

Esta  alteração  no  custo  dos  artigos  essenciaes,  reagindo 
sobre  a  escassez  dos  salários  e  sobre  a  apathia  de  todos  os 
mananciaes  de  rendimento,  multiplicava  e  exacerbava  as 

1  Fr.  Nicolau  de  Oliveira,  Grandezas  de  Lisboa,  trat.  iv,  cap.  vil, 
e  trat.  v,  cap.  v. 

2  Ibidem,  ibidem.  O  total  dos  Vciloies  representados  pelo  consumo 
annual  de  Lisboa  em  1552  calculava-se  em  640:000(^000  réis.  Em 
1640  devia  ter  mais  do  que  triplicado,  apesar  lias  restricçGes  impos- 
tas pela  pobreza  geraL 

3S. 


fSfíO    HISTORU  DB  PORTUGAL  DOS  SBCDLOS  XVII  B  XVIll 

Caridade  cFÍses,  e  íazía  qmú  iosupportavel  a  condição  dosquesub- 
poiLa  sis^i^n^     trabalho  manual.  Não  corria  por  causas  aná- 
logas menos  avéssa  a  sorte  das  classes  medias,  que  as 

transacções  mercantis  e  as  vingens  <!a  índia  e  da  America 
enriqueciam  antes  de  manifestados  com  toda  a  inlensidade 
os  effeitos  desastrosos  da  união  a  Castelia.  Os  naufrágios 
e  apresamentos  das  naus  da  carreira,  as  perdas  succes- 
sivas  de  seus  preciosos  carregamentos,  a  falta  de  segu- 
rança ]iiiiriliiiia,  não  S(3  nos  mares  oulr'ora  avassallados 
pela  nossa  bandeira,  mas  ale  nas  aguas  da  costa  de  Por- 
tugal, e  a  estagnação  do  mercado  das  especiarias  e  das 
raridades  da  China  e  Japão,  haviam  convertido  quasi  em 
pobreza  a  antiga  opulência.  As  casas  remediadas  acba- 
vam-se  indigentes,  e  as  que  vinte  annos  antes  giravam 
com  grossos  cabedaes,  íallidas  de  n^cnrsos,  quebravam 
arruinadas  peia  guerra.  As  íamiiias  nobres  não  padeciam 
menos  pelos  motivos  apontados  em  outro  capitulo»  e  mui- 
tos fidalgos  escondiam  nos  solares  meio  caídos  das  pro- 
víncias a  estreiteza  das  rendas,  desterrando-se  volunta- 
riamente da  còrte,  e  encurtando  as  despezas  aijaixo  da 
mediania,  sem  com  isto  se  desempenharem  das  dividas, 
que  os  opprímiam. 


* 


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,       GAPJTCJLO  II 

SEGURANÇA,  CIVILISAÇÃO  E  MELHOMMENTOS 

OrganUaçSo  da  policia  era  Lisboa.  Crimes  em  diversas  terras  do  reino.  Soa  impunldadí^. 
Desacatos  e  escândalos  —Fnli;)  de  segurança.  —  Desafios.  Inutilidadp  dos  meios 
repressivos.— A trazo  da  ctvdtiaçáo  cm  algumas  de  suas  maiufe$ta${^e$ .  bsLilagens. 
Grapeiomór.  Serviço  dMcorraspoodendai.  Calçadas  êm  Lisboa.  EdificaçSo  de  pré- 
dios. Abastacimanift  de  aguas.  Teatatifas  pm  o  meUiorar.  Rápido  esbofO  do  as» 
pecÁo  da  cidado.  O  Terreiro  do  Pa^o  c  o  Rocio.  Rlias  prioeipaes.  Palaoios  dofel— 
A  iiaveiga(8o  do  Tijo  nos  fios  do  século  xn. 

A  tranquiiliiiade  do  reino  era  mais  apparenle,  do  que 
real.  O  profundo  desconteDtamento  que  lavrava»  e  a  cor* 
rupção,  não  menos  extensa»  que  dissolvia  os  vínculos  so- 
cíaes,  revelavam-se  em  dadas  occasiões,  rompendo  o  freio, 
e  annullando  os  esforços  dos  poderes  constiluidos.  As  más 
paixões  rebenlavaiii  ao  menor  pretexto.  O  governo  não 
inspirava  coníiança»  nem  soubera  alcançar  o  amor  dos 
povos,  e  as  anctorídades,  constrangidas  a  firmarem  na 
força  qoasi  exclusivamente  o  império  das  leis,  faltando- 
lhes  multas  vezes  esta,  viam-se  obrigadas  a  tolerarem  os 
abusos  privadas  da  acção  eHlcaz  da  influenria  moral.  A  ve- 
nalidade dos  empregos  e  das  liunras,  a  cubiça  de  não  pou- 
cos magistrados,  que  administravam  justiça,  e  a  conhecida 
devassidão  dos*agentes,  que  os  coadjuvavam,  entretinham 


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502  HISTOIUA  DE  PORTUGAL 

segniMça  esta  anarchía  mansa,  o  peior  de  todos  os  estados,  porque 
mrfhft^Twm  denunciava  a  quebra  do  rospoilo  e  do  prestigio  do  poder, 
a  indíílerença  do  espirito  publico,  e  os  progressos  da  gan- 
grena social. 

Em  i603  um  regulamento  previdente  intentára  acudir 

aos  excessos,  que  a  todas  as  horas  do  dia  e  da  noite  des- 
honravam  ainda  os  togares  mais  frequentados  da  capital. 
O  alvará  de  de  março,  creando  a  policia  urbana,  e 
abrindo  os  olhos  de  uma  vigilância  óontínua  sobre  os 
crimes  e  seus  perpetradores,  adiantou  alguns  passos  no 
sentido  de  modiQcar  o  mal,  mas  não  conseguiu  veiice-lo, 
nem  podia.  Mandando  recensear  pelo  presidente,  verea- 
dores e  oiliciaes  do  senado  da  camará  nas  parochias  de 
Lisboa  os  moradores  mais  honrados,  residentes  n*elias, 
que  trabalhassem  por  seus  oflicios,  formou  com  elles  o 
corpo  dos  quadrilheiros  da  cidade,  e  impoz  lhes  a  obri- 
gação de  servirem  tres  annos.  Vinte  vizinlios  em  cada  fre- 
guezia  deviam  auxiliar  á  primeira  voz  as  diligencias,  ar- 
mados de  lanças  de  dezoito  palmos,  de  diuços,  ou  de 
alabardas.  Para  máior  facilidade  das  repressões  foram 
nomeados  mais  dois  corregedores  e  mais  dois  juizes  do 
crime,  perfazendo  todos  os  julgadores  o  numero  de  dez, 
repartidos  por  outros  tantos  bair  i  os  compostos  de  varias 
freguezias.  Os  juízes  haviam  de  rondar  o  seu  bairro  pelo 
menos  duas  vezes  por  semana,  e  os  alcaides  todas  as  soi- 
tes.  Cumpria-lhes  mais  devassarem  os  costumes  dos  mo- 
radores, visitarem  as  estalagens,  e  prenderem  os  vadios, 
os  jogadores  e  as  pessoas  suspeitas.  Aos  alcaides  compe- 
tia aquietarem  as  brigas  e  motins,  sindicarem  do  compor- 
tamento dos  habitantes  de  cada  rua,  para  serem  punidos 
os  que  achassem  em  trato  deshonesto  em  casa,  ou  fóra 
d'ella,  e  castigados  os  blasphemos  e  armadores.  Aos  qua- 
drilheiros, por  ultimo,  toava  a  prisão  dos  vadios  e  fai- 


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DOS  SÉCULOS  XVil  £  XVilI 


503 


SOS  mendigos  do  bairro,  a  expulsão  das  mulheres  de  má  stgmm 

vida,  e  a  defeza  da  ordem  e  da  propriedade  dos  vizinlms.  ,neUuMiu»ani 
Um  dos  coi  i  egedores  du  crime  devia  percorrer  todos  os 
amios  o  termo  da  cidade  ^ 

Mas  as  melhores  iDSlituic5es  pouco  aproveitam,  quando 
as  não  auxilia  a  coadjm  açâo  dos  súbditos.  Foi  o  que  suo 
cedeu  n'este  caso.  Doze  annos  depois,  em  1615.  as  ruas 
e  a  praças  de  Lisboa,  mesmo  á  luz  do  sol,  eram  eusaa- 
guentadas  pelas  rixas  particulares  e  por  tumultos  repe-> 
tidos.  De  noite  o  transito  era  quasí  tão  perigoso  como 
nas  estradas  infamadas  de  salteadores.  As  esperas,  as  vin- 
ganças e  os  roubos  succediani-se,  assusLaado  os  habitan- 
tes, que  não  se  ali  eviam  a  sair  pelo  escuro  sem  grandes 
precauções.  As  contendas  dos  fidalgos  e  seus  deiicios  to- 
caram tal  extremo,  animados  pela  impunidade,  que  el-rei 
para  os  conter  mandou  que  os  julgassem  na. correição  do 
crime  e  no  juizo  dos  cavalleií  os,  e  que  fosse  enviada  para 
Madrid  uma  liota  com  o  nome  dos  culpados  a  fim  de  se- 
rem excluídos  de  todas  as  graças  e  mercês.  Não  obstou 
esta  prescripção,  porém,  a  que  pouco  depois  recrudes- 
cessem os  ódios  e  se  renovassem  nas  ruas  scenas  violen- 
tas, em  que  o  saii^j^ue  correu  i)or  imiitas  vezes.  Por  causa 
de  uuia  d"éllas  entraram  na  cadeia  do  Lmioeu'0  em  i(i2í4 
tres  nobres  e  foi  posta  uma  guarda  na  casa  de  Gaspar  de 
Brito  Freire.  No  paiz  ainda  os  crimes  se  desenfreavam 
com  mais  soltura.  Em  Elvas  os  bandos  entre  as  famílias 
dos  Lobos  e  dos  Matos  lomaraia  proporções  assustadoras 

*  Sobram  os  documeiilos  paia  jii>liric:\r  o  quadro  que  traçámos. 
Para  se  convencer  d*isso  consulte  o  leitor  as  cartas  regias  de  21  de 
maio  de  lOli,  '}  de  outubro  de  Ifiir),  e  fr  e  20  de  juidio  de  1017, 
assim  como  as  de  2o  de  janeiro  de  MrlO,  18  de  maio  de  1624,  10  de 
agosto  de  l()27  e  13  de  fevereiro  do  1030  na  Coilecção  de  Legklaçúo  ' 
j^ublicacU  peio  sr.  José  Justino  de  Andrade  e  Silva. 


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m 


BI8T0IUA  DB  PORTUCAL 


s«K«niiica  em  1627,  a  ponto  do  governo  intervir  para  as  congraçar. 

rtiionmTiitni  cidade  da  Guarda  as  inímisades  entre  seuhores  e  ca* 
valhelros  da  terra  traziam  a  povoação  tSo  inqoieta,  que  o 
desembargo  do  paço  consultou  a  urgência  de  providen- 
cias, e  a  côrte  resolveu  commelter  ao  bispo  da  diocese  a 
concórdia  dos  desavindos,  missão  evaogelica  cujo  resul- 
tado ignorámos.  Em  Castello  Branco  assumiram  as  cousas 
mais  feio  as[)ecto  ainda.  Toda  a  comarca  ardia  em  desa- 
venças e  ai  ruidos,  assolada  por  quadrilhas  de  malfeitores 
e  de  amotinados,  que  talavam  as  aldeias  e  os  casaes,  e, 
crescendo  em  atrevimento,  ousaram  arroml)ar  até  a  ca* 
deia  da  vilia,  e  arrancar  os  presos  dos  ferros  da  justiça. 
Em  Alcácer  travou-se  uma  lota  entre  os  freires  das  or- 
dens militares  e  os  ministros  do  arcebispo  de  Évora  em 
1630,  caindo  alguiis  homens  feridos.  As  dissidências  re- 
ligiosas não  accendiam  conflictos  menos  perigosos,  cau- 
sando graves  cuidados  as  discórdias  ateiadas  entre  os 
chrístios  novos  de  Santarém  e  Torres  Novas  e  os  que 
suppunham  provar  o  zelo  e  pureza  de  suas  crenças  per- 
seguindo os  descendentes  dos  judeus  convertidos. 

A  religião  não  era  mais  respeitada.  O  terror  incutido 
pela  severidade  do  tribunal  da  fé  avivára  as  exteriorida- 
des  do  culto,  dera  íóros  de  devoção  exemplar  á  hypocri- 
sia,  mas  não  fortificara  o  exercício  das  virtudes  christãs, 
nem  arreigára  os  sentimentos  de  piedade,  ou  a  pratica  dos 
deveres  moraes.  A  veneração  dos  altares  e  o  temor  de 
Deus  não  suspendiam  o  braço  audaz  dos  criminosos.  As 
grandes  festividades,  em  que  o  povo  se  accumulava  nas 
igrejas,  foram  maculadas  em  muitas  occasines  com  ho- 
micidios,  violências  e  brigas.  Em  Lamego,  em  1631,  um 
sacerdote,  que  estava  dizendo  missa,  caiu  varado  de  uma 
bala  no  momento  da  elevação  do  callx.  Em  Santa  Clara  de 
Bragança,  em  1633,  Diogo  de  i  igueii  edo  Sarmento,  nas 


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DOS  SÉCULOS  xvn  B  xvni 


SOS 


EDdoeQças,  estado  o  Sacramento  exposto,  ensangueotou  s««iirao{a 
O  templo  crivado  de  tiros  de  espingarda.  Em  Portalegre  o  nwiiKM^i 
povo  accasou  os  judeus  de  haverem  desacatado  a  imagem 

(lo  Redemptor,  e  para  o  socegar  mandou-se  proceder  a 
rigorosa  devassa.  Na  igreja  do  S.  Fi  aacisco  de  Extremoz 
e  na  de  S.  Francisco  de  Lisboa  a  noite  de  Endoenças  cor* 
reu  attribulada  para  os  frades  e  para  os  fieis,  travando-se 
rixas  e  assuadas  seguidas  de  pris5es  e  castigos.  O  des- 
acato de  Santa  En^Tacia  de  Lisboa,  em  a  noite  de  15  de  ja- 
neiro de  1G30.  commovcu  pi  oíundamente  a  população  da 
capital,  e  as  precipitações  da  justiça  no  processo  custaram 
a  vida  a  um  innocente,  a  Fernão  Lopes  Soliz.  Estes,  e  mui- 
tos outros  actos  de  irreligião,  commettidos  em  todo  o 
reino,  mostram  u  gi  au  de  desenfre amento  e  de  scepli- 
cismo,  que  haviam  attingido  os  vícios,  a  dissolução  dos 
costumes  e  a  falsa  ostentação  das  crenças*. 

Nos  logares  da  raia  vivta-se  em  guerra  aberta  sempre 
e  com  o  dedo  no  gatilho  das  clavinas  e  trabucos.  Os  par- 
ticulares decidiam  todas  as  questões  pelas  armas.  Tanto 
em  Lisboa,  como  nas  provindas,  parecia  mais  fácil  ferir, 
ou  matar  o  adversário  ou  o  inimigo,  do  que  appellar  para 
a  protecção  de  leis  sem  força.  Os  presidentes  dos  tribu- 
naes  e  os  ministros  favoreciam  os  culpados  movidos  por 
empenhos,  ou  por  peitas,  e  a  côrte  de  Madrid  estranhou 
com  motivo  estas  negligencias  voluntárias,  imputando- 
ibes  a  impunidade  de  muitos  deiictos.  As  omissões  da 

^  Outu  regias  de  24  de  setemlnro  de  1631,  de  13  de  abril  de 
1633,  de  18  de  nulo  de  1630,  e  de  SO  de  abril  e  iO  de  agosto  de 
1633.  Aceroa  da  tragedia  a  que  deu  origem  o  desacato  de  Santa  En- 
grácia veja*se  o  Agiohgio  LtuUano,  o  ÂnnoHUtorieo,  aHisforta  da 
FMaçSo  do  UetU  Convento  do  hmríçal,  o  Mappa  de  Portugal,  por 
Jòfio  Baptista  de  Castro,  e  o  jornal  o  Panoramaj  voL  i  da  2."  seríe^ 
anno  de  1842. 


Uiyilizea  by  LiOOgle 


m 


HISTORU  PE  POliTUGAL 


stsmçft  justiça  animavam  a  insolência  dos  poderosos  e  enfra(pid* 

lii^ii^JLi^.  ciairi  a  acção  do  governo.  * 

ISas  eslradas  salpicadas  de  sailcadoies  e  de  assas^mus 
não  se  arriscava  ninguém  sem  boa  guarda.  Manuel  de 
Mello,  pessoa  estimada  em  Lisboa,  acommettido  de  re- 
pente no  caminho  entre  Extremoz  e  Elvas  por  uma  qua* 
drilha  de  homens  disfarçados  com  p^iialteiras  de  rebuço, 
escapou  com  a  vida  salva  quasi  por  aúiagre,  mas  li  espas- 
sado  de  golpes.  Os  creados  do  marquez  de  Ferreira,  em 
Évora,  defronte  do  palácio  de  seu  amo,  levantaram-se 
contra  o  meirinho  da  cidade,  e  maltrataram  os  alcaides 
e  seus  ofíiciaes.  EiiviaiJo  em  alçada  o  corregedor  do  crime 
da  côrte  Gomes  Leitão,  pediu  escusa,  allegando  rasões, 
que  inculcavam  receios  vehementes  do  fidalgo,  que  pro- 
tegia os  culpados;  e  para  a  justiça  cumprir  a  sua  obriga- 
do foi  preciso  que  uma  ordem  do  rei  mandasse  recolher 
o  marquez  de  Villa  Ruiva,  e  que  o  desembargador  Fran- 
cisco Botellio,  juiz  das  ordens  militares,  enlj^asse  com  uma 
forte  escolta.  Concedéra  o  marquez  asylo  em  sua  casa  a  um 
criminoso  bomisiado,  e,  quando  as  auctondades  o  busca- 
ram, os  creados  espancaram-as.  Na  ilha  da  Madeira  re- 
bentaram alvorotos  de  tão  grave  caracter,  que  saiu  de  Lis- 
boa uma  commissão  com  poderes  amplíssimos.  £m  Tor- 
res Vedras  D.  Francisco  de  Castro,  irmão  do  conde  de 
Monsanto,  atreveu-se  contra  o  corregedor  da  comarca  a 
desacatos  de  tal  magnitude,  que  o  governo,  mandando 
lançar  pregão  contra  elle,  promettcu  4:000  cruzados  a 
quem  o  entregasse.  Por  ultimo  os  furtos  eram  tão  frequen- 
tes na  capital,  que  se  ordenaram  rondas  dobradas  em  to- 
das as  ruas  ^ 

1  Cartas  re^'iasde  10  de  outubro  do  lOlo  e  de  17  df  tnaíodelt)!^, 
de  18  de  dezembro  de  1617  e  de  30  de  janeiro  de  iúiH, 


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DOS  SÉCULOS  XVII  C  XWl  1507 

0  conselho  de  Portiifral  em  Madi  id  não  olhava  com  in-  segurança 
difíerença  para  este  eslado,  e  as  ordens  e  insinuações  .^^Mato» 
succediam-se«  mas  debalde,  para  excitar  o  cumprimento 

das  leis.  Promoveodo  a  observância  da  provisão  de  1570, 
assignada  em  Cintra  por  D.  Sebastião,  modiflcou-a  nas 
disposições  essenciaes,  e  procurou  torna-la  mais  exequí- 
vel quanto  á  policia  das  villas  e  cidades  do  l  eino.  Na  ca- 

^  pitai  organisoQ,  como  apontámos,  o  serviço  de  segurança 
e  a  guarda  urbana.  Mas  os  abusos  podem  mais,  do  que  os 
preceitos,  e  os  abusos,  quando  os  alentam  as  enfermida- 
des sociaes,  zombam  dos  legisladores.  Os  reinados  de  Fi- 
lippa III  e  de  Filippe  1 Y  renovaram  em  vão  as  comminações 
penaes,  accusando  ao  mesmo  tempo  infructuosamente  as 
reincidências  dos  delictos  e  a  fraqueza  da  administração, 
incapaz  de  os  reprimir  ^  Outra  infhicção,  a  que  a  moda  e  os 
falsos  brios  tiuhaiu  conquistado  quasi  os  fóros  de  acto  glo- 
rioso, era  a  repetição  dos  desafios,  não  só  entre  militares, 
mas  entre  pessoas  nobres  e  moças,  com  grande  perturba* 
ç9o  da  tranquiliidade  publica  e  do  socego  das  familias.  A 
causa  mais  leve  servia  de  pretexto  ás  provocações,  e  os  ca- 
sos de  honra  achavam  sempre  [)adi'inhos  dispostos  a  aucto- 
risarem  o  desaggravo  á  ponta  da  espada.  A  ordenação 
Aiíonsina  (iiv.  i,  tit.  lxiv)  limítára  os  reptos  aos  fidalgos 
e  cavalieiros,  admittira-os  só  nas  accusações  de  traição 
contra  o  rei  e  contra  o  estado,  e  prescrevéra  as  formulas 
e  as  regras  d'estes  combales  judiciários,  derradeiros  cla- 
rões dos  costumes  da  meia  idade.  A  ordenação  Manuelina 
(liv.  v,  tit.  Gxm)  prohibiu  a  todos,  naturaes  ou  estrangei- 
ros, de  qualquer  condição,  «desafiarem  outros  parase  ma- 
tarem com  elles»,  sós,  ou  acompanhados,  sob  pena  de  se- 

.  questro  dos  bens,  de  perda  das  moradias  e  de  degredo 

1  Alvaiás  de  i3  de  março  de  1603  e  de  2$  de  dezeoibro  de  1606. 


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508  H18T0BU  DE  POUTUGAL 

Segurança  |para  O  uitramar.  £m  1589  a  lei  de  7  de  outubro,  invo- 
m^o,^^,^  cando  o  decreto  do  concilio  Uidentino  sobre  os  desafios» 
suscitou  o  rigor  da  ordenado  contra  os  que  entrassem 

em  duello,  e  contra  os  seus  cúmplices  e  padrinhos,  e  o 
alvará  de  11  de  agosto  de  1590  tornou  as  penas  extensivas 
ás  pessoas,  que  levassem  cartel,  ou  recado  oral  para  com- 
bates singulares  ^  Mas  a  influencia  das  idéas  e  das  pai- 
xões, mais  poderosa  do  que  a  lei,  passou  por  cima  d'ella, 
e  cm  1G08  os  desafios  haviam-se  toniado  tão  frequentes, 
que  a  auctoridade  quiz  oppor  novas  barreiras  á  torrente, 
e  aggravou  o  castigo,  sujeilaudo  o  conhecimento  do  de- 
]icto  ao  juizo  do  corregedor  do  crime  mais  antigo  com 
processo  em  termos  quasi  verbaes  e  summarios.  O  remé- 
dio, apesar  de  heróico,  ao  que  parece,  nao  extirpou  o  mal 
■  pela  raiz,  e  os  (Jusafios  atravessaram  quasi  sempre  jiiipu- 
nes  a  primeira  metade  do  século  xvii,  e  mesmo  a  segunda, 
postoque  mais  diminuídos  pela  presença  do  inimigo  nas 
fronteiras,  e  pela  consíderacio  de  ser  como  que  uma  trai- 
ção arrancar  da  espada  contra  os  íilhos  da  mesma  pátria 
na  occasião  em  que  as  armas  do  estrangeiro  ameaçavam 
a  todos  2. 

A  civilisa(^o,  postoque  mui  adiantada  em  relação  á  ru- 
duza  de  eras  anteriores,  estava,  comtudo,  ainda  bastante 

atrazada  em  pontos  essenciaes,  e  especialmente  em  tudo 
o  que  se  referia  a  comiiiunicações  internas,  facilidade  das 
correspondências  e  commodidades  pbysicas.  Âs  estradas 
péssimas  e  mal  seguras  multiplicavam  as  distancias,  em 
vez  de  as  abreviarem,  e  poucas  admittiam  carros  e  liteiras* 
As  viagens  faziam-se  quasi  todas  a  cavallo  em  muares,  su- 

1  ConeiUo  THdenHno,  aess.  xxv,  cap.  xue,  ArchivoNacioiía],  liv.  i 
dd  leis  de  1576  até  1612,  fl.  194  e  fl.  SOl 

2  Lei  de  7  de  outubro  de  1589.— Alvarás  de  11  de  agosto  de  1590 
6del6âejiinliode.l60a 


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DOS  SBcoLOs  x?n  K  xvm  IS09 
bindo  ladeiras,  costeando  despenhadeiros  e  atravessando  seguranç* 

lucUiorouienlos 


lameiros,  em  qae  a  vida  e  os  membros  dos  passageiros  a  " 


cada  hora  corriam  risco  imminente.  As  estalagens  sem  es- 
trehnrias,  mal  abrigadas  e  sem  caiua^  lirn[tas  extorquiam 
aos  camiuhantes  preços  exagerados»  pagaodo-se  do  mau 
tratamento  como  se  o  dessem  óptimo.  Em  1498  as  côrtes 
de  Lisboa  representaram  a  D.  Manuel,  pedindo-lbe  que 
suspendesse  os  privilégios  ás  que  abusassem,  e  em  1538 
unia  lei  (Ití  D.  João  III,  procurando  atalliar  o  mal,  com- 
metléra  aos  juizes  de  fóra  e  aos  ordinários  a  íiscalísação 
e  policia  das  pousadas,  devendo  informar^se  do  estado 
d*ellas  e  do  preço  por  que  vendiam  os  mantimentos,  eím- 
por-lhes  a  taxas  dos  preços,  visilando-as  lodos  osmezes,  a 
íim  de  saberem  se  estavam,  ou  não  suíTicientemeníe  pro- 
vidas. No  século  xvii  estas  más  coadiçõcs  uão  iia viam  me- 
lhorado, e  as  estalagens porttiguezas,  comparadas  comas 
de  França  e  de  Itália,  segundo  attesta  Miguel  Leitão  de 
Ándrade,  pareciam  quasi  verdadeiras  pocilgas,  e  o  via- 
jante fatigado,  em  logar  dos  confortos  de  espaçosos  edifí- 
cios, de  um  trato  acaricialivo  e  de  mesas  lautas,  só  en- 
contrava entre  nós  casas  mui  pequenas  e  sujas,  e  tudo 
misturado  n'elias,  almocreves,  camas  immundas,  odres 
de  azeite  e  de  vinho,  e  até  sellas  e  albardas.  O  estalaja- 
deiro, soberbo  e  desagradável,  não  afagava,  repellia  os 
hospedes,  e  em  algumas  terras  os  leitos  não  passavam  de 
esteiras  de  tabúa  moídas  e  asquerosas,  como  acontecia  em 
Mugem,  Porto  Pereiro  e  Guja^. 
A  correspondência  epistolar  entre  as  diversas  localida- 


1  Córtes  de  Lisboa  de  1498,  cap.  xlii.— Lei  31  das  de  26  de  no- 
vembro  de  \b3S.  —  Ordenação  do  Reino,  liv.  i,  tit.  lxv,  §  20.»,  e  Mi- 
guel Leitáo  de  Andrade,  MisceUanea,  Lisboa  1629,  dial.  iv,  pintam 
com  vivas  cores  o  estado  das  estalagens. 


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HISTOBU  D£  PORTUGAL 


Segurança  des  constituia  um  monopólio  lucrativo  nas  mãos  do  cor- 
TBfiíMMwnfmiOT  ^^'^  expedia,  f/nstando,  porém,  uma  carta  de 

Lisboa  parâ  Villa  Real  de  Traz  os  Moates  mais  tempo,  do 
qae  hoje  pediria  para  ser  entregue  em  S.  Petersburgo. 
Doze  correios  a  cavallo  e  trinta  de  pé  constituiam  o  pes- 
soal d'este  serviço  sem  regularidade  e  exposto  a  conti- 
nuadas contingências.  As  remessas  da  correspondência 
.  eram  semanaes,  e  nos  logares,  aonde  não  havia  correios 
para  a  capital,  isto  é,  aonde  não  existiam  tenentes  do  Gor« 
reto  mór  para  tomarem  conta  d'ellas,  podiam  os  prove- 
dores nos  casos  urgentes  enviar  caminlieiros  pagos  pelas 
rendas  dos  municipios*.  As  ruas  de  l.iNboa  achavam-se 
quasi  todas  calçadas,  mas  na  maior  parte  estreitas,  mal 
assombradas  e  cortadas  de  becos  e  viellas.  O  senado  con- 
tratava a  prasos  com  seis  mestres  calceteiros  o  reparo  e 
concerto  dos  empedramentos,  abonando  animalmente  oito 
contos  de  réis  para  a  despeza.  Cada  carro  pagava  cem 
reaes  por  carga  aos  empreiteiros,  e  sendo  írete  de  alve- 
naria para  constnicção  cincoenta  reaes.  De  ordinário  tra- 
balhavam na  cidade  quarenta  calceteiros.  Âs  casas  edi- 
ficadas sem  obediência  a  nenhuma  regra  de  alinhamento 
e  sem  as  menores  condições  de  eslylo  architectonico,  tor- 
navam irregulnríssimas  as  ruas»  e  a  sua  estreiteza  era  tal, 
qae  em  1619  foi  mandado  consultar  gravemente  o  des- 
embargo do  paço  sobre  o  modo  de  facilitar  a  passagem 
dos  coches,  que  em  algumas  pejavam  inteiramente  a  cir- 
culação, e  muitas  vezes  causavam  desgraças.  No  mesmo 
armo  prohibia  o  governo  a  construcção  de  novos  prédios 
fóra  dos  limites  da  cidade,  e  mandava  melhorar  os  anti- 

^  Pr.  Nicolau  de Oliveií-a^  Grandezas  de  Lisboa,  tral.iv,cap.  vin.— 
Regimento  para  o  cunho  da  moeda,  datado  do  de  fevereiro  de 
1642|  art.  24.«  e  ⣻.«  solne  os  cofieíos  e  calcadas. 


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DOS  S£cuLOS  xvn  £  XVIU  511 

gos  com  app!*ovaç3o  da  caiiiai  a.  O  abastecimento  de  aguas  segurança 
potáveis,  insLiliiciente  para  o  uso  de  uma  população  quede  n^|^p,*B,ninin, 
anno  para  anão  augmentava,  desde  os  meiados  do  se* 
culo  XV  tinha  preoccupado  muito  os  nossos  monarchas. 
Um  dos  chafarizes  mais  abundantes  era  o  denominado  de 
el-rei,  e  o  maior  mimero  dos  habitantes  de  Lisboa  já  na 
primeira  metade  do  século  xvii  se  fornecia  d'ellc.  D'este 
antigo  deposito  descia  até  á  muralha  do  mar  o  encana- 
mento mandado  construir  em  i487por  Monso  Vpara  as 
aguadas  dos  navios,  mas  a  negligencia  tinha  sido  tanta, 
que  em  1517  ainda  ja/ia  descoliiM  tr).  uírcrccendo-sc  Lo- 
pe  de  Albuquerque  para  o  teljiai  e  resguardar.  Na  rua 
Nova  erguia-se  o  chafariz  mais  notável  da  capital,  vulgar- 
mente chamado  dos  cGavallos»  pelos  corseis  de  bronze 
que  o  decoravam.  Algumas  nascentes  nos  subúrbios  e  ou- 
trus  maiianciaes  mais  pobi  lís  alimentavam  o  consumo,  po- 
rém nas  occasiões  de  secca  ía-se  buscar  a  agua  em  bar- 
cas á  fonte  da  Pipa,  situada  na  outra  margem  do  Tejo^ 
A  idéa  de  encanar  e  trazer  a  Lisboa  a  «agua  livre  de 
Bellas»  é  attribuida  por  Francisco  de  Hollanda  a  el-rei 
D.  Manuel.  Ficou  apenas  em  projecto,  conUudo,  e  só  mui- 
tos annos  depois  tornou  a  suscitar-se  no  reinado  de  D.  Se- 
bastião, mandando  o  presidente  e  vereadores  da  camará 
medir  a  agua  de  Bellas  pelo  mestre  das  obras  da  cidade, 
Nicolau  de  Frias.  As  inquietações  e  sobresaltos  dos  últi- 
mos annos  d'aqueJI(^  governo,  e  as  discórdias  civis  do  pe- 
ríodo agitado  que  se  lhe  seguiu,  atalharam  provavelmente 
a  execução  do  plano  até  á  entrada  de  Filippo  U.  O  sobe- 
rano hespanhol,  desejoso  de  grangear  o  applauso  dos  súb- 
ditos, renovou  as  tentativas  iniciadas  por  seu  sobrinho,  e 

^  Veja-se  o  jornal  OPanormna,  Yol.  ui,  anuo  1839,  vu*  ÍSd,  e  o 
árcAteo  fUkimco,  toL  t,  anno  iS62,  n.*  25. 


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mSTOBU  DE  PORTUGAL 


scgnranfft  Nícolau  de  Ffías  por  sua  ordem  repetia  as  medições»  que 
QiiiorLcQtos  ^^^^  approvadas,  e  o  senado  lançou  uma  nova  contri- 
buição destinada  especialmente  ás  despezas  do  aqaeducto. 
Em  1618  já  exisLiam  em  cofre  mais  de  000:000  cruzados, 
mas  a  camará  para  lisonjear  a  côrte  consumiu  esta  avul- 
tada soouna  nos  festejos,  com  (pie  celebrou  a  entrada  de 
Filippe  Illem  1619. 0  rei  visitára,  entretanto,  as  nascentes 
da  «agua  livre»,  e,  recolhido  a  Madrid,  logo  no  anno  se- 
guinte escreveu  á  camará  recommendando-lhe  «que  pro- 
curasse dinheiío  prompto  para  a  conduzir  á  cidade  por 
ter  observado  a  falta  que  bavia  d'ella».  Dois  mezes  de- 
pois remettia  um  plano  de  Leonardo  Turríano,  em  que 
se  propunham  quatro  divèrsos  traçados,  e  no  ultimo  se 
indicava  a  vantagem  de  serem  aproveitadas  as  ruínas  do 
aqueducto  romano,  por  correrem  dez  palmos  mais  altas 
que  a  estrada,  e  poder-se  levar  assim  a  agua  aos  dois  pon- 
tos elevados  de  S.  Boque  e  de  Santo  André.  MallograraoK 
se  também  estes  esforços,  e  nada  se  adiantou  até  aos  fins 
do  século  XVII,  talvez  por  sustentarem  os  architeclos  da 
cidade,  que  a  nascente  não  chegava  para  o  abastecimento 
de  Lisboa,  e  que  por  isso  não  compensaria  os  gastos  enor- 
mes da  obra  K 

Lisboa,  no  ultimo  quartel  do  xvi  século,  merecia  a 
admiração  dos  estranhos  pela  sua  posição  e  opulência. 
Contcmplando-a  do  rio,  dir-se-íam  duas  cidades  populo- 
sas, ligadas  pelo  mesmo  cinto  de  muralhas  e  de  torres, 
tão  dlstincta  se  caractçrisava  a  physionomía  dos  bairros 
antigos  aninhados  em  volta  da  alcáçova  e  da  catbedral, 
ou  pousados  nas  encostas  das  eminências,  do  aspecto  das 
ruas  e  viellas  enredadas  no  profundo  valle,  rasgado  ao 

1  Veja-se  o  jornal  O  Panorama,  vol.  ni,  aiino  1839,  n.*  123,  e  o 
Archivo  Pittoresco^  vol.  v,  anno  1862,  n.°  2o. 


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DOS  secuLOS  xvn  e  xvui 


513 


sopé  dos  montes  e  parallelo  ao  Tejo  *.  Na  primeira  metade  segurança 
do  século  xvii  os  principaes  lineamentos  da  íuí  mosa  ca-  raeihoraiMntí» 
pilai  de  D.  Sebastião  e  deFUippe  II  pouco  ou  nada  haviam 
mudado.  A  cidade  baixa,  no  período  de  i030  a  1040,  con- 
tinuava a  formar  a  mesma  rede  de  ruas  e  de  becos  estrei- 
tos, tortuosos,  emmai  anhadoseimmundos  entre  o  Rocio  e 
o  Terreiro  do  Paço,  que  o  padre  Sande  e  outros  auctores 
descrevem  com  traçosmais,  oumenos  vivos*  O  bairro  Âlto, 
que  hoje,  comparado  com  os  arruamentos  ríscados  pelo 
marquez  de  Pombal,  nos  parece  t?ío  pouco  bem  assombra- 
do, passava  n  ii  fiuelia  epocha  pelo  mais  nobre  e  mais  bello, 
louvando-se  muito  a  regularidade  e  largueza  de  suas  di- 
visões. O  bairro  da  Lapa  começára  a  povoar-se  nos  dias 
de  Filippo  III,  e  a  rua  do  Alecrim  datava  de  D.  Mo  III, 
depois  do  terremoto  que  subvertera  o  bairro  denominado 
«Villa  Quente»,  e  da  posse  da  ermida  de  S.  Roque  to- 
mada pelos  jesuítas. 

Lisboa,  ainda  cercada  pelos  pannos  de  muros  levanta- 
dos por  D.  Fernando,  muros  rotos  em  muitos  legares  pela 
população  comprimida,  que  a  pouco  e  pouco  se  fôra  esten- 
dendo pelos  arrabaldes,  contava  trinta  e  oito  portas  e  se- 
tenta e  sete  torres  no  circuito  de  suas  muralhas.  Quarenta 
parocbias,  cento  e  trinta  igrejas  pertencentes  a  mosteiros, 
conventos  e  irmandades,  ostentosos  palácios  de  fidalgos, 
sete  bospitaes,  e  muitos  edifícios  públicos  justificavam  o 
conceito  de  sua  grandeza.  Dentro  d*aquelle  recinto  conti- 
nham-se  duas villas,  t Villa  Nova  de  Gibraltar»  e  «Villa  Nova 

^  Vejam-se  O Panorama,v€L  tv,  n.*  152,  e  o  ÂrtMoo Pittoremj 
vol.  vj,  n.*  10. — LMott  em  158&,  artigo  mui  rico  de  noticias  extra* 
hido  do  Cofhquio  xvi  dú  Diorio  da  primeira  Etnbaixada  do  Japão 
à  Europa,  pelo  padre  Duaile  de  Sande.  A  povoação  de  Villa  Quente 
ficava  na  encosta  septentríonal  da  encosta  do  Castello,  e  foi  submer* 
gida  pelo  terremoto  de  1631. 

TOiw  V  33 


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tmmm  de  AndradeB .  A  origem  da  primeira  perdia-ae  nas  trevas 
•ikvLeDUM    tempo.  Assentada  á  beira  do  rio,  fóra  do  lanço  do  sul 

e  sueste  da  muralha  árabe,  que  rodeava  a  <:i(l;i(  le  antes  do 
XIV  século,  recebia  no  rosto  os  primeiros  raios  do  soi  urien- 
tal.  Villa  Nova  de  Gibraltar»  a  villa  dos  judeus,  era  o  bairro 
da  £snoga.  No  amagjo  da  povoaçlío>  em  logar  elevado,  a 
vdha  Sé  erguia  os  seus  dois  campanários.  Ao  norte»  no 
valle  enroscado  a  seus  pés,  apinhavam-se  em  volta  da  mes- 
quita as  casas  do  bairro  dos  infiéis,  a  Mouraria.  Ao  sueste 
alastrava-se  a  judiaria  juuio  da£snoga.  Em  1504,  conver- 
tida em  templo  christão  a  synagoga,  diotou  D.  Manuel  o 
regimento  da  nova  casa  de  Deus  erigida  sob  a  invocaclo 
de  Nossa  Senhora  da  Conceição.  A  Esnoga  caiu  proseri- 
pta  com  a  raça  bebrea.  A  judiaria  desappareceu  ferida 
pela  intolerância  da  unidade  monarcbica^. 

A  Villa  Nova  de  Andrade  corr^  mais  auspicioso  o  des- 
tino. A  cidade,  crescendo  rapidamente  na  epoeba  dos 
descobrimentos,  galgou  por  cima  dos  lanços  occidentaes 
dos  muros,  devuí  aíidu  os  terrenos,  que  depois  se  cha- 
maram Bairro  Alto,  Chagas  e  Santa  Catharina.  A  rua  do 
Alecrim,  principiou  a  orlar-se  pelo  lado  oriental  de  casas 
na  segunda  metade  do  século  xvi.  Este  chio  montnoso 
coroava«se  no  alto  com  a  muralha,  que  da  porta  de  Santa 
Catharina  alcançava  até  á  torre  junto  da  poi la  do  duque 
de  Bragança.  O  Thesouro  Velho  chamava-se  então  a  «Cor- 
doaria Nova»,  e  só  tomou  o  nome  que  hoje  tem  em  1640, 
porque  o  paco  dos  duques  ficou  servindo  de  tbesouro  da 
casa  de  Bragança.  Quando  os  padres  da  companhia  de 
Jesus  fundaram  em  S.  Roque  a  sua  casa  professa,  todo 
aquelie  sitio  se  achava  fóra  da  povoação  junto  da  qumta 

>  Veja-se  o  jtírnal  O  Panorama,  Tòl  ií  dá  !•  Mfie,  anuo  184^ 
n."  104,  artigo  do  sr.  A.  Herculano  sobre  a  Conceição  Vfikê, 


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DOS  SÉCULOS  XVII  E  XViU 


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de  Nicolau  de  Altero,  a  qual  occupava  a  área  aonde  agora  stBuwKa 

existe  o  Bairro  Alto.  A  (luinta  dividiu-se  em  ruas,  e  n^hofLwioí 
foram-se  povoando  de  ediíicios  e  de  moradores.  Todo  o 
espaço  CQmprehendido  entre  Santa  Catharina  (hoje  Loreto) 
e  a  Esperança,  e  entre  o  mar  e  os  Moinhos  de  Vento  (Pa- 
tríarchal  Queimada),  eram  campos  cultivados.  Em  Í62S 
esses  campos  estavam  aíorados,  as  ruas  íam-se  alinhando 
n'elles,  e  o  bairro  nascente  appellidava-se  «Villa  ISova  de 
Andrade»»  do  nome  dos  senhorios  do  terreno^. 

