Quais as duas correntes teóricas e seus respectivos teóricos que defendem a visão interacionista de desenvolvimento?

Quais as duas correntes teóricas e seus respectivos teóricos que defendem a visão interacionista de desenvolvimento?

perturbações regulações compensações; ou seja, uma regulação é decorrente de uma perturbação, salientando-se que nem toda perturbação leva necessariamente a uma regulação. O mesmo ocorre com as compensações em relação às regulações.

Mas o que é mesmo uma compensação? "É uma ação no sentido contrário a determinado efeito e que tende, pois, a anulá-lo ou a neutralizá-lo...". (Piaget, 1976:31)

E quando as regulações levam às compensações?

Nos feedbacks negativos (obstáculos ou correções) ocorre a compensação quando se corrige a ação:

  • no caso de obstáculos exteriores quando estes são afastados ou contornados. A perturbação neste caso é compensada por uma negação inteira ou parcial, correspondendo esta última a diferenciação do esquema em sub-esquemas;
  • quando se tratam de assimilações representativas o processo é análogo, ou o fato exterior é negado enquanto perturbador (negligência ou recalcamento) ou acontece a modificação do esquema que se diferencia através das negações parciais.

De modo geral os feedbacks negativos sempre conduzem a compensações, podendo-se distinguí-las em:

  • por inversão- anulação da perturbação (negações inteiras);
  • por reciprocidade- que diferenciam o esquema para acomodá-lo ao elemento perturbador (negações parciais e internas ao novo sistema assim reestruturado)..

No caso dos feedbacks positivos (lacunas ou reforços) de modo algum a compensação está excluída, apesar de ficar mais complexa a sua compreensão, "senão não se compreenderia porque existe a regulação". (Piaget, 1976:32)

Toda a aquisição de conduta onde intervêm reforço supõe correções: mudar de meios depende ao mesmo tempo de reforços e de correções. Há mais, pois o reforço destina-se a preencher uma lacuna e exatamente aí está a compensação, segundo a definição adotada. Mas o principal está no valor que o sujeito atribui à meta perseguida, quando da formação de um feedback positivo, neste caso, basta dizer que o reforço na procura desempenha o papel de compensação quanto ao déficit de orçamento que sem ele se saldaria negativo.

Há ainda o caso das regulações de regulações. Neste caso temos um comportamento análogo, mas as compensações em questão são mais complexas porque recaem sobre mecanismos já compensadores, donde as negações que engendram são mais elaboradas e começam a se aproximar das operações inversas.

A equilibração majorante

"..A equilibração cognitiva não marca jamais um ponto de parada....Todo conhecimento consiste em levantar novos problemas à medida que resolve os precedentes...A razão deste melhoramento necessário de todo equilíbrio cognitivo está em que o processo da equilibração acarreta de modo intrínseco uma necessidade de construção, logo de ultrapassagem." (Piaget, 1976:34)

"...Seria pois assaz insuficiente, conceber a equilibração como uma marcha para o equilíbrio, pois ela é além disso constantemente uma estruturação orientada para um melhor equilíbrio....Convém, por isso, referir-se além das equilibrações simples, sempre limitadas e incompletas, às equilibrações majorantes no sentido destes melhoramentos..." (Piaget, 1976:35)

Esta majoração pode ser obtida de duas maneiras diferentes: ela pode advir simplesmente de uma regulação compensadora bem sucedida (equilíbrio momentaneamente atingido), ou ela pode também surgir, por abstrações reflexivas, do próprio mecanismo destas regulações, uma vez que, toda regulação transforma o sistema segundo estruturas próprias, o que torna mais rica a forma do sistema.

Entre os melhoramentos do primeiro tipo podem ser citados (resultados oriundos do sucesso de uma regulação):

  • inicialmente um alargamento do campo de sistema em sua extensão (assimilação de novos elementos, os perturbadores);
  • diferenciações (compreensão ao invés de extensão), os elementos inicialmente inassimiláveis tornam-se, em seguida constitutivos de um novo sub-esquema. É importante notar que toda a diferenciação comporta uma integração, a integração do novo sub-esquema ao de nível superior que o suporta.
  • aumento da possibilidade ou favorecimento à criação de novos subsistemas. Aqui é preciso considerar que cada esquema de assimilação comporta uma certa capacidade de acomodações, relacionada com a não ruptura do ciclo do qual ele é formado (norma de acomodação). Ora esta capacidade é tanto maior quanto maior é o número de esquemas elementares ou sub-esquemas já construídos no sistema total, já que neste caso aumentam as probabilidades de regulações e acomodações. Mas note-se que neste caso aumentam as chances de assimilações recíprocas o que levaria a formação de novos subsistemas dentro da totalidade.

Quanto aos melhoramentos do segundo tipo (aqueles oriundos da estrutura ou do mecanismo da regulação), o grande progresso aqui é a construção gradual das negações de diversas ordens, já que esta é essencial para o estabelecimento do equilíbrio ( a sua carência inicial é a razão dos numerosos desequilíbrios no estágio pré-operatório). Isto ocorre porque as regulações compensadoras são na sua própria estrutura instrumentos formadores de negações. Os feedbacks negativos o são evidentemente, já os positivos são uma espécie de negação da negação. É importante ressaltar que esse processo de construção das negações é a expressão de um outro chamado de abstração reflexiva que está ligado de perto ao jogo das regulações, pois o seu mecanismo interfere continuamente na formação das regulações de regulações.

"A abstração reflexiva comporta dois momentos indissociáveis: uma conversão sobre um nível superior daquilo que é tomado do nível precedente...e uma 'reflexão' no sentido de uma reconstrução ou reorganização cognitiva( mais ou menos consciente ou não) do que foi assim transferido. É necessário precisar que esta abstração não se limita a utilizar uma sucessão de níveis hierárquicos cuja formação lhe seria estranha: é ela que os engendra por interações alternadas de conversões e de reflexões..."(Piaget, 1976:39)

"A 'reflexão' representa ,pois, o protótipo de uma regulação de regulações, pois que ela é por si própria um regulador e regula o que está insuficientemente regulado pelas regulações anteriores." (Piaget, 1976:40)

Os períodos da construção da inteligência

A inteligência para Piaget se constrói na medida que novos patamares de equilíbrio adaptativo são alcançados. Piaget concluiu sua obra explicitando qual o motor pelo qual este equilíbrio se processa, mas além disto, Piaget estudou exaustivamente a gênese das estruturas cognitivas nas crianças da sua comunidade. Este estudo lhe permitiu classificar grandes períodos na construção da inteligência no homem. Estes, que contemplam desde o nascimento até a fase adulta são os seguintes:

  • estágio sensório motor (entre 0 e 2 anos aproximadamente)
  • estágio pré-operatório ( entre 2 e 6 anos aproximadamente )
  • estágio operatório-concreto (entre 6 e 12 anos aproximadamente)
  • estágio operatório-formal ( a partir dos 12 anos)

A inteligência sensório motora

Piaget no seu livro 'O nascimento da inteligência', já a guisa de conclusão, destaca:

"...damo-nos conta de que todo o sentido do desenvolvimento pode ser interpretado como uma descentração progressiva. No início a criança está num estado de confusão total, nada mais possuindo do que seus reflexos hereditários... seus reflexos se transformam em hábitos, depois, pouco a pouco, estruturações se operam por sua atividade própria.... Os processos de acomodação levam-no a estabelecer com o mundo relações de objetividade. Assim, ao estruturar o objeto a criança se estrutura a si mesmo como sujeito. Quanto mais o mundo se torna coerente, tanto mais ele próprio se torna coerente." (1991:108).

No início o universo consiste de quadros perceptivos móveis e plásticos centrados na atividade do próprio sujeito. Estando a atividade totalmente não diferenciada das coisas que são assimiladas, confunde-se o mundo exterior com as próprias sensações do sujeito, fazendo com que o mesmo não distinga a si próprio, da mesma maneira que o mundo exterior não apareça constituído de objetos permanentes, que o espaço e o tempo não estejam ainda organizados em grupos e séries objetivos e que a causalidade não esteja ainda espacializada nem situada nas coisas.

Do ponto de vista estrutural a lógica sensório motora repousa no esquema que constitui sua unidade. O esquema, nesta fase, é um instrumento de compreensão, mas sem pensamento, sem representação. O esquema é o equivalente funcional do conceito no plano representativo. É, portanto, um conceito prático. Como tal pode ser tomado em compreensão e em extensão: a extensão é o conjunto de situações às quais ele se aplica, a compreensão do esquema é conjunto de propriedades comuns às situações semelhantes. Por exemplo o esquema de pegar pode ser aplicado indiferentemente à mamadeira, ao mordedor, ao barbante, ao lençol, etc.; por sua vez o que há de comum em todas estas situações é justamente o "poder ser pegado".

À medida que os esquemas se diferenciam, multiplicando-se graças à assimilações recíprocas e à progressiva acomodação às diversidades do real, estabelecendo dessa forma uma variedade de relações entre as coisas a que esses esquemas se aplicam, progride a organização da dedução que passa então a se aplicar a experiências agora concebidas como extrínsecas. É justamente a diferenciação entre a assimilação e acomodação que as torna complementares, pois quanto mais os esquemas se diferenciam, tanto mais diminui a defasagem entre o novo e o conhecido, "de tal sorte que a novidade, ao invés de se constituir em obstáculo evitado pelo sujeito, passa a ser um problema que solicita a exploração e a pesquisa." (Piaget, 1963:329).

Daí, pode ser enunciada uma espécie de lei da evolução da seguinte forma: "a assimilação e a acomodação evoluem de estado de indiferenciação caótica para um estado de diferenciação, com coordenação correlativa."(Piaget, 1963:328).

Uma outra interpretação para essa evolução é dada por Piaget. Nesta, o sujeito a princípio tem contato com o mundo exterior, apenas numa zona bem superficial da realidade exterior e na periferia inteiramente corporal do eu. A diferenciação e a coordenação da assimilação e da acomodação, à medida que se aprofunda faz com que "...a atividade experimental e acomodadora penetre no interior das coisas, enquanto a atividade assimiladora se enriquece e se organiza....A inteligência não principia, pois, pelo conhecimento do eu nem pelo das coisas como tais, mas pelo da sua interação; e é orientando-se simultaneamente para os dois pólos dessa interação que a inteligência organiza o mundo, organizando-se a si própria. "(Piaget, 1963:330)

A Inteligência pré-operacional

Sobre esta fase que vai dos 2 até os 7 anos Dolle (1987:115) sintetiza que basicamente ocorre um período responsável pela transição entre uma "inteligência sem linguagem, sem representação, sem conceitos, etc. e a inteligência representativa". Nela, domina uma inteligência simbólica, a criança não pensa propriamente, mas vê mentalmente o que evoca. A rigor poderia se dizer que o seu espírito é a sede de imagens, de quadros particulares que são os representantes imagísticos de situações que viveu ou dos objetos que viu.

A função simbólica que se materializa na linguagem, nos jogos simbólicos e na representação do espaço, do tempo e da causalidade está ainda muito ligada a percepção ( o tempo presente, o resultado imediato da ação, o espaço visível, etc).

Entre dois a cinco anos, a criança adquire a linguagem e forma de alguma maneira um sistema de imagens. Mas a linguagem é ainda um sistema de símbolos que lhe permite evocar tão somente realidades particulares (a palavra não tem ainda o valor de um conceito), através de seu correspondente imagístico. Tendo ainda significado próprio, é fácil ver que um pensamento deste nível não é socializado.

O pensamento conceptual contém componentes ausentes da fase sensório-motora, e que apenas começam a se delinear no período operatório concreto. Em primeiro lugar a inteligência sensório-motora tem como critério básico o êxito, enquanto que, a inteligência conceptual submete-se às normas da verdade. Não está em questão nessa primeira fase, compreender por que tal ou qual resultado é alcançado, o interesse está no resultado apenas, logo, a reflexão ainda está ausente.

"Adquirida a linguagem , a socialização do pensamento manifesta-se pela elaboração de conceitos e relações e pela constituição de regras. Quer dizer, há nesse caso uma evolução estrutural. É justamente na medida, até, que o pensamento verbo-conceptual é transformado pela sua natureza coletiva que ele se torna capaz de comprovar e investigar a verdade, em contraste com os atos práticos da inteligência sensório-motora e à sua busca de êxito ou satisfação" (Piaget, 1963:336).

Nesta fase, o surgimento da linguagem e do pensamento conceptual acarretam o surgimento de todas as dificuldades já vencidas no domínio da ação, o que fica claro quando, numa determinada idade a criança está bem mais avançada no domínio da ação do que no plano verbo-conceptual; dito de outra forma, há defasagens em compreensão e não só em extensão, ou seja, a criança não consegue ainda refletir, em palavras e em noções, as operações que já sabe executar em atos.

"O pensamento da criança pré-operacional é egocêntrico . Predomina uma visão de mundo que parte do próprio eu. Não consegue 'pensar seu próprio pensamento', só vivenciá-lo. Suas explicações e sua crenças baseiam-se na mistura de impressões reais e fantásticas que resultam num entendimento distorcido da realidade." (Fialho, 1994:94)

A criança nesta fase ainda não consegue construir a noção de classe. A capacidade de desenvolver a classificação se estabelece durante um longo período: Inicialmente (de 2 a 5 anos) faltam a regulação 'todos' e 'alguns', então a criança salta da extensão para a compreensão, e vice-versa, indistintamente e de forma desajustada. Nesta fase é melhor falar de coleções figurais (configurações perceptivas) do que de classe efetivamente. Já a partir dos cinco até sete anos, é melhor falar em coleções do que em classes, dado que os objetos são agregados em pequenos montes fundados somente nas semelhanças, mas não ainda encaixados formando classes mais gerais. Estas coleções ignoram ainda a noção de inclusão, mas o uso do quantificador 'todos' é cada vez mais freqüente e aos poucos começa a se formar uma conduta de encaixamentos das coleções dando então início à noção de classe e de inclusão.

Quanto a seriação, se poderia dizer que a mesma é desenvolvida concomitantemente com a classificação e também progressivamente, como bem o demonstrou a experiência com as 10 varetas de tamanhos distintos: dois a cinco anos- a criança fracassa, só conseguindo ordenar pequenos grupos de três ou quatro varetas; até oito anos - a criança consegue ordenar mas não de forma sistemática, apenas por tentativas; só a partir dos oito anos é que a ordenação sistemática é atingida com a procura pela menor de todas as varetas inicialmente, depois a menor de todas as restantes, e assim sucessivamente.

O período operatório concreto

Nesta fase (sete até onze ou doze anos), as operações de classificação e de seriação que se elaboram enquanto se constituem especialmente os invariantes de substância, peso e volume dão muito mais mobilidade ao pensamento. O desenvolvimento dessas capacidades só pode explicar-se em função de um progresso interno da lógica infantil. Mas essa maior mobilidade do pensamento ainda é limitada pela realidade concreta, ou seja ela ainda se aplica apenas às ações e não às hipóteses.

A reversibilidade lógica é adquirida pela criança por volta dos sete anos. Inhelder destaca (apud Dolle, 1987:124):

"a atividade da criança torna-se operatória a partir do momento em que adquire uma mobilidade tal que uma ação efetiva do sujeito (classificar, ordenar, adicionar, etc.) ou uma transformação percebida no mundo físico (de uma bola de massa de modelar, de um volume de líquidos etc.) pode ser anulada em pensamento por uma ação orientada em sentido inverso ou compensada por uma ação recíproca".

Dizer que a atividade tornou-se operatória é dizer que ela é reversiva por um lado, mas que repousa em invariantes por outro lado, o que constitui um esquema de conservação. Logo, uma operação é tudo aquilo que transforma um estado A em um estado B, deixando pelo menos uma propriedade invariante no decurso da transformação, e com retorno possível, a partir desta invariante, de B para A, anulando a transformação.

Os esquemas de conservação que surgem neste período são adquiridos concomitantemente à aquisição de estruturas lógicas e matemáticas que lhe servem de sustentação, estas são as estruturas de classe, de relação e de número.

As classes e as seriações se constituem por volta dos sete a oito anos marcando o começo das operações concretas. A partir daí segue-se o desenvolvimento de estruturas que incidem sobre várias classificações ou seriações ao mesmo tempo. Piaget os chamou de agrupamentos multiplicativos (por analogia com as estruturas de grupos). A mais simples destas estruturas é a correspondência serial (fazer corresponder a cada boneco de uma série de bonecos ordenados por tamanho a sua mochila, escolhendo-a de um grupo de mochilas também de diferentes tamanhos - para o boneco mair a mochila maior). As classificações multiplicativas são um pouco mais difíceis, tratam-se da classificação de um conjunto de objetos segundo dois atributos distintos, por exemplo, classificar blocos de madeira segundo a cor e a forma, onde:

atributo B1 = cor, sendo classe A1= vermelhos e classe A'1= não vermelhos;

atributo B2 = forma, sendo classe A2 = círculos e A'2 = não círculos.

As quatro classes multiplicativas resultantes da composição B1xB2 são:

A1 A2 = círculos vermelhos;

A1 A'2 = círculos não vermelhos;

A'1 A2 = não círculos vermelhos;

A'1 A'2 = não círculos não vermelhos;

ou seja, B1xB2 = A1 A2 + A1 A'2 + A'1 A2 + A'1 A'2

É importante aqui salientar o fato de que esta classificação multiplicativa, que surge no final do período operatório concreto é o ponto de partida das 16 operações proposicionais da lógica binária, que marcam o aparecimento do período operatório formal, como será visto mais adiante.

Já que para Piaget, o conhecimento se constrói na ação, ou melhor, dizendo na interação com os objetos e com os outros seres cognoscitivos do mundo, para poder explicar a lógica própria do período operatório concreto era preciso a construção de uma lógica da ação. A lógica dos predicados incide sobre enunciados verbais e é, evidentemente, uma lógica que trata também de ações, mas somente daquelas que são realizadas em pensamento, e enunciadas verbalmente. "O conhecimento é um conjunto de ações que podem ser reais ou potenciais, interiores ou exteriores."(Fialho, 1994:182). Piaget precisava então de uma lógica que incidisse mais diretamente sobre a ação realizada sobre os objetos.

A motivação de Piaget para a construção dessa lógica levou em conta quais são as ligações lógicas elementares que compõem a edificação da estrutura do conhecimento, bem como a dinâmica da evolução destas estruturas, ou seja, ele queria explicar a gênese do pensamento. Ora, a lógica clássica não é capaz de tal feito, uma vez que, esta consegue apenas explicar a estrutura do pensamento do homem adulto ocidental, de forma estática, não esclarecendo, portanto, como se deu a sua construção, nem permitindo analisar possibilidades de evolução dessa estrutura. Piaget estava em busca de uma lógica das lógicas, ou, de uma metalógica.

Ou seja, era preciso iniciar de uma lógica intraproposicional, na qual o conteúdo das proposições é também, de certa forma, considerado para só então se chegar à lógica interproposicional, na qual apenas a forma das composições de proposições é analisada. A lógica das operações concretas seria portanto uma lógica intraproposicional.

Para construir a sua lógica operatória Piaget sentiu a necessidade de definir a estrutura do agrupamento operatório,

Piaget constatou e demonstrou (Piaget, 1976a) que as operações de classificação e de relacionamentos, que são as estruturas mais elementares do pensamento, não correspondem às estruturas básicas da lógica proposicional, o reticulado e o grupo. Na busca da caracterização destas estruturas elementares Piaget definiu o agrupamento operatório.

A inadequação da estrutura de grupo, dá-se pelo fato de que as principais operações de uma classificação simples que são as uniões simples e disjuntas, não apresentam a propriedade do fechamento. Tome-se a zoologia por exemplo, a união disjunta de duas espécies tais como a jaguatirica e o dourado resulta num sem sentido no sistema de classes, ou seja resulta numa classes inexistente do sistema. Donde, falta à tal estrutura de grupo a noção de contigüidade dos elementos encaixados, que está presente nas estruturas classificatórias. Já à estrutura do reticulado falta a noção de reversibilidade, e isto é fundamental, pois uma operação é uma transformação reversível.

Piaget identifica oito tipos de agrupamentos que correspondem aos diferentes níveis de classificação e relacionamento que organizam os objetos. Estes formalizam as diversas etapas do desenvolvimento da lógica intraproposicional que se desenvolve no período operatório concreto.

A inteligência operatória formal

Agora a inteligência tem acesso a um nível tal em que aparecem as relações entre o possível e o real...

"...mas numa inversão de sentido notável. Porque, em vez de o possível manifestar-se como uma mera forma de prolongamento do real ou das ações executadas sobre a realidade, é, ao contrário o real que se subordina ao possível. Por outras palavras, o que caracteriza o pensamento operatório formal é que ele é essencialmente hipotético-dedutivo." (Dolle, 1987:161).

"O pensamento concreto está limitado ao mundo real e as situações possíveis são limitadas pelas situações reais; ou seja, só são concebidas como possíveis aquelas situações que são diretamente implicadas pelo mundo real. Já no pensamento formal, o sujeito poderá imaginar o conjunto de todas as situações possíveis de forma autônoma em relação ao real." (Castorina, 1982:.99).