0  palácio  real,  ou  paços  da  Ribeira,  fundados  por  D.  Ma» 
nuel,  e  muito  acrescentados  em  epochas  posteriores  occu- 
pavam  primitivamente  parte  do  lado  do  norte  do  Ter- 
reiro do  Paço,  no  logar  em  que  estão  actualmente  as  se- 
cretarias do  reino  e  da  justiça.  Depois  alargou-se  muito 
para  o  lado  de  oeste  da  praça  até  á  margem  do  rio.  Era 
edifício  digiio  (ia  iiiuiulicencia  do  rei,  (|ue  o  levantara. 
O  padre  Sande  e  os  escriptores,  que  trataram  d'elle,  des- 
crevem*o  quasi  deslumbrados  pelas  sua  magniíicencia. 
Soberi)os  pórticos,  columnatas,  grandes  pateos,  heliasvar 
randas  e  eirados,  salas  espaçosas  e  ricos  aposentos  coQr 
siitiiiain  uma  residência  própria  em  tudo  da  realeza.  Fi- 
lippe  II  mandára  construir  o  forte,  que  rematava  sobre  a 
praia»  guarnecido  de  artilheria,  e  do  alto  do  qual  a  vista  se 
astendia  sobre  o  Tejo  povoado  de  navios.  Um  jardim,  plan- 
tado de  formosas  arvores,  com  frondosas  alamedas  repar- 
tidas emtaboleiros  deflores,  offerecia agradável  recreação 
aos  olhos  e  ao  gosto.  Junto  do  palácio  erguia-se  o  edlQcio, 
que  D.  Manuel  tinha  construído  para  deposito  do  material 
de  guerra,  com  uma  vasta  sala  de  armas,  ornada  de  cor- 
pos brunidos  de  aço  e  de  estatuas  equestres  de  cavalleiros, 

1  Arckm  JHIIomeo,  vol  V;  Miguel  LeitSo  de  Andi-ade^  MUcel' 
Umea, 

as. 


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{;i6  HlSTOniA  DE  PORTUGAL 

S49nnnva  e  com  amplos  depósitos  de  espadas,  piques,  lanças,  arca- 
criiprjiMmto,  cíjnliues  de  todos  os  calibres  fundidos  em  ferro  e 

bi  oiíze.  No  tempo  de  D.  Sebastião  ainda  se  podiam  tirar 
d'este  arsenal  armas  offeasivas  e  defensivas  sof&cientes 
para  um  exercito  de  setenta  mil  homens.  Em  continuação 
do  arsenal  seguia-se  a  casa  da  índia  com  os  grandes  ar- 
mazéns, em  que  se  arrecadavam  as  merca*  m  ias  e  a  espe- 
ciaria do  oriente.  O  desembargo  do  paço,  a  mesa  da  coo- 
sciencia,  o  conselho  d'estado  e  o  conselho  da  fazenda  ce- 
lebravam suas  ses^es  nas  salas  dos  paços  da  Ribeira** 

Adiante  d'elles,  no  sitio  hoje  denominado  da  cRibeira 
Velha»,  aonde  na  epocha  de  D.  Fernando  eram  as  «Ter- 
cenas  Navaes»,  estava  o  mercado  principal  de  Lisboa, 
em  um  terreiro  maior  do  que  a  praça  do  commercio  na 
actualidade.  Do  lado  do  sul  tinha  por  limite  a  praia.  Pelo 
centro  corriam  as  barracas  de  madeira,  aonde  se  ven- 
diam, para  uma  [iaiie,  ovos,  sal  e  aves,  para  outra  Iru- 
ctas  seccas  e  verdes,  mais  longe  hortaliças  e  legumes,  e 
ainda  alem  peixe  e  marisco.  O  ediíicio  do  Terreiro  do 
trigo,  riscado  e  concluído  no  governo  de  D.  João  Hl»  re- 
colhia, como  dissemos,  os  cereaes  do  Alemtejo  e  de  ou- 
tras províncias,  merecendo  o  titulo  de  celleiro  de  Portu- 
gal. Era  contíguo  á  í^Casa  dos  contos»,  que,  pouco  mais 
ou  menos,  se  erguia  no  local,  aonde  esteve  a  secretaria 


1  ArrJuro  PiUorcsco,  vol.  VI,  Primeira  Embaixada  do  Japão  á  Eu' 
ropa  pelo  padje  Du.irlr  de  Sande,  colloquio  xvi.  O  arsenal,  chamado 
Armazém  das  Armas,  obra  de  D.  Manuel,  occupava  todo  o  hdo  Ue 
oeste  do  Terreiro  do  Paço,  aonde  hoje  estão  as  secretarias  dos  ne- 
gócios estrangeiros  da  fazenda  e  o  tliesoiiro.  Segiuain-sc  cm  conti- 
nuarão a  casa  da  índia,  e  por  cima  de  todos  levanluu-su  iiíii.t  <í.í- 
leria  de  salas  r  aposciitos  para  hahitanio  regia,  hgada  com  os  paços 
de  D.  Manuel  por  uiu  arco,  aberto  aonde  agora  coraeçi»  a  rua  do  Ar- 
senal. 


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DOS  S£CULOS  XVU  £  XYUl 


517 


do  reino,  e  qne  perlence  agora  â  alfandega,  emquanto  o  s«gorança 
Terreiro  se  estendia  para  o  lado  da  rua  hoje  appellidada  ^diiomiiíBi 
«Nova  da  Alfandega»,  defronte  da  igreja  da  «GoAceiçao 
Velha»*  O  Arsenal  da  Marinha  ahrangia  quasi  o  mesmo 
espaço,  que  o  Arsenal  actnal  oecupa,  e  denominava-se  «Ri- 
beira das  Naus».  Fechado  em  parte  pelos  muros  da  ci- 
dade, e  em  parte  pelas  obras  do  paço  real,  empregava 
grande  pessoal  no  fabrico  e  apparcdho  dos  navios  do  es- 
tado. O  padre  Sande  cita  com  louvor  a  Immensa  copia 
de  materíaes  de  constracç3o  e  a  boa  escolha  e  perfeição 
das  machinas  e  de  engenhos  usados  n'aquelle  estabeleci- 
mento. Em  1584  calculava-se  em  8:000^000  réis  (20:000 
cruzados)  o  casto  de  uma  nau.  Em  1620  um  galéão, 
posto  á  vêla»  e  provido  de  tudo  importava  em 51 :000yjM)00 
réis,  ou  120:000  cruzados.  Trabalhavam  na  Ribeira  das 
Naus  ordinariamente  seiscentos  calafates,  seiscentos  e 
cincoenta  carpinteiros  de  machado  e  trezentos  homens 
de  serviço  K 

Ao  terreiro,  que  se  rasgava  defronte  do  paço,  concor- 
riam a  pé  e  a  cavallo  os  fidalgos  e  os  burguezes,  convi- 
dados mais  que  tudo  no  estio  pela  frescura  das  brisas 
marítimas.  Carros  com  pipas  regavam  todos  os  dias  este 
passeio,  d'onde  partiam  as  artérias  principaes  da  drcu- 
iação  interna  da  cidade.  A  primeira,  a  cRua  Nova»,  me- 
dia sessenta  palmos  ua  maior  largura,  fôra  aberta  por 
el-rei  D,  Diniz,  e  corria  por  onde  hoje  se  estende  a  dos 
«Capeliistas».  Orlada  de  altas  moradas  de  casas  de  mui- 
tos andares,  recommendava-se  aos  estrangeiros  e  aos 
habitantes  pela  riqueza  de  suas  lojas  de  telas  de  seda, 
veliudo,  damasco  liso,  lavrado,  ou  bordado,  e  de  ianiíi- 

1  Mmtíra  Embaímda  do  Japão  á  Ewopa,  colloquío  xvu — 
Fr.  Nicolau  de  Oliveira,  Grandesai  de  Uthoa,  trat  iv,  cap.  y. 


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UISTOIUA  D£  PORTUGAL 


sogurança  cios  do  í(  idas  as  qualifiades,  representaiido  valore?  orrn- 
mtíiitftTmtttoiíi  muitos  milhões  de  oiro.  £m  um  ponto,  resguar- 

dado com  uma  gradaria  de  ferro,  costumavam  juntaNM 
os  homens  de  negocio,  cujas  tranisacções,  apesaf*  de  nául 
diminiiidas,  oram  ainda  importantes  com  a  Ilespanlia  nas 
cidades  de  Sevilha,  ÍUii  gos  e  Vadadolid,  e  com  a  Itália 
por  via  de  Génova,  de  Veneza  e  de  outras  praças.  Se- 
guía-se  ji  roa  cAurea»,  aonde  trabalhavam  os  ourives  em 
obras  delicadíssimas  e  os  lapidarios  em  pedras  predo*' 
sas.  Na  terceira  rua  figuravam  esciilptores,  cinzeladores, 
fundidores  e  latoeirus,  não  sendo  menos  visitada  a  dos 
«Cionfeiteiros»,  aonde  se  fabricava  infinita  variedade  de 
doces  e  fructas  cobertas  para  consumo  e  exportação. 

Em  outras  tres  ruas  encontrava-se  quasi  uma  exposição 
permanente  de  artigos  de  prata  lisa  e  lavrada,  de  tecidos 
de  linho  e  de  lã,  e  de  muitos  uijjcctos  de  preço  pelo  tra- 
balho e  pelo  valor  intrinseco.  Por  qualquer  d*ellas  se  en- 
trava no  Rocio,  praça  quasi  quadrada,  situada  no  meio 
de  Lisboa,  e  cercada  de  ediQcíos  grandiosos,  entre  os 
quaes  sobresafam  o  Hospital  de  Todos  os  Santos  e  o  con- 
vento de  S.  DuiiiiníTos,  que  entestava  com  elle,  fundado 
por  Sancho  II  e  reconstruído  por  D.  Manuel.  Do  outro 
lado  avultavam  o  palácio  e  os  jardins  dos  «Estaos»,  obra 
feita  por  D.  Mo  I  para  hospedaria  dos  embaixadores,  e 
tida  por  um  dos  sete  monumentos  da  cidade.  A  inquisição 
e&labelecêra  n'elle  o  seu  solar  desde  melados  do  sé- 
culo xvT.  As  cavallariças  leaes  eram  continuas.  Já  nas 
terças  feiras  se  usava  em  i584  abrir  ali  um  vasto  mer- 
cado volante,  a  que  acudiam  nobres,  plebeus  e  até  donàS 
illuslres  sem  apparato  de  creados*. 

1  Primeira  Embaixada  do  Japão  á  Europa,  colloquío  xvi. — 
A  feira  do  Rocio,  que  dopois  se  mudou  para  o  cainpo  de  âanfAu- 
na,  era  a  abanada  da  Ladra. 


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DOS  SECDLOS  XVO  B  Vita 


Os  reis  de  Portugal  n'aquella  epocha  tinham  cm  Lis-  seftmnt 
boa  diversos  paços,  mas  a  sua  residência  proililoctâ  desde  i^dmii^yj^, 
D.  João  III  foram  os  da  cRibeira»,  os  da  «  Alcaçova»  e  os 
de  cXabregas».  Os  soberanos»  aló  aos  dias  de  Afiònso  III 
sem  palaefo  propriamente  seu,  aposentavam-se,  quaado 
vinham  á  ridade,  aonde  adiavam  mais  commodo.  O 
coiiíle  de  Bolonha  edificou  os  «paços  de  S.  Bartholomeu» 
janto  do  casteUo  e  da  parochia  doesta  invocação,  paços 
que  no  século  xti  eram  já  propriedade  particular.  Os 
setiB  snccessores  habitaram,  porém,  mais  veces  os  apo- 
sehtos  coiiíiguGs  á  Sé,  depois  convertidos  em  paço  epis- 
copal, e  outra  casa,  que  successivarnenle  serviu  de  repar- 
tição da  moeda,  de  palácio  real  com  o  nome  de  paços  da 
Moeda  ou  de  cApar  S.  Martinho»,  de  morada  das  com- 
mendadeiras  de  S.  Thlago,  e  por  ultimo  de  cadeia  pubU«> 
ca.  O  tribunal  da  supplicaçao  reunia-se  e  guardava  os  seus 
cartórios  em  algumas  salas  d'elle.  Os  paços  f1a  Alcaçova 
foram  construídos  por  el-rei  D.  Diniz,  e  muito  melhora- 
dos, ou  quasi  renovados  por  D.  João  I,  que  os  habitiott 
sempre,  designando  os  da  Moeda  para  residência  de  Sèu 
filho  e  herdeiro  o  infante  D.  Duarte.  O  palácio  de  S.  Chris- 
tovão,  celebre  pelas  magnificas  festas  do  casamento  dè 
D.  Leonor,  irmã  de  MonsoY,  com  o  imperador  Frede- 
rico ni,  pertenceu  ao  primeiro  duque  de  Bragança,  e  ein 
1584  estava  já  na  posse  d'el1e  a  família  Telles  de  Menezes, 
elevada  mais  tarde  á  grandeza  com  o  titulo  de  condes  de 
Aveiras  e  mnrquezes  de  Vagos. 

O  palácio  de  Santos  começou  por  uma  pequena  casa  de 
campo,  ligada  com  o  convento  das  commendadeiras  de 
S.  thiago.  t>.  João  II  desde  príncipe  mostrou-se  affeiçoado 
ao  sitio,  e,  mudando  as  commendadeiras  para  o  novo 
claustro  que  lhes  edificou  em  1490,  no  lado  opposto,  em 
Xabregas,  transformou  em  paço  o  antigo  convento  e  acres- 


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UmORlk  BE  POftTDGÂL 


sc«mf»  centou-o.  Este  palácio  ficava  muito  fóra  da  cidade,  i  u]a 
jj^jiJiijjijj^g  porta  pnra  aquella  parte  era  a  do  fCoi  po  Santo»  no  lo- 
gar  aoiide  vemos  hoje  o  largo  do  uiesiiio  nume.  Alem  de 
D.  João  11  residiram  em  Sautos  D.  Manuel,  D.  João  ill  a 
D.  Sebastião  ^  O  paço  dos  cEstaos»  desde  I5d4,  em  qae 
o  Santo  Officio  se  estabeleceu  definitivamente  n'eUe,  cha- 
raoii-se  o  palácio  da  Inquisição.  O  de  Xabregas,  fundado 
pela  rainha  D.  Leonor,  viuva  de  D.  João  lí,  reverteu 
para  a  coroa  por  morte  d'elia.  Assistiram  n  esta  resi- 
dência» também  reputada  campestre  pela  distancia  que 
a  separava  de  Lisboa,  D.  João  III,  sua  mulher  D.  Gatha- 
rina  de  Áustria,  sendo  regente  do  reino,  e  D.  Sebastião, 
depois  de  assumir  o  governo.  Os  paços  de  Santo  Eloy 
junto  do  convento  dos  cónegos  seculares  de  S.  Joàò  Evan- 
gelista foram  levantados  igualmente  pela  rainha  D.  Leo- 
nor, já  depois  de  viuva,  e  parece  que  em  1584  eram 
ainda  propriedade  da  coròa*. 

A  idía  de  communicar  directamente  Lisboa  com  a 
liespariiia  pela  grande  via  fluvial  do  Tejo  occorreu  a  Fi- 
lippo II.  Em  1580  consultou  acerca  da  sua  execução 
o  famoso  architecto  hydraulico  João  Baptista  Antondli. 
Começou  o  engenheiro  os  estudos  por  ordem  do  rei,  e 
navegou  vinte  e  quatro  léguas  de  Abrantes  até  Alcantara, 
repetiu  os  reconhecimentos,  e  redigiu  um  relatório  de 
tudo  datado  de  'iú  de  maio  de  1581.  No  anno  seguinte 
(1582)  adiantou  os  ensaios  em  uma  chalupa,  subindo  de 
Alcantara  a  Toledo,  e  aportando  em  19  de  janeiro  áYeiga 
da  Ribeira  d'aquella  cidade,  com  assombro  dos  morado- 

1  Primeira  Embaixada  do  Japão  á  Europa,  coUoquio  xvl~ 
yíâ»  Jreftwo  Pitforew,  \ol  vi,  anno  1863,  n.*"  13  e  14,  artigo  in- 
titulado  PiOadoi  ÍUm  áe  JJtboa  m  1S84  pelo  ar.  L  deVilheDa 

'  IbicteDi,  ibidem. 


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DOS  SÉCULOS  XTIl  E  lYIlI 


811 


res.  A  atravessou  a  veiga  até  á  margem  opposla  para  segurança 
evitar  as  presas,  levando  o  barco  em  uma  carreta  de  qua- 
tro  rodas,  e  de  tarde  contiDuott  a  navegação  até  Âran- 
joez»  entroQ  no  Jarama»  e  pelo  canal  avizinhou-se  de  Ma* 
drid  e  do  Pardo.  De  volta  tomou  a  passar  por  Toledo,  e 
a  3  de  março  seguiu  rio  abaixo  até  Lisboa 

Então  D.  Filippe  propoz  nas  cortes  de  Madrid  a  em- 
preza  de  tomar  o  Tejo  navegável  desde  Toledo  até  Lisboa 
Oppozeram-se  os  procuradores  de  Toledo,  mas  os  outros 
approvaram  e  offereceram  100:000  ducados  a  Antonelli 
para  a  obra.  Principiou  esta  t  in  1584,  e  em  1587  ben- 
ziam-se  em  Toledo  sete  bateis  carregados  de  trigo,  com  os 
quaes  Gbristovaio  de  Roda^  sobrinho  de  Antonelli,  des- 
ceu o  Tejo,  gastando  quinze  dias  na  jornada  até  Lisboa. 
Em  1588  e  1589  renovaram-se  as  viagens.  El-Rei,  fal- 
lecido  Antonelli,  contratou  cora  André  de  Udias  a  con- 
clusão dos  trabalhos,  e  alguns  barqueiros  de  Abrantes 
obrígaram-se  a  ir  a  Toledo  em  quarenta  dias.  £m  45d2 
promulgaram-se  os  regulamentos,  isentando  de  direitos 
as  carregações  e  a  navegarão  chegou  a  ser  tão  activa,  que 
os  paiiiios  de  Toledo  e  de  Talavera  vinham  por  agua  bus- 
car o  mercado  de  Lisboa.  O  reinado  de  Filippo  IH  matou 
este  grande  progresso  sem  se  conceber  porque.  £m  464i, 
Filippe  IV  intentou  renovar  as  communIcaçOes  fluviaes 
entre  Toledo  e  Alcantara  para  obter  o  mais  rápido  trans- 
porte das  munições  de  guerra,  os  engenheiros  Carduchi 
e  Martelli  riscaram  soberbos  planos,  mas  nada  se  reali- 
sou,  e  todos  os  melhoramentos  ficaram  em  pkmo. 


^  Yià»  Pmmroim,  voL  iv,  n.*  166,  e  Antonio  de  Herrera,  Ou» 
lOm  âi  la  auioriã  dê  Fmúgal  mUtttOudê  168t  y  1883. 


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CAPITULO  m 


LUXO,  SUPERSTIÇÕES,  FESTAS  omCIAES 
E  ÉELIGIOSAS 


CofrupçSo  dos  costuincâ.  Progreasoa  assQ&Utdores  do  jogo.  liaiiifMtft(8M  êiagiradas 
àb  Hm.  fHgmítím,  Sttá  fnelteada.  Onadro  da  ntiiioM  dinláu!»  46i  ímIoi  « 
aionies  na  primeira  metade  do  Mcnloini.  Miséria  oocBlU.Venalidades.—IfMO- 

rancia  qnasi  trornl.  —  SnpprstiçScs  populfirp"?.  Feilicpiros.  Penas  dn?  rofiiíjo?  e  das 
constituições  dos  bí<ipadns  coiilra  ell<?s. — Heerrações  publicas.  ileccpçuCs  e  feste- 
jos offieiaes  nos  séculos  %n  e  xvu.  Romanas  e  fuueçSed  rel^osas  no  século  xtu. 

A  cofrupção  dõs  costun^es  progredtt^  com  passoá  agí- 

garilados  desde  a  segunda  metade  do  secnlo  xvi.  Todos 
queriam  ostentar  o  que  não  Uubam  e  parecer  o  que  não 
efák&.  A  âéde  de  deleites  e  as  loucuras  do  luxd  asiático, 
inoculâda^  pela  conquista  da  índia,  tinham  pervettido  a 
antiga  Índole,  transformando  os  soldados  em  mercado- 
res, os  capitães  em  cortezãos,  e  as  virtudes,  que  nos  ti- 
nham tornado  temidos  e  poderosos,  em  vícios  incuráveis 
que  de  dia  para  diá  se  arraigavám  mais.  As  leis  trabàlhá- 
ram  dehalde  pára  cotnbater  e  supplahtar  o  mal.  A  gãn- 
grcua,  mais  forte  do  que  ellas  e  do  que  a  vontade  dos  so- 
beranos, continuava  a  subir  e  a  apoderar-se  de  todos  os 
membros. 

O  jogo,  sempre  reprimido  com  mais  ou  menos  severi- 
dade^ haVia-se  generallsado  por  todod  os  grada  da  eUcàla 

social  como  paixão  irresislivel.  Os  que  despendiam  aietíi 


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524  HISTORIA  DE  PORTUGAL 

uio  de  soas  rendas  esperavam  dever-lhe  o  equilíbrio  dos  gas* 
MHiiçse*  aii  uinados  pediam-llie  a  salvação.  São  frequen- 

tes as  prescriprões  coiiUa  os  qm  davam  «tavolagem» 
em  sua  casa,  ou  se  associavam  para  abrirem  aos  pródi- 
gos mais  este  precipício.  O  jogo  da  bola,  apesar  de  licito, 
nSo  escapou  á  comm!na(9o  das  OdenaçQes  de  el-rei 
D.  Manoel,  qne  o  proHibiram  aos  fidalgos  e  cavalleíros 
nos  domingos  e  dias  santificados  antes  da  missa  e  aos  of- 
ficiaes  mechanicos  e  aos  homens  de  trabalho  em  toda  a  se- 
mana. Em  1521  os  abusos  cresceram  a  ponto  de  ser 
indispensável  decretar  a  multa  de  300  reaes  pagos  da 
cadela  aos  indivíduos  encontrados  nas  varandas  do  paço, 
jogando  o  «tiiiUm  »*.  Na  primeira  inrtade  do  século  xvii 
s3o. unanimes  as  queixas  contra  a  extensão  assumida  por 
este  vicio,  e  reconhecida  por  todos  a  impunidade  dos  que 
se  entregavam  a  elle.  Os  funestos  estragos,  de  que  era  cau- 
sa, nSo  assustavam  só  os  moralistas.  Os  poderes  públicos 
vlam-os,  e  deploravam  a  sua  impotência  para  os  conter. 

Os  jogos  lícitos,  como  a  bola,  u  xadrez,  as  damas  e  a 
pella,  que  antes  se  apostavam  a  vintém  cada  partida,  em 
1622  levavam  grossas  sommas,  e  por  caros  saíam  ruino- 
sos. Havia  jogo  de  pella  ajustado  a  10  dobrOes  o  mate,  e 
a  20, 100  reaes  e  mais  a  partida.  Nas  tabulas  e  no  ganba- 
perde  as  menores  entradas,  que  não  excediam  antiga- 
mente 2  vinténs,  e  cada  pedra  5  e  ti  reaes  custavam  em 
1630,  4  e  6  dobrões,  e  o  bolo  valia  quantias  enormes. 
Jogava-se  em  toda  a  parte,  e  os  próprios  magistrados 
nSo  duvidavam  apontar  contra  as  pessoas,  cujos  pleitos 
haviam  de  jal^^^arf  Morgados  empenhados,  baixelas  ven- 
didas, propriedades,  tenças  e  commendas  bypotheca- 

1  Orátnação  MaunHina,  liv.  tit.  uvra. — Alvará  de  8  de  ju- 
lho de  18S1,  liv.  ni  da  Supplícação,  fl.  11  t. 


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DOS  SÉCULOS  xvn  E  XYin 


525 


das  puniam  os  desvarios  das  classes  aristocráticas,  ao 

passo  que  a  miséria,  o  hospital  e  as  galés  terminavam  g^p^^yç; 
muitas  vezes  a  triste  e  desenfreada  carreira  dos  jogado- 
res das  classes  medias.  A  avidez  do  fisco  poz  o  remate 
aos  excessos»  contratando  o  estanco  das  cartas  de  jogar» 
e  auctorisando  os  jogos  em  que  ellas  entrassem.  O  ren- 
dimento d  esta  especulação  era  de  16  contos  de  réis,  e  o 
governo,  para  o  arrematante,  João  de  Olmedo,  não  alle- 
gar  pretextos  de  indemnisações»  e  não  quebrar  no  preço» 
prohibiu  os  dados,  e  quasi  dispensou  nas  leis  contra  a  ta* 
Tolagem.  É  inútil,  acrescentarmos  que  o  jogo  creou  no- 
vos brios,  e  que  dois  annos  depois  invadia  já  os  corpos 
de  guarda  do  castello  e  do  Terreiro  do  Paço»  exigindo 
providencias  promptas  e  repressivas 

Outra  manifestação  do  luxo,  n3o  menos  característica 
como  symptoma  de  declinação,  foram  as  exageradas  des- 
pezas  nos  trajos,  na  mesa  e  nas  exterioridades  vaidosas 
do  trato  pessoal.  Ás  leis  sumptuárias  feriram  em  vão 
umas  após  outras  este  perigoso  erro»  origem  do  aperto  e 
desgraça  de  muitas  famílias.  Entre  outras  è  assás  curiosa 
a  de  28  de  abril  de  1570  sobre  os  gastos  demasiados, 
porque  no  seu  ardor  de  extirpar  os  abusos  chegou  a  intro- 
duzir-se  nos  segredos  do  governo  interno  das  lamilias» 
regulando  o  numero  de  pratos,  que  deviam  apparecer  na 
mesa  dos  súbditos.  D.  Sebastião,  dominado  pelo  nobre 
desejo  de  restaurar  a  velha  sobriedade  portugueza,  es- 
tranho á  epoclia  em  que  vivia,  decretava  com  pasmosa 
ingenuidade  a  economia  domestica»  suppondo  concori  er 
com  suas  disposições  inexequíveis  para  a  reformação  dos 

í  Tempo  de  Agora,  obra  composta  pelo  diferes  Martim  AíTonso 
de  Miranda,  Lisboa,  tom.  i,  dialog.  iv. — Alvarás  de  Í7  de 
março  de  1605  e  24  de  novembro  de  ié07  e  carta  i^a  de  17  de 
julho  de  1629. 


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m 


«wroiiià  w  rannoAt 


eostumea.  Uoiíido  çê  conselhos  patemaes  á  sev^dacle 
fiersMw  ^Si^^^^v**  ordenava  que  ninguém  gastasse  mais  do  qqe 
tivesse,  antes  moios,  empregando  as  sobras  em  bens  de 

iíiíi  e  em  prata,  e  não  em  cousas  desnecessárias.  Passava 
depois  a  dispor  que  niaguem  podessG  comer  mais  de  um 
assado  e  de  um  cozido,  de  um  picado,  ou  cusemt»  ou  ar** 
roii  sem  doee  algum»  como  manjar  branco,  bolos,  ovos 
meiidos,  ou  outras  confeitarias,  e  recommendando  aos 
fidalgos  e  pessoas  principacs,  que  agasalhassem  e  susten- 
tassem os  parentes,  seguindo  o  uso  antigo.  Para  limitar 
as  dotes  pedia  a  todos  os  vassailos,  que  casassem  os  li* 
lhos  e  as  filhas  com  igualdade  e  grande  moderafSo»  e 
suscitava  a  supplica  dos  povos  nas  còrtes  de  Torres  N<^ 
vas,  sem  todavia  auctorisar  a  taxa  proposta  pui'  ellas. 
Por  ultimo  estabelecia,  que  m  iiliuin  moço  íldalgo  com 
moradia  tosse  elevado  a  escudeiro,  ou  a  cavaileiro,  seoão 
depois  de  haver  militado  em  um  dos  presídios  de  Aftiea, 
cm  na»  armadas  da  corAa,  nSo  se  lhe  consentindo  traser 
capa  no  serviço' do  paço  até  á  idade  de  quinze  annos'. 

D.  Joio  III,  e  antes  d'elle  vários  monarclias  tiniiam  já 
envidado  os  maiores  esforços  para  corrigirem  a  excessiva 
opolenda  nos  gastos,  e  as  galas  dispendiosas  nos  ador* 
nos  paasoaes.  Na  epooba  da  regência,  na  minoridade  de 
D»  Sebastiio,  o  alvará  de  S2  de  novembro  de  1566  tam- 
bém se  pi  opoz  coliibir  as  demasias  n  este  ponto,  vedando 
os  capuzes,  lobas  cerradas,  ou  abertas,  e  os  tabardos,  e 
declarando  os  creados  de  que  podiam  acompanhar  qual<- 
qpier  pessoa*  Em  1609  Filípçe  III,  estranhando  o  cuatoao 
preço  da  tela  e  feitio  dos  trajos,  e  notando  a  ineffloada 
dos  preceitos  impostos  pelas  pragmáticas  dos  setis  ante- 
ce:>ãores.  tendo  mandado  rever  á  legislação  ^obre  este 

t  Lei  de  da  abril  da  Í(l70.-rGc»lla6(A>  de  Fhtndseo  Goneíe 
desde  pag.  6  tité  pag.  17. 


« 


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oos  sieuLOS  xvn  b  xma 


aisonipto,  (irqhibiii  em  geral  o  uso  doe  brootdoa,  telas  Um 

de  oiro,  ou  de  prata,  lavores  de  aljofre  em  seda,  ou  pan-  ^^^^ 
no,  passamanes  de  oiro,  ou  tecidos  de  fio  precioso,  ou 
bordados  da  índia,  ássim  como  as  joiaâ  esmaltadas,  a  mo 
ser  em  cintilhoa»  habites  e  aimeia,  e  os  bordados,  barras» 
serrilhas»  entretalhos  e  pospontos,  e  os  eártes  de  seda 
imprensada,  ou  cinzelada.  Ás  pessoas,  que  possuíam  Ca- 
vallo, eram  permiuidus  terçados,  punhaes,  talab<)rtes, 
doirados,  guiões  e  bandeiras.  Os  iidalgos  e  desembarga- 
dores podiam  traser  barretes,  gorras,  psDtulos,  calçaa  de 
golpes  direitos,  meias  e  ealçSes  de  seda,  ornados  de  e»* 
piguilhas  e  passamanes.  Ás  mulheres  corisentia  vestidos 
de  seda,  ou  de  paiino  com  barras  e  forros  ricos,  e  touca- 
dos com  guarnições  de  oiro  e  prata  K  Estas  prescdpções, 
apesar  de  muitas  exeep^es  auctorisadas  para  maior  £i- 
eilidade  da  soa'  exeoncio,  e  a  despeito  das  graves  penas 
impostas  aos  iníiactures  pela  provisão  da  mesma  data, 
não  alcançaram  suster  a  torrente  senão  na  apparencia, 
esmorecendo  logo  os  rigores,  e  afrouxando  o  zèlo  dos 
magistrados^ 

As  ostentaciòes  não  se  tomavam  menos  reprehensiveis 
nas  pompas  fúnebres  e  no  luto,  chegando  a  um  grau  tal 
de  exageração,  que  varias  casas  ficavam  arruinadas  para 
úffm  annos.  Filinie  n  publicou  a  lei  de  iO  de  julho  de 
1001,  concebida  com  o  intento  de  atalhar  os  excessos»  e 

1  Lei  de  19  de  novembro  de  1666.*— Lei  de  22  de  novembro  de 
i$66.— Duarte  Nunes,  CmpUávão,  part  1V3  tit  i,  lei  4,  ú.  llS  e 
i  16.  —  T.pi  de  29  de  oututeo  de  i60t^.— Avobiví»  flaúiraAl,  IÍV4 1  de 
leis,  à.  174.  - 

2  Lei  de  29  de  Outubro  de  Í609.— ftrovisâo  da  meflmA  data.— 
PtoiúSú  de  29  de  janeiro  de  iélO  sobre  0  registo  das  cousas  defe- 
sas iiela  pragmática.— Carta  rej^ia  de  iO  de  «biil  de  áS19,  ftotii- 
bindo  nos  Ingás  ds  bdidados  é  nótnxis. 


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m 


Uno   sea  filho  inclaitt  na  pragmática  de  1609  alguns  preceitos 
<^<^Mos  para  obter  o  mesmo  fim.  Os  resuitados  não 

corresponderaiii,  e  a  repetição  lias  clausulas,  tantas  ve- 
zes illudidas  quantas  renovadas,  prova  o  grande  poder  da 
opinião  contra  as  restrícções  dos  legisladores.  As  pra- 
gmáticas, requeridas  nas  côrtes  de  D.  João  III,  de  D.  Se- 
bastião e  nas  de  Thomar  convocadas  por  D.  Filippe,  como 
o  remédio  único  e  eíTicaz  que  [)odia  oppor-se  aos  gastos 
demasiados,  aiem  de  não  curarem  o  mal,  porque  os  po- 
derosos, 6  á  sombra  d'elies  os  abastados  e  toda  a  dassiò 
media»  zombavamabertamente  das  prohibiç9es»OQ  desco- 
briam modo  de  as  annollar,  cansavam  ao  commercio  e  ás 
industrias  praves  perturbações,  expellindo  do  mercado 
as  fazendas  de  maior  preço,  e  reduzindo  á  miséria  os 
operários  e  artíQcas»  qae  subsistiam  do  trabalho  proscri- 
pto  em  nome  da  econonda  domestica  regolada  pelo  Es- 
tado. Sem  entrarmos  na  questão  da  eony^iencía  do  lu- 
xo, tão  discutida,  e  em  que  os  pareceres  tanto  variam, 
para  se  apreciar  o  que  essas  leis  reslrictivas  da  liberdade 
individual  e  da  Uberdade  industrial  signiâcavam,  basta 
observarmos  que  repentinas  e  sem  transição  feriam  inte- 
resses Importantes,  e  roubavam  o  pão  a  multas  famílias. 
Não  adiiiiia  (|U(^  a  resistência  fosse  forte,  e  que,  auxi- 
liada peia  moda  e  pela  vaidade,  duas  potencias  que  se 
não  subjugam  Êiciimente»  acabassem  por  triumpbar  sem- 
pre*. 

A  prova  encontra-se  nas  paginas  dos  escriptores  da 
epocha,  cujas  censuras  mostram  como  a  moda  se  ria  das 
prisões,  em  que  a  legislação  cuidava  enlaça-la.  Um  d'el- 
les»  descrevendo  em  iQ^^i  a  corrupio  do  tempo,  não 

1  Lei  de  20  de  julho  de  lo91.  —  Archivo  Nacional,  liv.  i  de  leis 
de  1576  iúf'  1G12,  fl.  215  v.—Vide  Roscher,  Príncipes  d'ÉconooM 
PolUmue,  traduits  par  YVoiíncski,  tom.  u,  liv.  tv,  cap.  u. 


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DOS  SÉCULOS  xvu  £  ivm 


hesita  em  afirmar,  que  os  homens  traziam  a  honra  nas  iaxo 

costas  e  o  interesse  no  rosto,  e  para  o  persuadir  traça  cora  .^p^ 
um  lápis  rápido»  e  muitas  vezes  feliz»  o  esboço  do  qua- 
dro dos  costumes  e  dos  vícios  dos  seus  contemporâneos. 
Fidalgos,  que  possoiam  15:000  cruzados  de  renda»  tra- 
tavam-se  como  príncipes  em  Lisboa,  sustentando  em  casa 
entre  pagens,  lacaios  e  creados  de  ambos  os  sexos  mais 
de  cincoenta,  com  grande  estado  de  cavallos  e  de  cães  de 
caça  e  de  regalo.  Nos  séculos  xv  e  xvi  a  modéstia  e  com- 
postura das  mulheres  ainda  mereciam  os  louvores  de  na- 
cionaes  e  estrangeiros,  que  elogiavam  com  motivo  a  tem- 
perança das  casadas,  o  recolhimento  das  don/elias  e  a 
honestidade  das  viuvas»  tanto  nos  \estidos  e  toucados» 
como  nas  maneiras  e  na  companhia»  de  que  se  rodeavam. 
Aquellas  toalhas  de  hollanda  e  àe  panno  de  linho,  diz  o 
auctor  que  estamos  ciLando,  aquellas  iáias  de  fazendas 
de  lã  com  sua  barra,  nas  mais  urbanas  e  cortezãs  enfei- 
tadas de  debruns  da  mesma  tela,  os  gibões  de  canequin, 
8  os  mais  ricos  de  tafetá»  o  recato  no  andar»  os  olhos  no 
chão,  os  chapins  envernizados»  e  nas  senhoras  titulares  e 
principaes  os  chapins  de  Valença,  tudo  inculcava  logo  a 
virtude,  a  simplicidade  e  o  desprezo  dos  vãos  ruídos  do 
mundo.  Um  pagem,  ou  um  escudeiro  compunha  todo  o 
seu  cortejo  para  saírem  a  fazer  visitas»  ou  para  firequenta- 
rem  as  igrejas,  e  a  mais  nobre  para  se  transportar  apenas 
tinha  uma  cadeirinha  com  suas  cortinas  de  encerado. 
Os  mantos  eram  de  fdele  (tecido  de  lã  de  Barberia),  ou 
de  sarja,  e  os  mais  caros  cortavam-se  de  burato»  espécie 
de  cendal  preto»  ou  de  cores»  e  passavam  de  mHes  a  filhas 
em  morgado  *. 

1  Tempo  de  Agora,  por  Martim  Alfonso  de  Miranda»  part.  i, 
paf.  67  6  163.  Esie  livro  em  dialogoB  é  uma  obra  curiosa  e  instra* 
etiva  como  pntm  doa  coslumeB  da  epoisha. 

fim  T  34 


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mo 


HISTOmA  DB  PORTUGAL 


Em  i&it  Iodas  as  nmlbares  Iriyavam  sedas  e  veUudos, 
ô  todas  se  queriam  servidas  e  acompanhadas  com  das- 

peza  superior  aos  meios.  As  saias  appareciam  ornadas  de 
torçaes  custosos  e  golpeadas  de  mosqueia.  Os  aiíaiates 
das  Malgas  mais  opulentas  eram  requestados  para  se  ea- 
earrogaFem  dos  vestidos  das  que  não  cessavam  de  im« 
poiimiar  os  paes  e  os  maridos,  cegas  pela  loucura  de 
quererem  hombrear  com  a  nobreza.  Mulheres  de  hcmiens 
de  condição  ordin ai  la  gastavam  4íJ000  i  oaes  em  uma  toa- 
lha para  a  cabeça,  e  usavam  corpetes,  ou  gibões,  que  pa- 
reciam cossoletes  pelo  oiro  e  prata  dos  recamos.  Chapins 
de  41000  e  de  êH/OQO  réis  de  preço,  e  mantos  de  seda  um 
diSMPença  de  fidalgas  para  mechanícas,  que  valiam  mais 
do  que  antes  importavam  os  dotes  com  que  se  contenta* 
vaui  os  (jao  as  pediam  para  esposas.  Não  lhes  bastando 
(ras&erem  sedas  sobre  sedas  contra  o  preceito  das  pra- 
fimiicaa»  prodigalisavam  as  pennas,  a  prata  e  o  oiro  em 
bordados  de  sáias,  fraldelhíng  e  outras  peças,  e  os  rubis, 
as  pérolas  e  os  diamantes  até  nos  chapins  M  Gontayaiu-se 
na  capital  mais  de  setecentas  cadeiras  (cadeii  iaiias),  no 
feitio  similhantes  a  ataúdes.  Custavam  algumas  504^000 
reaes  por  serem  forradas  de  damasco,  ou  de  brocado,  e 
os  portadores  nSo  recebiam  menos  de  âQ^jlOOO  reaes  por 
amio.  As  senhoras  nobres  enfadadas  dos  coches  e  liteiras, 
preferiam  este  vehicn  It  •  ]  ara  as  visitas,  e  foram  lo^^o  imita- 
das pelas  da  classe  media  ^.  Os  iiumens  não  eram  mais 
liados,  comprando  vestidos  e  galas  custosas  sem  olha- 
rem aos  gastos.  Nos  gibões,  calças,  feiragoulos  e  roupe- 
tas São  se  viam  sonio  sodas  alastradas  de  passamanes  tio 
dispendiosos,  que  uma  casa  poderia  sustentar-se  mezes 

*  TMifwdfil^^tttB.  i,díatoi.ai,pi(^Í63al6K. 

*  Ibidem,  tom.  i,  dúlo§.  pi,  pag.  166  a  167. 