Esta inversão de sentido entre o possível e o real tem, pois, em conseqüência, uma inversão no sentido da correlação entre o mundo ou o real e a inteligência:

"...em vez de introduzir sem mais um começo de necessidade no real, como é o caso das inferências concretas, ela efetua desde o início a síntese do possível e do necessário, deduzindo com rigor as conclusões de premissas cuja verdade é admitida inicialmente apenas por hipótese, e provém assim do possível antes de se encontrar com o real" (Piaget apud Dolle, 1987:162).

"Isso significa que o campo do equilíbrio é infinitamente mais extenso do que nos níveis anteriores e que os instrumentos de coordenação são mais flexíveis. Agora, a leitura da experiência já não se efetua apenas por uma apreensão de suas propriedades ou das propriedades das ações de transformação que são de alçadas de uma lógica de classificação e de ordem ; ela procede formulando hipóteses que colocam os dados a título de dados, vale dizer, independente de seu caráter atual. Depois ela os combina entre si segundo exigências de uma nova lógica ou lógica das proposições, o que equivale a dizer segundo uma lógica de todas as combinações possíveis." (Dolle, 1987:162).

Dolle explica que a subordinação do real ao possível implica que o sujeito não se contenta mais em registrar as relações que se impõe a ele nos fatos reais, mas, ao contrário, ele as insere no conjunto das que são possíveis. Ou seja, para equilibrar, mantendo a coerência, aqueles fatos que o sujeito julga verdadeiros, tende-se a inserir as ligações supostas à primeira vista reais no conjunto daquelas que são possíveis, para então checar a sua veracidade. Por outro lado, partindo de uma situação concreta, o sujeito deve conceber o conjunto de todas as situações possíveis por meio de operações lógicas. Ora, estas constituem um sistema de operações virtuais das quais umas são realizadas na situação concreta, enquanto outras, estando disponíveis, garantem a reversibilidade daquelas e permitem o desenvolvimento de operações a medida que as necessidades surgem.

As operações formais são operações de segunda potência (no mínimo). As operações concretas obedecem uma lógica intraproposicional na medida em que elas operam sobre os próprios elementos de uma proposição decompondo-os. Por exemplo na proposição "esta rosa é vermelha" pode-se substituir o predicado vermelha por: preta, amarela, grande etc.; assim como o sujeito da frase, poderia ser substituído por outro objeto vermelho qualquer. Essas transformações intraproposicionais são finitas na medida em que incidem sobre 'possíveis' limitados às propriedades dos elementos existentes no mundo real. Ao contrário uma lógica interproposicional, não considera mais as proposições enquanto tais, tal lógica enfoca apenas os valores de verdade e falsidade das proposições, construindo a partir daí, outras proposições bem determinadas.

Um bom exemplo que exige condutas operatórias a nível formal é o seguinte: dispõe-se de hastes de metal de materiais diferentes ( aço, latão, etc ), de seções diferentes (quadradas, redondas, triangulares, etc ) e de comprimentos diferentes. Deve-se encontrar quais tipos de hastes que sob ação de determinado esforço são flexíveis, descrevendo as suas propriedades. Para tal pode-se proceder de duas maneiras:

  • fazer o ensaio, empiricamente, de todas as situações em que a flexibilidade ou a rigidez aparecerão, classificando e seriando as propriedades segundo uma leitura sistemática da experiência.
  • fazer variar todos os fatores, um de cada vez, a partir de hipóteses prévias: será o comprimento? será o material? etc.

Tabela 1. Operação multiplicativa das classes

O primeiro procedimento é longo e custoso e pode deixar de lado muitas das combinações possíveis. O segundo evidencia a necessidade de uma lógica combinatória. Não basta mais a operação multiplicativa das classes, do tipo representado na tabela 1, agora torna-se preciso uma combinação sobre as quatro classes resultantes da multiplicação, o que remete a 16 novas operações, correspondentes cada uma a uma nova operação possível. No exemplo acima, poderíamos ter como determinantes da flexibilidade combinações dos fatores básicos, por exemplo:

  • "as hastes de madeira ou as hastes com seção triangular são flexíveis" - o que equivaleria as três primeiras classes resultantes da multiplicação, A1A2, A'1A2 e A1A'2;
  • "todas as hastes são flexíveis" - ou seja as quatro classes devem ser consideradas;
  • "aquelas que não são de madeira e são triangulares são as flexíveis" - apenas a primeira classe multiplicativa, A1A2.

Tal combinatória é portanto o prolongamento e a generalização da lógica das operações concretas (não basta mais identificar classes multiplicando mais de um atributo, é preciso agora considerar combinações possíveis destas classes resultantes). Ela é uma classificação das classificações.

Como já foi dito, no que concerne às classes, o agrupamento que representa o final do estágio operatório concreto são as composições multiplicativas biunívocas das classes. Dois fatores classificatórios B1 e B2 são combinados da forma:

B1xB2 = A1 A2 + A1 A'2 + A'1 A2 + A'1 A'2,

a qual, corresponde (fazendo B1=p e B2=q) à formulação da afirmação completa em lógica proposicional, conforme a tabela 2. Tabela 2. Formulação completa da lógica proposicional

Mas, para construir as operações da lógica proposicional é preciso ir além dessa repartição em classes e chegar a uma combinatória n a n ( para n=0,1,2,3 e 4)que resultará das 16 combinações possíveis obtidas das quatro combinações iniciais das proposições p e q. Esta generalização se constitui justamente na construção do conjunto das partes de um conjunto, P(A), sendo o conjunto A formado pelas quatro classes multiplicativas resultantes de B1xB2. Na tabela 3 são representadas estas 16 combinações possíveis.

Tabela 3. Combinatória proposicional - as 16 combinações em lógica bivalente (Dolle, 1987:165).

"O conjunto das classificações expressado pelo conjunto das partes se formou geneticamente por uma generalização a partir de algumas classificações multiplicativas que são elementos do conjunto das partes. Com efeito, a classificação multiplicativa (B1xB2) se obteve associando cada um dos elementos de B1 com os elementos de B2. Ou seja, esta multiplicação opera sobre classes elementares. Já o conjunto das classes se obtém combinando entre si de todas as maneiras possíveis aquelas associações de classes elementares. É dizer, que as associações que são resultado de operações concretas de multiplicação se convertem em elementos de uma nova classificação que as generaliza a todos os casos possíveis. Portanto, se passou de uma classificação simples a uma classificação multiplicativa dos elementos, e dali a todas as classificações possíveis dos novos elementos resultantes da classificação multiplicativa." (Castorina, 1982:105)

A partir do momento que a criança alcança este estágio são constituídas as operações hipotético-dedutivas, ou seja, a criança começa a raciocinar sobre hipóteses independentes do conteúdo. Piaget identificou esta nova estrutura com a estrutura de grupo matemático de Klein (grupo comutativo com quatro elementos). Este grupo tem como elementos básicos quatro transformações chamadas de: I-identidade, N-inversão ou negação, R-reciprocidade e C-correlatividade. Estas quatro transformações não incidem sobre as proposições simples, mas sim, incidem sobre as 16 combinações binárias resultantes do conjunto P(A), e são fechadas sobre tal conjunto. As iniciais dos nomes das transformações foram usadas por Piaget para dar o nome da estrutura, grupo de transformações INRC.

As quatro transformações integrantes do grupo INRC são definidas como:

i) N-inversão ou negação - inverte o valor de verdade na definição dos operadores resultantes das 16 combinações. É a complementar com respeito a afirmação completa da lógica. Na tabela 3 a operação e a sua negação estão dispostas na mesma linha. Por exemplo, a inversa da 'disjunção' (número 12 no quadro 3), p v q = p.q v p.~q v ~p.q, é a 'negação conjunta' , ~p.~q (número). Uma regra prática consiste em trocar, na forma disjuntiva normal, as proposições "p"e "q" pelas suas negações "~p"e "~q", e também, as conjunções ".", pelas disjunções "v", e vice-versa em ambos os casos.

ii) R-recíproca- inverte o valor de verdade das próprias proposições- consiste da reversibilidade por reciprocidade, ou seja é a mesma operação, mas aplicada sobre proposições com sentidos inversos ou negadas. A recíproca de p.q é ~p.~q (trocam-se as proposições "p"e "q" pelas suas negações "~p"e "~q").

iii) C-correlatividade- troca a conjunção pela disjunção, e vice versa, na forma disjuntiva normal - consiste da junção entre reversibilidade por inversão e por reciprocidade - na verdade, pode-se dizer que a correlativa é a inversa da recíproca.

iv) I-identidade-nada é alterado.

NR = RN = C

RC = CR = N

NC = CN = R

NRC = RCN = CNR = I

Estas quatro transformações I, N, R e C estão inter-relacionadas de tal forma que: a transformação I é igual a recíproca da correlativa; a transformação C é igual a recíproca da inversa, etc, como se pode ver abaixo:

Este relacionamento é que dá origem à estrutura de grupo comutativo. A estrutura do grupo é muito mais flexível do que a estrutura de agrupamento, já que a sua principal restrição, referente a composição de elementos contíguos, desaparece. Há que se ressaltar, ainda, que estas transformações I, N, R e C se aplicam sobre operações proposicionais, donde são operações de segunda ordem, como já havia sido dito.

Tal grupo é a estrutura básica do pensamento formal. O mesmo comporta um sistema de reversibilidade que combina as duas reversibilidades do nível concreto: a inversão, que é a reversibilidade própria dos agrupamentos de classe, e a reciprocidade, que é relativa aos agrupamentos de relações. No período operatório concreto estas duas formas de reversibilidade ainda que paralelas não constituem um sistema único, não estando, portanto, integradas ou inter-relacionadas em um conjunto.

Para melhor identificar essa junção das duas reversibilidades, será bastante útil o uso de representações diagramáticas dessas transformações. Serão construídos os diagramas de Venn para alguns casos das 16 combinações bivalentes e também para as combinações resultantes das transformações N, R e C:

O fato de inversão ser a reversibilidade própria dos agrupamentos de classe fica muito claro nos diagramas. Basta observar, em todos os casos analisados, que a área A', correspondente à combinação resultante da transformação N- negação ou inversão - é justamente a área complementar de A. Isso ocorre pois a inversa constitui-se na operação de negação da combinação completa das proposições que definem o atributo gerador da classe A (região hachurada no diagrama), ou seja, corresponde à obtenção da classe A' a partir da classe A.

Que a reversibilidade própria dos agrupamentos de relações é a transformação R-reciprocidade, também pode ser visto nos diagramas. A região correspondente à esta transformação não se constitui mais da região complementar simplesmente, já que agora não é mais a classe completa A que é negada, a negação agora se aplica sobre aquelas proposições que foram combinadas (ou relacionadas) para constituir a classe. Note-se então que o que se reverte é exatamente a relação entre as proposições p e q. Explorando-se melhor os exemplos tem-se:

  • No caso 1, pode-se ler p . q como "ambas as proposições p e q", enquanto a recíproca ~p . ~q -pode ser entendida como " nenhuma das proposições".

Note-se que o que se inverteu foi a relação entre as proposições. A recíproca da relação 'ambas' é 'nenhuma'. O caso 2 é idêntico, ali a relação 'não nenhuma' tem como recíproca a relação 'não ambas'.

Os diagramas também deixam bem claro que a correlativa, C, é a inversa da recíproca, basta notar que a área correspondente à C é exatamente a área complementar da área correspondente à transformação R.

Estas duas formas de reversibilidade, N-Inversão e R-recíproca, bem como a sua junção em C, que gera o grupo INRC, podem ser observadas nas estruturas operatórias referentes as diversas noções que surgem concomitantemente no período operatório formal, Piaget e Inhelder (apud Dole, 1987:174) destacam nestas estruturas os seguintes caracteres comuns:

"-Elas constituem antes esquemas operatórios suscetíveis de aplicações variadas que noções propriamente ditas.

-Elas são mais deduzidas ou abstraídas a partir das estruturas operatórias do sujeito que descobertas nos objetos."

Alguns dos exemplos acima citados referem-se: às proporções , à duplos sistemas de referências, à noção de equilíbrio mecânico, de probabilidade, de correlação, às compensações multiplicativas, etc. Piaget ressalta ainda o fato que tais estruturas operatórias permitem a existência de noções de conservação dificilmente verificáveis na prática.

Fica então claro, que a constituição do grupo INRC é, do ponto de vista psicogenético, devida aos processos de abstração refletidora (descritos de forma bastante clara em Piaget 1977a) e de generalização que tornam possível a diferenciação e a coordenação das duas formas de reversibilidade.

Dolle sintetiza:

"...a grande novidade trazida pela passagem à inteligência formal parece ser, pois, efetivamente, a inversão de sentido entre o possível e o real. No estádio das operações formais, o sujeito se determina segundo os possíveis, forjando hipóteses. Do ponto de vista do equilíbrio, o acesso a esse pensamento hipotético- dedutivo se traduz pela estrutura de grupo INRC que combina, num sistema único, as duas formas de reversibilidade separadas ao nível das operações concretas: a reversibilidade por inversão e reversibilidade por reciprocidade. Do ponto de vista das estruturas, tudo parece repousar numa lógica interproposicional, cujo tipo mais simples é a lógica bivalente."(1987:190)

A construção da moral e a sua relação com o desenvolvimento da inteligência

Piaget defendeu que a criança explica o homem, o seu trabalho sobre a construção da moral é um belo exemplo de como observando o comportamento e o desenvolvimento infantil, pode-se chegar a entender o desenvolvimento do homem. Da mesma forma, a moral infantil esclarece a moral adulta, pois encontram-se em muitos adultos e mesmo grupos de adultos a reprodução de estágios desses comportamentos infantis. Noutra dimensão, a sociologia interessa a epistemologia pois, "o conhecimento humano é essencialmente coletivo e a vida social constitui um dos fatores essenciais da formação e do crescimento dos conhecimentos...." (Piaget, 1973: 17).

O equilíbrio nas trocas sociais

Os fatos mentais são paralelos aos fatos sociais, sendo o nós substituído pelo eu e a cooperação pelas operações simples. Os fatos sociais e mentais podem ser igualmente divididos sobre três aspectos distintos, mas indissociáveis. A nível mental toda conduta pode ser distinguida por: sua estrutura ou aspecto cognitivo, seu energético ou economia correspondendo ao aspecto afetivo; e os sistemas de símbolos servindo de significantes a estas estruturas operatórias ou a estes valores. A nível social paralelamente, com relação às interações inter-individuais, tem-se: sua estruturação que se traduz pela existência de regras, os valores coletivos, por fim, os significantes próprios às interações coletivas. "Toda conduta executada em comum se traduz necessariamente pela constituição de normas, de valores ou de significantes convencionais." (Piaget,1973:36).

Tabela 4. Aspectos relativos às condutas mentais e às trocas inter-individuais

As ações humanas sejam individuais ou coletivas precisam ser coerentes para serem eficazes, esta coerência tem um caráter de imperativo hipotético quando se trata de uma ação individual, mas de imperativo categórico no caso da ação coletiva. Na verdade, histórica e geneticamente, esses dois imperativos não são senão um. As regras que nascem de tal coerência se aplicam a tudo e estruturam tanto os próprios símbolos e os valores quanto os conceitos e as representações coletivas em geral.

Quanto a questão dos valores de troca, outro aspecto distinguível nos fatos sociais, é que os mesmos são determinados individualmente ( interesses, prazeres, esforços e afetividade em geral) e permanecem em geral num estágio qualitativo. Só quando tais valores participam de trocas ( relações inter-individuais) é que assumem um caráter mais quantitativo, gerando métricas próprias, atingindo neste caso o status de valores econômicos.

Por último há o sinal, que serve à transmissão de regras e valores. O sinal diferentemente do símbolo, que pode ser construído individualmente por semelhança entre significante e significado, supõe uma convenção por ser arbitrário.

Portanto, as três realidades sociais fundamentais são: regras (obrigações), valores (trocas) e sinais (símbolos convencionais que servem de expressão às regras e valores). As regras e os sinais têm sido relativamente estudados e aprofundados, tal não é o caso para os valores, pois valores em geral não tem sido percebidos como independentes das regras. Há ainda uma outra razão, as questões sincrônicas ( que dizem respeito ao equilíbrio momentâneo) e diacrônicas (relativas ao processo histórico) não tem sido distinguidas suficientemente, e "se a validade das normas depende da sua história, os valores de troca só tem significação do ponto de vista sincrônico, e é a confusão relativa dos problemas de equilíbrio com os problemas de desenvolvimento que levou assim a unir de forma exagerada os valores às regras." (Piaget, 1973: 115).

As leis do equilíbrio

Em toda sociedade existem escalas de valores, e é possível examiná-las, num determinado momento, mesmo que elas sejam múltiplas e instáveis. As escalas de valores implicam a existência de uma perpétua valorização recíproca das ações ou dos 'serviços'. Se um indivíduo x presta serviço a outro indivíduo x' o resultado da ação de x é um valor para x'. Daí seguem três possibilidades:

  • x' prestará, em troca, um serviço a x;
  • x' não presta imediatamente um serviço a x, mas reconhece o valor de x e, portanto, x sabe que poderá contar com ele em circunstâncias análogas;
  • x' não presta nenhum serviço a x, e nem o valoriza. Neste caso é x' que é desvalorizado por x: será considerado ingrato ou injusto, etc.

Nas três possibilidades desta interação houve troca de valores. Para poder formalizá-las, considere-se:

r(x) - serviço que x presta, ou seja um valor sacrificado (tempo, trabalho, objetos, idéias etc.) ou uma renuncia atual;

s(x') - satisfação alcançada por x' a partir de r(x), que pode ser positiva ou negativa, satisfação real;

Se a ação r(x) não for imediatamente seguida da retribuição r(x'), resultam os seguintes valores virtuais:

t(x') - dívida contraída por x' para com x (gratidão, reconhecimento, dívida econômica etc) renúncia virtual;

v(x) - crédito em favor de x relativo a dívida t(x') de x e obtido a partir da valorização de x por x', satisfação virtual;

O equilíbrio nas trocas inter-individuais pode ser expresso nas duas equações que seguem, nas quais o símbolo " = " determina a equivalência qualitativa dos valores enquanto que "+" expressa a ocorrência simultânea de tais equivalências. A primeira equação determina a equivalência simples:

equação I: [r(x)=s(x')] + [s(x')=t(x')] + [t(x')=v(x)] = [v(x)=r(x)]

Nesta equação x é valorizado por x' proporcionalmente ao serviço que lhe foi prestado. A não equivalência em cada um dos termos da equação acima corresponde a desequilíbrios específicos entre a valorização das trocas. Nesses casos, ou x avaliaria que não foi justamente valorizado, porque trabalhou muito e não recebeu o crédito devido ou porque o seu trabalho fácil foi super valorizado, ou, então, seria x' que valorizaria incorretamente a sua satisfação pelo serviço recebido.

Uma equação semelhante poderia ser formulada a nível dos valores virtuais, supondo-se que, em retribuição a r(x), x' preste um serviço r(x') a x. Neste caso, a equação

equação II: [v(x)=t(x')] + [t(x')=r(x')] + [r(x')=s(x)] = [s(x)=v(x)]

significa que x' reconhece uma dívida equivalente ao crédito de x, e salda sua dívida prestando um serviço que satisfaz x de forma equivalente ao valor que ele atribuía ao seu crédito com relação a x'.

Definido o equilíbrio Piaget mostra, como será exposto nos próximos parágrafos, que o mesmo só é atingível nas relações de cooperação, onde intervêm a estrutura operatória do agrupamento. Nas pressões exercidas pela sociedade em geral, na forma de coações, há uma ultrapassagem da simples valorização espontânea tendo as regras um caráter normativo, ou seja uma coação é uma atribuição de valor imposta de fora. Piaget salienta que toda a coação é resultante de um sistema de regulações, pois, uma coação ainda não atingiu o status de uma operação lógica ou moral, já que, a obediência nesses casos sempre prevalece sobre a razão.

Condições necessárias ao equilíbrio nas trocas

"Cooperar na ação é operar em comum, isto é, ajustar por meio de novas operações (qualitativas ou métricas) de correspondência, reciprocidade ou complementaridade, as ações executadas por cada um dos parceiros." (Piaget, 1973:105). Isso é bastante evidente nas operações concretas, onde as operações dos parceiros constituem um só sistema operatório, e isto pressupõe a existência dos sistemas gerais (descentrados) de operações que são os agrupamentos. Neste sentido, a cooperação é um sistema de operações inter-individuais donde não há pois lugar para perguntar se é a constituição dos agrupamentos de operações que permite a formação da cooperação, ou vice-versa, pois o modo de equilíbrio das ações individuais ou inter-individuais é o mesmo, ou seja, não há como separar a ação sobre os objetos da ação sobre os outros.

O que já era verdade para as operações concretas, fica ainda mais evidente nas formais, uma vez que o agrupamento das operações formais constitui a lógica das proposições, e uma proposição é, na verdade, um ato de comunicação. Neste sentido, a lógica formal é em sua natureza mesmo um sistema de trocas, mesmo que estas sejam as do "diálogo interior". É claro que estas são mais complexas pois constituem um sistema mais abstrato de avaliações recíprocas , de definições e de normas.

A cooperação, no caso das operações formais, pode ser analisada a partir da troca inter-individual de valores. Nesse caso, os valores reais r e s e os virtuais t e v, definidos anteriormente, passam a ter a seguinte significação:

r(x) - exprime o fato de que o indivíduo x exprime uma proposição ou comunica um julgamento a x';

s(x') - marca o acordo ou desacorde de x' ou a validade atual que ele atribui a proposição de x;

t(x') - traduz a maneira pela qual x' conservará (ou não) o seu acordo ou desacordo;

v(x) - é o ponto de vista do próprio x quanto a validade futura da proposição enunciada em r(x).

Temos então r(x)s(x')t(x')v(x) e reciprocamente r(x')s(x)t(x)v(x'), no caso de x' enunciar uma proposição para x, como duas sucessões que representam os valores atribuídos sucessivamente às proposições enunciadas por x e x'. Uma troca de proposições, sem um conjunto de regras especiais de conservação não passaria de simples regulação, pois, num diálogo qualquer, ambos os parceiros poderiam esquecer o que já foi dito, ou mudar de opinião. Se a validade a proposição anunciada por x em r(x) tiver o seu valor reconhecido por x' em s(x') e conservado em t(x') então x pode invocar mais tarde este reconhecimento conservado em v(x) para agir sobre as proposições de x'.

"O papel dos valores virtuais de ordem t e v é o de obrigar, sem cessar, o parceiro a respeitar as proposições anteriormente reconhecidas, e a aplicá-las às suas proposições ulteriores." (Piaget, 1973:108). É importante notar que esta conduta também dirige-se ao próprio sujeito de tal forma que "x enunciando a proposição r(x) será ele mesmo satisfeito, donde s(x) e se obrigará a reconhecer nele a sua validade ulterior, donde t(x) e v(x)." (Piaget, 1973:108).

Dois interlocutores estarão de acordo ou intelectualmente satisfeitos se determinadas condições de equilíbrio foram alcançadas. Piaget mostra que elas implicam justamente no agrupamento das proposições ou no conjunto de regras que constitui a lógica formal.

No que concerne ao equilíbrio das trocas, as condições necessárias e suficientes são três.

Primeiramente, x e x' devem estar de posse de uma escala comum de valores intelectuais, expressos por meio de símbolos comuns e unívocos. A existência de tal escala implica ainda: a existência de uma linguagem e de um sistema de noções definidas, que mesmo com divergências permita a tradução das noções de um para outro parceiro e, também, um certo número de proposições fundamentais, admitidas por convenção e que relacionem estas noções.

Em segundo lugar, deve haver uma igualdade geral dos valores em jogo nas sucessões r(x)s(x')t(x')v(x) e r(x')s(x)t(x)v(x') ou, melhor dizendo, deve haver acordo sobre a igualdade r=s e, também, conservação desse acordo ou das proposições anteriormente reconhecidas t=v. Dessa forma, numa troca de idéias equilibrada, as igualdades s(x')=t(x')=v(x) e s(x)=t(x)=v(x') são verdadeiras e, já, numa troca idéias baseada em simples interesse momentâneo, elas não existirão. Essas igualdades implicam que x e x' possam colocar-se de acordo sobre a mesma proposição, ou que sejam capazes de justificar a diferença dos seus pontos de vista.

Finalmente, é preciso ser possível atualizar incessantemente os valores virtuais t e v, o que permitiria o retorno as validades reconhecidas anteriormente, sem contradições de ambas as partes, esta reversibilidade se expressa por [r(x)=s(x')=t(x')=v(x)] [r(x')=s(x)=t(x)=v(x')], que implica na reciprocidade r(x)=r(x') s(x')=s(x).

Cabe ainda tornar claro que este equilíbrio só é possível nas relações de cooperação, já que suas condições não se viabilizam nas relações em que estejam presentes fatores de egocentrismo ou de coação. No egocentrismo falta a primeira condição e, por conseguinte, também, a segunda, donde os indivíduos não se sentem obrigados a conservar o valor das proposições já enunciadas. A falta da escala comum de valores leva ao uso da mesma palavra com diferentes noções entre os dois parceiros, ou leva à utilização de imagens e símbolos com significações privadas.

No caso das relações em que intervém a coação ou a autoridade, a escala comum dos valores segue um curso forçado donde a obrigação de conservação dos valores das proposições dá-se unilateralmente, não é recíproca portanto. Daí que o processo de coação não é reversível, donde, não conduz a verdades de ordem operatória. "A conservação das proposições, num sistema de coação, consiste, com efeito, não em invariantes que resultam de uma sucessão de transformações móveis e reversíveis, mas num corpo de verdades completamente feitas, cuja solidez se deve a sua rigidez...".(Piaget, 1973:190). Este fato causa a impressão da existência de um equilíbrio, este, no entanto, é falso pois a terceira condição está ausente, e bastará uma pequena discussão livre para deslocá-lo.

Este equilíbrio supõe, portanto, cooperação autônoma, "fundamentada sobre a igualdade e a reciprocidade dos parceiros, e se liberando simultaneamente da anomia própria ao egocentrismo e da heteronomia própria à coação." (Piaget, 1973:110). Quando atinge o equilíbrio, a troca de pensamento constitui uma estrutura operatória, ou seja, um sistema de correspondência simples ou de reciprocidades. Esse sistema é na verdade um agrupamento que engloba os que são elaborados individualmente pelos parceiros que cooperam.

Para mostrar que, de fato, o equilíbrio da troca constitui uma estrutura operatória, Piaget explana a significação real das condições de tal equilíbrio, previstas nas equações I e II acima:

a)a concordância r(x)= s(x') dá-se a partir de uma convergência entre x e x', mas como se estabelece tal convergência?

"Dois indivíduos x e x' tem necessariamente percepções diferentes e não intercambiáveis: trocamos idéias, isto é, julgamentos verbais se dirigindo a percepções, mas nunca percepções mesmas! Acontece o mesmo com movimentos que x e x' poderão executar em relação ao objeto, à suas imagens mentais, à suas recordações, logo a todo o seu simbolismo privado, enquanto não é traduzido em noções. Ora, estas uma vez admitidas, as convenções que fixam o sentido das palavras e a definição nominal dos conceitos, só podem dar lugar a comunicações sob a forma de julgamento ou de raciocínios. Enquanto estes julgamentos não podem revestir-se de forma operatória permanecendo no nível de proposições intuitivas, a concordância entre os parceiros não poderia estar certa, pois toda a intuição perceptiva ou ilustrada engloba um resíduo egocêntrico. A concordância certa revestirá, pois, a forma de dupla operação: a efetuada por x em sua proposição r(x) é evidente; mas é necessário compreender que, na falta de autoridade exterior, x' não poderá assegurar a sua concordância, nem mesmo apreender o pensamento de x, a não ser com a única condição de poder efetuar por sua conta a mesma operação." (Piaget, 1973:191).

b)A obrigação da manutenção do reconhecimento de r(x) expressa em s(x')=t(x'), não sendo devida a autoridade, só pode ser derivada do princípio da não contradição, constituindo-se aqui não na aplicação de uma lei jurídica, mas num efeito direto da reversibilidade do pensamento, pois "pensar sem contradições é simplesmente pensar por operações reversíveis" (Piaget, 1973: 192). A não contradição neste caso deixa de ser um fator de equilíbrio interno do pensamento, para se transformar em uma regra ou norma social nascida da reciprocidade.

c)A conservação ulterior da validade da proposição é assegurada em t(x')=v(x). Aqui também a identidade da validade de proposições válidas trocadas ocorre porque a própria troca constitui um mecanismo operatório que incorpora os correspondentes ao pensamento individual.

O desenvolvimento da moral

Os estágios da prática e da consciência das regras

Os jogos infantis foram estudados por Piaget pois, segundo ele, estes são admiráveis instituições sociais, comportando, a exemplo do jogo de bolinhas de gude, sistemas bastante complexos de regras. A análise reflexiva de Kant, a sociologia de Durkheim ou a psicologia individualista de Bovet concordam que toda moral consiste de um sistema de regras, as divergências aparecem quando se procura explicitar como a consciência respeita estas regras. A análise desse "como" é tema das investigações Piaget.

A estratégia utilizada por Piaget consistiu da observação de crianças durante a realização de jogos infantis (bolinhas de gude), pois as regras destes jogos são elaboradas pelas próprias crianças, diferentemente do restante das regras morais que a criança aprende a respeitar e que lhes são transmitidas prontas pelos adultos. Ainda, como em todas as realidades ditas morais, as regras do jogo de bolinhas se transmitem de gerações a gerações e se mantém unicamente graças ao respeito que os indivíduos tem por elas.

O interrogatório feito com as crianças investiga a respeito:

  • do conhecimento das regras - a criança deve ensinar o pesquisador a jogar, explicando verbalmente a ele as regras que adota, durante um jogo;
  • da consciência da regra - começa-se por perguntar à criança se ela poderia inventar uma nova regra, uma vez inventada pergunta-se: se a regra é justa? se é verdadeira? se é como as outras? etc; supondo que a criança negue tudo isto, faz-se a seguinte pergunta: "Quando você for grande suponha que terá contado sua regra para muitas crianças: todas jogarão talvez com ela e todas terão esquecido as antigas regras. Então qual será mais justa, sua regra que todos conhecerão, ou as antigas que todos terão esquecido?";
  • da origem das regras - jogou-se sempre como hoje? as regras foram inventadas pelas crianças ou impostas pelos pais e adultos em geral?

Do ponto de vista da prática das regras, Piaget identificou quatro estágios sucessivos.

Estágio motor e individual (de 0 a 2 anos), há apenas regras motoras, as bolinhas são manipuladas em função do desejo e dos hábitos, donde nada há de coletivo neste estágio.

O segundo estágio pode ser chamado egocêntrico (de 2 a 5 anos), neste a criança recebe do exterior o exemplo das regras já codificadas, mas apesar de imitá-los ela ainda joga sozinha (não se preocupa com os parceiros, nem mesmo procura vencê-los) sem cuidar da codificação das regras, uma vez que as mesmas não precisam ser compartilhadas.

O terceiro estágio, que aparece por volta dos sete ou oito anos, é chamado de estágio da cooperação nascente. Neste aparece a necessidade do controle mútuo e da unificação das regras, já que cada jogador procurará vencer seus parceiros. Mas ainda não há concordância sobre as regras gerais e cada um dá, quando interrogado, informações diferentes sobre as mesmas.

Finalmente, aos onze-doze anos aparece o quarto estágio. Neste há a codificação das regras. As partidas passam a ser regulamentadas com minúcia, e as regras a serem seguidas são conhecidas por todos.

Quanto a consciência da regra Piaget (1977) percebe outros três estágios que aparecem cronologicamente relacionados aos estágios percebidos quanto a prática da regra:

  • o primeiro deles vai até o decorrer da fase egocêntrica (24 a 30 meses de vida)- neste a regra ainda não é coercitiva, porque é puramente motora e é suportada, como que inconscientemente, a título de exemplo interessante apenas e não de realidade obrigatória;
  • no segundo estágio (apogeu do egocentrismo e primeira metade do estágio da cooperação - dois até 8 anos) a regra é considerada como sagrada e intangível, ela tem origem nos adultos, donde a sua essência é externa e, portanto, qualquer modificação no teor da regra é considerada pela criança como uma transgressão;
  • por fim, no terceiro estágio, a regra é considerada como uma lei criada pelo consentimento mútuo, cujo respeito é obrigatório se se deseja ser leal, mas é possível, todavia, transformá-la, à vontade, desde que haja o consenso geral.

Nos segundo e terceiro estágios existem dois níveis diferentes de respeito às regras: no primeiro deles a regra é exterior ao indivíduo e por conseqüência sagrada depois pouco a pouco aparece como consciência autônoma.

Piaget observou claramente que a consciência e a prática da regra evoluem com a idade, ele tentou explicar melhor esta evolução identificando se tais mudanças eram de natureza ou de grau. "Há, na criança, atitudes e crenças que o desenvolvimento intelectual eliminará, na medida do possível há outras que assumirão sempre maior importância; e, das primeiras às segundas, não há filiação simples, mas antagonismo parcial..." (1977:73), na verdade em dosagens diferentes os dois grupos de atitudes encontram-se nas crianças e nos adultos. Mas toda diferença de dosagem é uma diferença de qualidade global, donde, a partição do desenvolvimento psicológico em estágios é arbitrária. A autonomia não pode ser caracterizada como um estágio definido. Um indivíduo pode ter atingindo a autonomia no que se refere a prática de um determinado grupo de regras mas permanecer heterônomo com referência a outro grupo num outro plano de consciência e reflexão.

A interferência do social nos níveis de consciência das regras

Uma outra questão que se apresenta como importante é a da relação entre a dicotomia individual/social e os diferentes níveis de consciência da regra. A relação percebida por Piaget é esquematizada a seguir:

Tabela 5. As relações sociais e os estágios da consciência da regra

A regra motora nasce do hábito, mas é preciso que o hábito seja contrariado gerando uma procura ativa por ele e fazendo nascer a percepção e a consciência da regularidade. Ela é, portanto, esse sentimento de repetição que tem origem assim que o equilíbrio entre assimilação e acomodação se estabelece, fazendo com que as condutas adotadas se cristalizem e se ritualizem. Não há ainda nesta fase a consciência da obrigação ou do caráter necessário da regra, pois esta supõe um sentimento de respeito e autoridade que não podem provir de um só indivíduo. Mas, as relações inter-individuais estão também presentes nesta fase, o social está por toda parte. No início toda lei ou regra aparece para a criança como física e moral ao mesmo tempo, e as relações fundadas no respeito unilateral e na admiração, prevalecem sobre as relações de cooperação. A coação progressiva que o ambiente exerce sobre a criança no início de sua vida, pode ser considerada como a intervenção do social.

Por volta dos três ou quatro anos a criança percebe, no jogo dos mais velhos, a existência de um código e o incorpora no plano dos mil hábitos e obrigações impostos pelos adultos. Estes hábitos e obrigações estão de acordo com uma ordem universal, que ela imagina existir. Neste caso a criança acredita que há "verdadeiras" regras, sagradas e obrigatórias, e que é preciso concordar com elas, mas continua "jogando" para si mesmo, mais interessada nos seus próprios movimentos do que nos companheiros ou nas regras em si. Do ponto de vista da socialização da criança, cabe ressaltar que o egocentrismo desta fase é pré-social, "no sentido que marca uma transição entre o individual e o social ..., esta mistura de coação e subjetividade, que caracteriza o estágio de dois a sete anos, nos parece, de fato, menos social que a cooperação"(Piaget 1977:79). A falta de consciência do seu eu, presente no egocentrismo, impossibilita a cooperação, pois esta exige uma percepção do seu pensamento em relação ao comum, é preciso, portanto, libertar-se do pensamento e da vontade do outro. Nesta fase, assim como nas sociedades conformistas, acredita-se na origem transcendente das regras.

No momento em que as crianças começam a se submeter verdadeiramente as regras e a praticá-las segundo uma cooperação real elas formam uma concepção nova da regra. A partir de então pode-se mudá-las desde que haja entendimento, porque a verdade da regra não está na tradição, mas no acordo mútuo e na reciprocidade. A cooperação é fator de personalidade, entendida aqui como o eu que se situa e se submete, buscando fazer respeitar as normas da reciprocidade e da discussão objetiva. O respeito mútuo é o equilíbrio para o qual tende o respeito unilateral (apesar destes dois equilíbrios nunca se verificarem completamente). Na verdade, só em princípio uma criança de 14 anos pode submeter todas as regras ao seu exame crítico, na verdade mesmo um adulto não submete à sua experiência moral senão uma parte ínfima das regras que o cercam. A questão, portanto, não é esta, a diferença essencial entre coação e cooperação, é que uma impõe regras totalmente elaboradas e a outra impõe um método de elaboração das próprias regras.

Neste sentido é interessante distinguir entre as regras constituintes e as regras constituídas. As primeiras tornam possível o exercício da cooperação, já as segundas são resultantes deste mesmo exercício. No exemplo do jogo das bolinhas as regras do quadrado ou do coche são constituídas, enquanto que "a primazia da justiça sobre a sorte" ou "do esforço sobre o ganho fácil" correspondente a um certo "espírito de jogo" são regras constituintes.

Os dois tipos de respeito

Como se explica o respeito às regras, ele é oriundo do grupo ou das pessoas individualmente? Durkheim defendeu que o respeito se dirige ao grupo resultando da pressão do grupo sobre o indivíduo, Bovet, por outro lado, defende que o respeito se encaminha às pessoas e provém das relações dos indivíduos entre si.

É inegável que o grupo projeta sobre os indivíduos características de obrigação e regularidade, daí explicaria-se facilmente o respeito, origem de toda religião e de toda moralidade. Observando as crianças Piaget percebeu que muitas regras permanecem imutáveis no decorrer do tempo, por muitas gerações inclusive. Mas se considerada uma criança individualmente, na medida em que ela se desenvolve, as regras apesar de serem as mesmas não permanecem idênticas a si próprias do ponto de vista da natureza do respeito.

Piaget considera que a explicação sociológica fornecida por Durkheim, explicaria apenas parcialmente este tipo de evolução, pois na medida em que os pequenos crescem eles escapam da pequena sociedade segmentária e uniforme que é a família participando de um grupo cada vez mais diversificado e complexo. Há nesse caso um paralelismo perfeito entre a tese de Durkheim para os pequenos grupos conformistas, segmentários e isolados, nos quais o indivíduo e o grupo são um só, e o egocentrismo inicial da criança pequena, que não consegue diferenciar o seu eu do restante das pessoas.

O fator principal do conformismo é o respeito unilateral, que surge da admiração. Nas nossas sociedades esse respeito aos treze ou quatorze anos desaparece pois o menino sente-se cada vez mais igual aos adultos. A criança, neste caso escapa ao círculo familiar e entra em contato com um número sempre maior de círculos sociais. Já nas sociedades primitivas, nesta idade, o adolescente entra na fase da iniciação, portanto, de coação moral grupal mais poderosa, e ao envelhecer torna-se ainda mais dependente do grupo.

Segundo Piaget, faltaria à análise de Durkheim a componente que considera as idades diferenciadas, ou a obrigatoriedade da convivência de diferentes gerações numa mesma sociedade ( uma sociedade onde todos os indivíduos tivessem a mesma idade permanentemente teria desenvolvido o conformismo, ou a religiosidade?).

O método de Bovet por sua vez reconhece apenas os indivíduos, mas como Durkheim , considera a necessidade da existência de pelo menos dois indivíduos para que surja a consciência moral, donde neste aspecto ambos os autores tem perspectivas próximas, apenas que um procura descrever esta moral em termos objetivos e outro em termos de consciência (o verdadeiro conflito surgiria com aqueles autores que procuram explicar a moral pelos processos puramente individuais tais como hábito, adaptação biológica etc.). Contudo, para Bovet, o respeito à regra surge pelo respeito ao indivíduo que prescreve a regra, dirigindo-se portanto as pessoas e não à regra como tal. Afirma Bovet : "não é o caráter obrigatório da regra prescrita por um indivíduo que nos incita a respeitar este indivíduo, é o respeito que temos por este indivíduo que nos faz considerar como obrigatória a regra fixada por ele". (apud Piaget, 1977:92)

Mas a grande questão discutida inclusive por Bovet é saber como essa moral do dever permitirá o nascimento de uma moral do bem. A consciência do dever é heterônoma, "o dever não é senão a aceitação das instruções vindas do exterior" (Piaget 1977:93). Paralelo a Durkheim, quando analisa o efeito do aumento da densidade e da complexidade do grupo sobre as consciências individuais, Bovet questiona os entrecruzamentos e as contradições das influências e instruções recebidas (já não mais dois indivíduos apenas). Neste caso, é óbvio que deverão existir estruturas operatórias que permitirão a reflexão e a categorização destas complexidades, ou seja, a criança apelaria para a sua própria consciência, havendo já aí autonomia. Donde, a consciência do bem é autônoma. Bovet deixa esta questão intencionalmente em aberto, enquanto que Durkheim esforça-se por explicá-la através da pressão do grupo sobre as conseqüências individuais.

A hipótese que Piaget levanta e que deve orientar o restante da sua análise (sem sair da hipótese levantada por Bovet segundo a qual os sentimentos morais estão ligados ao respeito que os indivíduos tem uns pelos outros) é a de que é preciso distinguir diferentes tipos de respeito, o unilateral e o mútuo, os quais definem dois tipos de realidades sociais e morais: a coação e cooperação.