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004»  SeCULOSi  &VU  l.  xwi 


m 


tiom  o  que  krieavam  assim  wsm  dó  aog  mmadam  e  i)«  im 
faiates  no  maio  da  injbieza  geral  m^Mi 

O  luxo  e  a  falsa  riqueza  cresciam  á  proporção  que  a 
mioa  do  pai£  se  adiaaUva.  Ás  moda»  ealrajigairas  «oirih 
vam  appiaudidai  e  gii0cedíaiii*4e  varmdo  oa  eolfvs  das 
aauí  admiradores.  Tudo  [imeia  pimoo  e  pequeno  pira 

eníeilar  o  moribundo,  a^^onisante  debaixo  fbs  pompaí> 
que  o  suífocavam.  Miguei  Leitão  de  Andrade,  euire  as 
iODOvaç&ea  mlraduzidas  por  aquelles  annoa  aponta  trea 
oono  notevaia,  aa  meiu  de  seda»  as  ohraiai  waaaHm 
pm  eerrar  as  cartas,  e  os  wMêê  de  inver&o,  que  o  mar* 
quez  de  Castello  Rodrigo,  D.  Cl)ristuvâo  de  Moura,  pri- 
meiro cultivou  00  seu  paul  da  Gliamufica^.  As  damaa 
deslumbravam  com  os  adereços.  Wwélm  e  topei  riooe 
nos  ehapius^  collarea,  Vm*  #argaDtilÍMS,  cm  aCsgidovaa 
de  oiro,  era^jados  de  pedras  ao  peito,  braceletes  earis* 
simos  lios  pulsos,  arrecadas,  anaeis,  memorias,  frasqui» 
nbos  de  cheiros,  capotilhos»  volantes,  Um»^»  espâUutt  e 
jóias  para  ornar  a  testa»  oonauniam  gfoasae  loiomík  Os 
dianuntes  de  Deein  e  Bíanagar*  aa  aaphiraa  do  Fagn,  ai 
pérolas  de  Ceylão  e  de  Borneo,  os  alambres  de  Lubecb, 
os  camaieus  da  Allemanha,  as  àúbaiiuas  e  as  martas  de 
Moscow,  os  aroúttiioi»  da  Suissa,  Oà  espelhos  de  Yeueiae 
de  HoUaoda,  as  peimas  de  abestw»  os  legues  daCkíMU 
as  (elas  da  Pérsia  e  de  Itália,  oa  damaseos  de  GMiova  o 
de  Florença  figuravam  nas  lojas  mais  bem  sortidas  da 
rua  ISovíi  o  da  rua  Áurea,  tentando  o  ^o>U)  e  apregoando 
OS  desvarios  da  geração  que  só  curava  de  modas  e  aiior* 
QOS,  Viando  em  volta  d'eUa  tudo  desatava^.  Motejevi-se 

í  Tempo  de  Agora,  tom.  i,  dialog.  iii,  pag.  170  e  171. 
2  Miguei  Leitão  de  Andrade,  Miscellanea,  Lisboa,  1629,  dialog.  iv. 
^        Mspuel  Bernasdaa»  Nmt  Fimm^  ^  V«  f  Aaior  Divi- 
no»,  xxxn,  pag.  i77  a 

Si. 


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mSTOBIil  DB  PORTUGAL 


uto  do  antígo  recato  e  dos  costumes  sóbrios  como  de  velha* 
MH^tiç&M      ndiculas.  As  mulheres  saíam  de  casa  com  o  valor  de 

uni  morgado  sobre  si.  Os  noivos  seguiain  as  solteiras  a 
toda  a  parte,  cainiiiliavam  descobertos  ao  lado  das  ca- 
deirinhas, e  Miavam-lhes  de  joelhos.  As  casadas  joga- 
vam largo  como  qualquer  tafbi  toda  a  noite,  corriam  as 
ruas  sós  com  as  amigas,  trazendo  o  rosto  coberto  pelos 
rebuços  dos  mantéus,  e  viviam  com  estranliaviM  liberda- 
de. No  interior  das  casas  o  recheio  de  mobílias  e  curio- 
sidades coDcordava  com  a  pompa  externa.  Bahus  e  con- 
tadores esculpidos»  ou  embutidos  com  primor,  bofetes  e 
«escriptorinhos»  preciosos,  cadeiras  torneadas,  gnarda- 
roupas  para  camarins,  cofres  de  tartaruga,  baixelas  lisas 
e  lavradas,  apparelhos  da  China  e  do  Japão,  eram  outros 
tantos  pretextos  para  avultadas  quantias  se  lundirem  sem 
proveito.  Os  toucadores  das  damas  constituíam  um  mundo 
abreviado  de  fhtilidades,  todos  enfeitados  de  jarras,  de 
redomas  de  crystal,  de  bocetas  ricas,  de  caixas  de  luvas 
e  signaes  pai  a  o  rosto  á  franceza,  de  fitas  e  de  reloginhos 
esmaltados  de  Inglaterra.  Meias  de  seda  com  grandes 
rendas  de  oiro,  sapatos  de  âmbar,  baleias  para  desenru- 
gar justilhos  e  perpoeSos,  e  cabelleiras  de  seda  e  cabello 
completavam  estes  arsenaes  das  vaidades  femininas*. 
Quando  os  que  deviam  dar  o  exemplo  da  austeridade 
eram  os  mais  zelosos  em  escarnecer  das  leis,  calcando-as 
aos  pés  com  ostentação,  como  haviam  as  auctoridades  e 
os  magistrados  de  punir  nos  outros  as  culpas  de  que  el- 
ies  próprios  eram  réus  convictos? 

Não  admira,  sendo  estes  os  usos  e  os  vicios  da  epocba, 
que  a  venalidade,  a  corrupção  e  uma  completa  falta  de 

a  I80.^]ligiiel  Lflitfio,  HtteittaiMa,  dUlog.  nr. 


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DOS  SÉCULOS  xvn  s  xym  «33 

escrúpulo,  de  decoro  e  de  pontualidade  no  exercício  das  Lm» 
fuDCCões  publicas  e  nas  relações  particulares  concorres-  (^«^ 
sem  para  ainda  escurecer  as  tintas  do  triste  painel  que 
estamos  debuxando.  É  o  que  attestam  os  documentos,  e 
o  <]ue  o  testemunho  dos  contemporâneos  corifinna.  Fa- 
zia-se  tudo  por  dinheiro,  lima  cubíça  insaciável  devorava 
a  todos.  Desde  que  os  fidalgos  tinham  trocado  o  antigo 
pelote,  que  os  cobria  desde  o  coUo  até  ao  joelho»  petos ' 
trancefíns  de  jóias,  pelos  camafeus,  pelas  cadeias  de  oiro 
bem  lançaíLis,  pelas  mangas  perdidas  e  pelas  meias  de 
cores,  a  vellia  honra  e  os  brios  portuguezes  haviam  sal- 
tado pela  janella.  Os  mais  primorosos  ião  se  envergo- 
nhavam» de  que  lhes  apontassem  os  actos  inmotoraes 
praticados  para  se  pavonearem  nas  praças  vestidos  de 
damasco  avelludado,  c  não  sentiam  o  menor  pejo  em  cru- 
zarem as  portas  dos  mercadores  e  alfaiates,  devendo-lhes 
o  custo  das  fazendas  e  o  feitio  dos  trajos.  Já  não  trabalha- 
vam pela  gloria,  e  punham  só  os  olhos  na  riqueza.  Mui- 
tos, rodeados  de  legiões  de  pagens  e  de  escudeiros  co- 
bertos de  vistosas  librés,  viviam  interiormente  nos  maio- 
res apuros  quasi  sem  meios  para  acudirem  ás  despezas 
quotidianas.  Até  nas  barbas  entrára  a  vaidade.  Uns  tra- 
ziam-as  largas  e  compridas,  outros  curtas  á  castelhana» 
tingindo-as  os  velhos  para  representarem  de  mancebos. 
Depois  usou-sc  o  rosto  rapado,  e  cabelleira  para  enco- 
brir as  calvas,  porfiando  bastantes,  comtudo,  em  en- 
crespar com  ferros  quentes  as  longas  madeixas.  No  meio 
do  luxo  e  das  bizarrias  da  cArte  a  pobreza  dilatava-se  e  a 
caridade  diminuía.  Os  homens  do  povo  vestiam  baeta,  ou 
panno  grosseiro,  trajavam  capotes  de  burel  e  carapuças 
de  lã,  e  lutavam  com  a  miséria  K 

*  Retr(tío  de  Portugal  CoftelhanOj  «Declamação  ecclesiaslica  e 
Encómio  idtimo  sobre  o  pelote  de  £1-Rei  D.  João  de  Boa  Memoria», 


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um  A  rudeza  das  províncias  íilimentíiva  o  fanatismo  e  a  in- 
-Jk-ji  tokirancia,  [hh'  vezes  rHtií'fil;ii  ,iiii  em  corii]agra(;í)e3 
p«*igosas  e  em  assoadas  vioienias  contra  os  chrisiãos  no* 
vos  e  M  CuDíiias  sispeítas  de  pouco  firmes  na  fé.  A  igno* 
itucit  em  profeada.  Poucos  individuos  ^nreiídlaiD  os 
primeiros  rudimentos  de  leitura  e  de  escripta  mesmo  na 
côrte.  O  ensino  das  disciplutas,  que  lioje  constiuiem  em 
parte  a  instrucção  primaria  e  secundaria,  acliava-sc  quasi 
todo  conceolrado  nos  edlegios  dos  padres  da  compnihia 
<te  Jesus  e  tm  aulas  dos  outros  claustros,  obedecia,  co* 
mo  notáfRos,  i  trsdi^  da  anctoridade,  e  podia  dizer^se 
absolulaaienle  ecclesiaslico.  A  i^n  eja,  uu.  inais  exacto,  o 
clero  regular  dominava  o  espirito  das  novas  gerações, 
encerraudo-as  com  ciúme  no  circulo  iníleiivel  de  suas 
idias  e  aspirai^s,  e  ap^gmdo  eok  nome  da  uuidwle  das 
creiíçis  qualquer  darão  mais  yívo^  que  da  fóni  iriesss 
avivar  a  meia  treva,  em  que  vegetavain  quasi  adormeci* 
das  as  írilellíL^inicias. 

A  nobreza,  subordinada  por  inclinação  e  por  interessas 
90  MRerdociu,  cooperava  txm  elle  para  supplanUir  a  ferro 
6  ftigvs  seiKto  pitciso,  a  nenor  tentativa  de  resistência,  e 
os  fidalgos  maiis  illiistres  honravam-se  de  verem  os  seus 
noUM^  inseri] )t(Ks  nns  livros  do  santo  offieio  na  qualidade 
de  seus  familiares,  e  de  acceitarem,  ate  para  os  actos  mais 
iotinos  da  vida  domestica,  a  tutela  dos  mosteiros,  ciqos 
monges  tluham  sido  se«s  Hiestres  e  educadores  na  puer»- 
eiS)  e  se  tomavam  seus  eonselbeiros  e  árbitros  na  idade 
viril.  As  classes  aristocráticas,  pouco  alumiadas  em  geral, 
nâo  hobítísafam  peia  cultora  do  engenlio,  nem  pela  scien- 
áã,  e  salvo  o  efigulfao  nobiliário,  pouca  vantagem  levavam 

por  Fr.  Luiz  da  Natividade,  aiuio  Kk^S.  pa^.  436  o  seguintes.™ 7*#wpo 
de  Agcrei,  toni,  i,  dmlog.  iii,  pag.  57  a  — Monarchia  LmUam, 
fêtt     fiy.  xvin,  cftp.  xxxft. 


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DOS  SÉCULOS  XVII  £  XVUl  ^ 

ás  classes  medias  no  saber,  acompanliaiido-as  em  aiuitus  Lmie 
preconceitos.  A  leligião,  quo  todí)s  1 1  ,iziam  na  bôca,  e  ra-  * 
ros  00  cot  ação,  conciliava-se  com  a  elasticidade  da  con- 
sciência tolerada  pelos  casuistas»  e  com  as  sapersli^Dea 
Cfam  gentílicas  herdadas  das  epocbas  mais  obscuras.  Ckm- 
íundia-se  o  divino  com  o  profano,  a  devoção  exterior  com 
a  verdadeira  piedade,  e  a  relaxação  dos  cosluineri  chegára 
até  a  ponto  de  se  oOerecerem  arrhas  a  Deus  e  aos  Santos 
pelo  êxito  de  projectos  iofames,  ou  crimiDosos.  Os  vicm 
mais  torpes,  os  rasgos  mais  escandalosos^  cobríndo-se 
com  o  véu  do  íeuii>l(t  e  com  a  sombra  do  confissionario, 
julgavam  sufficiente  expiação  o  horror  da  heresia  e  a  li- 
beralidade em  favor  dos  ministros  do  altar  K 

0  clero»  que  o  Evangelho  aponta  como  o  sal  da  tem# 
nem  pela  palavra,  nem  com  o  exemplo  combatia  frnctuo- 
samente  a  corrupção.  Nas  parochias,  v  fora  d'ellas,  o  ce- 
iil)ato  clerical  vingava-se  dos  rigores  disciplinares  sem 
observar  mesmo  o  mais  leve  resguardo,  e  a  lei  apenas 
mandava  açoutar  e  degradar  as  infelizes  que,  sedusidas, 
tinham  sido  muitas  vezes  victimas  apenas  dos  que  as  per- 

dinm  em  logar  de  as  guiarem-.  Nas  Constituições  dosBis- 
pados  euconlram-se  traçados  por  mãos  insuspeitas  os  li- 
neamentos do  estado  moral  do  povo  e  da  decadência  da 
austeridade  monástica  e  sacerdotal.  Uma  credulidade 
quasi  infantil,  que  poucos  procuravam  esclarecer,  abra- 
çava as  abusões  mais  ridículas  como  verdades,  e  as  pra- 

1  Sobtam  as  ^vas  do  que  diiemoSb  Nos  documentos  da  epoeha 
sSo  repetidas  as  Gomminaçdes  contra  a  impunidade  dos  peoeados 
escandalosos,  e  as  allus^es  á  rdaxação  dos  costumes.  As  fogueiras 
da  inquisição  puríficavam,  porém,  tudo  aos  olhos  dos  verdadeiros 
crentes. 

»  CdHM  áê  Liáoa  dê  1498,  cap.  xuv  e  OmstMfHm  4u  Bú* 
jMiof  passim. 


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^6  HISTORIA  DE  PORTUGAL 

Lttio  tícas  mais  supersticiosas  como  actos  religiosos.  As  cren- 
wntí^  ças  populares  (fuasi  que  davam  os  foros  de  dogmas  ás 
invenções  absurdas  e  aos  embaímentos  grosseiros.  A 
despeito  da  celebre  postura,  com  que  a  camará  de  Lis- 
boa em  1385  resolvôra  agradecer  a  Deus  a  Victoria  de 
Aljubarrota,  as  cjaneiras»  e  as  «maias»  continuaram  a 
canlar-se  ás  porias,  os  feitiços  não  deixai  aiu  de  povoar 
de  terrores  os  dias  e  as  noites  dos  bons  calholicos,  e  os 
maus  olbados,  adivinhações  e  conjurações  diabólicas  con- 
servaram o  seu  terrível  império,  apesar  mesmo  da  vigi- 
lância da  inquisição.  A  Constituição  do  Arcebispado  de 
Évora,  impressa  em  Lisboa  no  anno  de  1534,  não  só  de- 
dica um  capitulo  inteiro  aos  maleíkios  dos  «feiticei- 
ros», «benzedeiros»  e  «agoureiros»,  como  enumera  ex- 
tensamente todos  os  sortilégios»  suas  formulas  e  as  di- 
versas espécies  de  encantamentos,  de  que  a  imaginação 
popular  accQsava  os  suppostos  sequazes  de  Satanaz. 

Deprehendc-:50  da  leitura  d*estc  venerando  monumen- 
to, que  as  artes  infernaes  eram  vastissimas  e  as  habilita- 
ções de  seus  adeptos  assás  variadas.  Uns  operavam  rou- 
bando dos  logares  sagrados  as  pedras  de  ara  dos  altares  e 
os  corporaes.  Outros  invocavam  os  espíritos  malignos  em 
círculos,  ou  fora  d'elles  em  encruzilhadas.  Estes  possuíam 
varinhas  magicas  (de  condão),  com  que  descubriam  the- 
souros  escondidos,  ou  veias  de  agua.  Aquelies  adivinlia- 
vam  o  futuro  por  meio  de  conjuros  feitos  com  íigoras» 
imagens,  ou  cabeças  de  homens  mortos,  trazendo  comsigo 
dentes,  ou  baraços  de  enforcado,  para  fazerem  damno,  ou 
favorecerem  e  lançarem  sortes  amorosas,  obrigando  as 
pessoas  mais  indiUerentes  a  quererem  bem  a  outras 

^  Ccnttítmçõo  do  Arcebispado  de  Evwa,  cap.  xxv,  «Dos  Fei(i« 
ceiíOB,  Benzedeiros  e  Agoureiros» .  Vide  Constituições  do  Arcebispado 


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DOS  SÉCULOS  xvn  E  xvm 


837 


Nâo  era  menos  copiosa  a  citação  das  más  artes  impu-  Laxo 
tadas  aos  benzedores  e  agoureiros,  feiticeiros  secunda-  ^^^i^ 
nqSy  menos  graduados  nas  aulas  da  côrte  diabólica.  Â 
QmsíUuição,  que  estamos  referindo,  prohlbia-lhes  passa- 
rem os  doentes  por  silva,  ou  machieiro,  por  l)aixo  de  tro- 
visco, ou  por  lameiro  virgem,  benzerem  com  espada  que 
tivesse  morto  bomem,  ou  passado  o  Douro  e  Minbo  tres 
vezes,  cortarem  solas  em  fileira  baforeirai  ou  sobro  em 
limiar  de  porta,  e  ameaçarem  imagens  de  santos  de  as 
lançarem  á  agua  se  não  despachassem  suas  preces.  Pro- 
bibia  iguaUuente  revolver  penedos  e  atira-los  á  agua  para 
baver  chuva,  darem  a  comer  bolos  para  saber  de  algum 
furto,  ou  benzerem  com  palavras  ignotas,  com  cutelos 
de  taxas  pretas,  e  usarem  camisas  fiadas  e  tecidas  em  um 
dia  A  maior  parte  d'estes  bruxedos  e  aírouros  corria 
entre  o  povo  das  outras  províncias  e  até  da  capital  com  a 
força  de  verdades  incontestáveis,  e  o  santo  officio,  assim 
como  a  legislado  penal,  processando  os  mágicos  e  ag- 
gravando-lhes  o  castigo,  concorriam  ainda  mais  para  for- 
tificar os  crédulos  no  seu  erro.  Em  1516  um  alvará  de 
D.  Manuel,  alem  das  penas  da  Ordenação,  mandava  mar- 
car os  feiticeiros  com  ferro  em  brasa  em  ambas  as  faces, 
estigma  mais  cruel  de  certo  do  que  a  morte,  porque  equi- 
valia  á  cxcommunhão  social. 

As  leis  faziam  clara  distincção  entre  a  grande  e  a  pe- 
quena bruxaria,  porque  a  primeira  era  punida  com  a  per- 
da da  vida,  assim  como  as  invocações  ao  demónio  e  as 
comidas  e  bebidas  enfeitiçadas.  A  segunda  incorria  na 
mai  ca  de  ferro  quente  nas  faces  e  em  degredo  perpetuo 

de  LMoa  âefSide  agosto  de  1536,  tit.  xxv,  «Dos  Feiticeiros,  Ben« 
zedeiroB  e  Agoureiros». 
1  Dndem,  ibidem. 


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iUBTOfilA  D£  rORTVGAL 


ijm  parâ  a  ilha  de  S.  TIioiihí,  e  as  outras  superstições,  que  não 
n*^]  d^ndiaiii  na  opinião  dos  criminalistas  (\n>  s(  culos  xvi  e 
XVII  á&  trato  com  fielz6i)iit,  corrigiaui-se  com  pregão  e 
açoutes  nos  plebeus,  e  degredo  de  dois  aimos  para  os  to- 
gares de  Aftiea  nos  vassaUos  e  escodeíros castigos  ainda 
suaves  de  certo  para  réus  convictos  de  familiaridade  com 
o  demónio,  e  de  pacto  com  as  potencias  invisíveis.  Mas  o 
que  a  severidade  d'estas  penas  appiícadas  a  charlatães, 
que  só  deviam  ser  punidos  como  embaidores  por  vive- 
rem á  custa  da  credulidade  publica,  provava  com  eviden- 
cia era  o  atrazo  das  ídéas  e  dos  conhecimentos,  ao  qual  a 
Km  n|)a  inteira  mais,  ou  menos  8<í  associava,  participaiiflo 
da  inesiiia  j>tírsuasão,  e  admittindo  com  oò  ííuísos  legisla- 
dores a  possibilidade  dos  sortilégios,  maleúcios  e  adivi^ 
nhamentos.  £m  I6lâ  suscitou-se  um  conflicto  entre  os 
prelados  ordinários  e  os  inquisidores  sobre  a  jurisdic^io 
ácerca  das  pessoas  que  curavam  com  psalmos,  e  o  rei  or- 
denou que  os  ordinários  decidissem  se  este  modo  de  cu- 
rar era  licito,  ou  nâo.  £  em  1654  D.  João  IV  concedeu  a 
um  soldado  licença  para  continuar  a  usar  da  rara  habili* 
dade  que  possuía,  de  afugentar  as  moléstias  com  pala- 
vras'. A  estulta  superstição  dos  chamados  dobisbomens», 
ou  dos  individuos  ladados  a  (ransformarem-se  de  noite 
em  auimaes,  quasi  que  alcançou  os  nossos  dias. 

As  recreações  do  vulgo  resenti»n-se  do  estado  de  in- 
fância em  que  o  conservavam.  As  romarias  e  festas  de 
igreja,  as  farças  ignóbeis,  e  os  jogos  rústicos  e  bárbaros,  a 
que  serviam  sempre  de  complemento  obiigado  os  fogos 

1  Alvará  de  9  de  agosto  de  1516, — Ordenação  Filippim,  liv.  v, 

tit.  III. 

2  Carta  rpgia  de  24  de  outul)ro  dc.  iGii.— Alvará  de  io  de  ou- 
tubro de  1654,  impresso  iio  Jornal  de  Coimbra, 


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de  artificio,  e  que  de'ordiiiai  lo  termina vajii  pur  íji  íí?as,  uso 
homicidios  e  actos  de embriagaez»  constituíam  m  primeiri  i^ft^njm 
metade  do  século  xvii  os  divertiinentog  pnncípaes  daa 
mnltidões.  Em  certas  epochas  o  transito  das  más  tornava- 
SC  perigoso.  Voavam  de  um  lado  ao  oiilro  ;is  laranjadas 
e  os  arremessos,  c  jorros  de  agua  inuiidavain  os  passa- 
geiros. Os  i>aiies  dos  negros  em  Lisboa  deram  ongem  a 
armidos  taes,  que  foram  prohibidos>  assim  como  o  uso 
de  espingardas  nas  víllas  e  cidades  de  dia,  e  nas  outras 
terras  depois  do  toque  de  «Ave Maria».  Outra  disposição 
do  goveniu  de  Madi id,  ainda  mais  desagradável  aos  súb- 
ditos, foi  a  que  impoz  uma  pena  relativamente  grave  aoa 
que  nas  fúncções  religiosas  queimassem  foguetes,  ro- 
das de  fcj^o,  ou  artificios  iguaes.  É  provável  que  a  pre- 
texto de  manter  a  tranijuillidade  o  gabinete  de  Filippe  IV 
levasse  em  mente  privar  os  mais  inquietos  de  todos  os 
meios  de  resistência  ao  seu  domínio  K  Na  policia  dos  cos- 
tumes o  governo  hespanhol  innovou  pouco  em  rela^  a 
Lisboa,  mas  cabe-lhe  a  honra  de  haver  sustentado  a  exe- 
cução das  providencias  decretadas  em  le>70  por  el-rei 
D.  Sebastião,  prescrevendo  a  sua  observância  aos  cor- 
regedores dos  bairros*  Algumas  d^essas  disposições  offisi^ 
diam  a  Ub^dade  individual,  como  succedia  com  a  que 
mandava  que  nenhum  individuo,  não  sendo  de  quali- 
dade e  vida  conhecida,  podesse  mudar  a  residência  de 
uma  freguezia  para  outra  sem  certidão  do  parocbOi  que 
o  declarasse  isento  de  culpas  de  visitaçUo;  mas  outras  fo^ 
ram  dictadas  com  grande  acerto  e  cuidado  pela  moralida- 
de publica,  e  entre  cilas  figura  a  que  ordenava  uma  in- 
formarão severa  acerca  das  mulheres,  que  se  propunham  a 

de  1610  e  carta  legia  de  30  de  ^oeto  de  16S2. 


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HISTOBIA  0£  PORTUGAL 


Laxo  ensinai  meninas,  negando  a  licenra  escripta  ás  que  pelo 
seu  coraporlamento  a  não  merecessem,  e  punindo  com 
acoutes  e  degredo  as  que  abrissem  aula  sem  auctorisa- 
ção^  Não  nos  parece  menos  digno  de  louvor  o  alvará  de 
2  de  junba»  que  veiu  pôr  termo  ao  escândalo  e  indecen- 
cia  das  «mulheres  solleiías»  (meretrizes)  vi\erem  nas 
me^nas  i  uas,  e  ás  vezes  de  paredes  meias  com  as  farni- 
iias  honestas^. 

Nas  recepções  de  príncipes,  ou  de  embaixadores,  nos 
festejos  reaes  e  nas  fancções  religiosas  ordenadas  pelas 
ordens  monásticas,  uu  [)or  devotos  opulentos,  o  eiiiiiLiilo 
popular  concorria  semi)re,  mas  em  posição  inferior,  oc- 
cupando  a  nobreza  os  iogares  principaes,  e  tomando 
usualmente  para  si  o  prímeiro  papel  nas  ftincções  que  re- 
presentavam suas  antigas  proezas  e  virtudes.  A  entrada 
do  cardeal  Alexandrino  (Miguel  Bonello)  legado  do  papa 
Pio  V,  offerece-nos  exemplos  curiosos  e  instructivos  do 
modo  por  que  na  segunda  metade  do  século  xvi  (1571j 
figuravam  nas  solenmidades  publicas  as  diversas  classes, 
e  dedara  com  bastante  individuação  a  parte  que  a  cada 
uma  d^ellas  podia  caber.  Á  porta  de  Elvas  encontrou  o  le- 
gado um  formoso  cortejo  de  mais  de  trezentos  e  cincoenla 
cavalleiros  com  D.  Constantino,  tio  do  duque  dc  Bragança, 
e  muitos  pagens,  cavalgando  todos  á  gineta,  isto  é,  com 
a  perna  curva,  os  pès  em  grandes  estribos,  que  os  cobriam 
quast  todos,  e  esporas  sem  roseta  e  armadas  de  om  só 
bico  mui  agudo.  Veiu  depois  o  bispo,  e  scguiram-o  as 

*  Alvará  de  2  de  junho  dp  !570. 

-  Alvará  díi  nifsíiia  data  sobre  as  prostitutas.  Mandava-as  arruar 
jios  becos  dos  Assacares,  nos  becos  travessas,  alem  dos  Fieis  de 
Deus,  uas  travi  ss  js  e  rua  dos  Yinn^Tt  irns,  ni  rua  d:is  í':tnastras,  na 
travessa  de  Santa  Marinha,  e  oas  casas  chaiuadas  da  Mancebia,  por 
traz  doft  EstauB. 


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DOS  8BG0LOS  JYtt  B  XVm 


8&1 


justiças  da  terra,  corregedor,  juiz,  oavidor,  meíríDho  e 
alcaides,  com  suas.  vestiduras  talares  e  varas  nas  nãos. 

Do  meio  (l'este  préstito  é  que  o  cardeal  desfhictou  as 
dansas  formadas  em  seu  obsequio,  homenagem  do  [jovo, 
voluntaiia,  ou  forçada,  que  apparecia  sempre  em  todas  as 
recepções  apparatosas  desde  remotas  eras.  A  primeira 
dansa,  a  «folia»,  era  composta  de  oito  hcnnens  vestidos  á 
portngueza  com  gaitas  e  pandeiros  acordes  e  guizos  nos 
artelfins,  pulando  em  roda  de  um  tambor,  e  entoando 
caniigns  alegres.  Volteavam,  como  loucos,  trocando  ges- 
tos e  ademanes  congratulatorios  da  boa  vinda  do  prelado. 
A  segunda,  a  «captiva»,  constava  de  oito  mouros  agri- 
lhoados, que,  saltando  á  moda  da  Barberia,  se  fingiam  es* 
cravos  do  legado.  A  terctMi  a,  chamada  a  «gitana»,  trazia 
oito  rapari«^as  era  trajos  ricos  e  galaúle^  de  ciganas  com 
uma  grinalda,  ou  antes  diadema  de  folba  delgada  de  prata 
na  cabeça,  cheio  de  botões  do  mesmo  metal,  em  fórma 
de  laços,  serpes  e  flores,  dos  qnaes  pendiam  pequenos 
espelhinhos,  ou  laminas  de  variado  lavor.  Os  cintos,  á  an- 
tiga, de  velludo,  as  faxas  de  íiaa  tela  mourisca,  tomadas 
com  laçarias  de  oiro,  saios  de  pamio  encarnado  e  sóccos 
de  feltro  de  diversas  cores  comidetavam  este  gracioso 
vestuário.  Entre  ellas  realçavam  duas  moças  mascaradas 
de  mouras  com  uma  rapariga  sustida  em  pé  sobre  os 
huiiibi  os,  e  toda  coberta  de  oiro  e  de  vistosas  galas.  Ape- 
sar d'aqueilo  peso  bailavam  com  ligeir  eza  ao  som  de  um 
tambor,  fazendo  esvoaçar  um  lenço,  ora  na  mão  direita, 
ora  na  esquerda,  umas  vezes  segurando-o  debaixo  do 
braço,  e  outras  nas  costas.  Repetiram  depois  os  mesmos 
momos  com  facas,  variando  infinitamente  os  laiices  de 
destreza.  Esta  dansa  tambeiu  se  denominava  da  «pella», 
corrupção  visível  do  vocábulo  latino  puella*  £m  Evoia 
novos  momos  e  novas  dansas  applaudiram  o  enviado 


HHirOBU  BR  MKfWAL 


poatifiaio,  sotoMoiíido  as  dos  cromeiros»  e  dos  icigi- 
noa»** 

At  gnmdes  fintas  da  eôrte  portugueza  nos  casamanto» 

de  reis  e  princif^es,  e  em  outras  occasiões  solemnes.  já 
lio  stículo  XV  eram  tão  brilhantes  e  iiaviam  tocado  tão  ele- 
vado grau  de  parfai^o»  que  sua  magnifleaiicia  no  tempo 
de  Aft^nso  V  mgmAoa  ob  emiiaixadom  do  imperador  da 
ÁllenaBha»  arrancando  ao  cavalleíro  andante  Jorge  Von 
Ehingen,  depois  de  visitar  as  capitães  mais  opulentas  da 
Europa,  a  confissão  espontânea  de  que  o  esplendor  e 
riqueza  dos  jogos  guerreiros  da  rua  Mova,  e  os  íoigares  a 
sKeiía  doa  paçoa  reaea  em  paiz  algorn  podiam  ser  exce- 
didoa.  Nio  aos  occi^Moido  n'eaie  moDieoto  daa  ju&taa,  tor> 
neios  e  corridas  de  destreza,  que  coDStituiam  a  parte  es- 
««icial,  de  certo  a  mais  aristocrática  e  pomposa  de  todas 
ellaa,  em  qua  cousistiam  estas  festas  tão  elogiadas  e  con- 
corridas  de  nadonaea  e  estrangeiros?  Nas  soberbas  iilu- 
nina^Bea  daa  frontanaa  e  das  salaa  do  paiado  doa  reis; 
noa  cnatoaos  pamioa  de  Arras,  que  de  alto  a  haixo  eo- 
Li  iam  suas  pai  cdtis,  l  epresentaiido,  trasladados  pela  agu- 
lha e  a  lançadeira  os  personagens  uiais  celebres  da  an- 
tiguidade, euja  existeneia  e  aventuras  os  artilices  caiu- 
iBiiavam  nos  letreiros,  que  Hies  saiam  da  bôea,  aos  trajos 
anaehronieoa  de  que  oa  vestiam,  e  nas  aocQes  abaurda 
que  lhes  fa/iaiii  praticar.  Umas  vezes  era  o  grãomagko 
Aristotelos  nrmado  de  cerviiheira,  cota  e  braçaes,  rom  a 
bààiA  armada  e  o  virote  apontado  ao  peito  da  oeatauro, 
outras  era  Alexandra  Magno  de  erux  vermdba  nos  hom- 

*  Vida  Pmiorítmaj  voL  v,  anua  iSii-— Artigo  Archeologia  Por* 
tugwza.  Viagem  do  cardeal  Alexandrino,  legado  do  Papa  Pio  V  eoi 
1571,  extrahida  do  códice  de  1607 da  bibllotheca  do  Vaticano.  O  nome 
de  folia,  em  italiano  hueun,  eomspondia  aoa  IregeitM  e  etnCos  mais 
do     joviaes  doa  ^  entfavwB  B'alla. 


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ttS 


bros  sobre  am  oavalio  acobertido  braodiiMk)  a  lança  omi'  í«m 
tra  um  esquadrão  de  mouros  ás  portas  de  jéruaalem.  Pria-  ^^'^ 

mo,  Ajax,  Achilles,  Moysés,  David,  Absalão,  e  outroagr»' 
gos  e  hebreus  illuslres  padeciam  aleives  similhantes,  figu- 
rando entre OKHistros  e  arabeseos»  e  do  meio  de  disparates 
e  incorrecções  de  deaeubo»  que  a  palbelamaisbamikle  a 
boçal  de  hoje  se  envergonharia  de  conmietter^ 

Deltaixo  dos  tectos  e  das  abobadas  artezoadas,  la- 
vradas de  ouo  nos  penduroes  e  bocetes  acotovelavam- 
se  as  dansaSy  riam  pageos,  atravessavam  figuras  doa 
momos,  pulavam  anões,  ou  corcovados»  e  tiniam  oa  aaa- 
caveis  dos  manmellos  e  tmhões.  Nos  momos  eontinbt-te 
já,  postoque  em  embryâo,  o  modci  iio  drama.  Encerra v  uii 
de  ordinário  uma  aUegoria  próxima  ou  remotamente  li- 
gada com  os  suocessos  recentes  e  notáveis,  e  o  mais  in* 
teresaante  n'estas  scenaa  informes  eram  as  visualidades, 
apenas  cortadas  de  algum  monologo  rústico,  e  avivadas 
pelos  gestos  e  visagens  de  pauluiaaiias  extravagantes  e 
exageradas,  d^onde  os  actores  tiravam  o  epitUeto  de  «tm» 


1  Para  se  formar  tileu  do  qno  ornni  no^seculo  xv  ostas  festas,  con- 
8«lte-se,  entre  outros  nionnim  íilns.  i  Diário  da  Evibuivada  ãe  Jacob 
Motz  ('  Nicolau  Lanrkiuaiiii  lic  Yalkr^t-  ui,  oradores  e  procuradoras 
do  iuiperador  Fretlt  i  1(  0  111  para  o  representarem  no  acto  do  seu  (  uii- 
sorcio  com  a  iníanta  I).  Leonor,  irmã  de  AíTonso  V.  Este  ihario, 
composto  Hia  latim  por  Valkestein  e  pijl)licado  pelo  auctor  da  His- 
!nrn!  Genealógica  da  Casa  Real,  em  um  dos  lolll(»^  tias  «FroAas«, 
encHfra  cnriojias  particularidadí^s  sobre  os  costumes  e  a  magnificên- 
cia da  côrte  du  coiitjuistador  de  Arzilla.  O  sr.  Vilhena  Barbua.i  ys- 
tampou  no  tom.  iv,  anno  de  1861,  n."*  3o,  36  e  40  do  Archim  Pitto- 
rêíco  um  extenso  e  animadr^  extracto  da  narração  do  embaixador 
jjerrnaniro.  Consulte-se  igualiui  ílIi  a  Ckrouieados  Valeromi  e  Insignes 
Feitos  d  El-HeiD.JoãoII.  por  (j.ík  la  de  Rezende,  cap.  cxvia  uiíxxui, 
aio  m&am  insiructiva  como  pmiura  do  íamto  a  úpukiuàa  da  BOiia 
cdrte  na  ultima  década  do  xv  século. 


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HISTOBU  SB  PORTTOAL 


Lwo  geiteadores»  por  que  eram  conhecidos.  O  gosto  dos  prin* 
ier!tiç5ei  ^  ^  oobreza  tão  primava  por  delicado»  e  as  jograll* 
dades,  chufas,  allusões  e  bufonerías  dos  chocarreiros,  em- 
bora iiiuitas  vezes  fossem  grosseiras,  obscenas  e  aggressi- 
vas,  não  causavam  estranbeza,  e  alé  as  damas  se  não  cor- 
riam de  as  ouvir  e  animar  como  seuriso.  Obobo  e  o  truhão 
tinbam-se  tomado  indispensáveis  nos  paços  dos  monar- 
chas  e  nos  solares  dos  senhores  como  contraveneno  para 
o  tédio  das  longas  horas  de  ociosidade  e  de  enfado.  Os 
jugraes,  mais  elevados  em  condição,  do  que  estes  repre- 
sentantes domésticos  dos  «momos»,  aarremedilhos»  e 
«escameosi»  eram  coqjunctamente  instrumentistas»  bai- 
larinos, cantores  e  até  repentistas  de  trovas. 

Em  velhos  manuscriptos  de  cantares,  compostos  por 
barões  e  cavalleiros  distinctos,  encontram-se  ainda  os  si- 
gnaes  indicadores  dos  tonilhos  para  o  acompanhamento  do 
rithmo  dos  trovadores  repetidos  pelos  jograes,  e  restam 
mais»  ou  menos  confusamente  desenhadas  ainda  nas  iliu- 
minuras  da  epocha  as  fórmas  dos  instrumentos  músicos 
mais  usados,  o  adufe  e  as  castanhetas,  que  marca\am  o 
compasso  ás  dansas  dus  jograes  e  ás  pellas,  ou  dansas  das 
jogralezas,  e  o  laude,  a  guitarra,  a  harpa,  a  ayabeba,  a  re- 
beca, o  anafil,  as  charamelas  e  o  orgSo,  de  que  se  compu- 
nham então  as  orchestras^  O  século  xvi  herdou  mais  ou 
menos  modificados  estes  elementos,  aperfeiçoou  alguns, 
supprimiu  outros,  e,  polindo  e  aperfeiçoando  o  que  não 
poucos  ainda  conservavam  de  rude,  deu-lbes  verniz  mais 
palaciano  e  feições  menos  aq[>eras.  No  reinado  de  D.  Se- 

1  Muitos  dos  traços  d'esie  quadro  são  tirados  da  admirável  des- 
eripçfio  das  festas  do  tempo  de  D.  João  I  feita  pelo  sr.  A.  Herculano 
00  cap.  xxfr  do  seu  romance  histórico,  o  Moingê  d$  Cister,  estudado 
sobre  os  documentos  da  meia  idade  com  o  eserapnlo  que  feUa  a 
mntloe  lime  de  liiatQiia. 


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DOS  SEGOLOS  XTIl  £  XVOI 


bastião  ainda  se  passavam  pela  sua  cliancellaria  cartas  de  i-uw 
jograes  a  indivíduos  habilitados  para  o  e&ercicio  d  esta  ^pM^íi^ 
profissão. 

As  festas  do  casamento  de  D.  Leonor  celebraram-se  em 
julho,  agosto  e  outubro  do  anno  de  4  451 .  Começaram  pela 

entrada  triumphal  dos  dois  embaixadores  do  imperador, 
Jacob  Motz  e  Nicolau  Lanckmann  de  Valkestein,  e  pela  au- 
diência publica  de  ei-rei  em  toda  a  pompa  do  seu  estado. 
Continuaram  no  dia,  em  que  na  presença  da  còrte  o  arce- 
bispo de  Lisboa  lançou  a  benção  nupcial  á  formosa  infanta 
na  Capella  real,  e  concluiram  cora  as  dansas,  representa- 
ções 6  torneios  determinados  por  seu  irmão  para  engran- 
decer no  animo  dos  enviados  allemães  o  conceito  do  seu 
poder  e  generosidade.  Bancjpietes  esplendidos,  bofetes  co- 
bertos de  Yelludos  carmezins  orlados  de  franjas  e  com  as 
armas  do  reino  bordadas  a  oiro  e  seda,  credencias  de  carva- 
lho esculiiido  ricamente  com  as  prateleiras  carregadas  de 
vasos  e  de  peças  de  prata  de  exquisito  feitio  e  de  preciosa 
baixella  ornada  de  relevos  e  esmaltes  primorosos,  salas 
espaçosas  alumiadas  por  grandes  tocheiros  de  prata  la- 
vrados de  bulhões  e  pilares,  iguarias  e  vinhos  finissimos 
na  mesa  de  estado  e  nas  outras,  e  por  ultimo,  todas  as 
sumptuosidades  que  podia  e  sabia  accumular  um  rei  pró- 
digo e  magnifico,  deslumbraram  nos  paços  da  Alcaçova  a 
vista  dos  ministros  de  Frederico  III  e.  do  luzido  concurso 
que  os  rodeava. 

Seguira m-se  uma  ceia  e  um  sar  au  no  palácio  de  S.  Cbris- 
tovão,  aonde  D.  Leonor  se  hospedou  depois  de  recebida. 
O  infante  D.  Fernando,  irmão  de  Monso  Y,  entrou  de- 
pois da  refeiçlo  na  sala  com  um  numeroso  séquito,  co- 
berto de  galas  de  uma  só  còr,  e  entregou  á  nova  imperatriz, 
sentada  no  throno,  uma  carta  simulada,  em  que  elle  e  os 
seus  paladinos  se  figuravam  attraliidos  pela  lama  d  aquel- 

TOMO  T  39 


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m  HlSTOfUA  DE  POUXUGAL 


Smxú  las  opulentas  núpcias.  Logo  apoz  entraram  outros  momos 
ijjjjjj^  representando  uma  honla  de  selvagiMi^,  (Jin  esquadino 
de  guerreiros  coberlos  de  armaduras  briltiantes.  No  gentil 
maccebo,  qae  os  capitaueava,  conheceu  a  infaula  el-rei.  Por 
fim  appareceu  uma  cohorte  de  autígos  germanos  com  os 
cabelios  longos  e  crespos  soltos  até  ás  espáduas  e  o  trajo 
histórico,  e,  feito  por  ella  um  desafio  cortez,  íi  avou-se  no 
meio  do  sarau  mn  combale  fingido,  em  que  a  agilidade  e 
a  destreza  dos  cavalleiros  grangearam  justos  applausos^ 
No  dia  17  de  outubro,  mal  raiou  a  luz  do  dia,  soaram 
na  rua  Nova  os  instrumentos,  que  acompanhavam  as  dan- 
sas  e  folias  dos  cliristãos,  dos  mouros,  dos  judeus  e  dos 
ethiopes,  e  d'ali  se  encaminharam  todos  ao  paço.  Ás  sete 
horas  veiu  abrir  a  liça  com  vistoso  séquito  Rodrigo  Ailonso 
de  Mello,  que  servia  o  cargo  de  almirante  do  reino  na 
minoridade  de  Lançarote  Peçanha.  Uma  hórrida  figura  de 
dragSo  com  o  coUo  alçado  trazia  em  cima  de  si  um  caval- 
leiro,  que  desaliuu  em  altos  brados  todos  os  valentes.  De- 
corridos minutos  assomaram  na  arena  por  lados  oppostos 
duas  luzidas  quadrilhas  com  arautos  e  charamelas,  uma 
governada  por  Âffonso  Y  e  a  outra  pelo  infante  D.  Fer- 
nando. Duraram  dnco  dias  as  justas,  sempre  variadas 
de  novas  invenções.  A  imperatriz  distribuiu  por  suas  mãos 
os  prémios  aos  vencedores.  Houve  ainda  corridas  de  can- 
nas,  em  que  tomaram  parte  os  fidalgos  principaes  e  os  mo- 
mos populares,  rivalisando  todas  as  classes  em  se  singula- 
rísarem  pela  novidade,  ou  pela  riqueza.  Os  estrangeiros 
residentes  em  Lisboa,  e  em  especial  os  inglezes,  escocezes 
e  flamengos,  imaginaram  entre  outros  folguedos,  e  execu- 
taram na  rua  Nova  uma  caçada  simulada,  em  que  saíram 
leões,  ursos  e  javalis  imitados  com  grande  propriedade*. 

*  Diário  de  Valkestein,  Archivo  Pittore$co,  tom.  lY,  n.«  36. 
s  Ibidem,  ibidem,  tom.  iv,  n."*  40. 


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DOS  S£GULOS  ITH  £  XVIU 


547 


Tniita  e  nove  aiiiius  depois  resiílaiidecia  a  cidade  de  J-nio 
Évora  solemnisando  o  casamento  fio  herdeiro  de  D.  João  II  ^np^^ji^ 
com  a  íiiUa  de  Izabel  a  Gathoiica.  Fora  tal  a  alegria  cau- 
sada pela  noticia  d'este  consorcio,  desterrando  todos  os 
receios  de  guerra  entre  as  duas  nações  vizinhas,  que  mes^ 
mo  de  noite  saíiaoi  ns  daiisas  e  folias  ao  clarão  das  to- 
chas, e  que  das  ruas  j>i  iiicipaes  velíios  e  mulheres  hones- 
tas, loucos  de  alvoroço»  vieram  cantar  e  bailar  debaixo 
das  janeUas  do  paço.  A  princeza  castelhana  entrou  em 
Évora  a  37  de  novembro  de  1490.  No  dia  39  renniu  el- 
rei  a  côríe  cm  uiiia  ceia  grandiosa.  A  baixela  e  a  copa 
ostentavam  riquezas  admiráveis.  Apenas  o  soberano  e  os 
noivos  se  assentaram  ao  som  dos  instrumentos  appare- 
C6Q  mna  carreta  tirada  por  dois  bois  grandes  assados,  tra- 
zendo dentro  muitos  carneiros  inteiros  também  assados. 
Um  moço  fidalgo  de  pelote,  galião  e  carapuça  de  velludo 
branco  picava  a  junta  com  uma  aguilhada  disfarçado  em 
carreiro.  Pavões,  aves,  caça,  manjares  e  doces  deliciosos 
espertavam  o  appetite  dos  convivas.  Logo  no  meio  do  ban- 
quete entraram  varias  figuras  representando  o  rei  de  Guiné 
com  tres  gigantes  espantosos  e  uma  retorta  mourisca  en- 
cerrando duzentos  mascarados  tintos  de  preto,  e  todos 
grandes  bailarmos. 

As  justas  não  foram  menos  ricas  e  apparatosas,  que  as 
de  Affonso  V  em  I45i.  Precederam-as  muitas  representa- 
ções mímicas,  sobresaíndo  a  do  «cavalleiro  docysne»,  que 
desembarcou  de  uma  nau  com  vélas  de  tafetá  branco  e 
roxo,  gáveas  de  brocado  e  cordoame  de  oiro  e  seda.  A 
nau  movia-se  por  machínismo,  e  de  dentro  d'ella  salta- 
ram el-rei  e  muitos  senhores,  D.  João  para  romper  o  baile 
com  a  princeza  e  os  cavalleiros  com  as  damas.  Nâo  aca- 
baram, porém,  n  esta  dansa  as  suspensões  da  noite.  No 
intervalio  entrou  outro  entremez  não  menos  vistoso  que 

35. 


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54S         *  mSTORU  DB  POIIT0GAL 

Ltt»»    O  primeiro.  Consistia  em  orna  fortaleza  entre  rochas  e  ma- 
tas  virentes  cora  dois  selvagens  corpalentos  á  entrada.  Um 

liuinem  de  armas  saiu  a  pelejar  com  elles,  venceu-os,  e, 
descerranrlo  as  portas,  saíram  logo  por  ellas  muiLus  mo- 
mos» e  uma  nuvem  de  pombos,  perdizes  e  outras  aves, 
que,  esvoaçando  soltas,  se  deixavam  apanhar  á  mão^. 

Dos  monólogos,  ou  «arengas»,  como  os  denomina  o 
ciironista  doestas  mímicas,  nasceu  em  1502,  com  o  alvo- 
recer (lo  stículu  XVI,  o  primeiro  Anto  Pastoril,  composto 
em  caslelliano  por  Gil  Vicente  para  celebrar  as  matinas 
do  Natal,  auto  em  que  figuravam  seis  pessoas,  e  que  foi 
representado  na  presença  da  rainha^.  Os  esplendores  da 
eôrte  de  D.  Manuel  corresponderam  aos  novos  destinos 
que  a  fortuna  do  descobrimento  realisado  por  Vasco  da 
Gama  acabava  de  aliançar  â  pequena  naçào.  Lisboa,  tor- 
nada a  Veneza  do  occid^nte,  Portugal  sustendo  nos  bra- 
ços um  Immenso  império,  o  seu  nome  citado  entre  lou- 
vores e  invejas  na  Europa,  temido  e  respeitado  nos  mares 
da  Africa  e  da  .Vsia,  e  as  sciencias  e  as  artes  cultivadas  e 
protegidas,  eram  lances  tão  venturosos  e  tào  pouco  espe- 
rados antes,  que  uão  devemos  admirar-uos,  de  que  o  rei 
e  o  povo  se  deixassem  desiumbrar,  julgando  todos  os 
commettímentos  e  opulências  inferiores  â  sua  grandeza. 
As  festas  reaes  d*aquelle  tempo,  as  pompas  de  que  se  ro- 
deava o  monarcba,  e  o  manancial  que  todos  então  suppu- 
nham  inexgotavel  dos  thesouros  que  as  alimentavam,  fize- 
ram na  realidade  única  na  existência  do  paiz  esta  epocha 

)  Garcia  de  Resende,  Chromea  de  D.  João  U,  cap.  cziv,  csn, 
cxm  e  cxTin,  e  cap.  cxsan,  cxxiv,  cxxv,  cxxvi,  cxzvn,  e  czxvm. 

2  Todos  sabem  que  Gil  Vicente  compoz  o  seu  monologo,  ou  Vi* 
titação  para  commemorar  o  feliz  successo  da  rainha  D.  Maria,  fiil- 
lando  só  uma  figura,  e  entrando  todas  as  outras  como  personagens 
mudas  para  offerecerem  presentes  ao  príncipe  lecemnascido. 


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DOS  SÉCULOS  xvn  £  XVIU 


tão  depressa  eclipsada,  o  reinado  seguinte,  sobretudo  luxo 
nos  iiltimos  quinze  annos,  viu  mais  trevas,  do  ípie  luz,  ^^^J^ 
mais  amea(;as  de  revezes,  do  que  promessas  de  trium* 
phos.  O  peso  da  luta  já  excedia  as  forgas»  e  os  apuros  da 
íázenda  cresciam  de  amio  para  amio.  Assim  mesmo  foram  - 
notáveis  as  ceremonias  e  a  niagnificencia  do  recebimento 
do  duque  de  Bragança,  D.  Theodozlo,  com  sua  prima  co- 
irmã em  junbo  de  154:^,  realçando  a  sumptuosidade  do 
banquete  e  do  sarau  dados  no  paço  dos  Estaus.  Mão  me- 
receram  menor  elogio  as  núpcias  do  duque  de  Âveiro, 
filho  do  Mestre  de  S.  Thiago,  com  a  fdha  do  maiT[uez  de 
Villa  Real  D.  Juliana  em  1547.  Mas  a  manitestação  mais 
estrondosa  n^este  sentido  do  tempo  de  D.  João  III  foram 
os  torneios  de  Xabregas,  antes  de  1554,  para  o  príncipe 
D.  Mo,  herdeiro  da  coròa,  estrear  as  primeiras  armas. 
Resta-nos  uma  bella  e  miúda  descripção  d^elles,  escripta 
pelo  auctor  do  a  Palmeirim  de  Inglaterra»  com  a  viveza, 
brio  e  castidade  de  linguagem,  que  recununendam  tanto 
as  formosas  paginas  da  sua  novella.  As  galas  dos  cortezãos, 
as  soberbas  decorares  da  liça,  e  a  destreza  e  perfeição 
dos  cavalleiros  em  todos  os  jogos  e  exercidos  revestiram 
este  arremedo  das  antigas  justas  de  magestade  singular. 
O  principe,  a  despeito  da  idade  juvenil,  arrebatou  a  to- 
dos pelo  seu  garbo,  louçania  e  vigor,  conquistando  sem 
favor  o  premio  mais  galante  ^ 
Outro  aspecto  muito  mais  popular  das  diversões  pu- 

'  Recebimcnlo  de  D.  Theodozio,  duque  de  Bragança,  coin  D.  Iza- 
bel  de  Lencastre,  sua  prima  co-irmã,  em  Lisboa  a  25  de  jiiiiiio  de 
1542. — (Casamento  do  dut|ue  de  Aveiro,  filho  do  Mostre  de  S.  Thiago, 
com  0.  Juliana.  íiilia  do  marquez  de  Villa  ReaL — Carfa  que  Fran- 
cisco de  Moraes  eju  iou  á  rainha  de  França,  em  que  lhe  escreve  os 
torneios  o  festa  que  se  fez  em  Xabregas  em  155... — Miscellanea  ma- 
nuscnpta  em  meu  poder,  pag.  115,  119  c  167  a  183. 


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550 


HlSTOaiA  DE  PORTUGAL 


i4w  blicâs  nos  séculos  xn  e  xvn  eram  as  fancções  religiosas 
J^fj^  desde  a  procissão  de  Corpus  Christi  alé  ás  roraarias  e 
festas  (lo.>  ui  apos  mais  venerados  das  parochias  urbanas 
e  ruraes,  e  ás  invenções  e  riquíssima  ostentação  das  or- 
dens  em  suas  commemorações  festivas.  A  procisslío  de 
«Corpus»  já  no  século  xiy  constituia  um  verdadeiro  es- 
pectáculo dividido  em  scenas,  que  nem  todas  se  descul- 
pavam com  a  ingcnuirlade  dos  devotos,  que  traçavam 
e  executavam,  cuidando  agradar  a  Deus.  A  concorrência 
dos  oificiaes  de  oíiicíos  e  jornaleiros  com  staas  represen- 
tações allegoricas,  a  presença  de  mascaras  e  monstros 
'  fingidos  pouco  edificantes,  e  a  longa  serie  de  incidentes 
ridículos,  ou  lirii toscos  e  de  visualidades  muitas  vezes 
pouco  reprehensiveis  diíTicilmente  podiam  ser  disfai  çados 
pelo  longo  séquito  de  todos  os  institutos  monásticos»  des- 
dobrado pelas  ruas  da  cidade  e  composto  de  frades,  cujos 
hábitos  reproduziam  todas  as  cores  tristes,  bentos,  agos- 
tinhos, bernardos,  dominicos,  franciscanos  e  beguinos,  e 
pelo  esquadrão  luzido  dos  cavalleiros  de  Christo,  do  Hos- 
pital, de  Aviz  e  de  S.  Thiago,  precedidos  dos  seus  mestres 
6  commendadores^. 

0  povo  enchameava  em  todas  as  praças  e  ruas  por  onde 
havia  de  passar  o  préstito,  applaudindo  com  vozerias  a 
Gato  Paul  (<?at'o  montez).  insiornia  dos  pilliteiros,  o  «dra- 
gão» dos  sapateiros,  a  cserpe»  dos  alfaiates,  eo  «Sagitá- 
rio» dos  pedreiros  e  carpinteiros.  No  século  xvf,  mais 
polido  e  correcto  na  fé,  muitas  d'estas  praticas  pareciam 
já  offensívas  com  motivo  do  decoro  e  do  respeito  devidos 
ás  cousas  sagradas.  Na  sua  carta  á  camará  do  Porto  em 
15()0  a  rainha  regente,  D.  Calharina  de  Áustria,  estra- 
nhou eprohibiu  os  velhos  abusos  auctorisados  naprocis- 

1  Archivo  Hnnicipal  da  Liaboft,  Uwo  doi  Pr^goi. 


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DOS  SÉCULOS  xm  E  XfUl 


8io  do  Corpo  de  Deus,  apontando  entre  btitros  o  escan- 

dalo,  de  que  em  repelidas  occasiões  haviam  sido  causa  .aparluç^M 
innocente  as  seis  moças  formosas,  filhas  de  uliiciaes  me- 
chanicos,  tomadas  quasi  á  força  jiara  íigurarem  Santa  Ma- 
ria, Santa  Catharina  e  a  sua  donzella,  a  Magdalena»  a  dama 
de  Drago  e  Santa  Clara  com  duas  freiras  e  muitos  mou- 
ros em  roda,  vociferando  chufas  obscenas.  A  municipali- 
dade portuense  defendeu  os  antií^os  usos  pela  voz  do  seu 
procurador  Bartbolomeu  de  Araujo»  masa  rainha  insistiu» 
e  as  moças  foram  eliminadas»  com  excepção  sómente  de 
Santa  Clara  e  de  Santa  Catharina.  Escaparam  também  aos 
golpes  da  reforma  as  péllas  e  algumas  dansas,  os  reis  e 
os  imperadoi  es  e  os  jogos  honestos  *. 

As  romarias  e  festas  iocaes  tomavam  em  muitos  casos 
grande  vulto»  e  duravam  dias»  correndo  as  despezas  com 
largueza  e  sendo  assàs  variadas  as  recreações  profanas 
a  que  pôde  dizer-se  quasi  que  os  actos  religiosos  serviam 
de  pretexto.  iMiguel  Leitão  de  Andrade  deixou  uma  ex- 
tensa e  particularisada  pintura  das  representações  feitas 
em  louvor  da  Virgem  Senhora  da  Luz  na  vilia  do  Pedro* 
gSo  Grande  por  um  devoto  no  primeiro  quartel  do  se- 
eulo  xvn.  A  festa  compoz-se  de  muitas  diversões.  Pro- 
cissão, musica  vocal  e  instrumental,  dansas,  jogos  de 
cannas  e  da  argolinha»  touros  corridos  e  espectáculo  thea- 
IraL  O  ferrador  da  terra  recebeu  ordem  de  ferrar  de 
graça  os  cavallos,  e  o  festeiro  mandou  ás  estalagens  que 
dessem  a  todos  ração  gratuita.  Os  músicos  eram  tocadores 
de  harpa,  rabequinha,  charamella  e  trombeta.  Pagou  alem 
d'istoas  «folias»  e  cchacotas»  convidadas  para  avivarem 
a  alegria.  A  mesa  aberta  para  todos  consumiu  arrobas  de 

í  })/:<^rrt Uives  Chronolofficas,  tom.  iv,  pag.  156  a  iri8.  —  Livro 
tliis  Pojituras  da  Gamara  de  Coimbra,  chamado  da  Correia,  fl.  96* 


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BSt  BISTOftU  BB  PORTUGAL 

uxo  ^  vacca  e  de  carneiro»  toneis  de  vinho,  que  fazia  manar 

mlú^È     fontes,  e  uma  infinidade  de  aves  mansas  e  de  caça. 

Nos  episódios  d'esta  larga  serio  ilivertimentos  entra- 
vam uru  colloquio  em  nome  de  ires  pessoas  da  Santíssi- 
ma Trindade»  e  a  daosa  das  nove  musas  guiada  por  Ciio 
e  intercalada  de  trovas.  Por  meio  da  procissão,  rica  e 
vistosa,  entreteciam  as  «chacotasi,  as  cfolias»  e  os  bai- 
lados de  donzellas  seus  passos  e  cantares  ao  som  das  do- 
çainas,  charamellas  e  cometas,  ("orreram-se  depois  touros 
em  um  pequeno  terreiro,  e  jogaram  as  cannas  oito  cavai- 
leiros  contra  oito.  Representou-se  por  ultimo  a  comedia 
ainda  nlo  impressa  de  Lope  da  Vega,  D.  Juan  de  Haro  o  la 
ocasitmperàida,  e  outra  peça  intitulada  O  salteador  fidalgo 
livrando  o  pae  da  morte.  Os  actores  eram  nos  primeiros 
papeis  moços  nobres,  o  bobo  e  as  outras  figuras  vieram  de 
varias  terras.  £  inútil  acrescentarmos,  que  poucas  íunc- 
çSes  doesta  espécie  podiam  ser  dadas  com  esta  pompa,  e 
que  na  máxima  parte  as  romarias  se  reduziam  a  um  ar- 
raial ao  diviau,  auinuido  por  volleadores  pagos,  e  por 
uma,  ou  outra  «folia*  assalariada,  arraial  em  que  o  vinho 
e  os  brios  rústicos  levantavam  com  frequência  arruidos, 
que  sempre  custavam  sangue,  quando  não  custavam  al- 
gumas vidas  ^ 

As  lestas,  com  que  a  religião  da  companhia  de  Jesus  na 
província  de  Portugal  celebrou  a  cauooisação  de  Santo 
Ignacio  de  Loyolae  de  S.Francisco  Xavier  no  anno  de 
excederam  em  grandeza  e  apparato  nas  terras  principaes 
do  reino  tudo  o  que  até  ahi  excítára  admiração,  ou  mere- 
céra  maior  applauso.  Em  Lisboa,  em  Évora,  em  Braga, 
em  Villa  Viçosa  e  no  Porto  attrahiu  o  |)oderoso  instituto 
por  oito  dias  consecutivos  as  multidões  embevecidas,  va- 

1  Miguel  LfiítSo  de  Andrade^  Miteàtlanea,  dialog.  xi  e  zn. 


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i 


]K>S  SÉCULOS  XVU  £  XVIU  553 

riando  os  espectáculos  e  as  visualidades.  Em  Lisboa  liou-  lmo 
ve  procissão  solemne  cora  muitos  e  ricos  andores  desde  ^^^g^ 
a  Sé  até  á  Gasa  Professa  de  S.  Roque,  e  nessa  mesma 
nj^ite  representacio  da  Defeza  do  Castello  de  Pamphm 
combatido  por  canh?)es  vindos  do  armazém  do  duque  de 
Aveiro.  Seguiu-se  um  vistoso  préstito,  em  que  entravam 
as  virtudes  personificadas  e  varias  imagens  de  varões 
illustres  por  santidade,  passando  em  carros  tríumphaes» 
entre  luzidos  cortejos  allusívos.  Em  Coimbra  á  mesma 
opulência  e  profuslo  de  episódios,  acresceu,  segundo 
o  costume  jesuitico,  a  af)[)arição  de  um  soberbo  carro, 
armado  em  lionra  das  sciencias  e  letras,  precedido  pela 
figura  symtM)lica  da  cidade  de  Paris  a  cavalio,  e  encer- 
*  rando  no  logar  mais  alto  as  sciencias  e  as  artes  caracteri- 
sadas  com  seus  distinetivos,  a  theologia  de  branco,  a  philo- 
sophia  de  azul,  .i  rhetorica  de  cores  \  ai  ias,  e  a  grammatica 
de  verde  e  morado. 

Em  um  dos  dias  jogaram-se  as  canoas  ás  cinco  horas 
da  tarde  annunciadas  pelas  «folias»  do  Cartaxo  e  de  Mour 
temôr  e  pelas  «chacotas^  de  Leiria,  Pombal  e  Montemór 
o  Velho  com  suas  trombetas  bastardas  e  charamelas, 
seus  jograes,  ou  «folgadorcs»,  e  muitos  mascarados, 
que  tocavam  e  cantavam.  Entre  as  dansas  causou  certo 
espanto  a  das  andas,  em  que  um  saltador  obrou  prodí- 
gios. Em  Évora,  alem  da  profissão,  dos  alardos  de  estu- 
dantes, dos  fogos  de  artificios,  e  de  diversas  inventes, 
o  que  grangeou  maiores  louvoies  aos  padres  foram  as 
danças  dos  «Ànjosi»,  dos  «Sete  Dias  o  e  a  dos  «Montes 
de  Roma»,  admiráveis  pela  riqueza  esmerada  dos  tra* 
jos  e  pela  perfeição  mimica  dos  passos.  A  representarão 
da  tragic(»nedia  intitulada  a  Tomada  do  Castello  de  Pam- 
plana  poz  o  remate  com  suas  magnificências  a  estas  re- 
creações saudadas  por  innumero  povo  com  vivas  e  brados. 


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054    mSTORU  DE  FORTUCUUL  DOS  SÉCULOS  XVn  E  XVm 

Um   fim  Brap  foram  terminados  os  festejos  pelos  torneios  do 

NnyfOM  ^^^^^^^  oitavario  (7  de  agosto),  em  que  dez  aventu- 
reiros disputaram  o  campu  mantenedores  ale  ás  oito  ho- 
ras da  noite»  rodeando  a  liça  muitas  tochas  e  cobrindo 
de  palmas  os  cavalleiros  as  acdamaçdes  de  qoasi  tudo  o 
qae  tmha  valia  na  provinda  de  entre  Douro  e  Minlio^ 


1  Relaçílo  Geral  das  Festis  que  fpz  a  Religião  da  Companhia  de 
Jesus  na  provincia  de  Portugal  na  canonisaç5o  dos  gloriosos  Santos 
Ignacio  de  Loyola,  seu  fundador,  e  S.  Francisco  Xavier  Apostolo 
da  índia  oriental,  no  anno  de  1622,  Lisboa,  por  Pedro  Craeabeeek 
impressor  de  £l'Rei,  anno  de  1613. 


CAPITULO  IV 


CONGLUSiO 

Lançados  os  ultímos  traços  do  estado  económico  e  so- 
cial da  monarchia  no  momento,  em  que  findou  a  domina- 
ção da  casa  de  Áustria,  e  subiu  ao  tlirono  a  dynastia  por- 
tugueza  de  Bragança»  cumpre-nos  reduzir  os  liaeameQtos 
esboçados  a  um  quadro,  embora  incompleto»  anvando» 
apesar  da  imperfeição  do  pincel  e  da  deflciencla  dos  sub- 
sídios, as  lei  iões  mais  proeminentes  da  epocha. 

Do  passado  glorioso,  de  qiie  um  século  de  distancia  a 
separava  apenas,  só  a  saudade  sobrevivia.  Das  grande- 
zas de  D.  Manuel  e  D.  João  UI  restavam  s6  as  minas 
alastradas  pelas  remotas  regiões  por  onde  as  nossas  con- 
quistas se  haviam  dilatado.  Da  raça  privilegiada,  que  a  aus- 
tera escola  de  D.  João  II  educara  para  edificar  tão  \on<^Q 
o  maior  império,  dos  liomens  fortes,  que  tinham  avassal* 
lado  os  mares,  ennobrecido  a  pátria  e  engastado  na  eor6a 
de  seus  reis  os  mais  invejados  florões,  sAmente  a  fama 
apregoava  os  nomes  sobre  os  baluartes  derrocados  das 
fortalezas  da  Africa  e  da  Asia.  Aos  esplendores  da  pri- 
meira metade  do  século  xvi  succedéra  a  escuridão  das 
primeiras  décadas  do  século  xvn.  Milicía,  marinha»  coló- 
nias» instituições,  esforço  guerreiro^  infadatíTas  fmnda;» 


556  HISTORU  D£  PORTUGAL 

coQduíao  e  desenvolvimento  moral,  tudo  diminuíra  e  se  acaniiára, 
minado  pela  mais  funda  e  incurável  degeneração,  tudo 
estava  alluido  e  vacillava.  A  matéria  matára  o  espirito,  e 
os  homens  da  decadência»  muito  pequenos  para  imitado- 
res dos  avós»  vingavam-se  da  inferioridade,  forjando  pla- 
nos ohimericos,  bordando  de  europeis  a  mortallia  da  pá- 
tria, e  alguns  até  escievendo-lhe  por  suprema  irrisão 
epitaphios  gongoricos  sobre  a  campa. 

Acordaram  d'esie  somno  doloroso  os  mais  briosos  pun- 
gidos pela  dor,  irados  pelo  resentimento  das  afiErontas,  ou 
coagidos  pelo  receio  do  ostracismo,  de  que  os  ameaçavam 
as  ordens  de  Madrid,  e  bastou  um  levo  impulso  para  o 
governo  estrauiio,  odiado  e  sem  raízes,  baquear.  Os  paes, 
em  i5Bi,  esquecidos  da  sorte  do  paiz  e  do  futuro  dos  fi- 
lhos, estipularam  nas  córtes  de  Thomar  as  condições  da  sua 
adhesSo,  proclamando  o  rei  catbolico.  Filippo  m  vira  em 
Lisboa,  submissos  e  reverentes  em  volta  do  seu  throno, 
os  lidalgos  mais  orgulhosos.  Em  1637  os  povos  subleva- 
dos em  Évora  e  em  diversas  terras  do  Alemtejo  e  do  Al- 
garve em  v3o  supplicaram  o  auxilio  da  nobreza,  que  fa- 
cilmente podia  converter  os  tumultos  n'ttma  Insurreição 
geral.  A  iiohi  oza  cruzou  os  braços,  e  deixou  passar  o  cor- 
tejo lugubie  das  alçadas  e  dos  verdugos.  A  familia  de 
Bragança,  se  Olivares  não  perturbasse  os  ócios  opulentos 
do  seu  chefe,  é  assás  duvidoso  que  se  atrevesse  a  arriscar 
em  um  lance  temerário  os  fructos  da  munificência  de  tan- 
tos soberanos.  Só  depois  de  posto  o  dilemma  pela  incapa- 
cidade do  ininistro  de  Filippe  IV  entre  a  corôa  e  uma 
quéda  terrível  e  estrondosa,  é  que  o  duque  D.  João  se 
lançou  nos  braços  da  fortuna,  optando  pela  corôa. 

Os  factos  s9o  unanimes  nos  seus  depoimentos.  Não  car- 
regámos as  tintas,  nem  exagerámos  a  expressão  da  physio- 
nomia  social.  Reproduzimos  a  vei  dade  como  eila  se  nos 


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DOS  SÉCULOS  XVn  E  XVIR 


^7 


manifestou.  Nos  sessenta  aonos,  decorridos  desde  lõ80  Ganciiiin> 

até  1640,  nao  encontrámos  senão  revezes,  infortúnios, 
desmoronamentos  e  declinação,  e,  imparciaes  com  a  ra- 
são  e  com  a  lustoria,  não  attribuimos  as  culpas  de  todos 
os  males  á  dominação  estrangeira^  porqae  achámos  as 
sementes,  ou  as  raízes  d*elles  em  tempos  anteriores  es- 
condidas debaixo  das  pompas,  já  mais  apparenles,  do  que 
reaes,  das  falsas  prosperidades  cuin  que  nos  suicidámos. 
O  patriotismo  sincero  não  carece  de  calumniar  as  cinzas 
dos  adversários.  Os  reinados  dos  tres  soberanos  hespa- 
nhoes  ainda  foram  mais  funestos  a  Portugal  pelos  erros  da 
sua  politica  externa,  do  que  pelos  abusos  da  sua  adminis- 
tração interna.  A  ambição  da  casa  de  Áustria  arruinou  a 
Hespaoha  e  as  corôas  dependentes  d'ella  peia  tenacidade 
dos  propósitos  conquistadores,  peia  infelicidade  das  em- 
'  prezas  guerreiras,  e  pelo  justo  desforço  das  nações  assus* 
tadas  com  o  pi-oposito  da  i-ealisação  da  monarchia  univer- 
sal. Filippe  II,  senhor  dos  mares  depois  da  união  de  Por- 
tugal, e  senhor  das  vastas  possessões  dos  dois  estados  na 
África»  na  Ásia  e  na  America,  intentou  subjugar  a  Ingla- 
terra  com  a  invencivel  armada,  e  aniquilar  a  liberdade 
e  o  commercio  dos  Paizes  Baixos  coai  o  peso  dos  exérci- 
tos e  a  exclusão  de  todos  os  mercados,  aonde  a  sua  ban- 
deira âuctuava.  A  Gran-Bretantia  triumpbou,  e  a  Hollan- 
da,  expulsa  dos  nossos  portos,  foi  directamente  ás  índias 
buscar  os  productos,  que  lhe  negávamos  na  Europa. 

Dentro  de  poucos  annos  as  esquadras  das  duas  poten- 
cias assobei  bavam  o  oceano,  e  suas  armas,  combatendo- 
nos  em  toda  a  parte,  castigavam  a  louca  esperança  dos 
que  nos  haviam  fadado  invencíveis  desde  que  nos  entre- 
gassemos  á  Hespanha.  Sós,  neutros  e  pacíficos  teríamos 
demui  ado  seguramente  a  desmembração.  Ligados  á  casa 
de  Áustria  pelo  vinculo  pessoal,  e,  cúmplices  involunta- 


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fl0MM»  rios  qam  sempre  dos  seus  desigmos»  expiámos  eom  a 
monarehia  castelhana,  e  ainda  mais  do  que  ella,  a  ousa- 
dia (Je  suas  aspirações.  Nem  a  Hespanha,  nem  Portugal 
podiam  já  no  século  xvii  com  o  imiiK  uso  império  de  alem 
mar»  que  autes  dividiam,  e  que  em  1 580  o  colosso  ibérico 
eucorporou  em  seus  dominíos.  A  Hespanba  em  guerra 
com  os  paizeslnais  bellicosos  da  Europa  sentla-se  ferida 
nos  órgãos  vitaes»  e  procurava  encobrir  a  lesSo  assumindo 
novas  responsabilidades  e  Uavando  lutas  desproporcio- 
nadas. Portugal,  destinado  pela  Providencia  para  inicia- 
dor da  GommunicaQão  dos  povos  mais  apartados,  e  para 
ser  um  áoê  agentes  mais  activos  da  civilisa(^o,  tomando* 
se  conquistador,  ^osou  do  prestigio  do  nome  e  da  Victo- 
ria, e  coiiU  ahiu  nas  delicias  do  oriente  a  enfermidade  mor- 
tal, de  que  os  gregos  e  os  romanos  tinham  adoecido  tantos 
séculos  ante^  d'elle. 

Os  testemunhos  contemporâneos,  conformes  na  cen- 
sura dos  vidos,  confessam  extínctas  as  antigas  virtudes, 
e  amortecidos  os  brios,  que  haviam  feito  o  nome  portu- 
guez  tão  illustre.  Falias  a-se  ainda  de  trabalhos,  mas  só 
para  fugir  d  elles;  sonhava-se  ainda  com  a  gloria,  porém 
já  se  Dão  abraçava  senão  a  sua  sombra.  As  nossas  naus 
encolhiam  as  vélas  diante  das  inimigas,  resgatavam-se  a 
peso  de  oiro  do  dever  de  pelejar,  ou  escondiamnse  no 
Tejo,  receiosas  dos  cruzeii  os  que  insultavam  a  bandeira 
portii^nie/a  mesmo  á  bôca  da  barra  de  Lisboa.  As  con- 
quistas levaram-nos  tudo  sem  exceptuar  a  rigidez  dos  cos- 
tumes e  o  cuito  immacnlado  da  honra.  A  emigração  for^ 
çada  ou  vohmtaria  para  os  presidios  da  índia  despovoava 
as  províncias  e  destruía  a  lavoura.  A  corrupção  asiática, 
inoculada  nas  veias  da  metrópole,  depressa  a  gangrenou, 
decepando-lhe  o  vigor.  Em  vez  das  realidades,  que  a  ha- 
viam tomado  poderosa  e  temida»  apparendas  mentidas 


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DOS  SÉCULOS  XVU  E  IVIU 


Ulodiam  apenas  os  menos  perspicazes.  Cada  anno  abria  «mnio 

mais  largo  e  mais  fundo  o  abysmo  debaixo  dos  pés  das 
gerações  successivaiiii;iite  abastardeadas,  e  o  turpor,  nún- 
cio falai  da  niorle,  ia-as  tomando  umas  após  outras.  Em 
quando  FUippe  II  subiu  ao  tbrono,  mais  de  dois 
terços  d*esta  via  dolorosa  estavam  andados.  Os  aconteci- 
mentos acceleraram  a  mina  final,  mas  qtíasi  todos  a  re- 
putavam inevitável  desde  longos  annos. 

Todas  as  íorças,  cujo  equilibrio  e  saúde  robustecem  a 
compleição  das  nações,  estavam  minadas.  Nenbum  ele- 
mento solido  e  vivaz  existia  intacto.  A  paralysia  era  geral, 
e  poucos  confiavam  que  podesse  haver  remédio.  Uma  apa* 
tliia  profunda  gelava  us  aaiiiios  c  esmorecia  as  crenças. 
A  calastrophe  de  Alcácer  parecia  ter  sepultado  com  o  rei 
e  a  flor  da  nobreza  o  corpo  e  o  espirito  da  monarcliia* 
Os  mais  altivos,  inclinando-se  diante  da  vontade  de  Filip» 
pe  II,  allegaram,  para  se  desculparem,  os  decretos  da  Pro- 
videncia e  a  necessidade  imperiosa  de  l)uscar  o  porto  de- 
pois da  tormenta.  Os  outros,  o  maior  numero,  sem  alle- 
garem  nada,  rebateram  por  mercês  tangiveis  as  cédulas 
e  as  promessas  de  D.  Ghristov2o  de  Moura  e  do  duq[ue 
de  Osauna.  Esta  apagada  tristeza  durou  sessenta  annos« 
Ao  cabo  d'e11es,  o  reino,  despertando  do  letiiargo,  abra- 
çou-se  com  a  independência,  que  fôra  para  o  povo  no  ca- 
ptiveiro  a  saudade  de  todas  as  horas,  e  quiz  tomar  a  ser 
Portugal.  O  preço  da  emancipaçio  custou-lbe  largos  sa- 
crífidos,  muitas  lagrimas  e  muito  sangue.  Era  ajusta  ez« 
piaçSo  do  passado  e  a  necessária  propiciação  do  porvir. 

A  revolução  de  1640  rebentou  de  um  rasgo  sublime 
de  desespero.  A  paciência  e  o  soíTrimento  estavam  estan- 
cados. Todas  as  classes  padeciam,  e,  correndo  a  vista  em 
volta  de  si,  não  descobriam  senão  desasires,  misérias  e 
prenúncios  de  um  porvir  maisisombrio  ainda.  O  povo 


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860 


HRTOBtÀ  DE  POftTUGAL 


coMhifio  gemia  carregado  de  impostos,  desfallecido,  e  dizimado 
pelos  recrutamentos  para  os  terços  de  Gastella  e  para  as 

companhias  de  soccorro  das  coiumas.  A  fidalf^ia.  aílron- 
tadn  no  orgulho  nobihario  e  Das  ambições  It^ intimas,  de- 
testava em  Miguel  de  Yasconceilos  o  inimigo  conheddo 
da  soa  raça,  o  instnmiento  e  o  açoute  da  política  aggres- 
siva  do  conde  duque.  Separada  dos  negócios,  e  desviada 
dos  oílicíos  e  dos  clev  ulds  cargos,  que  servira  sempre, 
queixava-se  de  que  o  gabinete  de  Madrid  só  a  conhecesse 
para  lhe  extorquir  avultadas  sonmias  por  meios  artificio- 
sos, ou  violentos,  deprimindo-a  na  representação  pessoal, 
na  influencia  e  nos  interesses.  A  idéa  insensata  dé  a  des- 
terrar de  golpe  para  os  caiikpu.^  de  batalha  cU  Catalunha, 
foi  a  ultima  gota  de  fel  no  cahx  que  trast)ordava.  Entre  a 
ruina  e  a  morte  fóra  da  patna  com  as  armas  na  mão  al- 
guns preferiram  acabar,  ao  menos,  pelejando  pela  conser- 
vação dos  fóros  ultrajados.  O  clero,  offendido,  vendo  suas 
immunidades  desaratadas,  e  o  sen  rico  património  quasl 
saqueado  pelas  exigências  de  repetidos  subsídios,  opprí- 
mido  e  desconsiderado,  convenceu-se  de  que  só  lhe  res- 
tava um  caminho  único  de  salvação,  e,  unido  com  a  aris- 
tocracia e  com  o  povo,  nos  púlpitos,  nos  confissionarios, 
nos  livros  e  nas  cadeiras  do  ensino  declarou  pruerra  sem 
quaitel  á  dynastia  estrangeira,  accusada  de  incompatível 
com  a  igreja  depois  da  sua  ímpia  perseguição  aos  bens  e 
ás  pessoas  dos  ministros  da  Deus. 

O  duque  de  Bragança,  finalmente,  alvo  nos  últimos  tem- 
pos das  suspeitas  c  da  má  vontade  da  côrte,  rodeado  por 
eila  de  ciladas,  nem  podia  já  dissimular  aos  outros  os  pe- 
rigos que  o  apertavam.  Mais  do  que  neutro  nos  tumultos 
de  Évora,  não  acudira  pelo  paiz,  quando  o  chamava  cheio 
de  aíllicção.  Ojlliia  Mt^nra  os  fnictos  d'esta  indiíTerença. 
Olivares,  temendo  n  eile  o  luiico  ciíeíe  possível  da  resis- 


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■ 


DOS  SÉCULOS  XVII  E  XVHl  ^61 

teacia  nacional,  não  ce.s.sava  de  excugitar  pretextos  para  conciosao 
o  arrancar  da  calculada  obscuridade  de  Villa  Viçosa,  e 
para  o  confandir,  cunhado  perante  a  omnipotência  de  Fi- 
lippe  IV,  com  os  outros  títulos  da  Hes[)anha.  Avisado  de 
(jup  a  jornada  de  Catalunha  significaria  para  elle  um  de- 
gredo, ou  talvez  uma  prisão  perpetua,  o  terror  da  ameaça 
venceu  no  animo  do  duque  todos  os  outros  terrores,  e, 
deixando-se  arrastar  pelos  mais  intrépidos  da  nobreza, 
cerrou  os  olhos,  e  arriscou-se.  Quando  os  abriu  achou-se 
rei  acclamado  por  toda  a  nação,  mas  rei  sem  tropas,  sem 
thesouro,  e  sem  arruadas,  rei,  que  o  exercito  fónuado 
contra  a  rebellião  dos  catalães  em  alguns  dias  de  marcha 
podia  precipitar  do  throno  sobre  o  tablado  de  um  patíbu- 
lo. A  decadência  da  monarchia  justificava  as  maiores  ap- 
prehensôps,  e  mesmo  um  coração  mais  firme  e  um  cara- 
cter menos  egoista  teriam  despertado  sobresaltados,  ven- 
do ante  si  a  realidade  triste  e  innegavel  na  hora  em  que 
as  hesitações,  ou  qualquer  capitularão  honrosa  não  eram 
jâ  possiveis. 