"Na medida em que os indivíduos decidem com igualdade - objetivamente ou subjetivamente, pouco importa - , as pressões que exercem uns sobre os outros tornam-se colaterais. E as intervenções da razão, que Bovet tão justamente observou, para explicar a autonomia adquirida pela moral, dependem, precisamente dessa cooperação progressiva. De fato, nossos estudos tem mostrado que as normas racionais e, em particular essa norma tão importante que é a reciprocidade, não podem se desenvolver senão na e pela cooperação, a razão tem necessidade da cooperação na medida em que ser racional consiste em 'se' situar para submeter o individual ao universal. O respeito mútuo aparece, portanto, como condição necessária da autonomia, sobre o seu duplo aspecto intelectual e moral. Do ponto de vista intelectual, liberta a criança das opiniões impostas, em proveito da coerência interna e do controle recíproco. Do ponto de vista moral, substitui as normas da autoridade pela norma imanente à própria ação e à própria consciência, que é a reciprocidade na simpatia." (Piaget, 1977:94)

Piaget define o respeito como uma valoração que se destina às pessoas e não aos objetos ou serviços, e o respeito só se concretiza pelo reconhecimento da escala de valores do indivíduo respeitado, reconhecimento não significando aqui a adoção, mas sim, a atribuição de valor. É possível inclusive que os serviços prestados por um indivíduo sejam valorizados sem que ele mesmo seja respeitado. Respeitar um indivíduo não é respeitar as regras que ele impõe (esse é o respeito na visão de Kant e Durkheim), pois como mostrou Bovet, "é o respeito pela pessoa que engendra as obrigações e não o inverso.... A 'substituição recíproca das escalas' ou 'dos meios e dos fins' nada mais é do que a expressão de um respeito mútuo" (Piaget, 1973:146).

O respeito mútuo é precedido na ordem da gênese psicológica pelo respeito unilateral, ou pela valorização não recíproca de dois indivíduos. É o caso de um pai x e um filho x', as trocas entre os mesmos estão constantemente em desequilíbrio, pois o filho sempre valoriza mais as ações do pai do que é valorizado por ele. Isso ocorre pois, x' admira x, já que x aparece como superior a ele (mais forte, mais hábil, mais sábio, etc). Nesse caso x' adotará a escala de valores da pessoa respeitada enquanto o inverso não é verdadeiro. Ainda, o respeito que a criança tem pelo adulto v(x), se traduz na criança pelo reconhecimento t(x') de um direito constante do adulto de dar ordens impor regras, etc.

"O respeito unilateral resulta da desigualdade de valorização entre dois indivíduos, o respeito mútuo procede da equivalência. Suponhamos, por exemplo, que sente ' superior a ele em certo campo, enquanto o inverso ocorre em outro campo. Ou ainda que, colaborando um com o outro em pé de igualdade, x e x' se consideram como de valores equivalentes. Num e noutro caso (e todas as transmissões são naturalmente concebíveis entre o respeito unilateral e o respeito mútuo) acontece que x e x', ou reconhecerão uma escala comum de valores ou, em caso de divergência, reconhecerão mutuamente a legitimidade do ponto de vista do outro ( graças a valores comuns mais gerais de cujos valores particulares divergentes aparecerão como derivados os dois). Desde então, não existirão mais entre eles relações de autoridade à obediência de ordens, instruções etc., mas relações de simples acordo mútuo." (Piaget, 1973:147).

A coação adulta e o realismo moral

Piaget identificou o realismo moral como uma fase em que os pequenos analisam uma conduta como boa ou não boa em função não das intenções que motivaram a mesma mas sim em função dos resultados objetivos que ela proporcionou.

Piaget estudou esta fase principalmente com referência a mentira, e concluiu que o realismo moral nasce do encontro da coação com o egocentrismo, já que: primeiro, o egocentrismo leva a transformar a verdade em função dos desejos próprios e, segundo, a regra imposta exige uma interpretação tanto mais "objetiva" quanto menos corresponda a uma necessidade real e interior do espírito.

A primeira das assertivas é justificada por Piaget quando o mesmo faz referências aos vários trabalhos sobre a pseudo-mentira presentes nas crianças pequenas. Avalia Piaget que a pseudo-mentira está ligada às leis do pensamento infantil e portanto ao egocentrismo, o pensamento infantil não consegue perceber a intenção oculta e portanto liga-se ao resultado concreto e palpável da ação. Por outro lado, uma ordem do adulto não pode ser compreendida a não ser pela experiência da sua prática, a criança não consegue compreendê-la de antemão.

Quanto ao segundo ponto, Piaget investigou perguntando à crianças de várias idades: "Porque não devemos mentir?". A resposta típica das crianças da fase egocêntrica é a de que não devemos mentir porque seremos punidos, já as crianças mais velhas alegam a perda do respeito das pessoas como o fator fundamental. As respostas dadas a esta questão, juntamente com a sua mutação relativa à idade, deixam claro que o realismo moral desaparece na medida em que se desenvolve a consciência da necessidade do respeito mútuo sob a influência da cooperação. " Invocar somente a inteligência da criança que compreende cada vez mais o que coloca primeiro como forma realista, seria apenas deslocar a questão: de onde vem o progresso da inteligência psicológica, com a idade, senão precisamente da cooperação crescente? Resta, é verdade que a cooperação supõe a inteligência, mas não há nada mais natural num tal círculo: a inteligência que anima a cooperação, necessita deste instrumento social para constituir-se ela própria." (Piaget 1977:149)

A cooperação e o desenvolvimento da noção de justiça

Quanto a noção de justiça distributiva é possível distinguir três grandes etapas no seu desenvolvimento, em relação à autoridade adulta. As idades consideradas são válidas para o plano da reflexão e do julgamento moral verbal, pois no plano da ação é comum uma defasagem, ocorrendo que quase sempre esta preceda a reflexão e a tomada de consciência.

Há uma primeira etapa (até os sete ou oito anos) na qual a justiça não é diferenciada das leis: é justo o que o adulto mande. Há, portanto, nesta primeira fase uma ausência da noção de justiça distributiva. É preciso notar que esta ausência é apenas relativa à relação da criança com os adultos, pois na relação entre crianças, o sentimento de igualdade e de reciprocidade é bastante primitivo. É normal que uma criança de dois a três anos ache justo que os brinquedos devam ser repartidos igualmente, mas se lhe afirmarmos que precisa dar mais ao outro ou guardar mais para si logo transformará estas ordens em deveres. Já nesta fase, contudo, a criança é capaz de considerar injustas as atitudes do adulto que não estejam de acordo com as próprias regras impostas por eles. Quanto à sanção, qualquer delas é admitida como perfeitamente legítima, necessária e constituinte do princípio de moralidade: se não puníssemos a mentira seria permitido mentir, etc. A sanção expiatória tem primazia sobre a sanção por reciprocidade. Há a crença numa justiça automática emanando da natureza física e dos objetos inanimados. Nesta fase, onde o respeito unilateral prevalece sobre o respeito mútuo a noção de justiça só consegue se desenvolver em certos momentos onde a cooperação se delineia independente da coação. Em geral, o justo confunde-se com o que é imposto pela lei, e a lei é inteiramente heterônoma e imposta pelo adulto.

Numa segunda etapa (entre oito e onze anos aproximadamente) a noção de igualitarismo prevalece sobre qualquer outra consideração, opondo-se à obediência e à sanção. Este é o período em que ocorre o desenvolvimento progressivo da autonomia. No campo da justiça distributiva começa a haver um predominância da sanção por reciprocidade sobre a sanção expiatória. Por fim, a crença na justiça imanente diminui muito.

Na terceira etapa (a partir dos onze ou doze anos) surge uma noção de justiça mais refinada que o igualitarismo, trata-se da "equidade" ou de um igualitarismo matizado pelas circunstâncias atenuantes ou agravantes de cada caso. É um igualitarismo tornado relativo, que longe de levar a privilégios, trata de tornar a igualdade mais efetiva do que era antes.

"Em conclusão, encontramos assim, no campo da justiça, como nos campos anteriores, a oposição das duas morais sobre as quais insistimos tão freqüentemente. A moral da autoridade, que é a moral do dever e da obediência, conduz, no campo da justiça, à confusão do que é justo com o conteúdo da lei estabelecida e à aceitação da sanção expiatória. A moral do respeito mútuo, que é a do bem (por oposição à do dever) e da autonomia, conduz, no campo da justiça, ao desenvolvimento da igualdade, noção constitutiva da justiça distributiva e da reciprocidade." (Piaget, 1977:279).

As duas morais da criança e os tipos de relações sociais

Fauconnet desenvolveu as idéias de Durkheim sobre a justiça distributiva e o direito penal. No caso do direito penal, a análise de Piaget situa-se na questão da responsabilidade que Fauconnet define como "a qualidade dos que devem ... em virtude de uma regra ser escolhidos como passíveis de uma sanção" ou seja ser responsável é "justamente ser punível" (apud Piaget, 1977:282). Nas morais primitivas ou no direito arcaico, a responsabilidade era imputada mesmo por atos involuntários e cometidos sem nenhum imprudência ou negligência. Na moral atual, a intenção é tudo, e no direito moderno, a responsabilidade exige a presença de um corpo de delito, mas só há delito se houver intenção, imprudência ou negligência. Nota-se aí um paralelismo entre o desenvolvimento moral na criança e na sociedade, a partir de uma perspectiva histórica. A responsabilidade moderna tende a ser cada vez mais individual e subjetiva enquanto que a antiga era coletiva e objetiva.

Piaget reconheceu a existência de duas morais na criança, a da coação e a da cooperação.

"A moral da coação é a moral do dever puro e da heteronomia: a criança aceita do adulto um certo número de ordens às quais deve submeter-se quaisquer que sejam as circunstâncias. O bem é o que está de acordo, o mal é o que não está de acordo com estas ordens: a intenção só desempenha pequeno papel nesta concepção, e a responsabilidade é objetiva. Mas, à margem desta moral, depois em oposição a ela, desenvolve-se, pouco a pouco, uma moral da cooperação, que tem por princípio a solidariedade, que acentua a autonomia da consciência, a intencionalidade e, por conseqüência, a responsabilidade subjetiva."(Piaget, 1977:288).

Assim também é na sociedade, a coação social (respeito aos mais velhos ou às tradições) tem como efeitos resultados análogos à coação dos adultos sobre as crianças. Só a diferenciação social e a cooperação eliminam o domínio do culto ao passado e do conformismo obrigatório que o acompanha. Neste caso a autonomia da consciência toma o lugar da heteronomia.

Bovet considera duas condições como necessárias e suficientes para o surgimento da consciência da obrigação: de um lado é preciso que um indivíduo receba ordens, e por outro lado, que aquele que as recebe respeite aquele que as dá, se não há ordens não há regras, e se não há respeito não há obediência e portanto as regras não obrigariam a consciência. Piaget identifica em Bovet uma dificuldade análoga a de Durkheim, a resposta a questão -como se todo dever emana de personalidades superiores a ela, a criança adquirirá uma consciência autônoma?- só seria possível se ultrapassada a moral do puro dever em direção a uma moral do bem.

"Compreendemos bem como, sob a influência de contradições devidas as interferências de ordens, a razão dá-se o direito de precisar o sentido dos deveres, de generalizar mesmo o seu conteúdo, em suma, de polir e de codificar a matéria da moral. Mas, na hipótese de Bovet, a razão nada poderia prescrever: está no indicativo e não no imperativo. Em suma, não sairíamos da heteronomia próprias do jogo das ordens, mesmo complicando o jogo ao infinito: só um poder legislativo concedido à razão explicará a autonomia." (Piaget 1977:330).

Este poder legislativo configura-se a partir do respeito mútuo:

"O elemento quase material de medo que intervém no respeito unilateral, desaparece então progressivamente em favor do medo totalmente moral de decair aos olhos do indivíduo respeitado: a necessidade de ser respeitado equilibra, por conseguinte a de respeitar, e a reciprocidade que resulta desta nova relação basta para aniquilar qualquer elemento de coação. A ordem desaparece para tornar-se acordo mútuo, e as regras livremente consentidas perdem o seu caráter de obrigação externa. Bem mais, sendo as regras submetidas às leis da reciprocidade, são estas mesmas leis racionais em sua essência, que constituirão as verdadeiras normas morais. A razão torna-se, desde então, livre para construir seu plano de ação, na medida em que permanece racional, isto é, na medida em que sua coerência interna e externa está salvaguardada, na proporção em que o indivíduo consegue situar-se numa perspectiva tal que as outras perspectivas concordem com ela. Assim está conquistada a autonomia, além da anomia e da heteronomia." (Piaget, 1977:334).

Lógica e sociedade

A convergência percebida por Piaget entre os resultados do seu trabalho e aqueles da análise histórico-crítica ou lógico-sociológica conduziu-o a um segundo ponto: o paralelismo entre o desenvolvimento moral e a evolução intelectual. O parentesco que existe entre as normas morais e as normas lógicas o levaram a afirmar: "...a lógica é uma moral do pensamento, como a moral, uma lógica da ação." (1977:344). Este paralelismo tem sido reconhecido por quase todas as doutrinas contemporâneas da psicologia à sociologia.

Nem as normas lógicas nem as normas morais são inatas na consciência individual, apesar de que elementos de racionalidade e de moralidade sejam encontrados desde muito cedo ( antes mesmo da linguagem) na criança. Mas nem todo traço inteligente ou de sensibilidade pode ser classificado de lógico ou moral. A lógica é um conjunto de regras de controle da própria inteligência, da mesma forma está a moral para a vida afetiva. A formação destes conjuntos de regras se dá a partir do próprio equilíbrio funcional do organismo, ela ocorre com uma tomada de consciência sobre a procura pelas regras, estruturando então o que era simples funcionamento.

Mas como se dá esta tomada de consciência? Ela não é simples, um indivíduo sozinho, não é jamais capaz de obtê-la.

"É neste sentido que a razão sob seu duplo aspecto social e moral, é um produto coletivo... Isto significa que a vida social é necessária para permitir ao indivíduo tomar consciência do espírito e para transformar, assim, em normas propriamente ditas, os simples equilíbrios funcionais imanentes a toda atividade mental ou mesmo vital." (Piaget, 1977:346).

"A formação da lógica na criança, primeiramente, evidencia dois fatos essenciais: que as operações lógicas procedem da ação e que a passagem da ação irreversível às operações reversíveis se acompanha necessariamente de uma socialização das ações, procedendo ela mesma do egocentrismo à cooperação." (Piaget, 1973: 96).

As quatro espécies de estruturas cognitivas identificadas por Piaget, que correspondem aos quatro períodos sucessivos da equilibração das ações e das operações do pensamento individual estão relacionadas com estágios do desenvolvimento social.

No período sensório-motor já há socialização (imitação) mas esta ainda tem muito pouca influência sobre a inteligência.

No segundo período as trocas inter-individuais ainda são caracterizadas por um egocentrismo que permanece a meio caminho do individual e do social e que se define por uma não diferenciação relativa do ponto de vista próprio e do ponto de vista do outro. Na perspectiva intelectual, tem-se um alogismo no qual as idéias são crenças e não hipóteses a verificar. Do ponto de vista moral, há uma espécie de anomia, ou seja todos os seus sentimentos tem o mesmo valor, a criança não é capaz nessa fase de se julgar boa ou má;

No terceiro período há um nítido progresso da socialização a partir da cooperação mais freqüente com os seus parentes com troca e coordenação de pontos de vista. A anomia começa a perder terreno sob a pressão das regras lógicas e morais coletivas, que são impostas com o estabelecimento espontâneo de relações de respeito unilateral e coação, entre a criança e os adultos. A submissão à vontade adulta tem o efeito de provocar uma concepção anunciadora da noção de verdade, que já é, então, alheia aquilo que lhe agrada.Daí nasce uma maior sensibilidade à contradição que torna a criança capaz " de conservar dados anteriores, isto é, os começos da cooperação na ação e no pensamento ocorrem juntos a um agrupamento sistemático e reversível das relações e operações." (Piaget, 1973: 99). Mas esta concepção ainda está distante de poder conformar-se à realidade, pois ainda "o verdadeiro é o que está de acordo com a Palavra adulta." (Piaget 1977:348). Temos aqui heteronomia, que marca um progresso importante em relação a fase anterior já que há agora a procura de uma verdade comum, mas esta ainda não é submetida à razão.

No quarto período, as necessidades emergentes de comunicação ultrapassando a ação imediata correspondem ao surgimento dos agrupamentos de operações formais que se definem sobre as proposições simples. A última fase nesta analogia entre o desenvolvimento moral e intelectual traduz-se pelo fato de que: "só a cooperação leva a autonomia" (Piaget 1977:349). Como fonte de crítica, no campo da lógica, a cooperação repele a convicção espontânea e a confiança cega na autoridade adulta próprias do egocentrismo, levando à reflexão e a verificação objetiva, que permitirá a tomada de consciência da lógica das relações. Mas, a cooperação é ao mesmo tempo oriunda de valores construtivos, pois ao mesmo tempo que ela leva ao reconhecimento dos princípios da lógica formal, estas mesmas leis são necessárias à pesquisa comum. No plano moral ocorre algo semelhante, pois pela comparação mútua das regras que cada um adota, ela passa a julgar objetivamente os atos dos outros, incluindo os adultos. Surge, então, o respeito mútuo com o declínio do unilateral, uma consciência do bem e a noção de justiça.

Existem escalas sucessivas de estruturação lógica que são caracterizadas por modos específicos de interação social que, por sua vez, representam um progresso na cooperação. Daí cabe a questão: é a socialização do pensamento responsável pelo progresso lógico? ou o inverso? Na verdade, responde Piaget, trata-se de um círculo indissociável.

Tanto as ações do indivíduo sobre o mundo exterior quanto as ações dos indivíduos uns sobre os outros (as relações sociais), tendem igualmente para uma forma de equilíbrio móvel e reversível próprio do agrupamento operatório. A questão importante que se coloca aqui é saber se esta forma de equilíbrio que constitui o agrupamento operatório poderia ser desenvolvida pelo indivíduo isoladamente ou a cooperação entre indivíduos é necessária? De forma inversa poderia a sociedade atingir o equilíbrio intelectual , sem uma estruturação interna particular das ações individuais?

Com referência ao indivíduo a resposta é negativa, pois para atingir a reversibilidade completa do agrupamento não bastariam os processos sensório-motores pois estes são irreversíveis. Há que se considerar ainda que a reversibilidade supõe o simbolismo pois só uma evocação dos objetos ausentes permitirá que o equilíbrio entre a assimilação das coisas aos esquemas de ação e a acomodação destes às coisas constituam em mecanismo reversível. Uma linguagem é necessária para tal, pois as imagens individuais são muito flutuantes e não chegam a tal resultado. Donde se chega aos fatores sociais. Logo o indivíduo que construiu agrupamentos operatórios é necessariamente um ser social.

A resposta a questão inversa também é negativa, pois, se a cooperação conduz, através da linguagem, à formação do agrupamento, é preciso lembrar que "...a lógica das operações não é uma lógica verbal, mas uma lógica da psicomotricidade individual, na medida exata em que as operações são um sistema de ações" (Piaget, 1973:195).

"Em suma, de qualquer maneira que virmos a questão, as funções individuais e as funções coletivas se referem umas às outras na explicação das condições necessárias ao equilíbrio lógico. Quanto a lógica mesma, ela ultrapassa as duas, pois depende do equilíbrio necessariamente ideal ao qual tendem uma e outra. Isto não quer dizer que existe a lógica em si, que comandaria simultaneamente as ações individuais e sociais, pois a lógica só é a forma de equilíbrio imanente ao processo de desenvolvimento destas ações mesmas. Mas as ações, tornando-se compostas entre si e reversíveis, adquirem, elevando-se à fileira de operações, o poder de se substituir umas às outras. o 'agrupamento' não é assim senão um sistema de substituições possíveis, seja no centro de um pensamento individual ( operações da inteligência), seja de um indivíduo a outro (cooperação). Estas duas espécies de substituições constituem então uma lógica geral, ao mesmo tempo coletiva e individual, que caracteriza a forma de equilíbrio comum tanto às ações cooperativas quanto individualizadas." (Piaget, 1973:196).

Com o objetivo de salientar as diferenças entre o conceito de laissez-faire, tal como o concebia o liberalismo clássico, e o conceito de autonomia, nascido das trocas cooperativas, Piaget escreve esse belo trecho:

"À passividade da livre troca, a cooperação opõe assim a dupla atividade de uma descentração, em relação ao egocentrismo intelectual e moral e de uma liberação em relação às coações sociais que este egocentrismo provoca ou mantém. Como a relatividade no plano teórico, a cooperação no plano das trocas concretas supõe, pois, uma conquista contínua sobre os fatores de automatização e de desequilíbrio. Quem diz autonomia, em oposição à anomia e à heteronomia, diz, com efeito, atividade disciplinada ou auto-disciplina, a igual distância da inércia ou da atividade forçada. É onde a cooperação implica um sistema de normas, diferindo da suposta livre troca cuja liberdade se torna ilusória pela ausência de tais normas. E é porque a verdadeira cooperação é tão frágil e tão rara no estado social dividido entre os interesses e as submissões, assim como a razão permanece tão frágil e tão rara em relação às ilusões subjetivas e ao peso das tradições." (Piaget, 1973:111).