D.  João  IV  não  nascera  dotado  das  qualidades,  que  ex- 
citam e  inflammam  o  ( nthusiasmo.  Não  pertencia  á  famí- 
lia dos  heroes.  Acima  de  tudo  prezava  a  tranqoillidade, 
o  socego,  e  os  commodos  domésticos,  e  de  bom  grado 
cederia  a  corôa,  se  ella  não  fosse  a  íiadora  da  segurança 
da  sua  vida  e  da  sua  posição.  Sabia  que  a  nobreza  estava 
dividida,  que  parte  era  abertamente  addicta  a  Gastella,  e 
que  da  outra  parte,  fiel  só  nas  palavras,  grande  numero 
de  fidalgos  desconfiados  do  successo  e  receiosos  do  cas- 
tigo, se  mostravam  descontentes,  vendo-se  collocados  na 
alternativa  desagradável  de  sustentarem  o  acto  do  1.°  de 
dezembro,  ou  de  se  aviltarem  com  a  suprema  infâmia  de 
covardes,  ou  de  traidores.  A  conspiração  do  arcebispo  de 
Braga  e  do  marquez  de  ViHa  Real  exprimia  os  sentimen- 


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HISTORIA  0E  PORTUGAL 


tos  seeretoj^  de  muitos  d'estes  cortezSos  qnm  á  força  do 

novo  rei,  p^n  que  u  serviam  rneio  coactos,  com  os  olhos 
em  Madrid,  e  meditando  o  modo  de  negociarem  o  perdão 
da  obediência  apparente.  A  revolução  fôra  um  lance  tão 
repentiiio,  qae  a  nenhum  dera  tempo  para  calcular.  A  tor- 
rente  tomon  os  mais  d^elles  desprecatados,  e  arrojou-os 
inquietos  a  indecisos  aos  pés  da  dyriastia  nacional.  A  re- 
flexão corrigiu  o  ímpeto,  e  não  i)oucos  maldiziam  occui- 
tameute  a  D.  Migu^  de  Almada,  a  D.  Antonio  Tello,  e  a 
João  Pinto  Ribeiro»  arrependidos,  mas  tarde,  de  se  have- 
rem embarcado  para  um  naufrágio,  a  seu  ver,  mevitavel. 

As  circumstancias  não  podiam  ser  mais  criticas.  Quasi 
todas  af?  priti^abilidades  pareciam  apostadas  rontra  o  pe- 
queno reino,  que,  mais  ousado,  do  que  prudente,  se  atre- 
véra  a  romper  o  jugo.  A  Hespanha,  apesar  de  abatida  e 
de  mal  governada,  ainda  aos  olhos  da  Europa  figurava  va- 
ler mais,  do  que  inriia  talvez,  e  contava  sobejas  forças  para 
prevalecer,  se  as  empregasse  acerl;i():imente.  Não  era 
sem  rasão.  pois,  que  D.  João  lY  e  os  que  apreciavam  as 
cousas  de  mais  perto  estremeciam.  A  guerra  promettia 
ser  longa,  trabalhosa  e  arriscada.  As  praças  de  armas 
príncipaes  desmanteladas,  ou  meio  em  ruínas,  exigiam 
reparações  para  cobrirem  a  extensa  fronteira  por  todos 
os  lados  aborta  ;ís  entradas  dos  inimigos.  Não  havia  exer- 
cito, e  paia  o  oiganisar  faltavam  soldados,  armamentos  e 
munições.  Uma  paz  tão  dilatada  tomára  o  povo  imbelle  e 
amigo  do  repouso.  Os  arsenaes  estavam  vazios.  Garecía-se 
de  tudo,  e  a  urgência  do  perigo  recommendava  que  se  in- 
ventasse quasi  tudo.  A  somma  de  sacrifícios,  que  as  ne- 
cessidades da  defeza  impunham,  devia  assustar  os  mais 
audaciosos,  especialm^e  considerando  que  o  paiz  acaba- 
va de  sair  de  um  largo  somno,  e  que  a  vontade  e  a  inicia- 
tiva, paraljsadas,  não  estavam  bem  despertas  ainda,  e  que 


DOS  SÉCULOS  XYU  c  x\m  IM 

a  exaltação  do  Iriumpho  engaiiMN  i  is  multidões,  pintan-  goucimío  ' 
<!u-llies  o  futuro  com  as  mais  risoiilias  cores.  As  resis- 
tências nacioDaes  são  a  pedra  de  toque  dos  povos  digoos 
d'6st6  nome;  mas»  por  isso  mesmo,  sujppõem  n*éá»&  fih 
coldades  elevadas  de  esforço,  de  persevenmça,  de  lèw- 
gação  e  de  heroísmo.  Era  para  temer,  que  uma  nação 
(jiiohraatada  nos  brios,  dissolvida  [ior  intima  e  proftinda 
coiTupção,  e  desfalcada  dos  meliiores  recursoS)  se  q2o 
achasse  com  o  vigorpreciso  porá  as  ostentar,  eeeáeíiiM 
vencar  do  desalento  oom  o  piimeiro  derastre,  tnfidaAdo 
entre  a  quéda  e  a  oontinua^o  da  lota  apeaas  esta  lhe 
apparecesse  rodeada  do  seu  cortejo  de  privações,  mise^ 
rias  e  padecimentos. 

Estas  refle&des  eram  confirmadas  pelosâietoe.  O  estado 
do  paiz,  mesmo  com  mn  regimen  pacifico»  reqoeiia  CÊh 
dados  extraordinários  e  grande  zélo  para  se  mbNW.  Oe 
males,  como  nolainu^,  iiao  se  derivavam  só  dos  sessenta 
annos  da  dominação  estran^^eira.  Os  maiores  vinham  de 
mais  longe.  Tiniiam  nascido  no  segundo  quartel  do  século  * 
xvt»  na  epocba  em  que  a  unidade  monanchícaiDaisfe»- 
plandecéra,  coroada  de  victorias,  e  quasi  arbitra  da  Eu- 
ropa pelo  monopólio  do  commercio  oriental.  Os  erros, 
que  havia  a  remediar,  ns  herpes  que  deviam  extirpar-se, 
tinham  viciado  as  instituições  na  origem  e  naappikação, 
e  enlaçavam  as  raízes  na  existenda  e  noa  iutereaaes  ét 
todas  as  classes.  A  monardiia  portuguezaienascèFa,  ms 
para  ser  a  monarchia  de  438â,  ou  ade  l570?Amofiaroiiit 
de  D.  .Toão  I,  ou  a  du  D.  Sebastião?  A  que  so  fundava  no 
consenso  e  aj)oio  dos  súbditos,  ou  a  que,  senhora  dos  iio- 
mens  e  das  cousas»  aíiirmava  como  dogma  a  iníalMbili- 
dade  do  governo  pessoal?  D.  João  IV  mostrou-se  incli- 
nado a  não  separar  a  sua  causa  da  causa  do  povo,  e  os 
princípios  proclamados  nas  côrles  de  lti4Â  susleniaiaui  a 


564  HISTOhU  D£  POaTUGAL 

cooditiso  coherencía  dos  dois  direitos  mais  contrários  e  oppostos, 

u  direito  divino  e  a  soberania  nacional,  a  legitimidade  e  o 
sufifragio  popular.  O  perigo  passou,  e  os  successores  do 
monarcha  ievautado  nos  escudos  do  paiz  depressa  esque- 
ceram o  segando  principio,  base  do  pacto,  para  só  invo- 
earem  o  primeiro.  Pouco  mais  tarde  a  seieneia  certa  dos 
soberanos  dispensou  os  conselhos  da  nação,  e  de  todos 
os  poderes,  mais  oii  menos  limitados,  que  existiam,  so- 
breviveu só  um,  o  poder  real^. 

A  guerra  estava  ás  portas,  e  o  novo  rei  carecia  de  re^ 
cratar  as  legiões,  que  haviam  de  repeliir  a  invasão.  Pre- 
cisava armar  e  municiar  as  tropas,  guarnecer  e  appare- 
ihar  as  esquadras,  acudir  ás  conquistas  da  Asia,  e  salvar 
o  Brazil,  já  então  a  joia  das  nossas  possessões,  da  oc- 
cupação  dos  iiollandezes.  Estes  esforços  requeriam  sum- 
ma  diligencia,  a  cooperarão  sincera  de  todos,  e  o  pátrio- 
tismo  dos  fiictos  em  vez  do  patriotismo  vazio  das  pala- 
vras. Eraiu  necessários  soldados  e  Lribiitos,  e  o  reiuu, 
exhanrido  de  braços  e  de  cabedaes,  só  por  um  rasgo  de 
abnegação  admirável  no  presente  e  de  confiança  subli- 
me nos  fiituros  destinos  podia  responder  com  os  meios 
indispensáveis  para  manter  a  independência.  Sens  filhos 
mais  robustos  achavam-se  ausentes  na  índia  e  na  Ame- 
rica, disputando  a  posse  dos  presídios  e  do  território,  ou 
engrossavam  nos  Paizes  liaixos  as  fileiras  dos  exércitos 
hespanhoes.  Tratando  das  forças  productivas  inculcámos 
a  sua  attenuação  e  os  motivos  d'eUa.  A  população,  da 
qual  haviam  de  sair  os  navos  terços,  não  augmentára 
quasi  nad;i  desde  4570  até  1640.  Em  1580  talvez  não  ex- 
cedesse um  milhão  cento  e  oitenta  mil  almas,  em  1636 

1  SSo  assto  cmioBOs  os  documentos  e  os  escriptos  da  epocha  ao* 
bn  a  eonciliaçib  do  direito  divino  com  o  difeíto  de  resistência,  de- 
posiçSo  e  eleiçSo  dos  soberanos  reconhecido  aos  povos. 


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j>os  SÉCULOS  xvn  E  xvni 


m 


não  passaria  um  iiiilliâo,  trezentas  mil,  e  em  1640  os  condttOo 
cálculos  fiscaes,  sempre  exagei-ados,  não  ousavam  eleva- 
la  em  grosso  a  mais  de  dois  milhões  ^.  As  fontes  da  pro- 
ducçião  e  da  riqueza  n^o  corriam,  ou  apenas  davam  si- 
gnaes  de  vida.  A  falta  de  braços  deixava  os  campos 
incultos  e  as  artes  desamparnd.is.  A  carestia  das  subsisten- 
naíí,  consequência  das  colheitas  escassas,  apressava  a 
emigração  dos  mais  válidos  e  industriosos,  que  iam  bus- 
car fòra  o  trabalho  e  a  remuneração,  que  a  pátria  lhes 
não  podia  offerecer.  O  deficit  dois  cereaes,  já  tão  sensi- 
vel  na  primeira  metade  do  século  xvi,  continuava  a  exi- 
gir o  emprego  de  grossas  quantias  na  compra  dos  sup- 
primentos  indispensáveis.  No  século  xvii  o  quadro  não 
era  menos  triste.  Os  maninhos  e  baldios  abrangiam  quasi 
dois  terços  da  area  absoluta  do  território,  e  o  desequilí- 
brio entre  a  producção  e  o  consumo  causava  graves  pre- 
occupaçues  ao  governo.  A  declinação  das  artes  fabris  con- 
cordava com  o  estado  deplorável  da  lavoura,  e  talvez  fosse 
mais  longe  ainda.  Não  se  tinham  introduzido  industria^ 
novas,  e  as  que  tinham  existido  sempre  vegetaram  enfe- 
zadas e  rachiticas,  saindo  do  paiz  grande  numero  de  ope- 
rários e  de  mestres  por  não  acharem  occupação.  Era  im- 
mensa  a  decadência  em  todas  as  manifestaçòeò  do  traba- 
lho. O  território  despovoava-se,  os  campos  enredavam-se 
de  mato,  a  propriedade  accumulava-se  em  mãos  estéreis, 
e  famílias  inteiras  de  obreiros  agricolas  e  de  manufactores 

'  João  111  irastav.'!  amiualnientp  p^i  to  rlf  .'i(K):0(^K)  cruziidos 
rni  abastefer  o  paiz  de  trigo,  o  que  em  uma  popuhi»  ãt-  de  um  mi- 
lhão duzentas  vinte  e  seis  mil  almas  suppõe  approxinj;idamente  a 
importação  media  do  õ:000  moios  (41:400  hectolitros)  sem  contar 
os  cereaes  entrados  pela  raia.  Os  capítulos  das  crtrtes  dr  in25  a 
lti;i5  e  das  de  1562  revelam  bem  a  escassez  da  producção  n  aqueile 
tempo. 


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HISTOBiA  DE  PORTUGAL 


GMiwio  morríam  de  fome,  emquanto  o  trigo  de  fóra  soccorria  por 
alto  preço  os  nossos  celleiros,  e  as  mercadorias  estran- 
geiras enchiam  os  armazéns  e  pejavam  os  mercados  K  O 
GODiHieitiG»  arraioado»  todos  os  dias  assignalava  a  sua 
#slagDa0ão,  encurtando  as  operaçQes.  As  íáliencías  soc- 
cêditm-se,  os  capitães  assustados  retíravam-se,  e  os  lu- 
cros líiiii  dirniniiidos  desde  as  guerras  com  a  GraivBre- 
tanha  e  a  Hullaiida  nem  compensavam  a  quarta  parte  das 
perdas  em  navios  e  fazendas,  que  a  luta  custava  todos  os 
aonos  á  praça  de  Lisboa*. 

D*esta  situação  precária,  d'este  definhamento  geral, 
accusado  em  todos  os  syraptomas,  é  que  tinha  de  nascer 
a  nova  situação  creada  pela  gravidade  do  perigo.  O  paiz, 
que  se  insurgira  por  não  poder  supportar  já  o  peso  dos 
tributos  de  sangue  e  de  dinheiro,  ía  ser  obrigado  a  au- 
gmentar  eousíderavelmente  o  imposto,  elevando*o  ás 
proporções  pedidas  pelas  exigências  da  guerra,  e  a  for- 
mar em  todas  as  \w<\\ iucias  exércitos  siifficientes  para  se 
medirem  sem  míerioridade  notável-  com  os  contrários. 
As  côrtes  de  1641  não  desmaiaram  perante  as  responsa- 
bilidades da  obrigaçSo  da  defeza,  e  o  rei,  abraçando-se 
com  o  povo  n'aguelle  momento  supremo,  conheceu  que 
podia  conlíu  cuni  cíle.  O  paiz  rasgou  as  veias  sem  hesitar 
6  subsidiou  as  armas  empregadas  em  sustentar  a  dynas- 
tia  da  sua  escolha  e  a  independência.  Os  alistamentos  vo- 
Httitarios  e  o  recrutamento,  ordenados  em  lai^a  escala, 
se  não  foram  concorridos  com  enthusiasmo,  não  encon- 

*  Vejam-se  os  cap.  i  e  ii  da  part.  \i,  liv.  ví,  tom.  iv  da  nossa 
Historia,  em  que  desenvolvemos  com  largueza  os  traços  conirahi- 
dos  aqui  para  rcaumo  dos  resultados  geraes. 

*  Vejaiii-se  os  cap.  iii,  iv  e  v  do  liv.  vi,  tom.  iv  da  nossa  Btttth 
ria.  Todas  as  testemunlias  sâo  conformes  em  affirmar  a  quasi  oom- 
pleta  estagnação  me  g  antíl. 


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DOS  SÉCULOS  XVii  E  XVIII 


567 


traram  repugnancias  fortes,  nem  opposições  decisWas.  ctoMiHit» 

Mas  o  adversário  mais  funesto  dePortuj^al  nos  primeiros 
dias  da  einaiicipaçàu  ria  *»  estado  de  prostração  a  que 
chegára,  e  a  sua  ignorância  quasi  completa  das  cousas 
militares.  N9o  só  todas  as  forças  estavam  esgotadas,  co- 
mo os  antigos  brios  e  a  indoie  aventurosa  se  haviam  trans- 
formado na  ociosidade.  As  tentativas  do  desditoso  D.  Se- 
bastião, para  reanimar  os  instinctos  bellicosos  da  nação, 
não  passaram  de  um  impulso  transitório  sem  acção  so- 
bre os  costumes  do  paiz. 

A  supplica  das  còrtes  de  Tbomar  em  1981,  pedindo  a 
abolição  das  ordenanças  e  a  das  candelárias  explica  as 
verdadeiras  tendências,  e  dispensíi  quaesquer  rommenta- 
rios.  A  politica  insidiosa  de  Filip|)e  lí  ai)plaudui  então 
as  queixas  dos  novos  súbditos.  Consummada  a  união,  as 
armas,  os  exercícios  guerreiros,  e  os  cavallos  de  guerra 
s6  podiam  servir  de  estimulo  a  tentaçt^es  perigosas  nos 
portiiguezes.  Reduzida  a  escola  marcial  a  guarnição  das 
praças  de  Barberia  e  á  guarda  das  Ibrtalezas  da  índia,  o 
reino,  fechando  os  olhos,  deixou-se  adormecer  no  tor- 
por, de  que  os  povos  raras  vezes  acordam  livres.  Se  nas 
lutas  da  Ásia  e  da  America  cabos  e  soldados  iliustres 
provaram,  que  a  raça  dos  grandes  capitães  não  acabára, 
essa  gloria  liiuitiva  Mniiiu-se  depressa,  oíTuscada  pelos 
iníortunios.  Seui  aruiada^,  depois  de  tão  poderosa  no 
mar,  sem  generaes  e  sem  tropas,  depois  de  tao  louvadas 
façanhas,  a  velba  monarcliia,  sacudindo  o  jugo,  desafiava 
quaêi  desarmada,  o  vulto  ainda  colossal  da  sua  iri^conci* 
liavel  oj  ipressura.  Forcada  a  crear  de  repente  esquadras, 
exércitos  e  ofticiaes,  nâo  \  ncillou,  e  a  loi  tuna  corouu-llie 
a  temeridade  feliz.  A  mariaba,  se  é  possível,  estava  ainda 
mais  decadente,  do  que  a  milícia  de  terra.  Não  havia  na- 
vios, nem  constructores,  e  faltavam  capitães,  mestres. 


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568 


HISTORU  OE  PORTUGAL 


pilotos  e  marinheiros.  Tudo  parecia  aniquilado,  e  para  o 
restaurar  apenas  restava  livre  o  rendimento  do  imposto 
do  consulado.  Pôde  muito,  comtudo,  uma  vontade  deci- 
dida. Em  poucos  mezes  apparelhou-se  nas  aguas  do  Tejo 
uma  armada  de  vinte  vélas,  e  por  um  acaso  providencial 
a  Índia  enviou  a  tempo  o  almirante  mais  apto  para  a 
commandar. 

Os  perigos,  postoque  mais  remotos,  não  apertavam 
com  menor  intensidade  nas  vastas  possessões  snjeilas  ao 
domínio  da  corôa  portugiieza.  Desde  que  os  ini,dezes  e 
Uoilandezes  romperam  as  hostilidades  contra  nós,  a  for- 
tuna voltoa-Dos  as  costas,  e  as  círcumstancias,  já  difli- 
ceís,  aggravaram*se.  Os  allíados,  que  nos  seguiam  vio- 
lentados, separaram-se,  e  os  tributários  saudaram  os 
estrangeiros  como  libei  tadures.  As  iiub>as  íorças  peque- 
nas para  occupação  tão  extensa,  enfraquecidas  e  dissemi- 
nadas, rechassando  novos  e  aguerridos  contendores,  sue- 
comhiram  muitas  vezes,  e  o  espectáculo  das  derrotas  de 
soldados  reputados  invencíveis  reanimou  os  tíbios.  A 
corrupção,  o  esquecimento  dos  deveres,  e  a  quebra  da 
discqjiina  tinliam  aíi  ouxado  o  vigor  da  espada  poilugue- 
za.  Os  lances  arriscados  já  não  tentavam  os  audazes,  as 
armas  caíam  das  mãos  aos  mais  mimosos,  e  mesmo  pe- 
quenas fadigas  excediam  o  soffrímento  do  maior  numero. 
Lutávamos  ainda,  o  com  an  ojo  de  certo  eni  muitos  com- 
bates, mas  a  coaíianca  no  triumpho,  a  aureola  eniíim  das 
grandes  eras  haviam  desapparecido  para  sempre.  O  im- 
pério ultramarino,  desde  qae  perdeu  a  superioridade  ma- 
rítima, condição  essencial  da  sua  firmeza  e  duraçSo,  as- 
sentado em  alicerces  frágeis,  começou  a  alluir-se.  Alraza- 
dos  em  tudo,  despertámos  já  tarde  para  conbecei mos  a 
inferioridade  da  nossa  táctica  e  dos  nossos  meios  de  guer- 
ra, e  para  nos  inclinarmos  quasi  com  sombrio  fatalismo 


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DOS  SÉCULOS  xvn  E  xvm 


debaho  da  m3o  da  adversidade.  Os  instrumentos  mais  condiuao 
activos  da  qnéda  foram  as  esquadras  hollandezas.  mas 
na  íalta  d  elias  seriam  as  iiiglezas,  ou  as  francezas.  A 
nossa  força  residia  nas  muralhas  de  pau  das  naus  e  ga- 
leões. Destruída  ella  ou  attenuada,  soltou-se  peça  por 
peça  a  velha  armadura  do  monopólio  mercantil,  e  o  co* 
losso,  desconjuntado  e  ferido  por  muitos  lados  a  um  tem- 
po, esvaÍLi-se  pelos  membios  mutilados.  Vendo-o  desa- 
bar em  partes,  olhámos  eom  terror  para  o  precipioio  que 
suas  ruínas  iam  alaiigando  a  nossos  pès,  e  não  acredi- 
támos que  o  valor  e  os  sacrificios  ainda  podessem  salva- 
lo.  Os  íempos  heróicos  estavam  findos,  e  os  dias  de  prosa 
nunca  prevalereram  contra  a  teudencia  dos  acontecimen- 
tos. A  nossa  missão  terminara,  e  a  triste  persuasão  doesta 
verdade  pelejava  com  mais  exíto  contra  nós,  do  que  o 
braço  dos  inimigos. 

Succede  que  uma  nação  prostrada  por  calamidades 
súbitas  ou  por  infortúnios  cruéis  e  immerecidos  se  reco- 
bre, repare  os  estragos  padecidos,  e  pela  energia  da  von- 
tade, pela  recta  applicação  de  todas  as  faculdades,  tome 
a  occupar  dentro  em  pouco  o  logar  eminente,  de  que 
successos  infelizes  momentaneamente  a  precipitaram. 
N'este  caso  o  espirito  vence  a  matéria  e  a  attenuação  das 
forcas  physicas  cede  á  acção  das  forças  moraes,  desen- 
volvidas com  acerto  pelas  iniciativas  mais  poderosas 
que  se  c;pnhecem,  as  da  sciencia,  da  capacidade  pratica, 
e  da  moralidade.  Portugal,  desgraçadamente,  sentindo-se 
apoucado  e  desfallecido,  não  podia  em  1580  ter  espe- 
rança de  renascei' -em  segunda  juventude.  Sua  velhice 
precoce  fura  apressada  pelasmesmas  causas  que  emigual, 
senão  mais  adiantado  grau  de  civilísação  interna  mata- 
rakn  outros  povos  fadados,  como  elie,  a  espantarem  o 
mupdo  com  a  lição  da  sua  grandeza  e  da  sua  ruina. 


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370  HISTORIA  DE  PORTUGAL 

Quando  príncipíaniiii  os  dias  da  tristeza,  nada  do  qat 

tornara  o  reino  poderoso  e  temido  existia  quasi.  Con- 
sumira eiu  imibições  estéreis  todo  o  vi^or,  e,  vencido 
DO  orgulho  e  no  [)oder,  ])assou  de  repente  da  summa 
oooâaoça  á  profunda  descrença.  Às  letras^  um  dos  mais 
preciosos  ornamentos  da  sua  corôa,  apagaram-se  com  a 
mesma  rapidez,  com  que  se  encerrou  o  livro  de  oiro  da 
lenda  heróica  de  seus  feitos.  A  fé  ern  Deus  e  em  si,  que 
obrara  prodígios,  amortecida  pelo  eyoismo  e  pela  cubi- 
ça,  desamparou  as  gerações,  que  a  renegavam,  para  se  ir 
sentar  junto  da  urna»  em  que  jaziam  as  cinzas  dos  homens 
que  ella  sagrára  heroes  pela  espada,  ou  do  tumulo  vene- 
rado dos  (pie  tinham  perecido  apóstolos  e  marlyres  da  lei 
de  ChrisLu.  O  ijuadro  da  decadência  inoial  e  intellectual 
nSo  é  menos  doloroso  e  instructivo,  do  que  a  pintura  da 
queda  do  poder  politico  e  militar. 

As  missQes  religiosas  acompanharam  desde  os  primei- 
ros passos  as  expedições  portuguezas,  e  a  palavra  deDens 
não  gaiilioii  menos  dominios  â  coroa  jielo  amor  e  a  per- 
suasão, do  que  o  Ímpeto  dos  soldados  a  fei  ro  e  fugo.  No 
século  XVI  a  cruz  dominava  o  edilicío  gigantesco  do  nosso 
império  ultramarino,  e  nos  sertões  da  Africa,  nas  flores- 
tas da  America,  e  nas  cidades  mais  ricas  do  oriente,  ao 
lado,  e  limitas  vezes  adiante  dos  conquistadores  cami- 
nhavam os  missionários,  os  núncios  do  futuro,  arvorando 
na  mão  o  ramo  de  paz.  Milhões  de  homens  escutaram  a 
sua  voz,  os  templos  catholicos  ergueram-se  a  par  dos  pa- 
godes e  das  mesquitas,  e  a  igreja  rural  alçou  o  campaná- 
rio sobranceiro  às  flexas  dos  arvoredos  das  aldeias  na 
America  e  das  cubatas  africanas.  Expozemos  concisa- 
mente os  progressos  e  os  serviços  prestados  pelas  ordens 
monásticas  n'esta  manifestado  sublime,  e  com  a  mesma 
imparciafidade  apontámos  os  trilhos  viciosos  por  onde 


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DOS  SBGUU»  XVn  K  XYSI 


mais  lai  de  resvalaram  o>  jne,  tísqiiecidu>  dos  preceitos  coocio»*© 
do  mestre»  em  vez  de  plautarem  a  vinha  do  SeAhor,  cul* 
livaram  para  si  a  grossura  da  terra.  Na  primeira  metade 
do  século  XVII  a  moléstia  tocava  o  seu  auge.  Os  institutos 
mais  estimados  pela  sua  paciência  e  austeridade,  deixan- 
do-se  arrastar  pela  corrente  mimuaua,  e  cúmplices  nos 
males  que  deviam  debellar,  tinham  convertido  as  armas 
espirituaes  em  instrumentos  de  poderio  e  de  vingança. 
As  missões,  que  haviam  sido  antes,  e  ainda  eram  uma 
grande  força  moral,  porque  constituíam  uma  das  poucas 
bases  solidas,  eia  que  o  estado  ultraniariiio  se  lirmava, 
eclipsados  o  esplendor  e  a  Iragrancia  das  primitivas  vir-? 
tudes,  serviam  de  theatro  ao  pugilato  das  emulações  e 
invejas,  de  mercado  aonde  a  cubiça  e  a  avareza  disputa* 
vam,  e  de  escândalo  aos  idolatras,  pasmados  da  nudez 
repu;jnante  dos  vicios  e  paixões  dos  que  ii;tvi;iiji  snío 
inculcados  como  luz  da  consciência  e  exemplares  da  vi- 
da. Chegadas  as  cousas  a  este  extremo»  e  começando  a 
cair  os  primeiros  lanços  do  império,  grande  foi  o  presti- 
gio da  doutrina  para  a  cruz  não  l)a(|uear  também,  e  para  o 
facho  da  lei  evangélica  se  nâo  extiimuii'  no  meio  das  tre- 
vas da  corrupção.  A  fé  christà,  mais  poderosa,  do  que  os 
assaltos  da  incredulidade,  e  do  que  os  eifeitos  deploráveis 
da  indííferença  e  da  desmoralisação,  foi  na  catastrophe 
d'aquelle  tremendo  naufrágio  a  única  tábua  de  salvação. 

A  insti'ucçKo*e  o  desenvolvimento  intellectual,  expri- 
mindo não  só  o  grau  de  cultura  de  um  povo,  mas  a  ver* 
dadeira  significação  das  crenças,  das  idéas  e  dos  senti- 
mentos  que  o  animam,  representam  no  seu  complexo  a 
parte  mais  activa  da  grande  iullurncia  exercida  pelas  for- 
ças moraes  sobre  as  sociedades.  Considerada  [lor  esle 
aspecto,  a  decadência  do  paiz  não  nos  apparece  menos 
vísivel  e  profunda.  A  direcção  exclusiva  e  retrograda 


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572 


HISTORIA  DE  PORTUGAL 


dada  aos  estudos  na  universidade  e  nas  aulas  dos  claus- 
tros determinára  dentro  de  uru  período,  relativamente 
curto,  primeiro  o  atrazo,  e  depois  a  completa  declinação 
das  letras.  Quando  o  impulso  vigoroso  das  provideocias 
e  reformas  dictadas  na  primeira  metade  do  século  xvi  se 
amorteceu  e  extinguiu,  pararam  de  todo  os  progressos, 
apagaram-<e  as  intelligencias  privilegiadas,  e  calaram-se 
todas  as  manifestações  notáveis  do  engenho,  suflocadas 
pelas  mordaças  da  in([iiísicão  e  dos  iudices  expurgato- 
rios»  e  mutiladas  ou  degeneradas  pelo  monopólio  do  en- 
sino confiado  aos  jesuítas  e  ás  outras  ordens  religiosas. 
A  intolerância,  que  nas  missões  do  nlti  ainar  revelára  o 
ciúme  <•  a  ambição  da  compaijliia  de.  Jesus,  caracterison- 
se  com  mais  ardor  ainda,  se  é  possivel,  na  violência  com 
que  disputou  no  reino  o  predomínio  absoluto  á  academia 
e  a  todas  as  corporações,  prevalecendo-se  do  valimento 
com  os  soberanos,  da  docilidade  dos  ministros,  e  atè  dos 
grandes  iuíui  tmiios  nacionaes  para  consolidar  a  sua  ohra 
muitas  vezes  tenebrosa.  N'esta  parte  não  a  accusou  sem 
motivo  o  marquez  de  Pombal.  Podia  invocar  o  testemu- 
nho dos  factos. 

Outra  culpa  mais  grave  da  sociedade  foi  o  modo  por 
que  usou  dos  am[)los  fioderes  que  alcançára,  gloriando- 
se  de  fechar  cuidadosamente  todas  as  entradas  ás  inuo- 
vações,  de  immobilisar  as  sciencias,  e  de  cegar  com  a 
veneração  quasi  pueril  das  antigas  praxes  as  novas  gera-. 
ç5es,  em  vez  de  as  esclarecer.  Arbitra  do  bem  e  do  mal, 
optou  pelo  mal,  não  por  erro  de  entendimento,  mas  por 
r<ilcula  artiíicioso.  Allirniou  o  principio  da  auetoridade 
nas  leti^s  contra  a  liberdade  das  opiniões,  e  manteve-o 
com  o  mesmo  rigor,  com  que  sempre  o  sustentou  na  es- 
phera  politica  e  theocrattca,  excluindo,  como  suspeitos, 
os  que  a  nSp  seguiam,  ou  os  que  Ibe  resistiam,  multipli- 


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DOS  SBCDIjOS  XVU  K  XflU 


873 


caodo  em  seus  indicas  o  niunero  dos  iivros  probibidos, 
e  proscrevendo  todas  as  obras  que  rompiam  com  as  tra- 
dições e  o  respeitu  cuiisueluiliiiariu  votado  em  suas  es- 
colas aos  ii adores  incensados  como  oráculos,  apesar  de 
decrépitos,  ou  de  expulsos  de  lodos  os  seminários  illus- 
trados  da  Europa.  O  resultado  foi  condensar-se  a  pouco 
e  pouco  a  obscuridade,  e  desapparecerem  uma  após  ou- 
tra as  iniciativas  fecundas,  baixando  successivamenle  o 
nivel  da  instrurcão,  cujas  íeições  clericaes  cada  anuo  se 
foram  accenluando  mais.  O  justo  castigo  do  governo  e  do 
paiz  pela  abdicação  voluntária  de  se  curvarem  á  dictadura 
de  um  instituto»  com  rasão  accusado  de  aproveitar  todos 
os  elementos  em  benefício  do  próprio  engrandecimento, 
não  se  demorou.  Portugal,  sequestrado  da  comimuihâo 
scientiíica  dos  povos  cultos,  viu-os  todos  adiante  de  si, 
sorrindo  do  paralytico  caído  quasi  em  segunda  infância, 
que  uma  tutela  sem  escrúpulos  amarrava  á  columna  do 
passado.  Na  primeira  metade  do  século  xvii  os  ruinosos 
eflfeitos  d^esle  systema  aiada  se  eucobi  iaiu  em  parte,  mas 
a  preverstão  do  ^n)sto,  a  apathiajnteliectiiaU  e  a  impotên- 
cia invadiam  tudo  a  passos  largos.  As  únicas  carreiras 
abertas  aos  estudiosos — a  ecclesiastica,  a  juridica»  a  me- 
dica e  a  do  magistério  ainda  apuravam  alguns  homens 
distinctos,  mas  o  commum  dos  theologos,  dos  magistra- 
dos, dos  facultativos,  dos  professores  e  dos  Immanistas 
estava  longe  de  recordar  a  merecida  reputação  dos  sa* 
bios  e  dos  escríptores  que  tinham  iliustrado  os  reinados 
de  O.  Manuel,  de  D.  João  III,  e  de  D.  Sebastião. 

Quebrantadas  as  forças  productivas,  e  pervertidas  as 
iiiUuencias  moraes,  as  forças  sociaes  haviam  de  acompa- 
nhar necessariamente  os  outros  elementos  orgânicos  na 
sua  decomposição.  Assim  aconteceu.  O  clero,  a  aristo* 
cracia,  a  realeza  e  as  instituições  conservavam  apenas  o 


174 


Hispimu  BB  pemtmkL 


cmMÊ»  nome  e  as  apparencias  do  que  haviam  sido,  e  do  qae 
deviam  ser,  penfue  a  realidade  ha  muito  que  deixára  de 

existir,  tanto  pai  a  os  homens  conio  iiani  as  cousas.  Osu- 
[jliisiíia  e  a  corrupção  tinham  envenenado  tudo,  e  quando 
se  iMiscava  ver  a  verdade  eocontrava-se  a  ílcçao.  A  igreja, 
que  nas  epochas  atribuladas  da  formação  da  monarchia 
e  da  hita  com  os  sarraoenos»  fôra  Da  meia  idade  a  uoíca 
hiz  e  o  único  freio  moral,  a  igreja  atravessando  as  idades 
perdêra  a  pouco  e  pouco  na  opulência  as  virtudes  dos  dias 
de  provação,  trocando  pelas  pompas  e  delicias  de  uma 
exisleDcia  qoasi  mundana  a  abnegação  cbríslã  e  asestrei- 
tezas  monásticas.  Os  filhos  dos  claustros,  cortezlos,  po< 
Utieos,  alvítristas,  e  mtrígantes  na  maior  parte,  fi^quenta- 
vam  as  salas  dos  princiiics,  aconselhavam  os  reis  e  os 
ministros,  propuniiam  arbítrios  liscaes,  e  encareciam  ou 
desmanchavam  reputações.  Dos  deveres  do  sacerdócio 
e  das  regm  monásticas  tratavam  menos»  e  da  direcção 
espiritual  das  consciências  pouco  ou  quasi  nada  no  sentido 
rigoroso  da  palavra.  O  púlpito,  o  confessionário,  as  aulas, 
o  habito  e  os  votos  pram  para  rlles  meios  e  não  fins.  Va- 
liam-se  d  esses  poderes  para  aflirmarem  a  própria  aucto- 
ridade.  Gasuistas  relaxados,  moralistas  flexíveis,  e  profes- 
sores negligentes  viam  engrossar  a  torrente  dos  vícios  e 
nlo  empregavam  nenhum  esforço  efiScaz  para  susterem  a 
sociedade,  que  se  despenliava.  O  amor  das  riquezas,  o  or- 
gulho, a  lalta  de  vocação  sincera  e  a  ambição  íoraui  à^ 
tentações làtaes  a  que  cederam.  O  clero,  esquecido  de  que 
o  seu  reino  nio  era  doeste  mundo,  estendia  a  mão  aos 
que  devia  condenmar,  e  feiicitava*se  de  ser  mais  do  século, 
do  que  do  temi)lo. 

A  inquisição  ííravava  por  outro  lad(»  o  seu  cunho  si- 
nistro na  Índole  do  paiz  e  em  algumas  décadas  conse- 
guira tranfi£orma*io.  Portu|^  salvou  a  unidade  de  crea- 


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DOS  SÉCULOS  XVU  E  XVIII 


575 


ças,  e  as  novidades  heréticas  não  passaram  a  UroBteiri.  «mmo 

Mas  por  qiit;  preço?  Os  allbctos  mais  santos  e  os  senti- 
mento? elevados,  obliteradas  as  antifras  noções  de  honra 
e  de  virtude,  vacíllavaiu  ao  mais  leve  aceno  dos  mioislros 
do  tribunal  da  fé,  e  vendo  o  seu  livel  tremendo  paasar 
por  cima  de  todas  as  classes  sem  perdoar  ás  mais  altas,  e 
ferir  sem  respeito  o  engenlK».  s  gloria,  e  até  as  idades 
mais  juvenis  sem  distincçãu  de  sexos,  tomados  de  terror 
profundo  descriam  de  si.  e  quasi  que  até  de  Deus.  £m 
nome  da  pureza  da  lei  os  inquiadores  demoliram  afamt-* 
lia  e  com  ella  a  sociedade  civil  e  tornaram  a  moral,  o 
dever  e  a  lealdade  cousas  ronviTicioiíaes.  Os  paes  perde- 
ram a  confiança  nos  liliios,  os  maridos  nas  mulheres,  e  os 
irmãos  nos  irmãos.  O  receio  da  delação  adejava  sobre 
todas  as  casas  e  a  arma  pérfida  da  «aiumnia  e  dos  falâos 
testemunhos  pendia  de  um  cabello  como  a  espada  de  Dâ- 
mocles sobre  todas  as  cabeças.  Áraça  á(y>  iinraeiís  íortes, 
que  immortalisára  a  pátria,  succederam  as  gerações  que 
acclamaram  Filippo  II,  e  que  em  Tbomar  cuidaram  só  da 
segurança  dos  interesses  próprios.  Não  nos  espantemos, 
í)  iV»go  da  expiação  devota,  ateiado  havia  século  e  meio 
peio  santo  uílicio,  nau  abrasava  só  nas  chammas  os  chris- 
lãos  novos  e  as  heresias.  Primeiro  do  que  ludo  reduzira 
a  cinzas  um  após  outro  os  ramos  frondosos  da  arvore, 
que  a  meia  idade  legára  á  renascença  coberta  de  fructos. 
e  de  flores. 

Se  o  clero,  eivado  dos  males  da  e|)ocha,  longe  de  ser 
um  elemento  de  organisação  e  de  moralidade,  concorria 
com  os  exemplos  e  as  irregularidades  para  a  mina  com- 
mum,  a  nobreza,  tornada  aulica  e  ociosa,  nem  servia  áê 
apoio  á  monarchia,  nem  de  base  conservadora  á  ordem 
social.  Mutilada  nos  brios,  e  nos  instinctos  e  quasi  annul- 
lada  como  influencia  politica  desde  o  4'einado  <le  D.  Mte- 


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m 


HISTORIA  MS  FOSTOGAL 


Gopciodo  nuet  sem  a  unidade  de  idéas  e  de  propósitos,  e  sem  os 
verdadeiros  interesses  e  ambições  de  classe,  trocára  o 

culto  fervoroso  da  honra  e  as  ousadas  «esperanças  do  pas- 
sado pt'lo  f|iiirilião  de  poder  b  de  grandeza,  com  que  os 
reis  a  souberam  adormecer.  O  goverQo pessoal,  geueroso 
com  etta  em  tudo  o  qae  não  signtfícava  quebra  de  aucto- 
rídade,  divisão  ou  restrlcção  do  mando  supremo,  ca- 
ptou-lhe  a  obediência,  lisonjeando-lhe  o  orgulho  com  ex- 
terioridadespomposas.  Os  fidalgos,  attrahidos  pelo  sol  da 
corte,  deixaram  os  solares  e  as  quintas  para  acudh  em  á 
capital  seguros  de  medrarem  mais  n'um  dia  diante  dos 
olhos  do  soberano,  do  que  em  muitos  annos  degradados, 
como  diziam,  no  recanto  esquecido  de  uma  província.  Nos 
tins  do  século  xvi  a  maioria  lutava  com  a  estreiteza  dos 
liàeius,  e  a  fuiiesta  expedição  de  1578  acabou  d»'  a  pi  ostrar 
lançando-a  de  todo  nas  garras  da  usura.  Os  commandos 
das  frotas  e  das  naus  da  índia,  os  governos  e  as  capita- 
nias do  oriente  haviam  sustido  â  beira  do  precipicto  não 
poucas  famílias,  cujas  propriedades  hypolhecadas  nos  ren- 
dimentos deviam  unicamente  ao  systema  vincular  o  não 
passarem  para  outras  mãos.  Na  Asia  viam  quasi  todos  os 
fidalgos  do  tempo  de  D.  Manuel  e  D.  João  III  a  terra  pro* 
mettida,  aonde  podiam  ir  ganhar  thesouros  e  gloria,  e 
d*onde  confiavam  voltar  acrescentados  em  fama,  rique* 
zas  V  importância  pessoal. 