Da perspectiva pedagógica estas constatações são, portanto, contrárias tanto ao método autoritário quanto ao puramente individualista (ou espontaneista). Não se pode pretender transformar do exterior o pensamento da criança, da mesma forma que é inútil, contar apenas com a "natureza" biológica da criança, para levar ao desenvolvimento da consciência e da inteligência, pois "toda moral tanto quanto toda a lógica são produtos da cooperação" (Piaget, 1977: 350).

Conclusão sobre o trabalho de Piaget

A obra de Piaget, um suíço nascido em Neuchâtel, aos 9 de agosto de 1906, que viveu até 1980, teve como objetivo a procura de uma resposta para a questão: "Como aumentam os nossos conhecimentos?". Ou seja, como eles nascem, quais são os seus instrumentos, como se constituem etc. A abrangência multidisciplinar presente em toda a sua obra, fez de Piaget um autor de difícil leitura. Tal fato, adicionado à perspectiva inovadora presente na sua teoria epistemológica, não permitiram que a mesma fosse bem conhecida dos meios acadêmicos brasileiros até a década de 80, apesar de os seus princípios já terem sido anunciados na década de 30.

Sua teoria teve repercussões sérias a nível psicopedagógico, chegando a gerar uma corrente nova na área, denominada de construtivismo. Infelizmente o conhecimento insuficiente da mesma, fez com que tanto a adoção quanto a crítica desse paradigma pedagógico fosse muitas vezes efetuado com superficialidade.

Os resultados do seu trabalho têm influenciado modelagens muito interessantes e promissoras na área de inteligência artificial construtivista. Os modelos de Drescher (1991), Wazlawick (1993) e Fialho (1994), são exemplos desta influência que se efetiva sob a hipótese básica de que "a aprendizagem humana e a aprendizagem de máquina compartilham uma base teórica comum relativa ao conhecimento. Avanços em qualquer uma das áreas representam benefícios mútuos." (Fialho, 1994:14).

Uma das críticas mais comuns dirigidas ao trabalho de Piaget é a de que ele não considerou com a ênfase devida a influência da interação social e da aquisição da linguagem na aprendizagem humana. Aqui vale lembrar que Piaget foi um epistemólogo, ou seja ele não estava exatamente construindo uma teoria educacional. No entanto, a epistemologia genética desenvolvida por Piaget, em momento nenhum nega a importância da interação social no processo de aprendizagem, ao contrário ela é considerada como essencial para o declínio da fase egocêntrica. O que Piaget ressalta é que a linguagem não é o princípio do nascimento da inteligência, ou seja, que a relação com o mundo dos objetos e do espaço que nos rodeiam também são fundamentais. Note-se que na fase sensório-motora não há socialização do intelecto como tal, pois nesta há apenas uma adaptação do indivíduo ao ambiente.

"...Adquirida a linguagem , a socialização do pensamento manifesta-se pela elaboração de conceitos e relações e pela constituição de regras... É justamente na medida, até, que o pensamento verbo-conceptual é transformado pela sua natureza coletiva que ele se torna capaz de comprovar e investigar a verdade, em contraste com os atos práticos dos atos da inteligência sensório-motora e à sua busca de êxito ou satisfação". (Piaget, 1963:336).

Ainda sobre a importância do social, tem-se Piaget declarando:

"...por que num determinado momento da vida, o sujeito tem necessidade de representar as relações espaciais em vez de simplesmente agir sobre elas? Evidentemente, é para comunicar a outrem ou para obter de outrem alguma informação sobre a realidade que se relaciona com o espaço, fora dessa relação social não descortinamos razão alguma para que a representação pura suceda à ação"; (Piaget, 1963:342)

Howard Gardner (1993) resume no seu livro "Frames of mind - the theory of multiples intelligences" as principais críticas dirigidas ao trabalho de Jean Piaget. Estas fazem menção ao fato de que o trabalho de Piaget assume pouca importância fora do contexto das civilizações não ocidentais ou pré-literatas. Mencionam também a arbitrária divisão do desenvolvimento da inteligência em estágios; quanto a isso o próprio Piaget concorda que qualquer divisão em estágios é arbitrária e não poderia deixar de sê-lo, pois inicialmente temos que as idades podem variar de uma criança para outra, e, mais importante, há características de um "continuum" na passagem de um estágio para outro. Mas, quanto a esta questão dos estágios, as críticas vão mais adiante, afirmando que o que se observa não é só defasagem temporal, mas também seqüencial.

Outra questão que freqüentemente é colocada ao trabalho de Jean Piaget diz respeito a extrema importância dada ao pensamento lógico-matemático. Que seja o próprio Piaget a esclarecer:

"...o pleno desenvolvimento da personalidade sob seus aspectos mais intelectuais é indissociável do conjunto das relações afetivas, sociais e morais que constituem a vida da escola, (recordamos essa espécie de inibição afetiva que bloqueia tão freqüentemente o raciocínio dos alunos logo após os insucessos matemáticos). A primeira vista, o desabrochamento da personalidade parece depender sobretudo dos fatores afetivos, e o leitor terá, talvez, ficado surpreso com o fato de que, para ilustrar essa noção do livre desenvolvimento da pessoa, tenhamos começado pela lógica e pelas matemáticas! Na realidade a educação forma um todo indissociável e não é possível formar personalidades autônomas no domínio moral se, por outro lado, o indivíduo está submetido a uma coerção intelectual tal que deva se limitar a aprender passivamente, sem tentar descobrir por si mesmo a verdade: se ele é passivo intelectualmente não pode ser livre moralmente. Mas reciprocamente, se sua moral consiste exclusivamente numa submissão a vontade adulta e se as únicas relações sociais que constituem a vida da classe são as que ligam cada aluno individualmente a um mestre que determina todos os poderes, ele não pode tampouco ser ativo intelectualmente". (Piaget, 1972:61)

O trabalho de Humberto Maturana e Francisco Varela

Introdução

Humberto Maturana e Francisco Varela desenvolveram um trabalho transdisciplinar centrado no propósito de entender a organização do sistemas vivos com relação ao seu caráter unitário. Para tal, foi preciso que esses pesquisadores levassem em conta os principais desafios que esse entendimento impunha, quais sejam: entender a natureza autônoma da organização biológica e entender como a identidade pode ser mantida durante a evolução que gera a diversidade. Os autores não fazem, pois não são necessárias, distinções sobre nenhuma classe ou tipo de ser vivo, nem descrevem os seus componentes. Apenas explanam quais são as relações que permanecem invariantes entre tais componentes, e que constituem o ser vivo enquanto tal, não importando qual é a sua natureza.

Além de reformular um fenômeno, mostrando como as relações e interações entre seus componentes o geram, como ocorre em toda a explanação, é meta central dos autores, pois têm claro que toda explanação é feita por um observador do fenômeno, distinguir claramente o que pertence ao sistema como constitutivo da sua fenomenologia e o que pertence ao domínio da sua descrição apenas. Esta distinção é uma proposta de atitude epistemológica nova e já demonstrou o quanto é fecunda no próprio trabalho dos seus proponentes.

A abordagem feita é, num certo sentido, mecanicista, pois nenhuma força ou princípio que não esteja no universo físico é invocada. Os seres vivos serão tratados como máquinas, donde os autores precisam responder 'que tipo de máquinas elas são?' e 'qual é a sua fenomenologia, incluindo reprodução e evolução, a partir da sua organização unitária?'. Apesar de mecanicista, a abordagem não é reducionista ou atomista, uma vez que é o caráter unitário do ser vivo que tenta ser compreendido de forma transdisciplinar.

O uso do termo transdisciplinar, ao invés dos termos interdisciplinar e multidisciplinar, é mais adequado para explicar este aspecto do trabalho dos autores, pois, como bem observou Stanford Beer, (no prefácio que escreveu para o livro Autopoiesis e Cognição):

"...se o livro lida com sistemas vivos, então deve tratar de biologia. Se ele diz alguma coisa científica sobre organização, então deve falar de cibernética. Se pode reconhecer a natureza do caráter unitário, deve ser um livro de epistemologia - e também, lembrando a grande contribuição do primeiro autor sobre percepção, deve lidar com psicologia. O livro é indubitavelmente sobre todas estas coisas. Chamaríamos, portanto, esta área interdisciplinar de psicociberbioepistêmica? Faríamos isso se quiséssemos insultar os autores, pois o seu estudo não inter-relaciona disciplinas, ele as transcende. Na verdade, parece que ele as aniquila..." (Beer in Maturana, 1987: 65).

Maturana e Varela desenvolvem uma abordagem em busca de síntese e não de análise e classificação. Segundo estes autores a ciência de hoje teve o seu progresso instrumentalizado por análise e categorização, isso produziu uma visão de mundo difícil de mudar. Nessa visão de mundo os sistemas reais são aniquilados pela própria tentativa de entendê-los, sendo as relações definidoras dos mesmos perdidas uma vez que não são categorizáveis.

Consideram os autores que, nenhuma posição ou ponto de vista que tenha alguma relevância no domínio das relações humanas está livre de implicações éticas e políticas, logo, nenhum cientista pode considerar-se alheio as mesmas. Tais implicações foram explicitadas pelos autores a partir da resposta a seguinte questão: "as sociedades humanas são ou não são elas mesmas sistemas biológicos? ".

As noções de observador, distinção, unidade, organização e estrutura são os alicerces da teoria de Maturana e Varela. Elas são sintetizadas a seguir.

O observador

Tudo que é dito é dito por um observador. O observador é um ser humano, portanto, um sistema vivo, e tudo o que se aplica aos sistemas vivos também se aplica a ele. O observador contempla simultaneamente a entidade que ele considera e o universo no qual ela vive. Ele é capaz de operar ou de interagir com a entidade observada e com as suas relações.

Uma entidade é o que pode ser descrito pelo observador, descrever é enumerar as interações e relações atuais ou potenciais da entidade descrita. Isso só pode ser feito se existe pelo menos uma outra entidade distinguível com a qual a entidade descrita pode ser relacionada e interage.

O entendimento da cognição como um fenômeno biológico deve levar em conta o observador como um sistema vivo e o seu papel.

Unidade

A noção de unidade é fundamental no trabalho destes autores, dado, como já foi dito ao caráter não reducionista da sua abordagem. Eles buscaram entender o ser vivo, não pela enumeração de suas características, mas pela sua organização e seu caráter unitário. A definição dos mesmos para unidade está bem clara na citação abaixo:

"A operação cognitiva básica que nós realizamos como observadores é a operação de distinção. Através dessa operação nós especificamos uma unidade como uma entidade distinta do seu meio ambiente, caracterizamos ambos unidade e ambiente com as propriedades as quais esta operação lhes fornece e especificamos sua diferenciação. Uma unidade assim especificada é uma unidade simples que define através de suas propriedades o espaço no qual ela existe e o domínio fenomenal que ela pode gerar na sua interação com outras unidades." (Maturana, 1980:XIX)

Quando a operação de distinção é aplicada recursivamente sobre uma unidade, os seus componentes podem ser distinguidos, permitindo que ela seja re-especificada como uma unidade composta. Uma unidade pode portanto ser tratada como composta ou simples. No primeiro caso, ela existe no espaço que os seus componentes definem e é através das propriedades dos seus componentes que ela é distinguida. No segundo caso, ela existe num espaço que é definido através das propriedades que a caracterizam como uma unidade simples.

Uma operação de distinção é também a prescrição de um procedimento. Este procedimento separa a unidade distinta do seu meio. Uma distinção é, portanto, uma ação cognitiva, e a unidade especificada existe no domínio cognitivo do observador como uma descrição. Apesar disso, ele especifica no seu discurso um meta-domínio de descrições, pois ele estabelece uma referência que lhe permite falar como se a unidade existisse como entidade separada que ele pode caracterizar denotando as operações responsáveis pela sua distinção.

"Na perspectiva do meta-domínio descritivo, a distinção entre a caracterização de uma unidade e o conhecimento do observador que lhe permite descrevê-la dentro de um contexto, deve ser clara. De fato, conhecimento sempre implica uma ação concreta ou conceitual em algum domínio, e o reconhecimento do conhecimento sempre implica um observador que contempla a ação de um meta-domínio." (Maturana, 1980:XXII)

Organização e estrutura

Conta-se uma história, cujo inventor teria sido Einstein, que analisa o ato de descrição dos objetos e seres existentes, mais ou menos assim: "se formos descrever um relógio, com certeza iremos encontrar mais de 20 explicações diferentes e igualmente válidas para o mesmo, talvez nenhuma delas corresponda verdadeiramente àquilo que o relógio é". O ato de descrição de um fenômeno cria um domínio fenomenológico novo, o domínio da descrição do fenômeno. Maturana e Varela alertam que é preciso fazer uma separação entre estes dois domínios. Os conceitos de organização e estrutura abordam esta questão.

A organização de uma unidade ou sistema é o conjunto de relações que estão necessariamente presentes no sistema e que lhe definem a existência. Uma cadeira por exemplo pode ser definida a partir da descrição das relações entre braços, pernas, assento e encosto. Algumas coisas são difíceis de descrever, por exemplo, a classe das 'boas ações', mesmo que tenhamos um razoável entendimento do que seja uma boa ação.

De outra maneira, pode-se dizer que "...as relações entre os componentes que definem uma unidade composta (sistema) como uma unidade composta de um tipo em particular, constituem a sua organização" (Maturana, 1980:XIX). Nesse caso os componentes são vistos somente enquanto participantes na constituição da unidade, nada precisando ser dito sobre suas propriedades específicas, que não sejam requeridas para a realização do sistema. "Os componentes atuais ( com todas as suas propriedades incluídas) e as atuais relações existentes entre eles, que realizamconcretamente o sistema como um membro em particular da classe de unidades compostas a qual ela pertence pela sua organização, constituem a sua estrutura." (Maturana, 1980:XX).

O que define um sistema é, portanto, o conjunto de relações existentes entre os seus componentes, independentemente destes componentes. O conjunto de relações que define um sistema como uma unidade é a sua organização. Já o conjunto de relações efetivas entre os componentes presentes numa máquina concreta dentro de um espaço dado, constituem sua estrutura. Dessa forma, a organização de uma máquina nada tem a ver com a sua materialidade, é claro que ela implica uma matéria: uma máquina de Turing, por exemplo, é uma certa organização mesmo que pareça haver um fosso intransponível entre a forma como é definida uma máquina de Turing e suas realizações (elétrica, mecânica etc.).

A organização de um sistema pode se efetivar a partir de muitas estruturas diferentes, na medida em que, o conjunto de relações e propriedades que a definem são um subconjunto daquelas que definem uma estrutura. Por exemplo, o conjunto de relações que definem a realização de um carro, pode ser verificado concretamente a partir de muitas estruturas diferentes. O mais importante nisso é que uma mesma organização pode ser percebida por um observador como pertencente a diferentes classes de unidades compostas, pois ele poderá abstrair subconjuntos diferentes de relações e propriedades em diferentes estruturas pela qual ela se efetive. Mais ainda, para que uma organização possa permanecer invariante, enquanto realizável por diferentes estruturas, existem limites para as variáveis dessa estrutura, que se ultrapassados acarretariam a mudança da organização.

A noção de finalidade de um sistema não é uma característica da sua organização, mas sim do domínio do seu funcionamento, ou seja, ela remete à descrição de uma máquina a um domínio mais vasto que o sistema ele mesmo. Na verdade, a noção de finalidade é usada nas descrições dos sistemas em geral, pois todos os sistemas construídos pelo homem têm uma finalidade específica, e a mesma diminui em muito a nossa tarefa explicativa e descritiva numa explanação. Donde, esses conceitos de finalidade, de objetivo ou de funcionamento são introduzidos pela necessidade de comunicação dentro do domínio do observador. Eles não servem para nada na caracterização de uma classe particular de organização. Um carro, mantida a sua integridade física (donde, mantido o conjunto de relações entre os seus componentes, e, portanto, mantida a sua organização) não deixará de ser um carro se lhe for dada uma finalidade diferente. Por exemplo, ao invés do transporte de objetos e pessoas, um carro poderia servir para escorar uma parede, nem por isso deixaria de ser um carro.

Na definição de organização feita acima, quando a condição de teleonomia (necessidade de um fim ou objetivo) é retirada da descrição da organização de um sistema, os autores imprimem a principal marca da sua perspectiva epistemológica. A exclusão da noção de finalidade na descrição da organização de um sistema é o divisor de águas entre o domínio fenomenológico descrito e o domínio da sua descrição.

O ser vivo e a sua organização

A grande questão que norteou o trabalho de Maturana e Varela era "o que é a vida?" ou "o que é próprio dos sistemas vivos desde a sua origem, e permanece invariante durante as suas sucessivas gerações?" A resposta para tal questão no entender dos autores estava implícita na resposta de outra: qual é a organização do ser vivo?

O ser vivo pode ser facilmente reconhecido quando é encontrado. Mais difícil do que reconhecê-lo é dizer o que ele é. Suas características tais como reprodução, hereditariedade, crescimento, irritabilidade, adaptação e evolução, desenvolvimento e diferenciação, seleção natural, e assim por diante, podem ser facilmente enumeradas. Mas quando é que esta lista de atributos será suficiente para definir de forma clara o ser vivo?

Maturana e Varela têm claro que o ser vivo é um tipo especial de máquina, e a partir do paradigma epistemológico que adotam, cabe-lhes então definir de que tipo de máquina trata-se, a partir da sua organização. No entender dos mesmos, seria muito ingênuo dizer apenas que máquinas são sistemas concretos de hardware, que se definem pela natureza dos seus componentes e pelo propósito para o qual foram feitas, pois neste caso, nada teria sido dito sobre a natureza da sua organização.

Para Maturana e Varela os seres vivos são um tipo particular de máquinas homeostáticas, que eles denominam de autopoiéticas. "Existem sistemas que mantém alguns de seus parâmetros, seja imóveis, seja ligeiramente flexíveis no interior de um intervalo restrito de valores. É sobre esta constatação que repousa a noção fundamental de estabilidade ou de coerência de um sistema. " (Wiener apud Varela, 1989:45). Nos sistemas em que o mecanismo responsável pela estabilidade é interno ao mecanismo da máquina, ou seja, nos quais as fronteiras são definidas pela própria organização da máquina tem-se um tipo especial de máquinas chamadas de homeostáticas.

A idéia de autopoiesis é uma expansão da idéia de homeostase em duas direções importantes:

  • ela transforma todas as referências da homeostase em internas ao sistema;
  • ela afirma ou produz a identidade do sistema.

Ou seja, esses sistemas produzem a si próprios, dessa forma produzem a sua identidade distinguindo-se a si mesmos do seu ambiente. Daí o termo autopoiéticos, do grego auto (própria) e poiesis(produção).

Um sistema autopoiético é organizado como uma rede de processos de produção de componentes que:

a) regeneram continuamente, pela sua transformação e interação, a rede que os produziu; e que,

b) constituem o sistema enquanto uma unidade concreta no espaço onde ele existe, especificando o domínio topológico onde ele se realiza como rede.

Dessa forma uma máquina autopoiética é um sistema homeostático onde a invariante fundamental é a própria organização. A organização por sua vez é determinada pelas relações, não entre os seus componentes, mas entre os processos de produção desses componentes. Portanto para classificar um sistema como autopoiético é necessário ter capacidade de dar uma significação precisa aos processos de produção dos componentes e de geração de uma fronteira, pois é na geração da fronteira que se produz a identidade.

Este tipo de organização tem conseqüências evidentes:

(i) máquinas autopoiéticas são autônomas;

(ii) máquinas autopoiéticas têm individualidade;

(iii) máquinas autopoiéticas são unidades que se caracterizam justamente a partir da própria organização autopoiética; e,

(iv) máquinas autopoiéticas não têm entradas ou saídas.

Todas estas conseqüências serão detalhadas neste texto, em outros momentos.

A noção de autopoiesis é necessária e suficiente para definir um sistema vivo. É óbvio que se for aceito que os seres vivos são máquinas, então eles são máquinas autopoiéticas. Não é tão aparente, contudo, o inverso, ou seja, que toda máquina autopoiética é um sistema vivo. A dificuldade em se perceber este fato deve-se, de acordo com os autores, a razões ligadas ao domínio da descrição, são elas: (a) Máquinas em geral são artefatos feitos pelo homem, com propriedades conhecidas e, pelo menos conceitualmente, perfeitamente previsíveis. (b) Enquanto a natureza do ser vivo for desconhecida fica difícil identificar quando um sistema é ou não vivo. (c) A crença que observação e experimentação, sem nenhum recurso à análise teórica, sejam suficientes para revelar a natureza do ser vivo.

Por mais chocante que possa parecer, os fenômenos da reprodução e da evolução não são constitutivos da definição do ser vivo a partir do seu caráter unitário. É preciso lembrar que toda unidade para ser reproduzida precisa já estar constituída, e também que muitos seres vivos não são capazes de reproduzir-se (uma mula, por exemplo). O fato de a reprodução requerer uma unidade a ser reproduzida não deve ser entendido como uma questão de precedência trivial, mas como um problema operacional, sobre a origem do sistema vivo e sobre a natureza do seu mecanismo de reprodução. Este mecanismo é, nos sistemas autopoiéticos, peculiar aos mesmos. Trata-se de um mecanismo no qual uma unidade produz uma outra com a mesma organização que a sua, enquanto produz a si própria, num processo de auto-reprodução.

Autopoiesis e autonomia.

Para Varela (1989) importa analisar, quando um cão vira a cabeça na sua direção "para poder vê-lo melhor", sobre que bases se tenta imputar uma intenção ao cão. Para o autor, nesse comportamento, o cão recebe as informações que provém do seu ambiente, não como instruções, mas como perturbações que ele interpreta e submete a algum mecanismo de equilibração interna. É esta propriedade particular, que ele chama de autonomia, que será melhor definida a seguir.

Uma das características mais evidentes dos seres vivos é a sua autonomia. A questão da autonomia tem estado até então envolvida numa aura de mistério. Maturana e Varela propõem que o mecanismo que torna os seres vivos autônomos é a autopoiesis. A vida mesmo se especificou, dentro do domínio molecular, a partir de um processo desse tipo, enquanto ela mesmo é um desses processos autônomos. Aqui autonomia tem o sentido usual, ou seja um sistema é autônomo quando é capaz de especificar as suas próprias leis, ou o que é adequado para ele.

A célula é uma unidade que surge de uma sopa molecular a partir da especificação de uma fronteira que a distingue do seu meio. A especificação desta fronteira se faz através da produção de moléculas, que por sua vez necessitam para a sua formação da presença dessa mesma fronteira. Há, portanto, uma especificação mútua, e se esse processo de auto-produção se interrompe, a célula se desintegra. O fenômeno essencial aqui é o seguinte: o fechamento operacional de elementos situados em níveis separados produz um entrecruzamento destes níveis para constituir uma nova unidade. Quando o entrecruzamento cessa, a unidade desaparece. A autonomia surge desse entrecruzamento. A origem da vida não é o único exemplo dessa lei geral.

O fechamento operacional

Varela considera que o conceito de autopoiesis não pode ser confundido com o conceito de autonomia, pois a operação de uma unidade autopoiética produz comportamentos químicos e as suas fronteiras são topológicas e não é este o caso dos sistemas sociais. Contudo o mesmo autor indica que talvez seja possível tirar vantagens disto tudo na busca de um conceito para a autonomia em geral. O que os sistemas autônomos têm em comum com os seres vivos é o fato de que a distinção da unidade está intimamente ligada à organização e ao funcionamento da mesma. Isto é exatamente o que define a autonomia: a identidade do sistema se afirma no e pelo funcionamento do mesmo.

O conceito de fechamento operacional é necessário para a definição de sistemas autônomos. Um sistema autônomo é operacionalmente fechado se sua organização é caracterizada por processos: (a) dependentes recursivamente uns dos outros pela geração e realização desses mesmos processos, e (b) que constituem o sistema como uma unidade reconhecível dentro do domínio em que o processo existe.

Os sistemas autônomos são operacionalmente fechados. Os sistemas vivos desempenham o papel de casos paradigmáticos na caracterização do fechamento operacional. A autopoiesis é um caso particular de sistema operacionalmente fechado e a autonomia dos sistemas vivos não é mais do que um tipo específico de autonomia.

O teorema de Godel e as estruturas fractárias são exemplos de formalismos que representam processos com fechamento operacional. Esse fechamento conduz:

a) a uma coerência, sempre distribuída e jamais totalmente presente, mas compreensível na sua forma geral (como a conhecida figura fractária mítica dos flocos de neve)

b) a existência de propriedades emergentes a nível de unidade que não resultam da simples adição das propriedades dos componentes que participam do processo.

Varela distingue algumas relações entre atividade cognitiva humana e os sistemas operacionalmente fechados. São as seguintes:

a) a atividade cognitiva humana, ou os seus processos mentais, repousam sobre um substrato biológico;

b) as descrições humanas são perfeitamente capazes de auto-descrição a um nível infinito.

Acoplamento por entradas e acoplamento por fechamento operacional

A idéia de auto-organização supõe que uma unidade e seu meio têm um certo grau de independência. Mas o que é esse tal grau de independência? O nível de interação entre uma unidade e seu meio pode variar entre dois extremos. Num lado está o caso em que unidade não pode sequer ser percebida (distinguida) do seu meio (a questão da organização não seria relevante neste caso), do outro, está o extremo de uma ausência total de interações. Estas situações não são interessantes pois são imaginárias , os sistemas reais têm uma superfície de contato com o seu meio, na qual há o entrecruzamento das influências mútuas. Como a ligação entre o sistema e o meio não é total e apenas ocorre em certos pontos esse conceito será denominado de acoplamento pontual.

Varela lembra que a idéia de acoplamento estrutural é bastante familiar para as pessoas em geral e cita como caso paradigmático de acoplamento estrutural o exemplo fornecido pela teoria dos sistemas: na teoria de sistemas um input (entrada) muda toda a dinâmica de estados do sistema.

Para definir esta idéia de forma mais clara, sejam:

I - espaço de entradas (inputs)

S - espaço de estados

T- o espaço temporal

f- a dinâmica de previsão do próximo estado.

temos f: T x T x S S ou

f

(i,s)t s t+t onde t, tT, iI, sS.

No exemplo acima o acoplamento pontual é evidente, "já que nós temos que eleger um domínio de entradas para as quais podem ser introduzidos modos de ação específicos, explicitados pela lei de transição f." (Varela, 1989 :191). Esse exemplo é um tipo específico de acoplamento pontual que será chamado de acoplamento por entradas (couplage par input) entre duas séries de eventos.

A autonomia é a característica que certas unidades têm de tornar impossível ou insatisfatória uma descrição em termos de acoplamento por entradas. A idéia de autonomia faz referência a um sistema com forte determinação interna, ou auto-afirmação. A noção de autonomia é tão necessária para compreender os sistemas naturais, como é a célula para compreender os sistemas orgânicos.

Nos sistemas dinâmicos os pontos de contato entre duas séries de eventos independentes (ou inputs) é que são o fio condutor para compreender a dinâmica do sistema. Já no caso dos sistemas autônomos, o inverso é que vale, as transformações internas são o fio condutor, e os pontos de contato não intervém a não ser na medida que certos eventos imprevistos ou circunstâncias ajudem a melhor compreender tal ou qual caminho particular de transformações. Donde no caso dos sistemas vivos os pontos de acoplamento devem mais ser considerados como perturbações do que entradas.

Uma entrada e uma perturbação podem ser descritas de forma diferenciada:

entrada - especifica a única forma pela qual uma transformação de estado dada pode acontecer; uma entrada, ou um input, faz parte integrante da estrutura da unidade; só pode acontecer de forma específica.

perturbação - não especifica o agente; não leva em conta os seus efeitos sobre a estrutura da unidade; não faz parte da definição da unidade apesar de poder estar ligado a ela. Uma dada perturbação pode acontecer de um número indefinido de formas.

Uma forma mais explícita de definir um sistema com este outro tipo de acoplamento, que é denominado acoplamento por fechamento operacional, seria a que segue:

Seja um espaço de estados S e uma dinâmica interna definidos como:

f: T x S S ou

f

st s t+t onde t, tT, sS.

O sistema funciona de forma contínua até que intervém uma perturbação (que pode ter origem interna). O efeito desta perturbação leva o estado e a dinâmica do sistema para uma nova configuração:

(f + f): T x S S

(f + f)

(s+s)t s t+t com t, tT; s,s+sS; f, f + f (SS)

onde s+s e f + f representam, respectivamente, uma perturbação dentro do espaço de estados rumo a um novo estado e uma transformação dinâmica interna rumo a um novo método.

Os seres vivos são também sistemas autônomos ou operacionalmente fechados. A sua organização biológica é caracterizada por um processo que se denomina autodeterminação, ou determinismo estrutural.

"Nas interações entre os seres vivos e o meio ambiente dentro da congruência estrutural, as perturbações do ambiente não determinam o que acontece com o ser vivo; ao contrário é a estrutura do ser vivo que determinará o que deverá ocorrer com ele. Esta interação não tem uma dimensão instrutiva, porque ela não determina (instrui, comanda ou direciona) as mudanças que deverão ocorrer. Já foi usada, para tal, a expressão disparar (to trigger) um efeito. Neste sentido nos referíamos ao fato de que as mudanças que resultam da interação entre os seres vivos e os seus ambientes são ocasionadas por agentes perturbadores, mas determinadas pela estrutura do sistema perturbado." (Maturana, 1992:96).

O conjunto de transformações que um sistema autopoiético pode sofrer é determinado pela sua organização invariante, e é claro pela sua estrutura, neste sentido, ele não possui nem entradas nem saídas, donde os autores indicam que tais sistemas são estruturalmente determinados. Apesar de que as mudanças que um sistema autopoiético possa sofrer sejam determinadas pela sua organização, a seqüência em que tais mudanças ocorrem é determinada pela seqüência de deformações sofridas pelo mesmo. É importante lembrar que as deformações a que se submete um sistema autopoiético podem ter duas origens, uma é o meio externo e outra é o próprio sistema (os estados que se constituem para compensar deformações podem gerar outras mudanças compensatórias). Estas duas fontes de deformações são indistinguíveis na fenomenologia da organização autopoiética e o entrelaçamento das duas forma uma única ontogênese.

O sistema nervoso, a cognição, o domínio comportamental e a aprendizagem

O conceito de determinismo estrutural é fundamental para compreender as questões a serem a seguir analisadas. Esse determinismo não significa previsibilidade nem controle de fora do sistema. Uma predição revela o que um observador espera que ocorra, quando ele considera o estado presente de um dado sistema e apregoa que deve haver um estado subseqüente que resultará da dinâmica estrutural do sistema. Os autores falam de determinismo estrutural com um sentido totalmente diferente do da abordagem determinista tradicional.

Os autores mencionam um experimento muito interessante para compreender toda a problemática do determinismo estrutural. Para se alimentar, os sapos aproximam-se da presa (insetos pequenos) e lançam sua longa e fina língua retraindo-a rapidamente para dentro da boca com a presa ali aderida. Um bom cirurgião pode tomar um girino e cortar o seu nervo óptico, ligando-o depois com uma rotação de 180º. O animal cresce nessas condições e então observa-se que com o olho normal coberto ele não é mais capaz de capturar a sua presa, pois a sua língua é sempre lançada a um ponto que apresenta também um rotação de 180º com o ponto onde está a mesma. Para esse animal não há em cima, ao lado, etc, o que há é "...somente uma correlação interna entre o lugar da retina que recebe uma perturbação e uma contração muscular que move a sua língua, pescoço, e, de fato, todo o corpo do sapo." (Maturana, 1992:126).

Este exemplo, como muitos outros, são uma evidência de que a operação do sistema nervoso é uma expressão da sua conectividade ou acoplamento estrutural e de que o comportamento se origina nas relações de atividades internas do sistema nervoso.

Os sistemas nervosos aparecem nos organismos metacelulares, eles formam uma rede de células chamadas de neurônios que incluem receptores e efetores. Os neurônios conectam elementos sensores e motores que estão distantes, permitindo que substâncias sejam carregadas de um ponto a outro distantes no organismo sem afetar o meio circundante. Um neurônio conecta com muitos tipos de células do organismo mas principalmente com outros neurônios através das sinapses, estruturas que permitem influências recíprocas entre grupos de células distantes.

A visão mais usual existente atualmente considera o sistema nervoso um instrumento onde os organismos guardam informações do ambiente, no sentido de construir uma representação do mundo, que eles usam como base, para calcular qual deve ser o comportamento adequado para a sua sobrevivência ( quase o mesmo que construir um mapa para depois usá-lo na definição de uma rota). Isto tem repercussões diretas na compreensão do processo da percepção e da aprendizagem. Esta visão segue o paradigma das teorias do comando, na qual o sistema nervoso e particularmente o cérebro funcionam como um computador, aceitando como dogmas os postulados seguintes:

i) o sistema nervoso 'recolhe' informações provenientes do meio e as 'trata';

ii) esse 'tratamento da informação' é adequado pois ele traz uma representação do mundo exterior ao cérebro do animal ou homem.

Para Maturana e Varela o sistema nervoso funciona como um sistema operacionalmente fechado, estruturalmente determinado, sem entradas ou saídas, ou seja, funciona como um sistema autônomo. Os resultados das operações do sistema são as suas próprias operações.

Este conceito é neurofisiologicamente correto, o resultado da atividade neural é a própria atividade neural. Donde as atividades dos neurônios se definem mutuamente. É importante notar que fechamento aqui não é o mesmo que impermeabilidade, ou seja o fechamento aqui quer apenas dizer que os resultados do funcionamento se situam no interior das fronteiras do sistema, não se pressupõe que o sistema não interaja com o ambiente.

"O acoplamento por entradas consiste em considerar que o sistema nervoso é essencialmente determinado por entradas. Consideramos geralmente que essas entradas são ou refletem certas características ou qualidades do ambiente, que são absorvidas pelo sistema nervoso como matéria bruta, que em seguida é trabalhada no interior. Sucintamente o sistema nervoso funcionaria a partir de um conteúdo informativo de instruções que provém do ambiente, elaborando uma representação operacional desse ambiente...O acoplamento por fechamento operacional, ao contrário, consiste em pensar que o sistema nervoso é definido essencialmente por seus diversos modos de coerência interna, decorrente da sua inter-conectividade. Mais precisamente, ele é definido por seus comportamentos próprios que resultam da aplicação cruzada entre suas diversas superfícies internas (neuro-anatômicas)." (Varela, 1989:199).

A maneira como o sistema nervoso opera é limitada pela sua organização anatômica e esta é basicamente uniforme; as mesmas funções e operações (excitação, inibição, interação lateral, inibição recursiva, etc.) são desempenhadas em todas as suas partes, apesar dos diferentes contextos e diferentes modos de integração. Um observador pode pôr-se a questão, o que é uma entrada para o sistema nervoso? e a resposta depende inteiramente do ponto de observação escolhido. A unidade básica de organização do sistema nervoso pode ser expressa da seguinte forma: tudo que é acessível para o sistema nervoso em um determinado momento são estados de atividade relativa entre as células nervosas, e tudo que pode ser originado de um particular estado de atividade relativa são outros destes estados em outras células nervosas. Isto tem uma conseqüência fundamental: a menos que eles impliquem sua origem, não há distinção possível entre estados de atividade nervosa interna ou externamente gerados.

O que ocorre em um sistema vivo é análogo ao que ocorre em um vôo instrumental onde o piloto não tem acesso ao mundo exterior e deve funcionar somente como um controlador dos valores mostrados nos seus instrumentos de vôo. Sua tarefa é assegurar um caminho para a leitura dos seus instrumentos, de acordo com um plano prescrito, ou de acordo com um especificado a partir da própria leitura, donde um sistema vivo não tem entradas. Na organização dos sistemas vivos o papel da superfície efetora é somente manter constante um conjunto de estados da superfície receptora, não é agir sobre o ambiente, não importa quão adequada uma descrição possa parecer para a análise da adaptação, ou qualquer outro processo.

A situação aqui é semelhante ao estar-se sobre um fio de navalha tendo de um lado a armadilha do representacionismo e do outro lado a cilada da não objetividade (solipsismo), onde tudo será possível caoticamente. A saída então será aprender a caminhar no rumo do próprio fio da navalha, indo adiante da contradição e mudando a natureza da questão para atingir um contexto mais amplo. A questão é simples: os seres humanos como observadores podem ver uma unidade sob diferentes domínios. Podem considerar o domínio da operação dos componentes de um sistema e, nesse caso, para sua dinâmica interna o meio ambiente não existe (solipsismo). Ou, podem considerar uma unidade que também interage com o seu ambiente e descrever a sua história de interações com ele, considerando apenas as relações observadas entre certas características do ambiente e o comportamento da unidade, nesse caso é a sua dinâmica interna que é irrelevante.

Estas duas descrições são necessárias. É o observador quem as correlaciona da sua perspectiva externa. É ele quem reconhece que a estrutura do sistema determina as suas interações especificando quais configurações do ambiente podem disparar mudanças estruturais no mesmo, e que não é, portanto, o ambiente quem direciona ou especifica as mudanças estruturais do sistema. Não é possível desconhecer a estrutura interna do sistema se deseja-se compreender o fenômeno cognitivo.

A percepção, nesse entendimento, é um processo de compensação que o sistema nervoso efetua no curso de uma interação. Um espaço perceptivo é uma classe de processos compensatórios que um organismo pode sofrer. A percepção e os espaços perceptivos não refletem as características do ambiente, mas sim refletem a invariância da organização anatômica e funcional do sistema nervoso no curso de suas interações.

Sob esse mesmo ponto de vista cada homem pode se perceber como sujeito da sua própria experiência. Todo homem é fechado dentro de um domínio cognitivo do qual não pode escapar, ou seja não há um outro mundo além daquele que se oferece a sua experiência e que faz dele o que ele é. Cada vez que ele tenta buscar a origem de uma percepção ele se depara com algo como "a percepção da percepção da percepção...".(Varela, 1989:29).

Se o sistema nervoso não constrói uma representação interna do mundo tal como ele é, então qual o papel da objetividade? Já foi esclarecido como o sistema opera, mas não como ele existe no seu mundo, já que não pode construir uma representação interna do mesmo.

A resposta consiste em perceber que o modo como um fechamento operacional se dá pode fazer emergir um mundo de significados. Um exemplo interessante pode ser encontrado num autômato anular. Nestes, a regra pela qual se processa o fechamento operacional juntamente com a história do acoplamento do sistema com o seu ambiente faz surgir uma regularidade que não estava explícita na dinâmica do próprio fechamento operacional. Esta regularidade cria uma significação. Por exemplo, é possível estudar como uma cor emerge do comportamento próprio dos neurônios, que a fazem surgir como uma dimensão do acoplamento estável com o nosso ambiente.

O sistema nervoso participa do fenômeno cognitivo de duas maneiras complementares: o primeiro se dá pela expansão do domínio de estados possíveis do organismo; o segundo é abrindo novas dimensões de acoplamento estrutural e tornando possível no mesmo a associação de muitos estados internos diferentes com diferentes interações nas quais o mesmo está envolvido.

" Podemos dizer que as propriedades dos neurônios, como sua estrutura interna, sua forma ou sua posição relativa, determinam a conectividade do sistema nervoso, e lhe constituem como uma rede dinâmica de interações neurais... Estando dado que as propriedades dinâmicas dos neurônios se transformam durante a ontogênese do organismo, a conectividade do sistema nervoso se modifica de uma forma que é recursivamente submissa a esta ontogênese. Ainda mais, como a ontogênese do organismo é a história da sua autopoiesis, a conectividade do sistema nervoso é dinamicamente submissa a autopoiesis do organismo." (Varela, 1989, :149).

Nesse contexto podemos chamar de aprendizagem às transformações que se processam no conjunto dos estados possíveis de um sistema nervoso. Estas por sua vez estando ligadas a sua ontogênese em razão das suas interações com o seu meio. Donde a tradicional definição de aprendizagem como mudança de comportamento observável é insuficiente. Pois uma mudança no comportamento observável é apenas um sintoma tardio e parcial do fenômeno da aprendizagem (o que é visível não expressa mais do que apenas uma pequena parte das transformações ocorridas), já que, o que é observável, não é mais do que um dentre os múltiplos caminhos possíveis na ontogênese de um indivíduo em particular.

A aprendizagem enquanto um processo consiste na transformação, através da experiência, do comportamento de um organismo de uma maneira que, direta ou indiretamente, está ligada à manutenção da sua circularidade básica. Este é um processo histórico no qual cada modo de comportamento constitui a base sobre a qual um novo comportamento se desenvolve. O organismo assim está num processo de mudanças contínuo que é especificado através de uma seqüência interminável de interações com entidades independentes que as selecionam mas não as especificam.

O que é comportamento então? Da forma como costumeiramente se descreve ...

"...o comportamento não é alguma coisa que o organismo vivo faz nele próprio (para ele há somente mudanças estruturais internas) mas alguma coisa, que nós indicamos ('point to'). (Maturana, 1992:138).

Mas é preciso avançar nessa compreensão para entender que...

" ...desde que as mudanças estruturais de um organismo dependem de sua estrutura interna e esta estrutura depende da seu acoplamento estrutural histórico, as mudanças de estado de um organismo em seu ambiente serão necessariamente apropriadas e familiares ao mesmo, independentemente do comportamento ou ambiente que estejamos descrevendo...O sucesso ou falha de um comportamento é sempre definido pela expectativas que um observador especifica." (Maturana, 1992:138).