A  índia  a  poucos  negou  o  seio,  e  com  o  maior  numero 
mostrou-se  liberal.  Mas  pérfida  nos  mimos,  inoculou-lbes 
a  peçonha,  de  que  mesmo  os  mais  austeros  só  a  custo  se 
livravam.  A  avareza,  os  delírios  do  mando  despótico,  a 
venalidade  e  devassidão  i^obeis  foram  os  laços,  em  que 
a  vencida  prendeu  os  conquistadoi  es,  corrompendo-os, 
e  por  via  d'elles  ao  reino  todo.  O  enfraquecimento  da 
aristocracia  augmentoo  na  proporção  dos  erros,  da  pre- 


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1H>S  SRGULOS  XVU  E  XVllI 


S77 


versão  dos  costumes  e  da  abdicação  voluularia  das  velhas  ^ 
tradições  nobiliárias.  Na  primeira  metade  do  século  xvii 
a  classe  privilegiada,  entregue  á  vida  cortezl,  ou  ás  car- 
reiras aventurosas,  nio  só  nlo  constituiu  uma  força,  como 

se  converteu  em  einl):ir;K;()  pfrave  pai  a  <ks  ^^overnos  pela 
pobreza  uial  disfai  çada  de  bastaiUes  lidalgus,  pela  accu- 
mulação  estéril  de  immensos  prédios  ruraes  uos  morga- 
dos de  muitos,  e  pela  avidez  com  que  todos  disputavam  os 
cargos,  as  mercês  lucrativase  as  doações  de  bens  da  corda 
e  ordens,  essenciaes  para  suslenlareni  as  apparencias  de 
uma  representação  decenle.  Depois  da  união  de  Portugal  a 
Gastelia  a  ausência  da  còrle  e  a  necessidade  de  requerer 
,  as  graças  em  Madrid  com  iargo  sacriflcío  da  fazenda  e  do 
decoro,  roubando-lhes  o  serviço  e  assistência  do  paço  e 
os  favores  directos  dos  monarcbas,*  começaram  a  desper- 
tar no  seu  animo  a  saudade  dos  reis  iiaturaes  e  as  me- 
morias da  independência  immolada  ás  promessas  de  Fi- 
líppe  II  e  ao  ciúme  da  elevação  da  casa  de  Bragança  ao 
throno.  Quando  o  conde  duque,  depois,  rompendo  com 
a  nobreza  de  Portugal,  a  opprimiu,  como  opprimia  a  de 
Ilespanha,  esta  saudade,  ainda  vaga,  avivou-se,  e  avul- 
tando á  medida  que  o  valido  amiudava  as  uííensas  e  as 
extorsões  converteu-se  em  desejo  ardente  de  liberdade  e 
de  emancipação.  Os  resentimentos  aguilhoaram  as  im- 
paciências, os  actos  do  ministro  esgotaram  o  sofiDrimento, 
e  a  necessidade  irremissivel  de  escolher  entre  a  pátria  e 
o  desterro  deslionimo  decidiu,  como  dissemos,  os  mais 
intrépidos  a  proclamarem  a  liberdade  dapatria.  Filippo IV, 
se  Olivares  fosse  o  duque  de  Lerma,  provavelmente  con< 
servaría  a  corôa  de  Portugal. 

A  instituição  monarchica,  privada  dos  esteios  naturaes 
e  concentrando  todos  os  puderes,  demolira  a  pouco  e 
pouco  todas  as  formai  defensivas  das  antigas  liberdades,  e 

TOMO  T  37 


mSfORIA  DE  PORTUGAL 


GoMteoo  reduzira  todos  os  elementos  de  governo  á  expressão  abso- 
luta do  poder  pessoal.  Quando  o  priacipe  absorve  as  forças 
vivas  e  resume  na  sua  individualidade  os  destinos  da  na- 
ção, a  monarchia  é  elle  só,  tudo  se  elimina  ou  desapparece 
debaixo  do  seu  manto,  e  a  corôa  responde  pelo  bem  e 
peio  mai,  engrandecida  com  os  triumphos,  ou  humilhada 
com  os  desastres.  D.  Manuel  e  D.  João  III  reinaram  nos 
dias  de  prosperidade.  D.  Sebastião  sentou-se  em  um  thro- 
po  já  coberto  de  nuvens  tempestuosas.  A  catastrophe  de 
1578  só  apressou  o  funesto  desenlace  preparado  nos  últi- 
mos trinta  annos,  e  com  o  príncipe  caiu  o  reino,  poi  {|ue 
a  vida,  o  espirito  e  a  energia  politica  e  social  se  consub- 
stanciavam pura  e  exclusivamente  na  acção  da  corôa,  e 
porque  fóra  d^ella  nenhuma  força  orgânica  existia  capaz 
de  suster  a  monarchia  desamparada  c  de  salvar  a  naçãu 
perdido  o  rei.  Filippell  sabia  reinar.  Oneria  e  podia  go- 
vernar. Mas  o  poder  em  suas  mãos  era  mais  um  aríete 
assestadi»  pela  ambição  contra  a  segurança  e  a  indepen- 
dência dos  outros  impérios,  do  que  um  instrumento  repa* 
rador,  ou  um  principio  activo  de  reconstrucção.  Porttigal, 
victima  das  lutas  intentadas  em  defeza  dos  interesses  da 
casa  de  Áustria,  não  deveu  ao  soberano  mais  hábil  d'a- 
quella  dynastia  nenhum  esforço  efficaz  para  melhorar  as 
condições  do  seu  estado.  Fllíppe  III  e  Fitippe  IV,  tutela- 
dos por  ministros  inferiores  ás  responsabilidades  da  epo* 
cha,  aggí  avaiido  os  erros  de  Carlos  V  e  de  seu  filho,  pro- 
vocaram a  animadversao  <la  Europa,  a  resii>tencia  dos 
vassallos  e  a  completa  ruína  da  monarchia. 

O  pmisamento  do  duque  de  Lerma  e  do  conde  de  Oli- 
vares era  a  conservação  do  valimento,  a  ampliação  da  pre- 
rogativa  real  para  abusarem  d'ella  illimitadamente,  graças 
á  tacita  abdicação  dos  soberanos,  e  a  repiessão  de  todas 
as  (^^âiçôes  internas,  que  podessem  de  algum  modò 


DOS  SECOLOS  XVU  £  XVIU  S79 

in(|iiielar  o  niniido  exercido  dospíiticamente.  Os  resulta-  Coodnsio 
dos  não  si'  (iemoraram.  A  expulsão  dos  mouriscos  em 
nome  da  unidade  religiosa  roubou  á  Hespanba  os  braços 
mais  industriosos.  Ânegaç9o  aUíva  e  systematica  dos  fóros 
de  povos  ciosos  de  suas  iminunldades  determínon  a  su- 
blevação da  Caliiliiiili.i,  a  revolução  de  Portugal,  e  depois 
os  tumultos  de  Nápoles.  O  freio  da  obediência  passiva 
rompeu-se  desde  que  a  tnfallibilidade  do  governo  pessoal 
deixára  de  ser  um  artigo  de  fé  na  opinião  dos  súbditos. 
Annullado  o  clero,  extincta  a  influencia  da  nobreza  e  ecli- 
psado o  prestigio  da  coroa,  a  dissolução  necessariamente 
havia  de  progredir  c  progrediu  sem  encontrar  obstáculo 
na  resistência  das  forças  sociaes  mutiladas  ou  destruídas. 
A  rebellião  e  a  guerra  civil  puniram  a  incapacidade 
política  interior.  As  derrotas  e  o  abatimento  castigaram 
a  cegueira  e  os  desvarios  da  politica  externa.  Tudo  se 
tornara  fniso,  frngil  e  artificial,  e  por  isso  nas  horas  de 
adversidade  tudo  faltou  ás  mãos  ineptas»  que  tentavam^ 
a  obra  impossível  de  restaurar  o  passado  no  meio  do  ter- 
remoto de  uma  transformação  dolorosa,  mas  inevitável. 

O  cortejo  de  íunccionarios,  de  que  a  centralisação  mo- 
narchica  se  rodeou,  cresceu  de  anno  para  anno,  e  a  má 
escolha  d'elle,  a  par  da  insufficiencia  dos  ordenados,  intro- 
duziu depois  o  flagello  mais  cruel  e  destruidor  de  todos, 
a  corrupção  na  administração  da  justiça.  A  extrema  sub- 
divisão dusjuizos.  dos  tribunaes  e  das  jurisdicções  com- 
pijcava  os  serviços  públicos,  opprimia  as  partes,  e  devora- 
va a  substancia  do  estado  e  dos  particulares.  Os  exemplos 
de  venalidade,  e  as  espoliações  nascidas  d*elles  e  aponta- 
das pelo  povo,  não  os  ignoravam  também  as  auctoridades 
supei  ioi  os.  O  íni  o  cortado  de  ciladas  e  prevertidouas  má- 
ximas e  tendências  era  uma  verdadeira  voragem,  aonde 
podiam  subverter-se  de  um  momento  para  outro  a  honra, 

87. 


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880    HISTORIA  DE  PORTUGAL  DOS  SÉCULOS  XVII  E  ITIU 

coaciaiSo  O  socego  6  a  fortuna  das  famílias.  A  magistratura  iostituida 
para  os  defender  e  resalvar,  perdida  a  integridade  e  o 
conceito,  não  se  envergonhava  de  tolerar,  que  moitos 

juizes,  como  publicanos,  mercadejassem  nos  átrios  dos 
tr  iljiiaaes  aincgijiindo  com  suas  luxuosas  ostentações  os 
íructos  da  inmioralidade.  Envenenadas  as  duas  fontes 
mais  preciosas  da  existência  social,  a  que  manava  do 
templo  de  Deus  e  a  que  brotava  do  tempo  da  justiça,  e 
condensando-se  cada  vez  mais  as  trevas  por  toda  a  parte, 
os  poderes  públicos  e  todas  as  classes  em  vão  buscavam 
com  anciedade  o  ponto,  em  que  poderia  íirmar-se  a  ala- 
vanca para  arrancar  a  pedra  angular  da  degeneração.  Tudo 
fugia  debaixo  dos  pés.  Tudo  enganava  as  esperanças.  Os 
vícios  mais  hediondos  ou  ruinosos,  a  lepra  da  mendici- 
dade e  a  expressão  mais  deplorável  e  triste  do  fanatismo, 
as  superstições  e  a  credulidade  estulta  completavam  o 
quadro  sombrio  da  agonia  da  sociedade*  Chegada  a  este 
ponto  só  lhe  restava  acabar  de  se  decompor  e  desappare- 
cer  de  todo  encorporada  como  provincia  obscura  na  mo- 
narchia  hespanhola,  ou  envidar  as  forças,  que  ainda  al- 
cançai a  conservar  em  um  esforço  supremo ;  e,  começando 
pela  emancipação  politica,  renovar  successivamente  todos 
os  elementos  attenuados  da  vida  social  e  nacional.  Vamos 
ver  agora  até  aonde  a  restauração  de  i640  levou  esta 
dupla  e  árdua  empreza,  e  como  concebeu  e  cumpriu  os 
deveres  impostos  por  elia. 


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DOCUMENTOS  ILLUSTRATIYOS 


DOCUMENTOS  ILLUSTRATIVOS 


I 

CARTA  DE  D.  FRANCISCO  DE  ÂLMEIDÁ  REFERIDA  10  GAPITDLO  IV 
DO  um  VQ  D'IST£  VOIDME 


Ti-anscreveiíios  como  documento  comprobativo,  o  juiio  formado 
por  D.  Franciscx)  de  Almeida  ácerca  do  estado  da  IniÚa  pCKrtafBei» 
no  anno  de  1508,  na  carta  cscripta  pelo  primeiro  vice-rei  a  B.  Ma- 
nuel, inserta  na  obra  das  Lendas  da  índia  por  Gaspar  Correia, 
tomo  f,  p.  II,  pag.  897-923. 

É  um  quadro  severo,  mas  verídico  e  completo  da  physionomía 
jínoTâi  e  guerreira  do  império  nascente  da  Ásia.  N6o  admiia»  que  os 
males  já  tão  fundos  se  aggravassem  com  o  tempo,  e  que  produzis- 
sem os  resultados  que  Diogo  do  Couto  no  Sold€tdo  pratico  e  outros 
escriptores  desenharam  com  tanto  vigor.  A  carta  de  D.  Francisco 
é  extensa,  mas  tão  copiosa  de  noticias  e  de  particularidades,  que 
de  certo  se  não  levará  a  mal,  que  a  demoa  como  provavelmenle 
saiu  da  penna  do  seu  auctor. 

«Moyto  alto,  e  moyto  poderoso  Rey  meu  senhor. 

«Gramdc  paixão  be  per»  mym  escreuer  a  Yossa  Altez»,  porque 
uom  posso  deixar  de  tocar  cousas  que  cortSo  minha  alma,  as  qnaas 
tinha  determinado  deitar  da  memoria  quanto  em  mym  fosse,  por 
vos  melbor  poder  sentir,  como  sáo  todos  os  meus  desejos ;  e  fasi» 
íundamento  que  as  cousas  de  cá  vos  escreuia  Gaspar  Per^,  que 


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08i  DOCUMCiNTOS 

he  muyto  liei  e  verdadeiro  seruidor,  e  hoinem  de  môr  uiarca  «pie 
os  chronifltas;  e  me  parecia  que  acertaua  nysso  Imma  fidalguia  que 
Vossa  Altm  me  auia  de  gabar ;  e  inda  lhe  certeíico  que  era  doente 
«te  Gonr.ilo  Fernandes,  que  as  cousas  de  Nápoles  uom  eacreuia  â 
Raynha,  mas  tinha  dysso  cargo  otttio  Gaspar  Pereira,  pudera  ser 
nom  tal  como  este.  Os  dias  que  Nosso  Senhor  ([uiser  que  cá  esté 
farey  inteiramente  o  que  me  Vossa  Alteza  manda,  e  nom  o  que  me 
defeãide,  postoque  nysso  vá  contra  vossa  alma,  honra,  e  fazenda. 

«Meu  filho  he  morto,  como  a  Beos  aprouve  e  meus  peccados  me- 
rocerSo.  BiatarjSbno  Venezeanos,  e  Mouros  do  Soldfio,  como  poderá 
saber  por  esse  homem  que  ahy  foy  tomado;  da  qual  cousa  ficarão 
os  Móuios  d'esta8  partes  muy  fouorecidos  e  çom  esperança  de  gran- 
de secorro,  e  pareceme  que  nom  podemos  escusar  de  este  anno  nos 
vermos  com  elles  dc  verdade,  que  será  cousa  que  cu  mais  desejo, 
porque  me  pareço,  com  ajuda  de  Nosso  Senhor,  que  os  auemos  de 
somir  todos  nesse  mar,  que  nom  tornem  delles  nouas  a  sua  terra; 
e  SC  Nosso  Senhor  íòr  seruido  que  nysso  acabem  meus  dias,  alcan- 
çarey  o  mór  descanso  que  busco,  que  he  ver  meu  filho  na  gbría,  onde 
nos  Nosso  Senhor  leuará  por  sua  misericórdia,  pois  morremos  por 
elle  o  por  vós.  E  porque  neste  cartipacio  nom  tome  mais  a  es(a 
matéria,  íaço  saber  a  Vossa  Alteza  que  se  os  Mouros  este  anno  nom 
porlorom  comnosco,  como  espero  em  Nosso  Senhor  que  será,  nem 
Jhe  vier  tamanha  armada  como  ellrs  osperáo,  que  será  por  elles  nom 
terem  tempo  depois  de  lhe  darem  esta  desauenturada  noua ;  porque 
pera  o  outro  ano  aja  por  certo  que  se  ajuntarSò  contra  vossas  gen- 
tes  muyto  grandes  poderes,  por  mar  e  por  terra,  porque  do  Malaca 
até  Ormu/  b:i  mais  Mouros  que  no  reino  de  Fez,  e  de  Tunes,  todos 
danefirados  de  nós. 

«À  feitura  iVrstn,  que  sâo  vinte  do  Noui>mLito,  tenho  nouas  de 
Lourenço  de  Brito,  que  lhe  mandara  dizer  Timoja  de  muytas  naos 
«Varmada  que  vem  da  costa  d'além,  d'estas  gentes  a  que  chamão 
Rumes;  e  assy  me  eticreuerSo  que  em  Dio  se  faziáo  naos  e  gales 
da  propia  marca  das  nossas;  porém  quantas  (\nor  qii«>  ellas  sejão, 
eu  sairey  d'aquY  em  fim  de  Dezembro,  e  hiloshey  buscar  a  Dio,  e 
farm'ha  Nosso  Senhor  mercô  achar  o  mar  cheo  delles,  porque  com 
estes  poucos  vossos  criados,  em  que  está  toda  vossa  força,  desar- 
mados, e  alejados  de  feridas,  e  descontentes  dos  setenta  por  centí» 
que  lhe  lá  fazem  de  quarto  e  vintena,  elles  e  eu  mostraremos  o  que 
ha  em  nós. 

«Mandey  desfazer  o  nauio  de  Felippe  Rodrigues,  e  de  Gonçalo 


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illustrativoí; 


1185 


de  Paim,  o.  d'Antfto  Vaz,  e  de  Lucas  d'Afonseca,  e  de  Jaa'Hoiiieni> 
e  de  Lopo  Chanoqua,  que  já  o  outro  ano  nom  puderão  nauegar  se 
nom  Í6T9.  o  muylo  adubín  que  lhe  mandey  fazer,  e  também  porque 
éramos  tão  poucos,  que  repartidos  poios  outros  nauios  ainda  ficámos 

mal  marinhados. 

«Anda  já  no  mar  Pero  Barreto  por  Capitão  mór,  e  com  ellc  Ma- 
nuel Teles,  Antonio  do  Campo,  e  o  nauio  de  Afonso  Lopes,  que  os 
mandey  nmyto  hem  ronr^rfar,  qu»^  vierão  d'Ormuz  muyto  danefi- 
cados  ;  e  tiimbem  anda  Cdm  elles  Pero  Cão  em  hnma  carauelia  que 
cá  íiz,  e  Felippo  Rodrigues  da  E?porn,  que  ( stc  ano  pús  a  monte, 
(•  eoTiciM-tey  de  nouo;  e  Aliiaio  Parauha,  c  Luis  Preto  em  duas  ca- 
rau*'llas,  qiu'  fiz  muylo  h-m  armadas,  e  Simão  Rodrifriins  no  bar- 
guiilMii,  e  as  galés,  que  também  corregi,  em  que  anda  Diogo  Pires, 
l\iy(i  Rdilriínos  th  Sousa,  a  qual  armada  me  anda  esperando  so- 
í»n'  Calecut,  até  me  liir  ajuntar  com  elles  :  e  Xuno  Vaz  Pereira.  f[ue 
mandey  a  Ceylão,  e  Dioí^'o  de  Faria,  (jue  tornarão  em  Outubro,  pra- 
zendo a  Nosso  Senlior,  antes  que  d'aqii\  parta  a  frota. 

ftO  Comendador  Fernão  Soares  neste  Mayo  passado  veo  deman- 
dar (\sta  eosta,  que  era  boca  d  inuerno,  com  tamanho  temporal  que 
nom  p(Vle  al  fazer  senão  colherse  detrás  do  cabo  de  Camorym;  de 
(juc  fuy  logo  anisado,  p  qne  nom  podia  vir  a  Coch^in  senão  cm  Ou- 
tubro. Cuidey  que  era  Afonso  de  Aihoipierípn'  que  vintia  d'Orniuz; 
liz  logo  prestes  huma  carauelia  carre^Mila  di"  mantine-ntos,  e  hum 
grosso  estrem  com  huma  ancora  de  tV»rma.  Arrec(\arão  imn  tos  a 
hida  da  carauelia,  porque  era  já  inuerno,  e  aceitou  a  hida  Gracia 
de  Sousa,  pt)s(oque  era  muy  perigosa,  e  o  leuou  iSosso  Senhor  a  sal- 
uamento,  e  atliou  que  era  o  comendador  que  estaua  em  muyta  ne- 
cessidade, ao  que  lhe  a  carauelia  deu  muyto  remédio,  e  com  car- 
tas que  escreuY  ao  Rey  da  terra,  que  lhe  mandasse  vender  o  que 
ouvessem  mester,  t>stiuerão  á  sua  vontade:  onde  também  enuernou 
Gracia  de  Sousa.  Trazia  a  nao  muitos  liornfus  lendos,  e  alguns 
mortos,  de  huma  nao  de  Mouros  que  abalroou  no  golfam,  com  que 
pelejou  até  noite,  e  nom  lizerão  tão  pouco  quando  sedidla  liuiarão. 

«?í'este  anno  me  forão  dadas  cartas  de  Vossa  Alteza  per  Felippe 
de  Crasto,  e  Jorge  de  M(4lo,  e  Fernão  Soaies,  ás  quaes  hirey  res- 
pondendo, com  prole slação  que  s<'  alguuia  cousa  disser  que  Vossa 
Alteza  venha  em  despraser,  he  que  o  digo  por  vosso  seniiço. 

«Km  huma  me  escreue  Vossa  Alteza  (]U(í  nom  cn^a  cousas  que 
me  digâo,  e  que  de  mym  lhe  disserão  mal.  Noii  me  dera  tanta  pai- 
;íáo  se  vira  que  volo  disserão  e  noni  mo  escreuiejrs,  porque  parece 


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m  OOCDMSNTOS 

(jUt  iióui  tiMiílns  (!♦'  iiiviii  verdadeiro  conhecimento.  Certiíií  o  a  Vossa 
Alti'za  (jUL'  imlã  que  usses  iijaies,  e  outros  piores,  oiivn  a  dizer  de 
aliiiiii.i  j)es8oa,  que  lhe  nom  Uucra  por  ysso  ma  vontade,  porque  as 
oJ)i  a>  juigão  a  pessoa,  nas  quaes  espero  mijilja  saluaçáo ;  e  mais  sey 
que  se  momiura  de  pessoas  íjue  eu  uom  sáo  dino  de  desatai  a  oor- 
rea  do  seu  sapato ;  que  de  Nosso  Senhor  disseram  que  era  feiticeiro. 
D'e8te  capitulo  nom  tenho  raór  aggrauo,  que  do  Comendador,  e  * 
Dom  Rodrigo,  que  tffo  mal  o  entenderão  que  vos  falarão  n'ysso,  e 
escreuerâomo  cá;  epolo  que  Yoset  Altem  em  mym  toca,  como  polo 
vosflo  seruiço,  lhe  bejo  às  reaes  mSos^  mas  por  nenhmiia  d'eBtas 
rmsss  nom  eia  necessário;  e  Vossa  Alteia  em  a]gran  tempo  saberá 
(rysto  a  certeza,  e  achará  que  lhe  fiilo  toda'  verdade. 

«Eú  tinha  escrito  a  Vossa  Alteza  o  porque  nom  deixára  ven- 
der as  brínias  do  Corregedor,  e  que  se  elie  se  aggrauasse  com  ia- 
zão,  que  de  minha  fiizenda  lhas  mandasse  pagar.  Agora  vejo  vosso 
mandado  em  contnúro,  polo  que  logo  as  mandey  entregar  a  seu  pro- 
curador, e  pois  assy  quereys  vá  minh'alnia  com  a  vossa,  porque  eu 
certefico  a  Vossa  Alteza  que  os  Judeus  de  cá  nom  o  erâo  senáo 
d'ouvida:  com  algumas  mentiras,  que  a  molher  de  Gaspar  sabia, 
vm  sua  ley  ás  cegas  os  fazia  crer ;  mas  agora  pola  doutrina  d'e8ta$ 
brtuias  sáo  letrados  enteiros. 

•O  lacre,  que  Vossa  Alteza  diz  que  lhe  mande,  será  marauilba 
auerse,  porque  estas  naos  partçm  cedo,  e  as  naos  que  o  trazem  de 
Pegú,  e  Hartabáo,  vem  tarde:  espero  por  boa  soma  d*elle,  porque 
o  tenho  mandado  trazer,  MercÔ  me  fará  Vossa  Alteza  em  mym  ter 
confiança,  que  os  cousas  que  de  cá  nom  mando  nom  he  por  esque- 
cimento, nem  mingoa  de  boa  diligencia,  que  bem  entendemos  cá 
quáo  boas  sáo  lá,  mas  os  Mouros  per  muytas  partes*  andâo  estro- 
vando  as  cousas  de  vosso  seruiça 

«E  assy  Vossa  Alteza  me  manda  que  a  pimenta  vá  limpa  e  se- 
qua.  Sey  que  se  contentou  da  que  leoou  Tristão  da  Cunha,  e  muyto 
mais  da  que  agora  vai;  prazerá  Nosso  Senhor  que  sempre  assy 
será.  E  porque  Vossa  Alteza  me  mandou  que  o  pezo  se  fizesse  com ' 
nossas  balanças  e  pezos,  eu  o  tenho  acabado  muyto  com  vontade 
d^EIBey  de  Cochym,  e  doe  mercadores,  com  bons  izames  e  alealda- 
qSo,  e  achámos  que  péza  o  bár  de  Codiym  tres  quintaes  e  trinta  ar- 
ráteis do  pezo  velho,  e  vos  custa  o  qumtal  mil  e  quinze  réis>  o 
muyto ;  e  dasse  tal  auiamento  que  com  duas  balanças  até  véspera 
pesarSo  mil  quintaes.  Trago  á  carga  paraos  grandes  com  gente  da 
terra»  por  nom  quebrantar  tanto  a  gente  do  mar,  que  tem  muytos 


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nXUftTBATTVOS 


trabalhos  no  corregimento  das  nãos,  que  se  aquy  nom  chegassem 
Uo  daneficadas  cm  vinte  dias  lhe  daria  carga,  e  parterião. 

«Este  Janeiro  mandey  noteíicar  com  pregões  que  todos  trouxes- 
sem pimenta,  e  que  logo  lha  pagarião  na  mão;  de  que  os  Mouros 
ouveráo  pezar,  porque  sáo  elles  regatões  delia,  que  os  donos  da  pi- 
menta são  Gentios,  e  a  vendem  aos  Mouros  liada  a  troco  de  merca- 
dorias; e  liz  ysto  porque  cuidassem  í^iles  que  tinhamos  nós  grandes 
Ihcsouros,  e  miiyta  certeza  de  virem  muytas  naos,  de  que  se  scguio 
cpie  tiazeirt  'itrora  os  Gtjatios  a  pimenta.  Onfem  veo  hunia  Iraua, 
que  he  geale  baixa  anlif  elles,  e  trouxe  pimenta,  de  que  leuou  na 
mão  quinht-ntos  cruzados,  e  seu  cobre,  que  foy  cousa  bem  Tiova 
antre  estas  gentes.  Esta  he  a  maneira  por  onde  os  Mouros  se  podem 
lançar  da  índia,  que  ser;i  quando  Nosso  Senhor  qnizer. 

«E  assy  me  diz  Vossa  AHeza  que  ouve  prazer  da  toni  u  la  de  Qui- 
loa,  e  Bonibara.  Assy  lie  de  crer,  pois  a  obra  era  vossa,  mas  eu  nom 
cuidaua  que  me  daria  achaques  polo  pouco  fpie  pera  vós  se  arre- 
cadou; mas  pódt'  ser  que  mereci  o  acoute  que  me  Deos  deu,  dos 
muytos  juramentos  sobejas  deligencias  que  nysso  mandey  fazer. 
Certo  be  que  se  me  nom  obrigara  vosso  mandado,  que  era  fazer 
Angediua,  e  o  principal  a  carregação,  eu  me  deixara  estar  devagar 
em  Bombaça  carregamlo  as  naos  de  riqueza;  mas  nom  passára  á 
Índia,  assy  como  o  íazem  as  vossas  armadas,  e  os  Capitães  deitão  a 
culpa  aos  pilotos.  E  o  proucito  que  me  daliy  veo  já  o  Vossa  Alteza 
lá  sabeiá  por  quem  leuou  as  nouas;  mas  dizem  cá  cjue  moteja  Vossa 
Alteia  lá  com  quem  cá  achámos  os  furtos  nas  mãos,  que  nom  é 
bom  exemplo  pera  os  que  pelejão,  e  nom  iiirtão. 

«Assy  me  diz  e  manda  a  maneira  que  hey  de  ter  no  pagamento 
d'esta  gente,  e  defende  que  se  nom  tome  o  direito  da  carga.  Porque 
as  cousas  estão  cá  como  Vossa  Alteza  nom  cuida,  nom  soube  a  ma- 
neira que  nysso  tiuesse  ;  porque  s(í  comprisse  vosso  mandado  ao 
pé  da  leti-a  por  ysso  merecia  castigo,  porque  está  cor\n  que  destroia 
vosso  seruiço.  Então  ajuntey  vossos  Capitães,  e  criados,  e  oíTiciaes,  e 
acordámos  que  compria  a  vosso  seruiço  o  que  lá  vai  feito,  porque 
pera  tamanha  necessidade,  como  cá  vai,  a  prata  das  Igrejas  e  di- 
nheiro dos  órfãos  seria  justo  tomar.se,  quanto  mais  o  dinheiro  da 
carga,  em  que  Vossa  Alteza  íaz  rnrrcf^  a  quem  dá  lugar- 

«Assy  me  manda  Vossa  Alteza  que  vossas  despezas  faça  com 
toda  prouisão.  Quando  verdadeiramente  acabar  dc  mym  a  verdade 
pesaribeha  de  me  ter  escrito  a  mór  parte  d'estas  cousas.  E  assy  me 
dis  na  mesma  carta  que  nom  guardey  seus  segredos.  JNom  me  lem- 


m 


DOCDMEMTOS 


ijra  que  os  iiuiiqiia  S()iil)essf»  vossos.  Soy  que  ysto  dirá  Vossji  Altezii 
por  ají^rauos  d(;  Lourenço  de  Brito,  que  elle  quá  dizia  de  praça. 
Mostreyllie  roino  vinha,  porque  das  mercês  que  Vossa  Alteza  faz 
hí»  hcni  que  vos  li;  ai  as  j^a-aras.  »•  também  de  "vós  se  aijTaucin,  qin' 
tiidn  jiodeys  emendai";  que  será  ^Tande  desseruiço  vosso  ng;Jiaua- 
rt*nise  de  mym,  porque  seria  causa  que  com  minha  imisade  vos  uom 
seruissem  fielmente.  Ou  o  deria  Vossa  Alteza  por  Pero  Fernandes 
Tinoquo,  a  qu»'  mostrey  em  pratica  o  capitulo  do  vosso  regimento, 
porque  era  elle  homem  de  má  hngoa,  e  escandaiisaua  a  gente  cfnii 
lhe  dizer  que  eu  nom  compria  vossos  mandados;  ou  o  diz  Vossa 
Alteza  por  Vasco  (iumez  d'Ahreu,  e  Jo5o  da  Nona,  que  se  aíígraua- 
uâo,  e  diziSo  que  vinlião  por  Capitães  geraes,  e  eu  lhe  mostrey  a 
maneira  em  que  vinhâo. 

«Assy  me  manda  Vossa  Alteza  que  se  paguem  primeyro  os  ma- 
reantes, e  que  se  ponha  a  ditta  carta  na  feitoria  pera  cá  non  alle- 
gar  inorancia.  Assy  o  fiz,  que  logo  a  lá  mandey.  Des  agora  digo  a 
Vossa  Alteza  que  todalas  cousas  que  de  lá  vem  íeitas  são  nmy  íóra 
de  propósito,  e  mnyto  i)em  acertadas. 

«  Assy  me  luaiidá  Vossa  Alteza  os  pagamentos  que  fiz  na  tomada 
de  Quiloa,  e  Bombaça,  porque  teue  dysso  contentamento,  e  das  ou- 
tras cousas  que  cá  fizemos  da  guerra.  Taes  foram  elias  que  nom  se 
deuia  Vossa  AUcza  de  esquecer  dos  galardões,  e  mercês,  que  mere- 
cem os  que  dahy  íicarão  alejados,  e  descontentes  poios  eu  nom  po- 
der satisfazer.  Os  aguardeci mentos  que  Vossa  Alteza  por  ysso  manda 
a  meu  filho,  e  a  vossos  criados,  Deos  seja  louvado,  que  elle,  o  a 
mór  parle  delles  já  vos  nom  hão  mester :  espero  na  misericórdia 
de  Nosso  Senhor,  em  que  ponho  toda  a  esperança,  que  elle  mU 
daiá. 

«Assy  me  manda  Vossa  Alteza  que  lhe  escreua  os  pagamentos  e 
despezas  que  são  feitas  depois  que  cá  somos  nesta  terra.  Se  agora 
tomasse  essa  occupação  nom  entenderia  em  outras  cousas  que  mais 
releuão.  As  cartas  mandey  a  vossos  officiaes  que  volas  escreuão» 
pois  elles  as  fizerSo ;  sómente  digo  que  nom  he  vosso  seruiço  man- 
dardesme  que  estas  cousas  vos  escreua,  porque  eu  tenho  a  mór 
Gousa  que  ha  no  mundo  antre  as  mãos  pera  nella  entender,  e  abas- 
tarmehía  pera  todo  o  tempo  da  carregação  entender  nos  aggrauos, 
e  males,  que  fazem  os  vossos  Capitães  á  gente  em  suas  naos,  e  assy 
aos  que  estSo  na  costa  d'alem,  que  todos  me  pedem  justiça,  e  eu 
nom  lha  faço,  porque  nom  digão  que  sou  mais  castigador  das  cou- 
sas que  Vossa  Alteza. 


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ILLUSTBATIVOS 


689 


«£in  outra  carta  me  diz  Vossa  Alteza  que  lhe  nom  escreuy  da 
carta  que  fiz  ao  Rey  de  Quiloa,  e  que  a  íiz  sem  condições.  Bem  pa- 
Túcet  que  vos  nom  lém  minhas  carias,  de  que  eu  cá  tenho  o  tres- 
lado,  c  Gaspar  Pereira  era  presente  que  eu  enuiey  a  Vossa  Alteza  toda 
a  fónna  delia :  c  se  a  mandardes  ler  achareys  que  sem  a  quebrardes 
lhe  podeys  mettor  lotblos  tributos  que  quiserdes;  que  por  elle,  e  a 
terra,  assy  ficar  destroida,  pareceo  bem  a  todos  nom  lhos  pedir,  porque 
os  elle  iioiii  podia  pagar,  que  os  Reys  de  quá  sSo  fracos  pera  pagar. 
Agora  lhe  mandi-y  quo  pagasse  a  metade  de  todos  seus  direitos,  e 
será  muyto  se  chegarem  a  eem  cruzados.  E  o  tributo  que  Vossa  Al- 
teza diz  que  o  outj'o  Rey  vos  pagaua,  bem  deue  ter  sabido  que  elle 
veo,  sobre  vossa  verdade,  fahu-  com  o  ahniraiite  dentro  ao  l)atel, 
.1  qual  llit;  o  almirante  uoui  guardou,  e  o  nom  leixou  sayr  do  batel 
alô  que  se  THMu  resgatou  por  aquilio  a  que  chamou  tributo,  e  o  Rey 
lhe  deixou  cm  penhor  Mafamede  Arcomc,  que  agora  íizemos  Rey, 
porque  lhe  queria  ma!  porque  lhe  aconselhou  que  sc  liasse  do  al- 
mirante; o  qual  Maíaiiiede  Arcome  íoy  meítido  sob  a  tilha  do  ba- 
tel, e  outros  coiu  elle,  dond^  nom  sayríU)  até  que  nom  pagou.  Nom 
cuido  que  peco  em  dizer  *  str  mal  do  almirante,  porque  vós  mo  fa- 
zeys  dixer,  e  cumpre  a  vosso  seruiço  dizemos  as  verdades,  e  Vossa 
Alteza  todas  as  saber. 

wAssy  me  declara  Vossa  Alteza  as  mercês  que  me  tem  feitas,  peio 
que  lhe  bejo  as  reaes  mãos,  inas  m  ^riuido  as  cousas  de  lá  vem,  eu 
sey  bem  quanto  lie  o  que  de  ca  leuarey  se  íor  viuo,  e  acerca  das 
joyas  que  posso  tomar  iá  saiaerá  Vossa  Alteza  as  que  tomo,  e  as  que 
os  outros  tomSo. 

«Em  outro  capitulo  f;tla  Víiss;i  AIIl'z;i  aos  ordenados  que  tem  os 
ofBciaes.  Eu  nysso  nom  boli,  {)or([iit^  ine  pareceo  espantosa  cousa 
tirarlhe  eu  o  que  lhe  vossos  Capitães  po/enlo,  tendouos  elles  bem 
servido;  c  mais  porque  suas  fazendas,  e  dos  Capitães,  lá  hião  a 
vosso  poder,  pareceo-mc  mais  onesto  que  vossos  officiaes  lá  o  com- 
petissem, que  eu  cá  com  elles  andar  em.  contendas. 

«Também  me  loca  acerca  dos  escravos  que  puz  em  soldo.  Ja 
muytos  são  defuntos  com  seus  donos  seruindo.  Eu  o  fiz  com  justos 
respeitos  do  bem  de  vosso  seruiço.  Os  respeitos  porque  Vossa  Alteza 
os  desfez  nom  sey  quaes  forão. 

«Assy  me  castiga  ácerca  dos  perdões  que  cá  dey.  Eu  os  daua 
pelo  poder  da  vossa  carta,  que  mo  concedia  assy  como  Vos>;i  Keal 
pessoa,  ass>  najusíiya,  como  ua  fazenda.  Os  que  íiz  foy  polas  obras 
que  vi,  e  traballios  táo  suados,  dinos  de  mencé.  D'aquy  o  nom  fa- 


m 


DOCUMENTOS 


rey  wm»,  pois  me  tmws  o  poder  que  me  désles,  poios  seraiços  qne 
vos  ííe,  e  o  de  lleno,  que  está  na  ilha  de  San  Tomé,  perdoa  degre- 
dos pera  sempre. 

vAssf  me  culpa  dos  soldos  que  pago  d'antemão.  He  verdade  que 
o  fls  a  Dom  Aluaro,  porque  nom  tinha  com  que  carregar,  e  fae  pessoa 
de  merecimento.  Lembro  a  Yossa  Alteza  que  he  homem  de  sete  mil 
réis  de  moradia,  e  tem  tanto  soldo  e  quintaladas  como  quem  nada 
tem;  e  íiz  conta  que  lá  hía  a  fazenda,  e  que  Vossa  Alteza  manda- 
ria nysso  o  que  fosse  seu  seruiço,  pois  todos  somos  vossos ;  e  fôra 
bem  qne  vos  lembrára  a  este  propósito  que  á  gente  de  cá  se  deuem 
dons,  e  tres  annos  de  soldo,  e  que  morrem  de  feridas  e  trabalhos, 
e  eu  os  sostenho  e  conibrto  no  vosso  seruiço  á  custa  do  meu  san- 
gue, e  ás  vezes  com  o  meu  dinheiro,  e  neste  cmprestido  entrm 
Lourenço  de  Brito  e  Manuel  Façanha. 

«Nos  vossos  Capitães  que  acrecentey  soldo^  e  quintaladas,  foy 
porque  quando  Vossa  xVlteza  ordenou  huns  a  sete,  e  outros  a  cinco 
mil,  foy  porque  os  Capit:ios  crSo  escudeiros,  ainda  que  os  outros 
noiti  eram  de  Lacerda,  o  dppois  s(;  s<^guio  imidaremse  cá  por  capi- 
tses  de  carauellas  Pero  Barreto,  Nuno  Vaz  Pereira,  e  outros  fidal- 
gos. Pareeeome  erro  andarem  em  ruins  nauios,  e  pelejarem  melhor 
que  os  escudeiros  das  naos,  e  auerem  menos  ordenados.  D'aqoy  o 
liom  fuey  mais,  pois  me  tiraes  o  poder. 

(rNa  culpa  dos  trespassamentos  que  mando  íSazer,  e  dou  licença, 
dos  oflioios,  e  vendas,  o  consentia  porque  os  passauâo  a  outros  que 
erSo  mais  sufficienfrs  p^m  os  cargos,  e  porque  nom  custauâo  mnís 
huns  qne  outros,  que  todos  eram  vossos  criados,  senuo  quando  eiies 
os  engeitau.lo;  e  meu  regimento  me  nom  comprehendia,  porque  em 
tudo  me  daes  que  faça  o  que  mo  hem  parecer. 

«Dh  Vossa  Alteza  das  mercadorias  defesas,  que  raandey  pagar 
em  Augedina.  Ouvp  noticia  d'alpru!nas  que  vinhão  nas  naos,  e  por- 
que era  sobre  tanianhoí?  seruicos,  ouve  que  nom  era  boa  fazenda 
pera  Vossa  Alteza  leuar  penas:  entíío  mandey  apregoar  que  as  dcs- 
rohris?ieni,  e  as  entrefrassem  ao  feitor,  em  que  lhas  mandey  pagar  o 
rreo  (jiie  foy  pniira  rnu<:n.  bini  nporn  r>  fnzrnda  de  Ruy  de  Moii- 
ilanbc'!, (|uo  lie  dcss.-is.  Apostarey  (\\h'  U\:\  idíiihIc  Yrmf=n  Alteza  tomar, 
porque  num  lif  l  azão,  pois  tanta  perdeo  em  vosso  seruiço  por  culpa 
dos  vítssos  Capitães. 