É preciso entender o comportamento na fenomenologia do sistema. Neste caso: "o comportamento é a transformação estrutural que um organismo pode sofrer em função da conservação da sua autopoiesis". (Maturana, 1992:146). Essa definição contradiz a tendência que se percebe em biologia e mesmo em psicologia em identificar o comportamento com algo facilmente observável (ou com o movimento, que é o que há de mais observável). Os autores citam o exemplo de uma planta que muda completamente sua estrutura quando submersa ou imersa na água (sem se mover, a mudança é lenta e só perceptível depois de muito tempo). De acordo com a definição feita acima, essa mudança estrutural é um comportamento.

Do ponto de vista do observador o comportamento observado no organismo é justificado por alguma experiência passada, ou seja, o observador tem a impressão que o organismo incorpora alguma representação do meio ambiente que, então, atua modificando o seu comportamento. Apesar disto, o sistema funciona sempre no presente, e para ele o aprendizado ocorre como um processo de transformação intemporal. Um organismo não pode determinar à priori quando mudar ou não mudar durante o curso de sua experiência, e nem qual é o estado ótimo que deve alcançar. Conseqüentemente o que o observador chama de memória, não pode ser um processo através do qual o organismo confronta cada nova experiência com uma representação armazenada do seu nicho antes de tomar uma decisão, mas, a expressão de um sistema que ao se modificar é capaz de sintetizar um novo comportamento relevante ao seu presente estado de atividade.

Concluindo, o aprendizado não é um processo de acumulação de representações do ambiente, ele é um processo contínuo de transformação estrutural que um organismo pode sofrer em função da conservação da sua autopoiesis. Ou de outro modo, ele é um processo contínuo de transformação do comportamento através de mudanças sucessivas na capacidade do sistema nervoso para sintetizá-lo. A lembrança não depende de uma retenção indefinida de uma invariante estrutural que representa a entidade (uma idéia, uma imagem ou símbolo), mas da habilidade funcional do sistema para criar, quando certas condições recorrentes são dadas, um comportamento que satisfaça a demanda recorrente, o que o observador classificaria como uma reedição de uma anterior.

O fenômeno social, o domínio lingüístico e a consciência

Como pode ser entendido o fenômeno social a partir desta nova concepção do ser vivo? Este fenômeno deve nascer sempre que a conduta de duas ou mais unidades é tal que é gerado um domínio onde estas condutas passam a ser interdependentes. Neste caso, diz-se que elas estão acopladas naquele domínio.

Pode o fenômeno social ser entendido como um sistema autopoiético de ordem superior? Como o fenômeno da comunicação pode ser explicado a partir desta nova percepção da vida? Ao responder a estas questões Maturana e Varela conseguem resposta a uma outra questão de abrangência enorme: eles explicam como a consciência humana nasce a partir das interações sociais e da estrutura biológica. O fenômeno social

Na autopoiesis de unidades compostas por outros sistemas autopoiéticos, o sistema composto atinge o seu estado autopoiético através da produção das relações de constituição, especificação e ordem que define um novo espaço autopoiético de segunda ordem. Quando isso acontece o componente autopoiético fica necessariamente subordinado, na maneira pela qual ele realiza sua autopoiesis, à manutenção da autopoiesis de ordem superior. Organismos multicelulares são exemplos de entidades autopoiéticas de segunda ordem.

Nesta perspectiva o fenômeno social é identificado como aquele fenômeno que é espontaneamente gerado pelas acoplamentos estruturais de terceira ordem. Sempre que este acoplamento ocorre, mesmo que por um curto espaço de tempo, ele gera uma particular fenomenologia interna, na qual "...as ontogêneses individuais de todos os organismos participantes ocorrem fundamentalmente como parte da rede de co-ontogênese que elas produzem na constituição das unidades de terceira ordem." (Maturana, 1992:193).

"Vamos agora considerar o que acontece quando um organismo com sistema nervoso entra em acoplamento estrutural com outro organismo que também possui um sistema nervoso. Do ponto de vista da dinâmica interna de um dos organismos, o outro representa uma fonte de perturbações indistinguíveis daquelas oriundas de fontes não bióticas. Estas interações podem contudo adquirir no curso da sua ontogênese uma natureza recorrente. Isso irá necessariamente resultar nos seus desenvolvimentos estruturais subseqüentes: co-ontogênese com envolvimento mútuo através da seu acoplamento estrutural recíproco, cada um conservando sua organização e sua capacidade de adaptação. " (Maturana, 1992:180).

Os insetos sociais, as abelhas, formigas, vespas e cupins, fornecem o mais clássico e impressionante exemplo de acoplamento de terceira ordem. Num mesmo grupo, estes indivíduos apresentam marcantes diferenças morfológicas, o que indica diferenças de papéis dentro do mesmo (reprodutores, trabalhadores, guerreiros ...). Para estes insetos, viver socialmente é necessário inclusive para a sobrevivência dos indivíduos, eles não são capazes de sobreviver quando isolados. Nestes grupos o acoplamento estrutural ocorre a partir de uma troca de substâncias químicas (divisão dos seus conteúdos estomacais), inclusive hormônios e a ontogênese de um indivíduo em particular é contingente com a ontogênese dos outros.

Um grupo de antílopes, quando em perigo, move-se formando uma fila, na qual os filhotes ficam no centro, protegidos, e na retaguarda posiciona-se o macho mais jovem. Os lobos quando vão atacar uma presa adotam uma estratégia coordenada grupal que lhes permite abater animais de porte e força muitas vezes superior à de um lobo isoladamente. Nestes casos o acoplamento estrutural de terceira ordem também ocorre como no caso dos insetos sociais, mas aqui a interação se dá através de muitas formas:química, visual, auditiva, e etc.

A diferença entre os insetos sociais e os vertebrados, deve-se a grande flexibilidade que o sistema nervoso, juntamente com o acoplamento visual-auditivo, fornece a estes últimos. Muitos outros modos e estilos variados de integração podem ser observados entre os primatas.

O domínio lingüístico.

A linguagem é uma forma especial e sofisticada de interação entre dois organismos vivos. Como ela se origina? Primeiramente é preciso definir o que é o fenômeno da comunicação.

Quando dois organismos interagem um pode modificar o comportamento do outro de duas maneiras básicas:

  • Por interações que direcionam o comportamento de ambos de forma que o comportamento subseqüente de cada um é sempre estritamente dependente do comportamento do outro. Uma cadeia de comportamento fechada é assim gerada.
  • Quando, apesar de nenhuma cadeia de comportamento ser diretamente gerada, ocorrer que o comportamento de um organismo oriente o comportamento do outro. Nesse caso, não se teria dependência estrita, mas apenas parcial, ou melhor dizendo as condutas observadas são geradas de interações independentes, mas paralelas.

No primeiro caso os organismos simplesmente interagem, já no segundo caso eles se comunicam, e tem-se aí a base de todo comportamento lingüístico.

Comunicação é, portanto um comportamento coordenado ou mutualmente disparado entre os membros de uma unidade social. Comunicação é portanto um tipo especial de comportamento e logo como em todo comportamento, é possível a distinção entre a comunicação intuitiva e a aprendida, ou entre formas filogênicas (desenvolvimento da espécie) e formas ontogênicas (desenvolvimento individual) de comunicação.

Os animais fornecem belos exemplos de formas de comunicação. Há um certo tipo de pássaro que canta um dueto quando se acasala. Esta coordenação vocal do comportamento do acasalamento sonoro é um fenômeno ontogênico, já que cada casal produz uma melodia única na história da espécie. A imitação é um outro belo exemplo; alguns pássaros numa região da Inglaterra aprenderam a furar a tampa de papel das antigas garrafa de leite e o comportamento rapidamente se espalhou por todas as ilhas rapidamente. A imitação é um modo de interação que permite que um comportamento vá além da ontogênese de um indivíduo, não necessitando portanto ser reinventado a cada geração.

Os comportamentos que são adquiridos ontogenicamente na dinâmica comunicativa de um meio social e que são estáveis por várias gerações são chamados comportamentos lingüísticos.

Quando dois ou mais organismos interagem recorrentemente eles geram um acoplamento social. Nestes acoplamentos os comportamentos adquiridos, são chamados de domínio lingüístico uma vez que os mesmos, por serem passíveis de descrições semânticas constituem a base para a linguagem. Dizer que um gato ao caminhar sobre as teclas do piano pela manhã está 'querendo' acordar o seu dono, é fazer uma descrição semântica. Ela só foi possível porque este comportamento comunicativo do gato foi aprendido, e portanto é contingente a sua história particular. A chamada 'linguagem' das abelhas não é verdadeiramente uma linguagem, pois apesar de haver, neste comportamento, uma fração aprendida, o mesmo se constitui basicamente na estabilidade genética da espécie, ele é filogenético.

Os seres humanos não são os únicos animais a gerarem domínios lingüísticos na sua existência social, mas nesse processo eles, exclusivamente, geram o fenômeno novo da linguagem.

"No fluxo das interações sociais recorrentes a linguagem aparece quando as operações num domínio lingüístico resultam em coordenações de ações sobre ações que pertencem ao próprio domínio lingüístico. Da mesma forma que a linguagem, os objetos também surgem de distinções lingüísticas sobre distinções lingüísticas que obscurecem as ações que eles coordenam. Assim a palavra 'mesa' coordena nossas ações com respeito às ações que nós realizamos quando manipulamos uma 'mesa', obscurecendo as ações que (como operações de distinção) constituem uma mesa produzindo-a." (Maturana, 1992:209).

Dizendo de outra forma, o uso da linguagem é uma ação reflexa, ou uma ação de coordenação sobre outras ações. Estas se constituem em distinções lingüísticas.

O entendimento da origem evolucionária da linguagem natural requer o reconhecimento de uma função biológica básica na mesma. Este entendimento tem sido impossível porque a linguagem tem sido considerada como um sistema denotativo e simbólico para a transmissão de informação. Mas, se ao invés de ser considerada como denotativa a mesma fosse considerada como conotativa, e se fosse também considerado, como sua função, orientar o organismo dentro do seu domínio cognitivo, e não, apontar para entidades independentes, a origem não lingüística da linguagem começaria a aparecer nas interações aprendidas e orientadas. Essas interações, sob uma pressão seletiva para aplicações recursivas, podem originar, a partir da evolução, o sistema de interações cooperativas e consensuais entre organismos que é a linguagem natural.

A descrição semântica, ou a atribuição de significado, atribui uma função denotativa à linguagem que reside apenas no domínio cognitivo do observador e não na efetiva operacionalidade da interação comunicativa. Donde, falar de transmissão de informação é normalmente aceito pois o ser falante assume que o ouvinte é idêntico a ele e, portanto, tem o mesmo domínio cognitivo. Tal só é verdade para sistemas de comunicação criados pelo homem, pois só nesse caso o emissor e o receptor da mensagem são explicitamente desenhados pelo projetista, e a mensagem, necessariamente seleciona o mesmo conjunto de estados que foram representados na emissão. Não é esse o caso das linguagens naturais.

Isto leva a concluir que biologicamente não há transmissão da informação na comunicação, como o que ocorre na metáfora do tubo. Nesta metáfora uma mensagem é gerada num ponto, ela viaja através de algum meio (tubo) e é recebida no outra ponta. Esta metáfora é usada para indicar a informação contida numa pintura, objeto, ou mesmo a palavra impressa ou falada. Esta metáfora não é adequada, segundo os autores, pois ela desconsidera o determinismo estrutural dos seres que se comunicam e empresta uma dimensão instrutiva à interação. Para ser ouvido não basta falar. "O fenômeno da comunicação depende não do que é transmitido, mas do que acontece com a pessoa que recebe a mensagem." (Maturana, 1992:196)

Neste sentido não há transferência de pensamento do organismo falante para o seu interlocutor; o ouvinte cria informações reduzindo a sua incerteza a partir de interações no seu domínio cognitivo. O consenso surge das interações cooperativas nas quais o comportamento resultante de cada organismo se torna subserviente à manutenção de ambos.

As interações lingüísticas orientam mas não especificam o curso da conduta, pois, a função da linguagem não é a transmissão da informação nem a descrição do universo, mas a criação de um domínio de comportamento consensual entre os sistemas lingüisticamente interagentes, através do desenvolvimento de um domínio de interações cooperativas. A consciência

A vida social humana, com sua intensa dependência lingüística, foi capaz de gerar um fenômeno novo: a mente e a consciência humana. A linguagem torna os humanos capazes de descrever a si mesmos e também as circunstâncias através das quais as distinções lingüísticas das distinções lingüísticas se processam. A autoconsciência emerge como um fenômeno de auto-descrição através da aplicação de um processo recursivo de descrições.

O sistema nervoso não cria a cognição, ele expande o domínio cognitivo do sistema vivo tornando possíveis interações com "relações puras". Como conseqüência, existem organismos que incluem como um conjunto das suas interações possíveis, interações com os seus próprios estados internos, como se eles fossem identidades independentes, gerando o paradoxo aparente de incluir no seu domínio cognitivo o seu próprio domínio cognitivo. Nos humanos este paradoxo é resolvido pelo que se chama de pensamento abstrato, uma outra expansão do domínio cognitivo.

A expansão do domínio cognitivo proporcionada pelo sistema nervoso (relações puras) permite, ainda, interações não físicas entre organismos, de forma que estes orientam-se mutuamente para interações nos seus respectivos domínios. Este comportamento orientado se transforma em representação das interações que foram orientadas, e unidades de interação em seus próprios termos. Aqui temos outro paradoxo aparente, pois há organismos que geram representações das suas próprias interações. Este paradoxo se resolve simultaneamente por duas maneiras:

  • esse organismo pode vir a ser um observador a partir de interações recursivas com estados lingüisticamente gerados, ou seja, esses estados podem ser tratados como objetos de interações futuras, gerando um meta-domínio de distinções consensuais;
  • quando um destes organismos interage com aqueles estados descritivos que são descrições lingüísticas de si próprio, ele passa a ser um observador de si próprio e adquire autoconsciência. A autoconsciência é então auto-observação e toda observação necessariamente permanece num domínio descritivo, que é relativo ao domínio cognitivo. Nenhuma descrição absoluta da realidade é possível.

"Assim é que o aparecimento da linguagem nos humanos e o contexto social global desse aparecimento gera este novo fenômeno da mente e da autoconsciência como a experiência mais íntima da raça humana. Sem uma história apropriada de interações é impossível entrar neste domínio humano...A mente não é alguma coisa que está dentro do cérebro. Consciência e mente pertencem ao domínio da dependência social. Este é o locus da sua dinâmica...A linguagem não foi nunca inventada por ninguém somente para perceber um mundo externo. Portanto, ela não pode ser usada como uma ferramenta para revelar este mundo. O fato é que, é através do linguajar que o ato do conhecimento, da coordenação comportamental que é a linguagem, constitui um mundo. Nós elaboramos nossas vidas numa mútua dependência lingüística, não porque a linguagem nos permite revelar a nós mesmos mas porque somos constituídos na linguagem em uma contínua evolução que produzimos uns com os outros. Encontramos a nós mesmos nesta dependência co-ontogênica, não como uma referência já existente nem com referência a uma origem, mas como uma contínua transformação na evolução do mundo lingüístico que construímos com os outros seres humanos." (Maturana, 1992:234).

Implicações epistemológicas e éticas da organização autopoiética

A chave para o entendimento de toda a fenomenologia biológica é o entendimento da organização individual.

O desenvolvimento da teoria evolucionista de Darwin teve um impacto que foi além da explanação da diversidade e da sua origem nos sistemas vivos. Esta teoria pareceu explanar a fenomenologia de uma sociedade competitiva, e também justificar a subordinação do destino dos indivíduos a valores transcendentais supostamente incorporados em noções como humanidade, estado, sociedade etc. É verdade que sob as leis da seleção natural os indivíduos mais aptos sobrevivem, e é óbvio que os que não sobrevivem não contribuem ou contribuem menos para o destino da espécie. Isto parece dar bases à lei do mais forte. Mas esta visão do mundo animal como egoísta, ou a visão das "garras e dentes vermelhos de sangue" é errada. Há instâncias de comportamento altruísta para todos os lados que se olhe. Se o ponto de referência é o grupo, pode parecer que o indivíduo seja irrelevante. Para o indivíduo contudo é a sua manutenção que importa. E não há contradição aqui. O comportamento do antílope jovem que se coloca atrás do grupo para defendê-lo é altruísta considerando o grupo e, ao mesmo tempo, é egoísta pois resulta do seu acoplamento estrutural ao ambiente que inclui o grupo, donde expressa a sua busca de sobrevivência individual. Maturana diz que o antílope é, ao mesmo tempo, altruisticamente egoísta e egoistamente altruísta.

Ter claro o papel do observador na explanação do fenômeno foi outra preocupação básica da perspectiva epistemológica proposta que permitiu aos pesquisadores concluírem que cumpriram a tarefa de construir uma teoria do conhecimento que mostra como o próprio conhecimento gera uma explanação do conhecimento. O propósito dos autores foi encontrar uma via média entre o objetivismo e o solipsismo: entender a regularidade do mundo que o homem experimenta a cada momento, mas sem qualquer ponto de referência independente dele mesmo.

Varela assinala que as reflexões trazidas por ele e seu parceiro remetem a uma história que tem início precisamente em março de 1946. Esta é a data do primeiro encontro que é conhecido pelo nome de "Conferências MACI sobre a Cibernética". Nesses encontros dois pensadores deram os rumos de todo o trabalho científico posterior na área: John Von Newmann - um dos arquitetos da bomba H e da política nuclear americana que pouco tempo antes da sua morte em 1955 chegou a recomendar um ataque a URRS e - Norbert Wiener - criador da cibernética que criticou abertamente o desenvolvimento das armas nucleares e passou boa parte da sua vida refletindo sobre a questão da ética na ciência.

Varela destaca também que quanto ao fenômeno da cognição esses dois homens orientaram duas perspectivas opostas. Para Von Neumann a cognição é fundamentalmente orientada para a resolução de problemas, esse ponto de vista fornece um guia para a construção de máquinas artificiais para o estudo dos seres vivos. Esta visão enfatizou a noção de tratamento da informação na discussão dos processos cognitivos. Para Wiener, a cognição é uma atividade autônoma, auto-criativa, e este aspecto do ser vivo é essencial para a compreensão do processo cognitivo.

O esquema a seguir, elaborado por Varela, exprime de forma sintética as duas teses fundamentais que tiveram grande impacto depois de 1946 (1989:219), em muitos domínios, dentre eles estão as neuro-ciências, a teoria da evolução, a imunologia, a terapia familiar, a inteligência artificial, a teoria da administração e a lingüística. Na maioria desses domínios, a atitude heterônoma tem tido, e mantido, um papel dominante.

Tabela 6. As visões autônoma e heterônoma sob vários domínios

Na verdade, as visões heterônoma e autônoma não são a negação uma da outra. As críticas feitas à visão representacionista não pretendiam negá-la, uma vez que, desta forma, emergiria uma visão de sistema autistas ou isolados, inventando o mundo de forma solipsista. É preciso chegar-se ao ponto onde se produza a co-emergência das unidades autônomas e de seus mundos.

As principais conseqüências éticas resultantes da nova conceituação proposta por estes autores foram sintetizadas por Maturana no prefácio que escreveu para a edição norte-americana do seu livro "De maquinas e seres vivos" (Maturana, 1987). Apresenta-se a seguir uma síntese das mesmas.

A existência humana ocorre em um domínio lingüístico e cognitivo que é constitutivamente social. São centrais para o entendimento da dinâmica do processo social a resposta às seguintes questões: O que é um sistema social? Como ele pode ser caracterizado? Como os sistemas vivos e os seres humanos em particular, participam na constituição dos sistemas sociais que eles integram?

Distinguir um sistema social não é descrever um deles em particular, é definir um sistema que se posto em operação geraria um domínio fenomenal indistinguível daqueles próprios aos sistemas sociais. Maturana propõe, então, que tal sistema é composto por uma coleção de sistemas autopoiéticos que, através da realização da sua autopoiesis, interagem uns com os outros constituindo e integrando um sistema que opera como um meio no qual eles realizam suas autopoiesis. Daí decorreria que:

  • A realização das autopoiesis dos componentes é constitutiva do sistema;
  • uma coleção de seres vivos integrando uma unidade composta através de relações que não envolvem a sua autopoiesis não é um sistema social;
  • A estrutura de uma sociedade como um particular sistema social é determinada pela estrutura dos seus componentes autopoiéticos e pelas relações que os prendem enquanto integrantes daquele sistema social;
  • Numa sociedade, a todo momento, a estrutura dos componentes determina as suas propriedades, e estas compreendem a estrutura da sociedade. Esta estrutura da sociedade, por sua vez, opera como um seletor da estrutura dos seus componentes, na medida em que é o meio no qual realizam a sua ontogênese;
  • Um sistema autopoiético participa de um particular sistema social, somente se ele realiza as relações próprias dos componentes daquele sistema social. Nesse caso, uma unidade autopoiética pode entrar ou sair de um sistema social a qualquer momento e pode, ainda, participar de vários sistemas sociais ao mesmo tempo.