«Quanto  á  paz  de  CouJão,  eu  Iba  aceifey  porque  uiuyfas  vezos 
me  rogarílo  com  eiJa,  e  nom  poi^qiie  aly  m»'  parcc  (^ssr  próiicilosa  a 
vosso  seruiço;  sómente  o  iiz  porque  sabia  que  Vossa  Alteza  íolga- 


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IPLLSTIIAÍIVOS 


991 


ria  com  ysso.  E  os  mercadores  de  lá  oontratSo  com  os  d^aquy,  que 
iodos  sSo  parentes  e  iimSos,  e  o  fsaem  todos  com  dfessimiilaç^^, 
porque  ElRey  de  Gochym  lhe  pésa  inuyto  com  ysso,  e  nom  por  que- 
rer mal  a  yosso  seruiço,  mas  porque  quer  bem  a  seu  proneito  é 
honra  de  sua  terra;  e  fiz  eu  o  que  nom  enteniãUa,  porque  conheço 
a  desconfiança  d'esta  gente.  Escusada  he  outra  carregação  ibia  d'a- 
quy,  porque  em  Gochym  ha  pimenta  que  nunqua  dls  Portugal  tirtto 
naos  que  acabem  de  leuar,  e  as  outras  especiarias,  e  ricas  drogas, 
Tiriao  a  esta  costa,  e  aquy  a  Goctiim,  mas  nom  ousSo  per  indlud- 
mento  dos  Mouros  que  lhe  mettem  meda  Eu  tenho  mandado  a  Ma- 
laca,  e  áquellas  partes  cartas,  e  seguros,  e  comtudb  nom  vem.  , 

«Acerca  da  fortaleza  lá  em  Gouláo,  quantas  mais  fortalezas  tíuer- 
des  mais  fraco  será  vosso  poder:  toda  vossa  força  sga  no  mar, 
porque  se  nelle  nom  formos  poderosos,  o  que  ITosso  Senhor  defen- 
da, tudo  logo  será  contra  nós,  e  se  o  Rey  de  Gochym  quizesse  ser 
desleal,  logo  seria  destroido,  porque  as  guerras  passadas  eriio  com 
hêstas,  agora  a  temos  com  Yenezeanos,  e  Turquos  do  BoldSo. 

«Quanto  ao  rio  de  Gochym  j;i  escreui  aYossa  Ãlteza  que  em 
Cranganor  seria  bom  um  castello  forte,  em  huma  trauesusa  de  hum 
rio  que  vai  para  Calecut,  porque  lhe  tolherá  que  nom  passe  M  ttuni 
alqueire  de  pimenta.  Entendamos  com  o  que  temos  no  mar,  que  sSú 
estes  nouos  inimigos,  que  espero  na  misericórdia  de  0eos  que  se 
lembrará  de  nós,  que  tudo  o  mais  he  pouca  cousa.  Saiba  certo  que 
em  quanto  no  mar  fordes  poderoso  tereys  a  índia  por  vossa,  e  se 
ysto  nom  tiuerdes  no  mar  pouco  vos  prestará  fortaleza  na  ttorta.  E 
no  lançar  dos  Mouros  da  terra  bem  lhe  achey  o  caminho,  mas  he 
longa  a  historia,  que  se  fará  quando  Nosso  Senhor  quizer  e  for  ser* 
uido. 

«Quanto  á  pimenta  e  drogas  que  v8o  a  Lenante,  saiba  Yossa  Al> 
teza  que  nom  vflo  d*esta  costa,  senSO  de  Malaca,  e  ÇanMtfa,  e 
dir,  onde  nace  muyta  pimenta  longa,  e  redonda ;  o  muyto  bem  sey 
per  onde  passa,  e  em  que  tempo.  At^ora  nom  pmte  míutdar  tolher 
a  passagem,  porque  nom  tenho  o  principal. 

«Quanto  a  me  mandar  que  entenda  ilas  cousas  de  Mliftca,  se 
Yossa  Alteza  fosse  bem  informado  de.inym,  o  do  que  cá  fihço^  eStú- 
sareys  mo  lembrar.  Destruamos  estas  gentes  nonas,  e  assentemos  a& 
velhas,  e  naturaes  d'esta  terra  e  costa,  e  depois  vamos  ver  terras 
nonas,  e  tudo  se  li  forá  quanto  cá  for  o  campo  noesc,  que  elles  nos 
rogarSo  com  elks;  porque  daquy  a  IMaca  he  monção  apartadk,  e 
tempos  Ihnitados,  adnersos  ttuns  doa  outtos. 


r 


DOCUMENrOS 

«Quanto  as  i  mus  iv  1  Orniiiz  In  verá  Vossa  Alteza  como  ficão,  e  o 
estado  Pin  qut*  as  tieixoii  Artbiiso  (TAlboquerque,  que  perdi if  Deos 
a  Tristão  da  Cunha  parque  o  nom  ti'0uxe  á  índia,  que  totiu  \  u>s(j 
seruiyo  fôra  acabado,  e  souberão  elles  na  costa  d  além  que  estaua- 
mos  cá  todos  em  guerra,    esquecenlos»^  dvsso. 

«Ácerca  das  cousas  do  imr  Roxo,  de  ((ue  diz  que  o  nom  auisey, 
mal  posso  eu  dar  conselho  do  que  lioai  sey,  c  o  que  agora  entendo 
he  que  desemparaes  o  de  cá  por  mandardes  lá,  porque  atinada  que 
ao  Estreito  ha  de  hir  ha  d'entrar  coiu  leuantes,  que  sâu  em  DeziTii- 
bro  e  Janeiro,  e  tornar  em  Março  com  os  ponentes,  o  se  lá  q^iizer 
enuemar  estará  até  Agosto,  e  estarão  em  mu}  tu  risco  de  os  touia- 
reui. 

«Culpame  Vossa  Alu  za  que  vos  nom  escreuy  o  ponpie  nom  niau- 
dey  o  Tinoco  a  ISarsinga.  Parece  que  ou  daes  minhas  cartas  a  queui 
Yolas  nega,  ou  coju  vossos  grandes  cuiihidos  se  vos  passão  da  me- 
moria. Manday,  Senhor,  saber  como  jsso  lá  anda,  porque  eu  darey 
testemunhas  que  volo  escreuy,  e  Gaspar  Pereira  me  deu  o  treslado 
das  cartas  que  lá  forão,  e  me  disse  que  em  seus  cartipaclos  volo 
muyto  escreueu ;  e  per  conselho  de  todos  o  nom  mandey. 

«Culpame  Vossa  Alteza  que  o  nom  auiso  das  cousas  de  cá.  Todo 
o  necessário  lhe  tenho  meudamente  escrito,  afóra  o  que  vay  no  tom- 
bo de  Gaspar  Pereira.  O  casteUo  de  Cochym  be  feito  de  pedra  e 
cal,  assy  como  o  diiSo  esses  que  de  cá  vão ;  tem  a  parla  pera  o  lio, 
onde  tem  viiaçSo  de  melhores  ares  que  os  paços  de  Sintra. 

«Culpame  Yoesa  Alteza  q[ae  voa  num  escreuo  os  naiiíos  que  cá 
faço,  e  à  i^partíçâo  qué  faço  delles.  Eu  cuidaua  que  Gaspar  Pereira 
Wo  escreuia.  Parece  que  se  occupou  em  outias  cousas»  e  esquece- 
rilolhe  esf outras,  mas  atrás  digo  os  que  liz,  e  desfiz;  e  pois  'arma- 
da em  que  me  mandaes  hir  nom  yem^  com  os  que  tenho  luremos 
buscar  estas  gentes  a  Dio,  e  será  de  nós  o  que  Nosso  Senhor  for 
servido. 

«Já  Yoflsa  Alteza  per  minha  carta  terá  sabido  que  fiz  o  casteUo 
de  Gananor,  e  desfiz  Angediua.  €k»n  o  casteUo  de  Gananor  os  Ifou- 
ros  'se  muyto  agastaria  Se  Yossa  Alteza  had'entendier  nas  cousas  da 
índia  de  Terdade,  nom  he  seu  seruiço  entender  em  outros  gueneí- 
jOes,  e  se  eada  dia  se  lá  ha  de  annar  uma  eniiençso,  sem  enfoima- 
çSo  do  que  cá  Tsi,  perdersevosba  tudo  em  pouco  tempo.  Isto  digo 
a  Vossa  Alteza  por  meu  descargo,  postoque  sey  que  tos  ha  de  des- 
piaar,  e  lho  escieuo  por  nom  ficar  comigo  a  culpa. 

«E  per  Diogo  Mendes  Correa,  e  TristSo  da  Cunha,  lhe  dou  toda 


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ÍLLLJ6THATIV0S 


'enformaçSo  de  Calecut,  se  elles  nom  mudarem  a  embaixada,  como 
fez  aos  Õipltães  da  outra  costa,  que  per  minha  crença,  que  leuaua, 
Uie  disse  que  se  fossem  a  Çacotorá^  e  eu  mandaualbe  dizer  per  con- 
selho do  mesmo  IVistSo  da  Cunha,  que  inda  que  Tossa  Alteza  man- 
dasse a  alguma  parte,  que  o  nom  fizessem,  mas  que  se  viessem  ci 
que  compria  a  yosso  seruiço. 

<0  aljoíar,  e  pérolas,  que  manda  qua  lhe  enuie,  nom  as  posso 
auer,  que  as  ha  em  GeylSo  e  Caille,  que  s2o  as  fontes  delias:  com- 
pralashia  do  meu  sangue,  e  do  meu  dinheiro,  que  o  tenho  porque 
vós'  mo  daes.  Os  sinahafos,  porcellanas,  e  cousas  d'estas  jaez,  sSo 
mais  longe.  Se  meus  pecados  me  cá  tiuerem  mais  tempo,  trabalha- 
rey  por  auer  tudo.  As  escravas,  que  me  diz  que  lhe  mande,  tomSo- 
se  de  prezas,  que  as  gentias  d'estas  terras  são  pretas,  e  mancebas 
do  mundo  como  chegAo  a  dez  aimos. 

ffÇoíala  he  tSo  grande  cousa  como  lá  dizíSò :  eu  vola  tinha  gi^-  * 
jeada  com  Nuno  Vaz  nella,  eYossa  Alteza  mandou  o  que  foy  vossa 
vontade.  A  fortaleza  e  feitoria  que  em  Moçambique  mandastes  fazer 
nom  era  vosso  seruiço,  porque  os  que  hy  estiuessem  resgatando  em 
Angoja  tem  praçaria  com  os  de  Çofiila.  Ouve  esta  enformaçSo  dos 
que  li  estauAo;  saibao  Vossa  Alteza,  e  achari  que  lhe  falo  verdade. 
.  K  nom  prouejo  ÇSofela  com  GapítSo,  que  elle  ha  bem  mester,  nem 
dou  regimento  aos  de  Moçambique  do  que  &çao,  nem  GapitSo,  por- 
que quando  de  cá  chegasse  o  que  eu  mandasse  chegaria  o  que  Vossa 
Alteza  enuiasse,  que  o  botaria  desonradamente  fóra,  e  minha  obra 
ficaria  embalde.  Bem  he  que  venháo  vossos  GapitSes  ordenados 
como  em  Moçambique  nom  tenhSo  quatro  banddras  na  gauea.  o 
que  saibSo  a  maneira  que  hao  de  ter  com  o  GapitSo  ou  alcaide  que 
hy  estiuer.  Polas  cousas  que  hy  passarSo,  os  nauios  grandes,  nem 
pequenos,  nom  vierSo  cá  ter. 

•Do  lemite  das  licensas  dos  esorauos  eu  nom  passo  nada,  mais 
que  aquillo  que  me  requerem  vossos  Capitses»  que  lhe  sáo  neces- 
sários pera  leuarem  as  naos  a  Portugal,  porque  eUes  nom  trazem 
gente,  nem  amarras,  nem  aparelhos,  nem  mantimentos,  nem  as 
cousas  que  lhe  sSO  necessárias.  Leuáo  OS  escrauos  que  me  parece 
que  são  necessários,  pera  lhe  nom  morrer  a  gente  com  o  trabalho, 
como  Vossa  Alteza  verá  per  TristSo  da  Cunha,  que  a  sua  nao  par- 
tio  de  cá  com  cem  escrauos;  bem  verá  os  que  lá  chegarSo.  Nom 
são  chegados  cá  os  ofiiciaes,  nem  os  outros  prouimentos,  e  tudo  he 
porque  os  vossos  offieiaes  de  Lidxia  dizem  que  vos  forrSo  dinheiro 
em  despedir  as  armadas  em  Abril. 

TOMO  T 


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594 


DOCUIIfiNTOS 


«O  erro  que  fiz  dm  «pie  perdoey  o  r^gioMiito  de  Vossa  Altsn 
nom  mo  defendia,  e  vossa  carta  me  outorgaua  o  poder  que  oe  per- 
doasse^ e  em  todalas  outras  cousas  de  justiça  e  fazenda,  comoTOSsa 
própria  pessoa.  A  mór  parte  dos  que  perdoey  erâo  yossos  eiiados» 
que  já  agora  hão  mester  perdão  de  Deos.  Nora  perdoarey  mais  ne- 
nhum ;  e  por  meu  descargo  digo  a  Vossa  Alteza  que  nom  mandeji 
cá  degradados,  porque  ha  mais  scruiço  de  Deos  auerem  lá  a  pena 
de  seus  delitos ;  iiom  mandeys  outros  homens  que  constrangida^ 
mente  estêm  quá.  Vossa  Alteza  entenderá  bem  o  porque  o  digo. 

«Quanto  ao  auiso  que  teue  d'armada  que  faziâo  os  Turcos  p»a 
quá,  fóra  seruiço  de  Deos  e  a  osso  socorrerdes  com  gente,  e  com  a 
prata  das  Igrejas,  e  se  disser  com  vossa  real  pessoa,  ainda  dírey 
como  quem  mais  vos  ama  (}ue  quem  o  contrario  disser. 

«Vossa  Alteza  terá  sabido  que  depois  que  cá  estou  as  iiaos  fios 
mercadores  Initev  propriamente  como  as  vossas,  e  alguma  cousa 
melhor,  porque  o  auia  por  Ijem  de  vosso  seruico,  polo  que  era  justa 
razão  que  nos  trabalhos  eli;us  ajudem  as  vossas;  e  digo  ysto  porque 
agora  mandey  liir  nellas  alguns  doenles  e  alejados  da  guerra,  e  po- 
serãono  por  aggrauo,  c  íizeruomc  por  ysso  requerimentos,  que  he 
cousa  asaz  desón^<ta,  nom  podendo  elles  tomar  a  Portugal,  se  os 
eu  cá  nom  prou  ss  dos  almazens. 

«Cá  nos  veo  certeza  que  Vossa  Alteza  nos  manda  hir  a  todnlos 
oííiciaes  que  quá  estanios,  por  termos  acabados  os  tres  annos  pera 
que  viemos  ordenados.  Dom  Aluaro  por  ysso  me  pedio  hcença,  e 
por  saber  o  que  Vossa  .VlteTia  maiidaua  a  Dom  Pedro  meu  sobrinho, 
eu  lha  de},  postoque  nuivto  me  pesou,  porque  sua  companhia  me 
era  cá  muyto  lK>a  pej  a  vosso  seruico,  e  meu  descanso.  Se  cá  ouvera 
mór  armada  nom  o  uiaiidára  tão  singelo,  porque  vos  tem  muyto 
bem  seruido,  e  lie  dos  quilates  que  Vossa  Alteza  sabe. 

«fPois  que  Vossa  Alteza  manda  que  das  cousas  que  faço  seja 
eseriptor,  cousa  que  a  mym  sempre  me  pareceo  mal  dos  li  DUiens 
de  bem,  faloliev.  com  protest<ição  que  o  erro  que  nysso  ouver  nom 
he  per  umúià  culpa.  Depois  que  Tristão  da  Cunlia  de  cá  partio  se 
pasí  ui  o  que  atrás  lie  escrito,  de  que  os  Mouros  estão  fauoiwidos, 
e  com  tanta  esperança,  quanta  lhe  Nosso  Serdior  tornará  em  con- 
fusão, e  desesperação  pera  elles,  A  mór  parte  de  vossa  gente,  com 
asaz  medo  e  desconfiança,  por  verem  os  desfauores  que  lhe  de  lá 
vem,  e  nom  lhe  pagarem  seu  ordenado,  estão  descontentes,  que  da- 
riâo  as  quintaiadas  por  que  os  deixassem  hir  d'este  trabalho ;  ca 
lhe  disserSo  da  maneira  que  hão  de  ficar  depois  de  minha  inda,  e 


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* 


ILLUSTRATIVOS  395 

derflo  voseo  feito  por  perdido,  e  se  minha  embarcação  chegara,  oe 
piincipaes,  e  lodoe,  tinhSo  asaentado  flizeremme  fnmdes  requeri- 
mentos de  vosea  parte  quo  md^nom  fosse;  o  qne  o  tempo  alalhoih 
Nosso  Senhor  sabe  o  porque  o  digo  a  Vossa  AUesa,  porqoe  se  eti 
for  vittO  quando  me  chegarem  tossos  mandados,  por  mais  requeri- 
mentos qae  me  facão,  os  hey  de  comprír  ao  pé  da  letra,  porqae  as 
cousas  que  tocáo  em  fiddade  sSo  tfto  dellcadàs,  que  pof  Dnnhama 
cousa  d'este  mundo  os  homens  de  preço  se  deoem  pdr  em  de8|Kita. 
Por  jsso.  Senhor,  toIo  declaro  por  meu  descargo,  e  digo  qmf  man- 
deys  ci  hum  homem  de  muyto  grande  preço  pcvTisorey,  e  por 
mais  se  mais  puder  ser;  seloso  da  yerflade,  eheo  de  riqirâttL  Nom 
lhe  limiteys  estas  pouqutdades  de  vossa  Ausenda  de  que  me  ropren- 
deis,  nem  mandeys  nada  de  li  sem  «uer  piimeyro  o  conselho  de 
qua,  e  confiai  todo  do  yosso  Yisorey,  e  agardeceifii»  o  que  aeeitar, 
e  daílhe  a  pena  do  que  enttr.  Kom  sey  que  vos  aproueitari  tft^* 
rem  vossas  armadas  ao  Toro,  nem  a  Çofíi,  se  cá  na  índia  vos  toma* 
rem  -as  naos  da  carregação,  e  destroirem  as  IbrCaleKas;  e  M  vos 
diaem  que  hir  ao  Estreito  atalha  que  no»  veiriMO  pera  «i  amadas, 
em  Dio  estio  Yenezeanos,  e  Mouros  do  Soldâo,  fuendo  naos  e  ga- 
lés com  que  nóS  auemoe  de  p^ar, « tem  afaaMtença  de  tudò  o  que 
lhe  cumpre,  e  a  nés  mingoa.  , 

«Jorge  Barreto  fiz  Capitio  de  Gochym  até  vir  qDemToSSa  Al- 
tezg  manda,  porqoe  assy  mo  encarregastes  por  vossa  carta.  Se  sua 
pessoa  som  tso  contente  que  tudo  lhe  enoairegaria;  e  nottt  metli 
aquy  Manuel  Paçanha,  que  por  ser  forte  de  oondil^  me  disserlo 
todos  vossos  officiaes  que  por  ysso  largaiiSoos  ofliáoB,  seéHe  fosse 
GapitSo,  e  toda  outra  gente  nom  estiuera  com  eUe,  por  cousas  que 
dhray  a  Tossa  Altesa  quando  a  Deos  aprouver.  Diaem  que  vem  Pm 
Ferreira  pera  Gananor  por  Gapitfo.  fin  o  tsidio  por  homem  fiel  o 
esforçado,  mas  Gananor  ha  mester  homem  de  grande  manta,  porque 
nos  inuernos  sempre  ahy  ennemao  muytos  fidalgos.  Esles  ctpiUiloê 
nom  vâo  hem  ordenados,  porque  tenho  muyta  occupaçSo  no  espiito, 
mais  do  que  Vossa  Altesa  cuida. 

«Eu  escreui  a  Vossa  Alteza  que  Qniloa  se  desponosAi  porque 
Pero  Ferreira  a  nom  soube  conseruar;  agora  dizem  que  mandays 
pera  aliy  o  filho  do  Pestana  por  Capitão,  e  a  Vossa  Alteza  compre 
ter  aly  hum  homem  que  tenha  tantas  barbas  branrnii  como  e«. 

«Vossa  Alteza  he  assy  obrigado  ao  Rey  de  Melinde  como  sdM,  e 
pera  bom  exemplo  deue  ser  de  Vossa  Alteza  mny  honrado,  e  fano- 
reeido  com  mercês»  pois  tanto  repaiio  e  bem  gazalhado  tem  leito» 

38. 


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DOCUMENTOS 


e  &z  a  vossas  armadas,  e  ge&te  que  hy  vem  ter;  cm  pago  do  qual 
vossos  Gapitáes  se  desordenSo  tanto  na  seguridade  que  achSo  na 
tena,  que  lhe  íazem  tantos  males,  ^e  já  o  aly  nom  estiuera 
se  de  ci  o  nom  sostiuesse  com  cartas,  e  palauras  vSs,  de  que  nun- 
qua  lhe  Tem  o  íruito.  Dizem  que  mandaes  ahy  por  feitor  Sancho 
de  Pedrosa.  De  duas  seiá  huma:  ou  os  Mouros  volo  matartSo  com 
os  que  com  elle  estiuerem,  ou  o  Rey  se  despouoará  da  terra;  e  as 
razões  dysto  Dom  Aluaro  as  dará  aVossa  Alleaa. 

«Vossa  Alteza  manda  muytas  cartas  de  recomendados  pera  tosbos 
criados;  elles  cuidfio  que  trazem  nellas  capitanias,  e  feitorias,  e  por- 
que logo  lhas  nom  ú&o  se  mostrSo  aggrauados.  Será  bom  que  me- 
reçâo  primeyro,  porque  nom  sey  que  esperança  terfto  os  de  cil, 
vendo  que  daes  lá  o  que  elles  tem  ganhado  com  sen  sangae. 

«Poderá  ser  que  cuida  Vossa  Alteza  que  deixo  de  carregar  meu 
ordenado  estes  annos  passados  por  nom  folgar  com  dinheiro.  Eu 
nom  som  táo  virtuoso,  mas  façoo  porque  veja  a  vossa  gente  que 
trabalho  por  vosso  seruiço  em  vosso  proueito,  e  nom  estimo  miniia 
perda,  e  que  tomo  pera  mym  e  nego  pera  elles,  que  seria  muyto 
descrédito  pera  as  razOes  e  escusas  que  lhe  de  mym  dou  quando  me 
requerem  suas  oarregações :  polo  qun  tem  em  mym  aquella  cou- 
liança  que  muyto  compre  a  vosso  seruiço ;  e  comtudo  seu  trabalho 
he  tanto,  e  com  a  vista  de  suas  desconlianeas  porque  vêm  o  que  de 
lá  vem,  que  poucos  ha  que  nom  dessem  seus  vencimentos  porque 
os  deixassem  hir;  em  maneira  que  o  anno  passado,  quando  meu 
lilho  que  foy  estaua  em  Chaul.  se  fez  huma  conjuração  antre  mais 
de  cincoenta  homens  do  mar,  p^ra  se  passarem  aos  Mouros,  e  ysto 
sem  mais  outra  causa  que  as  razões  que  digo,  porque  os  Mouros 
lhe  dão  grandes  soldos,  e  muytas  larguesas  de  condenação  de  suas 
almas.  Ouve  meu  lillio  dysto  auiso,  e  com  modos  manhosos  os  ati- 
jhou,  que  nom  ouve  elTeito  seu  propósito^  o  os  segui  ou  até  que  veo 
aquella  peleja,  de  que  se  seguio  o  que  eu  meretfi  a  Deos.  Outras 
fizerão  outro  ajuntamento,  pera  também  se  passarem  pera  os  Monros, 
estando  Gracia  de  Sousa  C43m  FernSn  Soares  no  cabo  de  Comoryni. 
Foylhe  dado  auiso,  prendeo  o  principal,  ipie  troux'  em  ferros.  Digo 
a  Vossa  A^^m  estas  cousa^  pm  que  saibaes  que  vossa  ?ente  cl  ha  de 
andar  conleiile  do  ham  juinuiiientos  aos  de  baixa  sorte,  e  aos  outros 
com  bons  galardoes,  e  seu.N  seruiros  gratilicados,  porque  se  assy  nom 
for  perdereys  todo  \mso  seniiro. 

ff  Dizem  cá  que  mandaes  que  Afonso  d\\l!  MKjuerque  tique  nesic 
meu  cargo  pera  gouernar  estas  cousas :  sera  bom  perguntardes  aos 


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ILLUSTRATIVOS 


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que  de  cá  vâò,  que  altos  nem  baixos  ficarão  com  elle.  Nysto,  Se* 
nhor,  provede  com  tempo,  porque  os  Capitães,  e  Yofleos  «niados  fo- 
râo  com  elle  em  tanto  deauairo,  que  os  preadeo  e  eojnríoQ,  dizem 
eliea  que  por  lhe  requereram  as  cousas  de  tomo  serviço ;  polo  que 
depois  de  Ormuz  aleuantado,  como  Yossa  Alteza  saberá»  Afonso  Lo- 
pes da  Costa,  Itfannel  Teles,  Antonio  do  Campo,  se  vlerSo  em  mi- 
nha busca  com  requerimentos  por  escrito,  a  que  elle  nom  quis  res- 
ponder; e  taes  apontamentos  me  derSo  que  os  nom  pude  culpar, 
nem  condenar  Afonso  d'Alboquerque.  Chegarilo  em  tempo 'de  ne- 
cessidade, mettios  em  vosso  seruiço:  trabalharey  por  saber  a  Y«r- 
dade,  porque  da  que  soube  enuio  a  Vossa  Alteza  por  inquirições. 
Afonso  Lopes  vai  em  alguma  culpa:  lá  o  ouvirá  Vossa  Alteza  de 
sua  justiça,  e  se  Afonso  d'Alboquerque  yier,  também  farey  o  que 
me  requerer  com  justiça.  Também  JoSo  da  Noua,  e  Francisco  de 
Tauora,  muy  to  se  queíxSo  de  seu  mao  trato.  Eu  nysto  nom  ousei  de 
entender,  porque  Vossa  Alteza  manda  de  lá  o  que  lhe  apraz. 

«Porque  temos  certa  noua  destas  annadas  que  se  ajuntSo  contra 
nós  com  todos  os  Mouros  desta  costa  até  Onnuz,  paieceo  bem  a 
todos  tomar  a  nao  Belém  pera  Jorge  de  M^o  andar  nella  assy  como 
vem,  pera  o  que  ette,  inflamado  no  amor  de  vosso  seruiço,  mayto 
folgou,  esquecido  do  pouco  proueito,  e  muyto  perigo  em  que  auia 
d'entrar.  FroMe  la  mar  concertey,  pera  eu  nelia  andar  com  íoSo 
da  Noua,  Capitão  ddla,  assy  como  o  era. 

«  Cinco  criados  meus  me  vieráo  cá  buscar.  Nom  vierfio  assenta- 
dos em  soldo  e  quintaladas;  mandeyos  assentar  no  lugar  d'outros, 
que  me  cá  morrerão.  Faço  ájUto  lembrança  a  Vossa  Alteza,  porque, 
se  o  nom  ouver  por  bem,  mande  que  se  desconte  no  meu. 

«Antonio  Raposo  yeo  aquy  de  Çofiila,  que  lá  fora  escriuão,  e 
trouxe  tanto  ouro,  que  me  conueo  entender  o  que  me  dizião.  Han- 
dey  ítibre  ysso  &zer  deligencias,  e  acheyihe  o  ouro^  e  culpas  que  a 
Vossa  Alteza  enuio,  com  toda  sua  Êizenda  socrestada;  nem  me  quis 
cntremetter  a  ju^alo^  porque  o  Visorey  que  nom  pôde  perdoar,  nom 
deue  condenar.  Vossa  Alteza  faça  lá  sua  justiça. 

«  Este  ano  mandey  &zer  buns  poucos  de  laudés,  fortes  e  bons  pera 
guerra,  e  maneaues  pera  os  mareantes,  que  hé  piedade  ver  vossa 
gente  pelejar  nua,  e  com  boa  vontade.  £  p(qfque  já  vou  entendendo 
alguma  cousa  da  índia,  digo  que  se  a  vossa  armada  no  mar  for  po- 
derosa, como  prazerá  a  Nosso  Senhor  que  sempre  s^a,  auerraaos 
trigo  em  abastança,  a  vinte  e  cinco  reis  o  alquiore^  comprado  o 
troco  de  mercadorias  em  Gbaul;  arroz  de  graça,  e  comprandose  por 


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DOCUMENTOS 


mefeadorías  se  acbarâ  muyto»  e  ciutftrá  o  fardo  a  cento  e  vinle  íeis, 
que  tem  quairo  alqueires  e  ineo;  mas  Deos  nos  dá  sempre  tanto  das 
preás»  que  se  vende  o  sobejo»  o  fica  auondanga  pera  as  armadas»  e 
pai  tiflios  com  as  naos  da  carregaçlSu.  T  inibcni  aueremos  breu  em 
abasta&ça  até  quatro  centos  reis  o  quiiiUi ;  liniio  em  abastança,  e 
mais  b«urato  que  lá:  temos  cordoaria  com  todos  seus  petrechos»  e 
cairo  em  afea^tai^^ 

ff  Senhor»  nom  he  vosso  seruico  que  os  mestres  venbâo  por  fei- 
tores das  naos»  porque  nom  podem  entregar,  e  receber,  e  dar  auia' 
mento  no  corrogimento  das  naos»  e  tomaodolhe  conta  perderão  suas 
iazendas.  Ao  menos  melhor  seria  que  o  fossem  os  pilotos,  que  che- 
gando ao  porto  desemparâo  a  nao,  e  andáo  folgando  em  terra  até 
que  tornão  a  partir.  Se  estas  cousas  os  vossos  officiaes  as  bem  gouer- 
nassem  de  lá,  em  hum  só  mez  se  carregariílo  aquy  quantas  naos 
d'esse  Reyno  viessem. 

«Manda  Vossa  Alteza  cá  Juiz  do  peso,  quo  he  hum  oificio  sem 
corpo,  porque  no  inuerno  se  toma  a  pimenta  a  troco  de  mercadorias, 
a  tempo  que  o  feitor  anda  tão  ocioso  que  vai  á  Igreja,  ou  anda  ao 
monte ;  e  quando  voin  a  pimenta  a  vai  receber  Imm  escriuão,  e  pe- 
sáona  os  pes^idorcs  que  ElKey  pr-ra  isso  ordenou,  que  por  pouco 
que  os  o  feitor  contente,  nom  deixarão  erffuer  a  balança  do  chão 
meo  dedo,  c  o  vosso  Juiz  do  pezo  nom  sey  que  nyst(>  pôde  aprouei- 
tar  que  bom  seja  pera  vosso  seruiço. 

«Tem  Vossa  Alteza  nesta  íeiton;i  robre  que  se  nom  gastará  em 
cinco  annos.  e  vermelhão  sem  numero,  chuiiilto  iiiuyto  mais,  azou» 
gue  que  nom  ha  casas  em  que  caiba:  panos  de  lã  [odos  apodrecem; 
escrelatas  se  gastão  poucas,  alguma  cousa  mencis  do  preço  que  lá 
custão;  ha  nmylos  espelhos,  ocolos,  chapeos,  sellas  ginetas,  que  he 
muy  certa  mercadoria  pera  cá.  Nom  rreo  (|ue  os  vossos  ofQeiaes  de 
Lisboa  cá  mandassem  estas  sobegidò  s  dysso  lhe  nom  viesse 
proueilo,  e  por  ysso  nom  aguanião  que  liie  va  recado  dos  ulficiaes 
da  Indja,  ou  pera  melhor,  do  vosso  Visoiey,  e  nom  vos  causarião 
tanta  perda.  Dous  annos  ha  que  compramos  cá  a  mão  do  papel  a 
cem  réis,  que  elles  cá  mandão  vender,  e  pera  as  vossas  feitorios  nom 
mandão  neuhunL 

«Vossa  Alteza  nie  ?ri:uHla  :i  niam-ira  como  sf  paguem  OS  soldose 
desembargos,  e  (pie,  se  carreguem  as  naos:  ru  i'o^^o  a  i)eus  íjue  me 
encaminlie  o  eiitendimento  como  todas  estas  cousas  acerte  assy  t'onio 
h(  V  vontade,  porque  comprilas  como  de  lá  vem  ordenadas, 
com  os  aueços  que  alias  cá  tem»  quem  as  acertasse  faria  milagres 


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ILLUSTRATIVOS  599 

em  Tida.  Saiba  Yoná  Altau  qae  eu  hej  de  tapar,  se  pnder,  os  ha- 
racos  per  que  se  nos  mais  vai  o  vento.  He  bem  qae  saibaesqueto* 
dos  vossos  criados,  e  gente  que  cá  tendes,  estfio  em  muita  descon- 
fiança de  nunqua  serem  p^os  do  que  lhe  deuem;  e  mais  vendo  qne 
mandaes  de  lá  officiaes  pêra  os  cargos,  que  elles  merecem  per  genh 
(80^  e  aleijGes  de  feridas;  e  Vossa  Alteza  tfio  esquecido  dytto,  qne 
lhe  quebranta  os  corações  e  vontades,  e  descsjfo  de  hir  viuer  a  ou- 
tras terras,  e  com  qnanto  eu  pude  remendar  denenebfo  cem  mil 
cruzados  até  Janeiro  deste  anno  de  {{06. 

«Vossa  Altexa  deue  aner  bom  conselho  sobre  esta  historia,  por- 
que se  quereys  suster  a  índia  mey»  do  pagar  á  gente,  ou  que  ve- 
nha de  lá  desenganada  que  lhe  pagarSo  quando  lá  tomar,  porque 
dos  que  lá  vâo  pôde  Vossa  Alteza  saber  a  desconfiança  em  qne  ficSo 
os  de  cá,  e  as  más  cousas  que  íàliEo,  que  eu  Aço  qne  as  nom  sey; 
e  ysto  sd  porque  lhe  nom  pagáo,  e  vendo  vir  de  lá  feitos  ofikiaes 
quem  cá  nunqua  trabalhou,  que  sáo  escândalos  que  causSo  andar 
esta  gente  sem  coraçOes^ 

«Em  huma  carta,  que  me  deu  Aluaro  Barreto, Vossa  AUeia  me 
foz  aquella  honra  que  eu  a  Deos  nom  mereço,  e  nella  manda  que 
assy  o  diga  a  vossos  criados,  o  que  assy  fiz,  e  seus  espíritos  fica- 
râba  leuanladoB.  Polo  que  elles,  e  todos,  bejamos  as  reaes  máos  a 
Vossa  Alteza;  mas  nom  fique  em  esquecido  o  efieito  de  táo  reaes 
palavras  por  que  nom  fique  em  dobro  o  escândalo,  porque  os  que 
vos  cá  seruetn  nom  carecem  di>  galardâk),  e  se  o  de  vós  nom  ouve- 
reni  iiestt^  mundo,  auelohSo  de  Deos  no  outro. 

«Mandey  que  os  mareantes  de  minha  companhia  carregassem 
seus  vencimentos,  e  assy  a  todos,  nas  outras  quatro  carregaçifes, 
que  SP  âcabSo  om  IMlarço  quatro  annos;  e  o  dinheiro  do  desembargo, 
que  me  Vossa  Alteza  mandou,  por  nom  crecer  tanto  minha  diuida. 
E  pem  o  ano  nom  poderiáo  carregar  os  que  comigo  quisessem  hir, 
prazendo  a  Deos.  f  por  ysso  carreguey  ysso  que  lá  vai,  e  tomá- 
mos o  vi<r<)  em  todaJas  naos  deste  ano.  iiouas  e  velhas,  porque  to- 
dos dysso  tòráo  contentes,  com  publicações  que  dysso  mandey  fa- 
zer; e  se  en  nestas  carregações  cuidey  por  mao  entendimoito,  lá 
mando  Vossn  Alteza  oquefci''  ^"u  scniiro. 

eDe  (loylão  tenho  já  cnfoiíiiado  Vossa  Alteza  per  homens  que 
lá  foráo,  e  estes  quo  agora  de  lá  vieráo  assy  achaiKo  a  terra  assen* 
tada,  e  o  padrão  em  pé,  como  o  póz  meu  filho.  Dito  tenho  a  Vossa 
Alteza  que  será  boa  aly  huma  fortaleza,  ponjuc  todalas  nauegaçOes 
que  correm  da  parte  do  sul,  que  he  de  todas  as  partes  de  Malaca, 


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DOCUMENTOS 


ÇunalFSi,  Pedir^  Bengoala,  PegA,  nom  podem  passar  pera'  banda  do 
norte  arredados  doesta  ilha  dc  Geylâo,  mas  forgosameate  pera  na- 
negarem  certos  bSo  d'auer  a  vista  d'ella,  e  podiSolhe  tolher  esta  na- 
u^açSo  mea  dúzia  de  naoios;  js  se  podia  fazer  a  fortaleza  sem  pe- 
rigo em  huma  ponta  que  faz  sobre  o  porto,  como  Cananor,  em  q[ue 
está  hum  poço  d'agoa  real.  Prazerá  Deus  que  nos  encaminhará  que 
a  laçamos  em  acreeentamento  de  vosso  seruiço. 

«Se  o  corrigimento  de  vossos  naos  nom  fosse  tanto  partirião  d V 
aqny  todas  em  Novembra  Handay,  Senhor,  que  volas  correjâo  de 
verdade,  porque  dizem  cá  que  se  vos  gabSo  os  vossos  ofiKciaes  que 
corram  as  naos  com  menos  custo  que  as  armadas  passadas ;  o  que 
certefico  a  Vossa  Alteza  que  vos  cansSo  perda  anoueada,  por  caso 
do  mao  corrigimento;  que  ysto  ganhão  os  mercadores  dobrado,  pelo 
bom  ( rirrigimento  de  suas  naos.  £  mande  Vossa  Alteza  que  partâo 
em  Fevereiro  a  roais  tardar,  porque  hsm  vedes  o  jogo  que  vos  tem 
feito  o  partirem  as  naos  de  lá  tarde ;  e  perguntai  a  vossos  olTiciaes 
((ual  lie  mór  perda,  se  gastar  c  perder  hum  més  c  dons  ílos  soldos 
d'aimada,  que  elles  dizem  que  vos  aproueitíEo  em  deter  a  partida 
das  naos  em  Lisboa,  ou  se  be  mór  perda  hum  mm  que  as  naos  ficSo 
em  Moçambique^  porque  cbegâo  tarde;  de  que  elles  darão  conta  a 
Deos,  da  gente  que  ahy  morre  ao  desemparo,  de  que  eu  nom  tenho 
a  culpa. 

«Eu  pus  em  conselho,  (nom  porque  me  parecesse  bem,  senão  por 
me  nom  pôrem  esta  culpa)  se  daríamos  em  Calecut-agora  quando 
passássemos,  e  foy  per  todos  assentado  o  que  la  vai :  e  sem  duvida 
fora  cousa  errada,  porque  por  a  costa  ser  muyto  má  na  desembar- 
caçSo  nós  lhe  pudéramos  a  elles  fazer  pouco  damno,  e  elles  a  nós 
muyto  mal,  e  também  síío  elles  muytos,  e  nós  poucos,  e  a  vossa 
gente  desarmada,  e  muyta  doente,  e  os  sãos  com  os  espíritos  can- 
sados, descontentes,  vendose  alejados,  desfalecidos  do  sangue,  da 
idade,  da  vida,  e  Vossa  Alteza  dysto  tão  esquecido,  que  daes  aos  de 
lá  o  que  elles  ganháo  cá.  Polo  que  passaremos  de  longe,  e  hiremos 
até  Dio  em  busca  destas  gentes,  e  lá  faremos  o  que  nos  Deos  aju- 
dar, por  seu  seruiço  e  vosso ;  e  deixarey  guarda  na  costa  pera  as 
naos  de  Meca.  Parecemf^  qiip  são  obrigado  a  vosso  seruiço  dizcruos 
que  Dom  Aluaro  he  muyto  homem  para  encarregardes  (reste  meu 
oflRcio:  e  nom  me  engano,  porque  volo  digo  sem  nenhuma  afeição, 
sómente  amar  vosso  serviço,  e  desencarregar  miuha  obrigação  iia 
verdade. 

«Nenhum  trabalho  dos  meus  sinto  tanto  como  o  que  tenho  cm 


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ILLVSTRATITOS 


fiOi 


os  vossos  capitáes  da  caiTP^aç5o,  que  andSo  tão  engodados  no  nior- 
cadcjar  do  vender  e  comprar,  que  com  niuyto  trabalho  meu  os  faço 
que  vão  estar.  «'  guardar  vossas  naos,  e  ajudem  dar  auiamento  ao 
«•^rregar,  pois  neilas  lhe  fazeys  tanta  mercê.  Hão  ysto  por  rauyto 
aggraiio,  e  (hzein  de  mym  com  palauras  muy  desacatadas,  e  dinas 
de  castigo.  Hindo  })era  a  nao  dc  Ruy  da  Cunha  o  derradeiro  parao 
de  pimenta,  que  leuaua  cem  quintaes,  por  máo  aui mienfo  dos  ma- 
rinlieiros,  qne  o  logo  nom  descarregarão,  s»^  perdeo.  Pareceme  ra- 
záo  nesta  pertla  entrarmos  todos  ás  valias,  pois  temos  carre^aç.lo  em 
toda  'frota :  e  se  ysto  lá  nom  parecer  justiça,  e  quizereni  tudo  car- 
regar ao  capifilo,  folgarey  que  antes  se  carregue  tudo  sobre  inyni, 
porque  mellior  he  penler  a  fazenda  n'cste  mundo  que  leuala  para 
o  outro,  ])orque  eu  tenho  delia  menos  necessidade,  merct'''s  a  Deos, 
e  a  Vossa  Alteza  que  ma  dá,  e  nom  será  bem  perdela  Huy  da  Cu- 
nha, que  he  lidãlgo  proue,  c  tem  gastado  dous  quartés  da  vida,  c 
está  no  derradeiro  como  eu;  mas  elle  tem  lilboSi  e  eu  não^  que  hum 
que  tenia  lo  perdi. 

■  «\  muytos  dey  licença  que  se  fossem,  por([ne  com  aíincamcntos 
mo  pedirão.  Pareceonie  bem  darlhas,  porque  são  elles  mais  incli- 
nados pera  vos  servirem  lá  que  cá  :  certamente  eu  nom  som  a  causa 
dysto.  (luadelajara  mandey  que  se  fosse,  por  sua  m;l  disposição, 
que  lhe  causou  a  guerra  e  trabalho  de  Cananor,  onde  tanto  vos  ser- 
nio,  como  todos  "\  os  dirão,  c  tão  largamente  gastou  o  seu  com  os 
vossos  criados ;  polo  que  he  (Uno  de  mercê,  e  {)or  toda  a  que  lhe 
lizer  lhe  bejarci  as  reaes  mãos. 

«João  da  Nova  rccebeo  agrauos  na  mutlança  que  Vossa  Alteza 
fez  do  seu  oíficio,  e  faloume  em  puridade :  lembre  a  Vossa  Alteza 
que  o  comprou  per  seo  dinheiro,  e  que  ha  quatro  annos  que  vos 
cá  senic,  e  deu  a  conta  de  sy  que  testemunhão  grandes  feridas,  de 
que  tem  os  signaes,  e  com  muytos  trabalhos.  Afonso  d'Alboquerque, 
que  com  elle  teuc  grandes  dififerencas,  me  escreueo  que  vos  tinha 
muyto  bem  servido.  Assy  que  a  mercí  lhe  seja  em  acrecentamento 
do  seu  proueito  e  honra,  que  por  ysso  bejarei  as  reaes  mSos  a 
Vossa  Alteza. 

«Hum  dos  paraos,  que  trazia  á  carregação,  que  carr^iaua  tresen- 
tos  quintaes,  porque  era  bom  pera  nosso  officio  mandeyo  eoncertar 
para  o  leuar.  Tírarâolhe  hum  forro,  que  trazia  ao  pram,  acharSolhe 
debaixo  quatro  quintaes  de  pimenta.  Escreuo  ysto  a  Yoss;i  Alteza 
porque  saiba  que  as  quebras  nom  Tão  do  pezo ;  mas  furtSona  os 
marinheiro  que  a  leuão,  que  estão  na  nau :  o  que  tudo  he  por  culpa 


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m 


DOCUMENTOS 


àot  iFouM  eapitfes,  a  que  eu  por  veies  deeoobm  este  oenfae  ps- 
note  vossos  officiaes,  pelo  que  dles  dSo  bem  poaeo,  porque  lôdt 
*sua  ocoupanão  he  om  seu  interesse,  e  nâo  em  yosso  seruiça  Tomo 
a  tembnr  a  Vossa  Altesa  que  nunqua  sereys  bem  servido  em  quanto 
vossos  offieiaes  de  justiça,  e  fozenda,  forem  tratantes  mercadores. 

«Oje  cinco  de  Dedeembro»  estando  já  em  Cananor  eom  toda*  frota 
chegou  Afonso  d'A1boquerque  d'Ormuz,  e  com  elle  Martím  Coelho, 
e  0.  Antonio  seu  sobrinho,  em  navios;  elle  no  Cirne,  que  trazia  i 
lorça  de  bomba,  e  ficaua  atrás  Francisco  de  Távora  no  Rey  Grande. 
Pera  o  sno,  a  Deos  prazendo,  leuarey  Frol  de  la  mar,  e  o  Grine, 
que  mandarey  concertar  e  carrear.  Afonso  d'Alboquerque  foy  de 
mym  recebido  como  compria,  presente  Lourenço  de  Brito,  FernSe 
Soares,  Ruy  da  Cunha,  Antonio  de  Sintra,  que  ao  presente  ante 
mym  escreue;  onde  em  presença  de  todos  lhe  pds  em  escolha  o 
que  de  sua  pessoa  queria  fiuser,  porque  bir  em  minha  companhia 
nom  era  razfio,  por  vir  muyto  cançado,  pera  o  que  se  me  convidou :  se 
queria  ficar  n*estc  Cananor,  porque  Lourenço  de  Brito,  por  vob 
servir  deisejaua  muyto  hír  comigo,  ou  se  hír  a  Cochym;  o  que  elle 
antes  escolheo  pera  seu  (l<'scanço.  Mandey  lá  que  o  aposentassem 
em  minhas  pousadas,  e  lhe  iizcssein  toda  'honra  e  prazer.  E  porque 
n'estas  cousas,  que  h2o  de  vir,  vai  muyto  a  vosso  s<;ruiço,  oonio  já 
tereys  sahido,  he  necessário  pera  comprínitMito  do  minha  obrigaçlò 
auisaruos  d'an(6  mâo,  ainda-que  seja  prejuízo  d'alguem.  Bem  s«>y 
que  nom  peco  nysto,  pois  sois  du  u  Rey,  e  Deos  na  terra.  Afonso 
d'Alboquerque  vem  muy  desamado  da  gente.  Dizem  delle  cousas 
de  que  se  homem  <>Kpa!ita :  a  verdade  Vossa  Alteza  a  saberá  quando 
a  bem  prrguntar.  Sua  li  ida  a  Ormuz  íòra  bem  escusada,  pois  nora 
auia  de  fazer  proii*  iío.  e  fizera  cá  muyto,  se  a  mym  o  enuiareys. 
Todos  os  que  cá  eslâo  dizem  publicamente  que  quando  Nosso  Se- 
nhor ordenar  que  me  vá,  que  éUes  qu(^  nom  llcarão,  e  que  se  elle 
os  constranger  que  se  hirSo  pera  os  Mouros.  Polo  que  eu  tenho 
visto,  e  bem  entendido,  crea  Vossa  Alteza  que  assy  o  far^o,  só- 
mente  se  forem  alguns  que  nouamente  vierem  do  Beyno,  ou  que 
tiuerem  cargos,  poios  nom  perderem;  o  que  assy  será  em  toda' 
gente  d'armas,  e  do  mar;  mas  quando  ysso  for,  eu  direy  e  man- 
darey á  gente  o  que  for  vosso  seruiço,  com  todo  meu  poder,  pera 
gue  fiquem  os  qiie  vierem,  pera  se  poderem  hir  os  que  cá  andáo, 
porque  entáo  auerú  cinco  anos  que  cursâo  em  vosso  soniiro,  cora 
\Áo  perigosa  e  trabalhosa  vida,  e  mortas  aS  vontades  poio  que  elles 
\èm  que  deUálmandaes. 


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ILLUSTBATIYOS 


603 


«Dom  Afonso  fiem  em  Çaeotoiá  doente,  e  assy  qom  toda'  gen- 
te,  6  muyta  fome,  porque  tinhSo  gnenra  com  a  gente  da  Bba,  e  mor- 
tos maytofl  homens,  o  que  assy  sempre  será  em  quanto  aiy  estiuer 
fortaleza;  perdde  Deos  a  quem  fez  ião  má  cousa  pera  vosso  serui- 
ço.  Faço  fundamento  que  tanto  que  tomar  de  Dio,  se  for  viuo,  Uie 
mandarey  hum  naub  carregado  de  mantimentos.  A  todos  estes  fi- 
dalgos parece  bem  mandála  des&zer,  maa  aconselbarfiome  que  o 
nom  fizesse  sem  mo  Vossa  Alteza  mandar  primeyro.  Bem  sey  que 
nom  6ço  eu  nisto  como  qnem  eu  som,  mas  nom  me  quero  tanto 
atreuer  em  mym.  Tomo  a  dizer  a  Vossa  Alteza  que  mandeys  logo 
ci  pessoa  pera  este  meu  caigo,  que  tenha  muytos  escudeiros,  e  gaste 
cá  quanto  lhe  derdes,  e  mais  se  mais  tiuer,  porque  sendo  d'outra 
maneira  pondes  em  grande  balanço  vosso  real  seruiço. 

«Este  ano,  com  '^juda  de  Nosso  Senhor; Vossa  Alteza  está  des- 
cansado, porque  eu  espero  na  sua  misericórdia  que  se  estes  cfies 
estSo  em  parte  onde  lhes  possamos  chegar,  nom  ficará  delles  quem 
leue  nouas  a  sua  terra,  c  também  nom  leíxarey  de  meter  alguma 
manha  com  ElRey  de  Cambaya,  pera  vér,  se  os  nom  puder  colher 
no  mar,  se  mos  quer  entregar,  e  por  ysso  lhe  outorgarey  a  paz,  e 
me  esquecerey  do  que  me  os  seus  deuem  da  voda  de  meu  íilho, 
porque  a  paz  com  Dio  será  muv  I)oa  ppra  vosso  seruíço,  pera  bem 
de  vossas  mercadorias  e  roupas  de  Çofala;  mas  isto  ha  de  ser  com 
destroição  d'estes  Rumes  no  mar,  porque  sejamos  estimados  na  terra. 
Nom  entendi  nada  nas  cousas  de  Afonso  d'Alboquerque,  nem  dos 
seus  Capitães»  porque  Vossa  Alteza  o  julgue  lá  como  fôr  seu  ser- 
uiço,  do  que  creo  que  elle  lhe  mandará  grande  abastança  de  papés. 
Lá  vai  Coje  Beirame,  arménio,  que  aquy  veo  ter  comigo,  que  nas 
cousas  d'Ormuz  trabalhou  iieimente,  e  por  ysso  perdeo  muyto  do 
sen  que  lá  tinha.  A  grandeza  que  Vossa  Alteza  com  elle  fizer  acre- 
centa  muyto  em  seu  crédito  e  estado. 

«Estando  já  recolhido  á  minha  nixo.  com  a  «rente  èmbarcada  pera 
partir,  querendo  çarrar  esta  carta,  veo  Aíotiso  (VAiboquerque  a  mym, 
trazendo  comaigo  Femáo  Soares,  o  Ruy  da  Cunha,  e  Antonio  de  Sin- 
tra, escriuSo^  e  outros  que  testemunhassem  em  suas  cousas,  e  me 
apresentou  a  carta  de  Vossa  Alteza,  que  trouxe  quando  veo,  em  que 
mandaes  que  quando  me  eu  for  elle  fique  com  todolos  poderes,  c 
na  mesma  carta  mandaes,  que  morrmdo  eu,  o  que  me  soccdesse  no 
gonemo  assj-  lho  ontroíçasse  a  elle;  e  per  esta  cabeça,  e  per  conta 
que  lhe  de  mym  dey  do  que  n)e  Vossa  Alteza  escreuia  que  me  fosse 
na  nao  Sam  Joáo,  e  a  elle  entregasse  meu  ofiScio,  por  isso  mo  veo 


6(Mk  DOCUMENTOS  ILLUSTRATIVOS 

requerer  de  face  a  face  que  lho  entregasse.  Certo  he  que  se  me  lem- 
brarão aggrauos,  e  me  esqneeerSo  as  mercês  que  me  tendes  feitas, 
e  criação,  expranara  de  lho  entregar,  com  que  nom  tinéreys  mais 
armada,  nem  gente,  e  en  fieára  tiure  dos  perigos  em  que  me  tou 
meter;  mas  nom  yeo  a  nao  em  que  me  mandaes  que  vá,  e  nestas 
que  estSo  aquy  carregadas  eu  nom  podia  hir,  que  já  em  Coehym 
me  0caua  meu  fato,  e  fora  passageiro  mal  entrouxado,  do  que  Vossa 
Alteza  se  deuera  doer  de  mym,  e  por  ysso  com  humfldade,  e  doce- 
monte,  lhe  respondi  a  estas  cousas  oubras  que  bem  declaráo  a  von* 
tade  que  tenho  ás  cousas  de  vosso  seruiço,  com  declaração,  que  se 
pera  o  ano  minha  embarcação  nom  viesse,  eu  Ih'  entregaria  o  dito 
officio,  e  me  biria  em  outra  qualquer  nao,  em  que  pudesse  leuar 
meu  feto,  e  criados,  e  nosso  mantimento,  e  agoa. 

«E  nom  aya  Vossa  Alteza  por  muyto  ysto  de  Afonso  d'Alboqoer- 
que  porque  o  fez  com  muytas  atiçações  de  contendores,  que  tenbo 
por  vos  seruir,  que  se  reuelarão  contra  mym  com  áluoroço  de  noui- 
dades,  com  esperança  de  lho  elle  pagar  quando  dommar;  e  elle,  in- 
flamado com  semelhantes  opiniões,  entSo  me  pedio  que  lhe  désse 
esta  armada  per  me  hir  vingar  a  morte  de  meu  íilho,  e  que  en  fi- 
casse aguardando  por  ysso. 

«Se  o  eu  mal  nom  entendo,  obrigado  era  a  Vossa  Alteza  a  m 
dizer  que  mandaueys  dous  expeitantes  pera  minha  morte,  porque 
de  qualquer  maneira  eu  viera  assy  leuemente  como  vim,  e  eu  os 
tratára  muy  amigauelmente;  porque  como  he  verdade  que  eu  pre- 
sumi que  Manuel  Paçanha  era  hum  delles,  logo  o  tratey  com  móres 
honras  do  que  o  fizera  se  nada  soubera,  que  mo  dixe  o  coiaçSo. 

«Porque  Afonso  d'Alboquerque  de  todo  nom  íicasse  triste,  eu 
escreui  ao  feitor  Gaspar  Pereira  que  de  meus  ordenados  lhe  pagasse 
a  elle  aquilo  que  lhe  Vossa  Alteza  ordenaua  quando  semisse  seu 
cargo;  porque  me  pareceo  que  seus  protestos  a  este  fim  os  fez. 
£  dysto  nom  quero  paga,  porque  Vossa  Alteza  me  faz  mercês  que 
me  sobejSo  pera  este  mundo,  cm  que  Deos  prospere  seu  estado,  co- 
mo no  outro  tenha  mór  gloria'.» 


'  N5o  damos  as  variantes  com  que  o  nns^o  rrotlilo  collcíja  o  sr.  Rodi  i^ro  José  de 
LimaFelner  escrapuíosrmienlt'  escl.iroceu  o  texto  d  osta  caria.  Sc^'aimos  a  leitura qa« 
elle  preferiu,  por  aoà  parecer  tambeiu  a  nuá  mais  clara  e  i>e^'ura,  do  que  a  da  copfedo 
maanseripto  da  academia  real  das  Bdeoeiai,  da  qual  se  «ctniila  o  docmneDle  pvbli» 
eadono  tomondos  iitnoff  dot  tàmin  elélreB  dê  abril  e  maio  de  t8!|B, 


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1 


n 


CARTA  NOTAVRL  DE  MARTIM  APFONSO  DE  SOUSA.  GOVERíNáDUK  DA  iKDÍA. 
MERIDA  NO  CAPITULO  ÍY  DO  LIVRO  VII  D'm£  VOLUME 


«Despois  de  ter  escrito  a  Vossa  Spnhoria  me  fez  Deos  cá  tantas 
mercês,  que  vo»  afSnno  que  me  íaz  estar  tremendo,  porque  sei  muy 
bem,  que  ihe  nfio  mereço  neahuma  delias;  mas  elle  iáz  como  quem 
tie.  E  porque  a  ordem  do  negocio  Diogo  da  Sylveira  e  outros  vola 
dirfio,  nSa  digo  aqui  senão  o  sumario  dns  cousas.  Cá  estayao  dous 
senhores  em  grandes  diíTerenças:  Hidalcão  e  Âcedacâo  levantado 
que  qiiei  ia  ípie  fosse  Hidalcáo  o  Meale  senhor  de  Belegate,  que  es- 
taTa  em  Goa :  ambos  tinham  grande  necessidade  de  my ;  tardey  em 
me  determinar,  porque  estava  esperando  quem  levava  a  melhor.  Já 
náo  são  de  huns  primores  de  acudir  á  p."  mais  iraca.  Apertaram 
comigo  tanto,  que  não  pude  al  fazer  senão  descubrilla  logo  e  mos- 
trar o  que  tinha  na  mão.  Determiney-me  polio  Hidalcão,  que  pare- 
cia ter  mais  justiça  e  mais  íirmp:  ainda  que  vos  certifico  qne  da  ou- 
tra avia  tantas  razões  e  contrários,  que  me  foi  necoss.»  socorrer-me 
a  missas  o  devassões.  Mas  afim  assentei  com  o  Hidalcão,  o  (jual  me 
deu  para  Elrei  nosso  Senhor  as  terras  lirmes  d'aqui,  que  rendem 
quarenta  e  sinco  mil  pardaos  de  juro  e  erdade  com  grandes  ])rome- 
timentos  e  doações  e  solenidades,  e  alem  disso  me  mandou  setenta 
mil  pardaos  p.»  ajuda  das  armnihs  dei  Hey  nosso  Senhor  e  vinte  mil 
pêra  my,  a  saber:  dez  mii  pêra  luna  joia  de  minha  molher  e  dez  mil 
pêra  um  banquete ;  e  isto  feito  licava-nos  o  outro  por  contrario. 
Vem  Deos  e  ma  ti -o  d'al)i  a  seis  dias  e  lica  o  Hidalcão  por  senhor 
pacifico  de  tudo.  E  não  conl»  nte  com  isto  veo-se  a  my  hum  mouro 
que  era  muyto  privado  do  Acedacão  e  meu  amigo  da  outra  vez  qne 
c4  andey,  e  desta  que  tem  recebido  de  my  muyto  boas  obras]:  dis- 


606  DOCUMENTOS  iLLUSTBATIVOS 

Sf-me  qut*  pois  seu  smlior  na  Jiiui  tu,  qu'-  não  (iinTia  outro  soiihor 
si'nà(>  a  ray,  e  qiio  uit'  «{HtTí.i  <»ntr<'|£rar  quinhentos  mil  pardaos  que 
linha  d>'  sfu  stTilior,  «^u.un  ni;uido  trrsentos  mil  a  EIrey  nosso 
spnhor  peta  ajuda  do  cnsainrnlo  do  senhor  lífante.  Poreni  destes 
loHiey  trinta  mil  pt-ra  my.  (pie  he  o  dizimo  que  lá  mando  a  minha 
moUiiT,  porque  em  razão  «  stii  que  teiiha  iLinn  i  i  irte  disso  pois 
o  poderá  ter  todo;  que  eu  poderá  ter  tomado  e^it  dinheyro  sem  o 
iiingUí^m  sai*er,  e  que  o  souberão.  ti\  erão  muy  pouca  justiça  contra 
my:  qne  isto  não  o  denlo  m  EIrey  nosso  Senhor,  nem  o  ganhey 
com  &ua  gente,  nem  com  sua  armada,  nem  aventurou  a  isto  nada 
senáo  a  amisade  que  este  mouro  tinlia  comigo,  que  antes  se  quiz 

des<  ol>rir  a  my  que  a  outrem  Beijo  as  niâos  a  Vossa  Senhoria. 

Goa  .  -  >  de  dezembro  de  l'>44.  FJi^ ros  do  conde  da  Castanlieira  — 
Livro  i.  Noticias  extiahidas  dos  Apontamentos  de  fr.  Luiz  de  Sousa 
na  sua  obi  a  intitulada  Annaes  de  EIrey  D.  Jmo  Terceiro,  pag.  413, 
Memoriaii  e  Documentos,  b 


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ÍNDICE 


UVRO  Vll-S&IAIMI  SOCIAL  M  MOKâUCIlA 

PARTS  Vn— FOBÇáS  OmMOma  E  DJIPUJMIVAA 

CAPITULO  i -MILÍCIA  DE  TERKA 

Antiga  organisaçáo  militar  do  paiz.  —  Snas  opochas  notáveis. — 
Ordenanças  creadas  por  D.  Sebastião  em  Í570.  — Hepugnait- 
(rias,  que  encontraram,  e  causas  d'ellas. — Escoia  marcial  dos 
portuguezes. — Superioridade  das  armas  hespanholas  e  sua 
influencia. — Formação  do  terço  de  infanteria  como  unidade 
láctica. — Primeiros  terços  da  corôa  de  Portugal. — As  pa- 
tentes na  milicia  do  século  xvii. — Armas  diversas  de 
eliase  compunha. — Cavallaria  pesada  e  cavallaria  ligeira. — 
Arcabuzeiros  montados. — Dragões. — Os  postos  e  suas  pre- 
eminências.—  Artilheria. — Mauricio  df  Nassan  e  Gustavo 
Adolpho.  —  Administração  militar.  —  Ordens  de  batalha  ma» 
usadas.  — Promoções.  —  Fardamentos.  —  Disciplif». — ^ta- 
do  de  fraqueza  do  paiz. — Providencias  para  o  Mu  aittn- 
mento  e  defesa. — Soldoa. — Baeafgos  da  milleia  

CAPITULO  II— MARUOIA  DE  GUiSRftA 

Progressos  da  marinha  portHgueza  até  Afibnao  V.  Passagem  da 
cabo  da  Boa  Esperança.  —  Grandezas  Mms  dos  reinados  de 
D.  l^lâuuel  e  D.  ioâo  III.  Esquadras  de  gnarda  cosia.  Con- 
venção de  1582. — Perdas  sensíveis.  Govertio  de  D.  Sebas- 
ti&>.— Uniio  de  PMigÉl.  Fitippe  IL  Eupmufm  ffilMildaB. 


608  índice 

A  invencivel  armada.  Declinação  rápida  nos  reuiaiktt  de  Fi- 
lippe  m  e  Pilippe  IV.  Hostilidades  dos  hollandexes  e  íngle- 
zes.  Superioridade  maritíma  das  duas  naçS».  RasSo  d'eUa. — 
Serviço  da  nobreza  nas  armadas.  Gommandos.  Syaleida  er* 
rado  da  côrte  de  Madrid  na  direcçA>  das  forças  navaes  de 
Portugal.  Offensas  aos  brios  nacionaes. — Expedição  da  Ba- 
hia. Naufiragio  da  armada  em  Derrota  do  conde  da 
Tone.  Abatimento  completo  da  marinha  e  do  conunercio. 
Gansas  principaes.  Mau  estado  das  oonstrucçOes  navaes.  Pe- 
jamento  dos  navios.  Arm.unorito  navaL  Naus,  carraças,  ga- 
Ie6es  e  galés.  Opiniões  de  Thomé  Cano. — Soldos  e  pagas. 
Decadência  visivel  da  marinha  e  sna  inferioridade.  Defesa 
das  imças  do  litoral   39 

CAPITULO  UI~POS8SSSOBS  ULTRAMARINAS  DA  AFRICA 

E  DA  AMERICA 

Importância  dos  descobrimentos  dos  portqgaeses  ho  século  xv. 
O  infante  D.  Henrique.  Basões  da  sua  perseverança.  Opi- 
niões dos  geographos  antigos  e  da  meia  idade  sobre  a  nave- 
gação do  Atlântico.— Gil  Eannes. — Sagres.  Novos  progres- 
sos nos  dias  do  infante  e  nos  reinados  de  Affimso  V  e 
D.  João  11. — Pensamento  religioso^  politico  e  commercial 
das  navegações  portugnezas.  Systema  de  colonisação  geral- 
mente seguido. — As  ilhas  da  Madeira  e  Porto  Santo. — O 
archipelago  de  Cabo  Verde. — As  terras  de  Guiné. — O  res- 
gate da  Mina.  — As  ilhas  de  S.  Thomé  e  Príncipe. — Desco- 
brimento do  Congo.  Occuparílo  da  costa  de  Angola  e  Ben* 
guoUa.  —  Hostilidades  e  conquistas  dos  hoUandezes.  Estado 
decadente  precário  das  possessíjes  da  Africa  oceidonfal. — 
O  Brazil  e  suas  capitanias.  Desenvolvimento  f!a  riquez^i  (!•■ 
algumas.  Atrazo  de  outras.  Causas  geraes  de  paraiysação. . . 

CAPITULO  IV— POSSESSÕES  ULTRAMARINAS  OA  ASIA 

Causas  remotas  da  declinação  do  Estado  da  índia.  Idades  da 
conquista.  Erios  e  corrupção  logo  nos  primeiros  annos  d'el- 
la.  —  Systoma  de  occupaçâo.  D.  Francisco  de  Almeidn  e  Af- 
fonso  de  Albuquerque.  —  Degeneração  dns  caracteres  e  dos 
antigos  costumes  guerreiros.  £aíiaqueàmento  da  milicia  de 


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índice 


609 


mar  e  terra.  Suas  rasões.  —Luxo  e  avidez  da  magistratura. 
Venalidade  e  delapidações  das  outras  classes. — Os  presídios 
de  Africa  desamparados  por  O.  Jodo  III. — Estado  das  pra- 
ças do  litoral  da  Baiberia  no  século  xvn. — ExtorsOes  dos 
capitães  das  fortalezas  na  índia.  Soltura  de  costumes.  Inces- 
tos» roubos,  rixas  e  homicídios. — Martím  Alfonso  de  Sousa, 
Antonio  de  Faria  e  Diogo  Soares.  Impunidade  dos  atteuta- 
dos  felizes. — Decadência  de  Goa.  127 


LIVRO  TUI 

PARTE  Vni -FORÇAS  MORAES 
CAPITULO  l~  MISSÕES  NA  AFRICA  E  NA  AMERICA 

A  idéa  religiosa  unui  das  caysas  dos  descobrimentos.  Introdue- 
çSo  do  christíanismo  no  archípelago  e  terra  firme  de  Qd» 
Veide  e  na  ilha  de  S.  Thomé.  Os  reinos  do  Congo  e  de  An- 
gola. Serviços  e  ambig^o  da  companhia  de  Jesus. — Africa 
oriental.  Jesuítas.  Missionários  da  ordem  de  S.  Domingos. — 
O  Brazil.  Entrada  di»  primeiros  padres  ua  armada  de  Tho- 
mé de  Sousa.  Gollegio  da  Bahia.  MissOes.  Gatechese  e  orga- 
nisaçSo  das  aldeias  de  índios.  —  Quest^s  sobre  a  liberdade 
dos  gentios.  Providencias  governativas.  Fins  particulares  da 
sociedade. — Superstições  e  costumes  dos  africanos.  Pouco 
íructo  das  missões  entre  elles. — Systema  seguido  pelos  mis- 
sionários no  BraziL  Docilidade  dos  indios.  Profunda  corru- 

*  pçSo  da  sociedade.  Rasões  d'ella  e  suas  consequências.  i59 

CAPITULO  il— MISSÕES  NA  INOIA,  CUINA  £  JAPÃO 

Caracter  clvilisador  das  missões.  Habilitações  dos  missionários. 
Zélo  dos  nossos  monarchas  pela  propagação  da  fé. — As  or- 
dens religiosas  na  índia.  Os  franciscanos,  os  dominicanos  e 
os  jesuítas. — Rápidos  progressos  da  companhia  no  oriente. 
Virtudes  e  serviços  apostólicos  de  S.  Francisco  Xavier. — 
Distribuição  das  missões  pelas  ordens  religiosas. — Discór- 
dias dos  franciscanos.  Sua  importância  na  historia  do  chris* 
tianismo  da  Asia.  CreaçSo  da  província  de  S.  Thomé.  Rela- 

tOMO  T  39 


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61U  índice 

zaçSò  dA  antiga  disciplina.  ~  Estado  das  outras  religiões. 
Systema  repieheii8i?d  dai  oonTeraflea  í^rçadas.  Inunorali- 
dado  garai— EiTDB  doa  jesuítas.  Metbodos  usados  nas  mis- 
aOes  orientaes.  Resnltadoa. — Politiea  ezclnsiva  no  Japão  e 
na  China.  Péssimas  conse^ndas. — As  christandades  da 
índia  6  o  seu  numero.  Excessos  da  companhia  de  Jesus. 
Almsos  das  outras  ordena.  Escândalos  nos  púlpitos.  Corru- 
pção do  dero  secular .  • .  189 

CAPITULO  líl-ÍNSTKUCÇÃO  PUBLICA 

Imputação  injusta  do  atrazo  intellectual  do  reino  ao  governo 
hespanhoL — O  ensino  quasi  exclusivamente  eodesiastioa 
^oranda. — A  universidade  de  Lisboa.  Os  reinados  de 
D.  Manuel  e  de  D.  JoSo  m.  Transferencia  doe  estudoe  para 
Coimbra.  Lentes  nacionaes  e  estrangeiros. — A  oídem  de 
S.  Domingos.  Esplendor  da  univessidade  reformada. — A 
companhia  de  Jesus  em  Portugal  OpposiçUo  contra  ella.  Fa- 
vores da  cdrte.  Invasão  dos  estudos  pda  sociedade. — As 
universidades  de  Coimbra  e  de  Évora  no  século  xvi  e  na 
primeira  metade  do  xvn.  Faculdades  e  cadeiras.  Regras  dis- 
ciplinares.— Estado  da  instrucção.  Frequência  das  aulaa.  ín- 
dole do  ensino.  E£feitos  da  influencia  jesuítica.  217 

CiPlTULO  IV— ESTADO  DAS  SCnSNCIAS  E  DAS  LETRAS 

Corrupção  do  gosto.  ImitaçSo  clássica  servil.  Decadência  das 
sciencias.  A  theologia,  o  direito  civU  e  canónico,  e  a  medi- 
cina. As  humanidades. — Estado  litterario. — A  epocha  de 
D.  João  1.  O  século  de  D.  Manuel.  Sua  cultura  adiantada.— 

Gil  Vicente  e  Bernardim  Ribeiro. —A  epopeia  nacional.  Luiz 
de  Camões. — Estacionamento  precursor  da  decadência. — As 
sciencias  na  primeira  metade  do  século  xvu.  Varões  emi- 
nentes. Invasflo  do  gongorismo.  —  Poemas  heróicos  posterio- 
res aos  «Lusíadas».  Poesia  bucoiicA.  Rodrigues  Lobo.  Poesia 
dramática.  Sua  esterilidade.  Tragicomedias  latinas.  Pateos 
das  comedias.  Estudos  históricos.  Brandão  e  Couto.  Prosa- 
dores distinctos  •  247 


ÍNDICE 


611 


LIVEO  11 

FAB.TE  IX— FORÇAS  SOOIAES 
CAPITULO  I-O  CLERO 

Importância  do  estado  eodesíastica  Lutas  nos  primeiros  seca* 
los  dA  moDarchia  entre  a  corda  e  o  clero.— A  cúria  roma- 
na. Concordatas  de  el-rei  D.  Diniz.— Politica  dos  soberanos 
do  século  XVI.  Siía  intima  alliança  com  a  igreja.  Novos  pri- 
vilégios. Subsídios  eedesiasticos.  Promessas  de  Filippe  II 
ácerca  dos  bens  do  clero. — ^Viòleneias  de  Olivares.  Grande 
accomuIaçSo  de  propriedades  ecclesiasticas  m»  secuk»  xn 
e  xvn.— Roma  e  seus  collectores. — Odio  promado  pek 
administração  do  conde  dnqua  Effeitos  da  exoessiTa  ríqoeia 
do  clero  secular  e  regdar.— Conventos  de  freiras.. Occnpa- 
ç0es  mundanas  dos  frades.  A  inquisição  e  sua  influencia  so- 
bre o  caracter  e  os  destinos  do  poya  307 

CAPITULO  11 -A  ríOBREZA 

Soas  lelaçOies  com  a  corda.  Condições  de  existência.  Ausência 
do  systema  feudal  na  sociedade  portugneza.  D.Diniz,  D.  Fer- 
nando e  D.  JoSo  Serviço  militar  dos  fidalgos  e  cavallei- 
ros. — Governo  de  AffonsoY.— Alliança  de  D.  JoSo  II  com 
as  classes  medias.  Luta  e  resistência  da  aristocracia.  Victoria 
da  auctoridade  monarchica.— D.  Manuel  Reconciliação  da 
corda  com  a  nobreza.  Os  descobrimentos  e  as  conquistas. — 
Reinados  de  D.  JoSo  IH  e  D.  SebastiflO.  O  poder  pessoal — 
Effeitos  da  unidade  monarchica.  CorrupçSo  dos  costumes. 
Degeneração  do  caracter.  Catastrophe  de  1578.  Ruina  das 
íamilias  nobres.  Gdrtes  de  Thomar.  Pedidos  dos  fidalgos.  Po- 
litica errada  da  Hespanha  com  elles  337 

CAPITULO  IIl-O  REI,  AS  COHT£S  fi  OS  AUXILIARES 

DO  tiOVfiKNO 

Revolução  operada  nas  instituições  politicas  pelos  progressos 
da  unidade  monarchica.^ O  poder  real.  As  cdries.  O  prin- 

89. 


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61i 


liNDlCK 


cípio  da  hereditariedade  da  corda. —Parlamentos  nacionaes. 
Epocba  da  entrada  n'elles  do  estado  popular.  Caracter  e  at- 
tribníçOes  das  côrtes.  Causas  do*  enfraquecimento  de  snas 
prerogativas. — Pòrma  da  eleiçSo  e  da  legalísaçSo  doa  pode- 
res dos  procuradores  na  segunda  metade  do  século  xti  e  na 
primeira  do  xvii.  OpposiçSo  secreta  do  poder  real  ao  desen- 
volvimento da  representação  nadonaL-^  Novos  princípios 
proclamados  em  1641 .  Formalidades  nas  deliberaç(Ses  dos  es- 
tados e  relações  d'elles  entre  si  e  com  a  ooróa. — O  conse- 
lho politico  dos  monarchas  nos  séculos  xv  e  xti.  CreaçSo  do 
conselho  d*estado.  Ftlippe  II.  Fundação  do  conselho  de  Por- 
tugal em  Madrid.  Pessoal  d'elle.  Funcções.  Reformas  por  que 
passou.  O  conselho  d'estado  quasi  annullado  em  Lisboa.  Cau- 
sas da  desorganisaçSo  da  administração  superior. — Escri- 
vães da  puridade.  Secretarias  d'estado.  AttnbuiçOes  espe- 
ciaes  d'estes  cargos  e  a  sua  influencia.  Secretários.  DívisSo 
dos  negócios  pelas  secretarias.  •  373 

CAPITULO  IV-lNSrirUiCOKS  ADMIMblKATlVAS,  JUDiClAtS 

E  DS  FAZENDA 

Divjs.io  administrativa,  judicial  e  ecclesiastica  do  reino  em 
1641.— Vários  elementos  de  que  nasceram  as  instituições. — 
As  antigas  correições  e  a  reforma  de  D.  João  111.  ~ As  mu- 
nicipalidades e  08  cargos  dos  concelhos.  Os  provedores  e  os 
contadores  das  comarcas. — Tríbunaes  superiores.  O  desem- 
bargo do  paço,  a  casa  da  supplicaçSo,  a  relação  do  Porto,  a 
chancellaria  mór  e  a  mesa  da  consciência  e  ordens.— Trí- 
bunaes menores.  Juízos  da  alfandega,  da  casa  da  índia,  do 
eivei  e  do  crime  de  Lisboa.  Effeitos  da  subdivisão  das  ju- 
risdicçôes.  Insufliciencia  dos  ordenados.  Corrupção  dos  jul- 
gadores e  dos  officiaes  de  justiça.  —  Augmento  dos  vencimen- 
tos e  imiii! idade  d'elle.  Consulta  do  conselho  de  Portugal 
em  iOli'.  -Estado  da  jurisprudência  e  do  f(3ro.  -  Sjstema 
da  adriiinistrarSo  da  fazenda.  Cansas  da  sna  complicai (;;lio. — 
Corisplho  da  fazenda.  Casa  dos  contos.  Antigas  vedorias. 
Contadores  e  recebedores  das  comarcas.  Tentativas  de  re- 
forma nas  repartições  snpnnores.  —  Imposto*;  indirectos  e 
sua  administraçiio.  Tribunal  da  alfandf^M.  Sele  rasas.  Cas.i 
da  índia.— Noticia  das  contribuições  no  século  xvii.  Dire- 


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l.NDICli: 


613 


cias.  Jogadas  e  colheitas.  Indirectas.  Sizas.  Tributos  munici- 
paes  de  venda,  coiisuino  e  transito.  Npvos  impostos,  ('onsu- 
lado.  Real  sobre  a  carne  e  o  vinho.  Meia  annata.  Bonelieio 
do  bagaço  da  azeitona.  -  Systema  da  arreiuatação  das  ren- 
das publicas. — lleceilas  e  despezas  41i 


LIVRO  I 

PARTE  X- INSTITUIÇÕES  £  COSTUMES  SOCIAES 

CAPITULO  1  — CAKllíADt;  E  FOLíLilA  SAMTARIA 

Estabelecimentos  de  beneGcencia.  Hospitaes.  O  de  Todos  os 
Santos. ^Misericórdias.  A  de  Lisboa. — Serviço  de  saúde 
publica  na  capital. — Policia  medica. — Mortalidade  em  Lis- 
boa.—Mendigos,  vadios  e  ciganos.  Providencias  ácerca  d'el- 
les. — Preço  elevado  das  subsistências. — Pobreza  geral  475 

CAPITULO  lI-SEíiUUANCA,  CIV1L16AVAU  t  MELHORAMENTOS 

OiganísaçSo  da  policia  em  Lisboa.  Crimes  em  diversas  terras 
do  reino.  Sua  impunidade.  Desacatos  e  escândalos,— Falta 
de  segorança.— Desaiios.  Inutilidade  dos  meios  repressi- 
vos.— Atraso  da  civilísaçfio  em  algumas  de  suas  manifesta- 
ções. Estalagens.  Correio  mòr.  Serviço  das  correspondências. 
Calçadas  em  Lisboa.  Edificaçilo  dc  prédios.  Abastecimento 
de  aguas.  T^itatívas  para  o  melborar.— Rápido  esboço  do 
aspecto  da  cidade.  O  Terreiro  do  Paço  e  o  Rocio.  Ruas  prín- 
cipaes.  Palacios  do  rei. — A  navegaçSo  do  Tejo  nos  fins  do 
século  XVI  601 


CAPITULO  m-LUXO.  SUPERSTIÇÕES,  tESTAS  OFFICUES 

E  RELIGIOSAS 

Corrupção  dos  costumes.  Progressos  assustadores  do  jogo.  Ma- 
nifestações exageradas  do  luxo.  Pragmáticas.  Sua  inefiElcacía. 
Quadro  da  ruinosa  opulência  dos  gastos  e  adornos  na  pri- 
meira metade  do  século  xvil  Miséria  occulta.  Venalidades. — 
Ignorância  quasi  geral. — Superstições  populares.  Feiticeiros. 


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614  ÍNDICE 

Penas  dos  códigos  e  das  ooiisfcitiii{0es  dos  bispados  eontra 
elles.— Recreais  publicas.  Recepções  e  festejos  offidaes 
nos  séculos  xti  e  ztil  Romarias  e  foncçSes  leligiosas  no  se- 
culo  xyo  623 


CAPITULO  1? 

Conclusão  555 


DOODVEMTOS  ILLUUTKATIVOS 

I.  Carta  de  D.  Francisco  de  Almeida,  referida  no  capitulo  iv  do 
livro  m  d'este  volume  683 

If.  Carta  notável  de  Martim  AíTonso  de  Sousa,  govemador  da 
Índia,  referida  no  capitulo  iv  do  livro  vn  d'e8te  volume  . . .  605 


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■ 


4 


ERMTAS 


VAO. 

O.ÍDI  SB  lii 

LIIA-SI 

9» 

tl 

eui  3  de  dezembro  de  1460 

em  13  de  novembro  de  1460 

195 

V 

e  ao  cabo  de  loi^seefíirtos 

e  Portugal  ao  cabo  de  Un^os  esforços 

m 

10 

Portugal  coiisenou  intacta 

conservDu  ial-actn 

130 

9 

o  Hyffí^lkril  f  0  Achoai 

0  Idaikan  e  u  Achem 

á30 

Í4 

e  0  iljdelkan  hHiuilliados 

e  0  Idalkau  bumilLadOii 

130 

eontra  o  Hyddkan  em  Goa 

coatra  o  Idalkan  em  Ooa. 

«5 

18 

0  eiuiiio,  08  iMUneu 

0  ensino  dos  bomens 

270 

16 

e  nas  tbeoriaâ  náuticas 

a  nas  tfwnri.is  niaritimas 

283 

5 

re>;nr-se  a  escoridio 

cegar- se  de  escuridão 

459 

9 

repartida» 

repartidos 

476 

6 

as  flutentavan 

os  snstantaTam 

(89 

IS 

tinha  doas 

baTiadiias 

497 

18 

porque  triumijliaram 

C4:im  que  triumpbararn 

SM 

27 

de  (|ue  podiam  acomiianhar 

do  que  podia  acompanliar-se 

860 

26 

da  Deus 

de  Deuj 

* 


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BIBLIOTECA  DE  MONTSERRAT 

miiiiHiniiii 


13020100028076 


EBLIOTECA 
DE 

MONTSERRAT 

I 

Secció  \J1.  

Formal  O.  

Número. 


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Quais as vantagens da união entre o rei e a burguesia?

A burguesia se beneficiou com a existência de uma só língua, uma só moeda e mais segurança nas transações comerciais. O rei também se beneficiou, pois obteve mais dinheiro, exército e poder em suas mãos.

Por que o rei fez aliança com a burguesia?

A aliança entre a burguesia e os reis foi fundamental para a formação das monarquias nacionais na Europa. Com a ajuda financeira da burguesia os reis montaram um exército e conseguiram impor o seu poder sobre os nobres.

Quais as vantagens obtidas pela burguesia ao firmar a aliança com o rei?

Benefício para a expansão do comércio, o fortalecimento do Estado-nação, por seu turno, induzia ao aumento dos impostos para o pagamento de exércitos profissionais, do corpo jurídico, da máquina administrativa e, em alguns casos, para comprar a submissão e a fidelidade da nobreza ao rei.

Quais as vantagens para a burguesia?

Necessitando do pagamento de mais impostos para expandir a máquina administrativa dos reinos que se centralizavam politicamente, os reis se aliariam com a burguesia ao promover a economia mercantil; bastante importante, neste sentido, seria o incentivo feito à manutenção de rotas comerciais dentro e fora do continente ...