São as interações recorrentes entre os mesmos sistemas autopoiéticos que constituem um sistema social e para que tais interações ocorram é preciso uma estabilização biológica das estruturas. Nos seres humanos o fator de estabilização básico é fenômeno do amor: a visão do outro como parceiro em alguma dimensão da sua vida. A escolha por um particular meio de vida é uma escolha ética, cujo problema fundamental é: a justificação das relações particulares de subordinação da autonomia e da individualidade que ele demanda para ele próprio e para os outros membros da sociedade que ele gera e valida com a sua conduta.

Um sistema social é essencialmente um sistema conservativo. A sociedade opera como um sistema homeostático que estabiliza as relações que a definem como um sistema social de um tipo em particular, isto se dá porque ela é gerada pelas interações dos mesmos componentes para os quais constitui o meio seletor dos caminhos de mudanças estruturais ontogênicas.

Uma mudança nas relações que definem uma sociedade como um particular sistema social, pode somente ocorrer a partir de uma mudança nas propriedades dos componentes que a tornam real. Numa sociedade humana mudanças só podem ocorrer na medida que as condutas dos homens mudem.

As interações entre as unidades participantes de uma sociedade devem confirmar as relações que a definem, noutro caso o organismo que interage deixa de ser componente da mesma. Daí que a criatividade na geração de novas relações sociais sempre implica interações fora da sociedade e gera novos modos de conduta que mudas as relações definidoras da sociedade ou separa os indivíduos criativos da mesma.

"O curso espontâneo das transformações históricas de uma sociedade humana como uma unidade aponta para o totalitarismo; isto é assim porque as relações que produzem a estabilização histórica são aquelas que tem a ver com a estabilidade da sociedade como uma unidade em um meio dado, e não com o bem estar dos seus componentes humanos que podem operar como observadores. Qualquer outra trajetória requer um escolha ética; ela não será espontânea, ela será um trabalho de arte, um produto do projeto estético humano. " (Maturana, 1987:XVIII).

Nem todo ser humano apanhado pela malha de relações geradas num sistema social, participa do mesmo como um ser social. Se sua participação não envolve a sua autopoiesis como uma característica constitutiva do mesmo, este ser humano está sendo usado pelo sistema social mas não é um dos seus membros.

Apesar de que todas as sociedades sejam biologicamente legitimadas, em muitas delas um ser humano não desejaria viver. O homem tem a capacidade "...como um sistema social centrado na linguagem, de se transformar num observador, que pode, se ele tem a experiência adequada, contemplar esta sociedade que ele integra, como se fosse externo a situação em que ele mesmo se encontra, e gostar ou não gostar dela . " (Maturana, 1987:XXIX). Uma sociedade totalitarista restringe as experiências que os seus membros podem ter, donde eles não podem funcionar como observadores, ou então são desacoplados como dissidentes e não lhes permitem seduzir a outros.

"Quando um ser humano A encontra outro ser humano B e o ama, ele vê B num contexto social e se transforma num observador da sociedade que B integra. A pode gostar ou não do que ele vê em referência a B e agir neste sentido, se transformando num ser anti-social se sele não gosta do que ele vê. Uma sociedade totalitária absoluta deve negar o amor como uma experiência individual porque o amor, cedo ou tarde, leva a uma avaliação ética da sociedade que o ser amado integra." (Maturana, 1987:XXIX).

"Uma sociedade humana na qual ver todos os seres humanos como equivalentes a si próprio, e amá-los, é operacionalmente legitimado sem exigir dos seus integrantes subordinação da sua autonomia e individualidade além do que eles estariam dispostos a aceitar por si mesmos enquanto integrantes, é um produto da arte humana, isto é, uma sociedade artificial que admite trocas e aceita cada ser humano como não dispensável. Esta é necessariamente uma sociedade não hierárquica na qual todas as relações de ordem são constitutivamente transitórias e circunstanciais para a criação de relações que continuamente negam a institucionalização do abuso humano. Tal sociedade é na sua essência uma sociedade anarquista, uma sociedade feita para e por observadores que não submetem a sua condição de observadores enquanto clamam por liberdade social e respeito mútuo." (Maturana, 1987:XXX)

O Trabalho de Paulo Freire

Introdução

O trabalho de Paulo Freire teve origem e destino na temática do analfabetismo. Para ele, a alfabetização era pensada como um instrumento de transformação da realidade numa dimensão de ação cultural libertadora, não tendo sido nunca pensada isoladamente. Freire não considerava o fenômeno do analfabetismo como oriundo de carências pessoais que incapacitavam certos grupos sociais para aprender, nem da questão do atraso histórico, a ser superada pelo desenvolvimento. A origem, estava sim, numa situação histórica de exploração e de opressão. A inspiração de seu trabalho nasce de dois conceitos básicos: a noção de consciência dominada mais os elementos subjetivos que a compõem e a idéia de que há determinadas estruturas que conformam o modo de pensar e agir das pessoas. Essas estruturas impregnam os comportamentos subjetivos à percepção e à consciência que cada indivíduo ou grupo tem dos fenômenos sociais.

"Talvez seja este o sentido mais exato da alfabetização: aprender a escrever a sua vida como autor e como testemunha da história, isto é , biografar-se, existencializar-se, historicizar-se. Por isto, a pedagogia de Paulo Freire, sendo método de alfabetização, tem como idéia animadora toda a amplitude humana da 'educação como prática da liberdade', o que , em regime de dominação, só se pode produzir e desenvolver na dinâmica de uma pedagogia do oprimido." (Fiori in Freire 1987:10)

Na verdade, Freire não construiu exatamente um método de alfabetização. Apesar da maioria dos relatos de experiências por ele vividas tratarem deste tema, ele construiu sim uma pedagogia. Falar de método, no caso de Paulo Freire é perigoso, pois método lembra a receitas, prescrições. As experiências e os métodos que Freire usou não eram transplantados de um lugar para outro. O método usado num lugar era descrito, discutido e criticamente compreendido pelo grupo que estava exercendo a prática. Não havia nem o fechamento a um método já utilizado, nem sua utilização de forma ingênua.

Toda teoria pedagógica é no entender de Freire subjacente a um conceito de homem e de mundo. Não há, portanto, uma educação neutra. É o homem um ser de adaptação ao mundo? Ou, é o homem um ser de transformação do mundo? Para Paulo Freire o homem é um ser no mundo e com o mundo. Um ser capaz de admirar o mundo objetivando-o e transcendendo-o através da sua consciência.

"A possibilidade de admirar o mundo implica em estar não apenas nele, mas com ele; consiste em estar aberto ao mundo, captá-lo e compreendê-lo; é atuar de acordo com suas finalidades a fim de transformá-lo: é responder a desafios. As respostas do homem aos desafios do mundo, através das quais vai modificando esse mundo, impregnando-o com o seu 'espírito', mais do que um puro fazer, são quefazeres que contém inseparavelmente ação e reflexão". (Freire, 1967)

O homem é um ser da práxis, um ser que opera e transforma o mundo. Essa é sua vocação ontológica, que quando lhe é negada o transforma em homem-objeto. Mas aqueles que a negam, adverte Freire, também não conseguem se fazer sujeitos autênticos, na medida em que proíbem que outros o sejam.

Isto torna a todos os homens incompletos, a sua vocação só se realiza em comunhão. Comunhão entre os homens e dos homens com o mundo. São, portanto, os homens, seres da busca permanente.

Dessa busca só pode ser sujeito o próprio homem. Donde a manipulação no processo educativo é impossível. O ponto de partida da mesma se encontra na relação homem-mundo, a transcendência só é possível com a consciência clara da realidade concreta. O objetivo dela é sempre a humanização, que só é atingida na medida que o homem existencialize a sua real vocação.

A concepção bancária da educação

O conceito de educação bancária é formulado por Paulo Freire como o contraponto da educação humanista, ou da educação como prática da liberdade (título de um dos seus principais livros). O designação de bancária vem da metáfora do ato de depositar valores num banco. O educador é o depositante de conteúdos nos educandos. Estes não passam de meros recipiente vazios que docilmente devem receber os depósitos. Quanto mais conteúdos depositar, melhor educador será o professor. Quanto mais 'repletos' de conhecimento ficarem os alunos, melhores educandos serão. O saber é uma doação. Nesta concepção os homens são vistos como seres do ajustamento da adaptação.

O caráter marcante desta concepção é a narração, a dissertação. A realidade é apresentada como algo estático, compartimentado e em geral é completamente alheia à experiência do educando. Nessa educação o agente é o educador e sua tarefa é encher os educandos dos conteúdos da sua narração.

"Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação. A palavra, nestas dissertações, se esvazia da dimensão concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca, em verbosidade alienada e alienante. Daí que seja mais som que significação e, assim, melhor seria não dizê-la." (Freire, 1987:57)

O educador é, nesse caso, o antinômico do educando, e não poderia ser diferente, pois essa concepção reflete a sociedade opressora e a cultura do silêncio. A superação dessa contradição educador-educando exigiria que o educador fosse um companheiro na busca pela humanização, que não mais fizesse depósitos, que não prescrevesse, que não domesticasse.

Ao invés de comunicar-se, na concepção bancária o educador faz comunicados. À margem de ação dos educandos só cabe arquivar os depósitos de conhecimento recebidos, devem ser bons colecionadores e selecionadores das coisas que arquivam. Freire lembra que arquivados são, na verdade, os próprios educandos e educadores, pois estão fora da busca, fora da práxis.

"Educadores e educandos se arquivam na medida em que, nesta distorcida visão da educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros." (Freire, 1987:58)

A concepção problematizadora e libertadora

A concepção humanista, que é problematizadora e libertadora, é a negação da bancária. Ela se afirma na realidade concreta, permanente e mutável. Além de respeitar a vocação ontológica do homem (um ser da transformação do mundo) ela se orienta para esse objetivo. A criatividade é estimulada ao invés de freada. Considera que todo saber se encontra submetido a um condicionamento histórico-sociológico que deve portanto ser explicitado durante o processo da sua promoção. Sabe que a sua busca é inquieta e arriscada..

Considera que a consciência não é uma seção, mecanicistamente compartimentada, escancarada a espera que o mundo lhe penetre. Ela não deve ser preenchida pelo mundo. O mundo está presente na consciência, ele não entra na consciência, ele não está dentro dela. Se assim não fosse, o papel do educador seria o de disciplinar a entrada do mundo nos educandos, e a estes só restaria imitar o mundo passivamente. Se há inquietação, contestação, então, está-se bloqueando a entrada do mundo.

A educação problematizadora responde à essência do ser e da sua consciência, que é a intencionalidade. A capacidade de admirar o mundo, desprendendo-se dele ao mesmo tempo que nele está, transcendendo-o e objetivando-o. A intencionalidade repousa nesta capacidade de admiração que desmistifica, problematiza e critica a realidade admirada, gerando a percepção do inédito viável. A percepção mágica ou ingênua da realidade cede então lugar a uma percepção que é capaz de perceber-se, eliminando-se posturas fatalistas que dão à realidade uma aura de inexorabilidade.

Só a concepção libertadora realiza a superação da contradição educador-educando. Não é mais o educador sempre o que educa e o educando que é educado. Agora não há mais um educador do educando, não há mais um educando do educador, há sim um educador-educando junto com um educando-educador.

"Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. Mediatizados pelos objetos cognoscíveis que, na prática bancária, são possuídos pelo educador que os descreve ou os deposita nos educandos passivos."(Freire, 1987:69)

Mas, pergunta-se Paulo Freire, como se realizará esta educação? Somente um método que privilegiasse a ação e o diálogo seria capaz deste feito. Seria preciso a modificação do conteúdo programático, e mesmo a modificação da forma pelo qual o mesmo é determinado.

O diálogo é então a base do método de Freire, mas o que é o diálogo? O diálogo é uma relação de comunicação de intercomunicação, que gera a crítica e a problematização uma vez que é possível a ambos os parceiros perguntar: " por quê?". Ele nutre-se da esperança, da confiança, da humildade e da simpatia. É uma relação horizontal, ao contrário do anti-diálogo nascido das relações verticais em que um fala e o outro ouve.

O anti-diálogo não é capaz de gerar a crítica, pois por ser arrogante, desamoroso, auto-suficiente gera o medo que intimida e aliena. Donde ao invés de comunicar o anti-diálogo faz comunicados..

Mas ao analisar melhor o fenômeno humano do diálogo, Freire constata a necessidade de analisar a palavra como mais do que um meio para que o diálogo se faça. Freire constata as duas dimensões constitutivas da palavra: ação e reflexão. A palavra verdadeira é práxis transformadora. Sacrificada a dimensão da ação, sacrifica-se a reflexão e a palavra transforma-se em verbalismo, ou verborragia. Por outro lado, a ação desconectada da reflexão transforma-se em ativismo, que também nega o diálogo.

Não é possível separar a palavra do pensamento, donde há uma leitura do mundo que precede a leitura e a escrita da palavra, da mesma forma que toda leitura da palavra leve à uma re-leitura do mundo e, daí, à escritura do mundo. Donde "entendo por escrever o mundo, transformá-lo" (Freire, 1988:47).

Quem dialoga, dialoga com alguém e sobre algo. O conteúdo do diálogo é justamente o conteúdo programático da educação., E já na busca desse conteúdo deve estar o diálogo presente. O educador bancário define o conteúdo antes mesmo do primeiro contato com os educandos. Para o educador libertador, esse conteúdo é a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao educando daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada. Esse conteúdo deve ser buscado na cultura do educando e na consciência que ele tenha da mesma.

As consciências oprimidas e acríticas ou mágicas estão imersas na realidade ou afogadas nela, elas estão quase umbelicalmente ligadas ao mundo da natureza, da qual se sentem partes e não transformadores. Elas não se sentem capazes de entender os fatos.

A consciência ingênua (pelo contrário) sente-se de tudo capaz. Só a consciência crítica elabora um recorte viável da realidade, representando os fatos como eles se dão empiricamente, com as suas múltiplas relações. Por acreditar o mundo passível de transformação a consciência crítica liga-se ao mundo da cultura e não da natureza.

O conteúdo que ajudará o educando na superação da consciência mágica ou ingênua é determinado a partir do conceito antropológico e humanista de cultura. Essa concepção distingue natureza de cultura, entendendo a cultura como o acrescentamento que o homem faz ao mundo, ou como o resultado do seu trabalho, do seu esforço criador. Ela se materializa na transcendência das suas relações e na aquisição sistemática da experiência humana.

O educando deve primeiro descobrir-se como um construtor desse mundo da cultura. Essa descoberta resgataria a sua auto-estima, pois, tanto é cultura a obra de um grande escultor, quanto o boneco de barro feito pelo seu vizinho. A auto-desvalia é uma característica sempre presente nas consciências oprimidas e mágicas, ela se consubstancia pelo sentimento de incapacidade de conhecer, de compreender, sentimento este que é gerado pela introjeção da visão dos opressores. O doutor, o professor, estes são os que sabem e a quem devem escutar. E na medida da sua auto-desvalia reconhecem a superioridade dos "sabedores", assumem cultura deles e aí perdem a sua identidade, negando a sua própria experiência de vida que lhes permitiria chegar a saber.

"Por isto é que não podemos, a não ser ingenuamente, esperar resultados positivos de um programa, seja educativo num sentido mais técnico ou de ação política, se desrespeitando a particular visão de mundo que tenha ou esteja tendo o povo, se constitui numa espécie de invasão cultural, ainda que feita com a melhor das intenções. Mas invasão cultural sempre.... Será a partir da situação presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto de aspirações do povo, que podemos organizar o conteúdo programático da educação ou da ação política." (Freire, 1987:86).

Daí que Freire propõe que o momento da busca do conteúdo programático inaugura o processo de diálogo em que se produz a educação libertadora. Essa busca deve investigar o universo temático dos educandos ou o conjunto dos temas geradores do conteúdo. Ela por ser dialógica já é problematizadora e proporciona a tomada de consciência dos indivíduos sobre tais temas. Esta tomada de consciência excede em múltiplas dimensões o conceito de que é necessário motivar os educandos para o aprendizado, este motivar é mascarado de hipocrisia, uma vez que a tal motivação em geral não passa de ilusão alienante.

O método Paulo Freire

"O método Paulo Freire, é, fundamentalmente, um método de cultura popular: conscientiza e politiza. Não absorve o político no pedagógico, mas também não opõe inimizade entre educação e política. Distingue-as, sim, mas na unidade do mesmo movimento em que o homem se historiciza e busca reencontrar-se, isto é, busca ser livre. Não tem a ingenuidade de supor que a educação, só ela, decidirá os rumos da história, mas tem, contudo, a coragem suficiente para afirmar que a educação verdadeira conscientiza as contradições do mundo humano....As contradições conscientizadas não lhe dão mais descanso, tornam insuportável a acomodação....É a educação como prática da liberdade.' (Fiori in Freire, 1987:21)

No método Paulo Freire o processo educativo se inicia na definição do conteúdo programático. Este é elaborado desde o seu primeiro momento com a participação de pessoas da comunidade de educandos. Considera mesmo Freire, esta etapa como fundamental ou o cerne de todo o processo, tanto é assim que o seu método não é um conjunto de receitas ou técnicas sobre como agir em situações específicas do processo aprendizagem. Na verdade o seu método é o próprio processo de investigação da demanda de temas e interesses do educando, ou, dizendo de forma mais geral, da sua cultura. Mas, é justamente nesse processo de investigação que está o ponto central do método proposto por Freire. É que a participação na investigação do seu próprio universo temático leva aquele que busca educar-se a admirar este universo, e, essa admiração libera a capacidade de criticá-lo e transformá-lo. A continuidade do processo educativo só fará expandir e aprofundar esta capacidade de crítica. Sem este germinar inicial da consciência continuará a mesma oprimida e presa.

Donde o método de Freire não pode ser avaliado pela quantidade de conteúdos sobre os quais os educandos são capazes de dissertar, ou pelo menor tempo em que conseguem encher-se de dados sobre a realidade. A qualidade do processo educacional para Freire deve medir-se sim pelo potencial, adquirido pelos educandos, de transformação do mundo . Ou seja, pelo fato dos mesmos terem ou não retornado à trilha da sua verdadeira vocação como homens.

É preciso ressaltar que o seu método é um método de educação comunitária para adultos, em geral analfabetos. Mas na leitura do mesmo não é difícil fazer a sua tradução para outras situações de aprendizagem. Na apresentação a ser feita a seguir será mantida terminologia original do autor que aborda a situação já referida.

Fases do método

Primeira Fase

Esta fase caracteriza-se pelo início da investigação da demanda temática de interesses da comunidade de educandos, com o levantamento do seu universo temático. A área em que se vai trabalhar deve primeiro ser delimitada e se possível deve-se procurar conhecê-la através das fontes secundárias disponíveis. O primeiro encontro com os educandos deve-se ser uma reunião informal na qual se falará sobre os objetivos da presença dos educadores na área. Da relação de confiança que precisa ser estabelecida para que o diálogo se processe. Da necessidade da participação deles no processo de investigação que se inicia. Ou seja o diálogo às claras é desencadeado desde o primeiro contato.

Nesta etapa a coleta de dados é importante, sem dúvida, mas muito mais importante é a presença ativa dos próprios investigadores (inclusive os voluntários) Daí que Freire recomenda a participação dos educadores na vida da comunidade (participação de reuniões, visitas, de forma simpática e compreensiva, nunca imposta).

"Em suas visitas os investigadores vão fixando sua 'mirada' crítica na área de estudo, como se ela fosse, para eles, uma espécie de enorme e 'sui generis' codificação ao vivo, que os desafia. Por isto mesmo, visualizando a área como totalidade, tentarão visita após visita, realizar a 'cisão' desta, na análise das dimensões parciais que os vão impactando." (Freire, 1987:104)

Toda a informação considerada relevante deve ser registrada, para ser levada a seminários de avaliação da equipe de investigadores profissionais e voluntários.

A partir da cisão e da re-totalização descodificada que fazem do universo temático os investigadores mais se aproximam do núcleo centras das contradições em que estão envolvidos os indivíduos da área (Este quando descoberto dará origem a organização do conteúdo programático).

Mas além de detectar estas contradições é preciso perceber qual o nível de consciência os indivíduos tem sobre elas e qual o nível das tarefas que essas contradições apontam.. Pois esse nível de consciência também será determinante do programa a ser estabelecido, já que o que se quer é justamente o nascer desta consciência.

Segunda fase

A apreensão do conjunto de contradições é ainda a visão dos investigadores (mesmo com a participação dos voluntários). A partir delas deve-se dar a escolha daquelas que vão realmente servir para a investigação temática. Elas devem ser codificadas (pintadas ou fotografadas) para serem então apresentadas à análise crítica da comunidade de educandos.

Estas codificações devem tratar de temas simples (não demasiado explícitos e nem demasiado enigmáticos) mas que ofereçam possibilidades plurais nas análises geradas no processo de descodificação, devem ser uma espécie de leque temático. Donde elas devem objetivamente constituir-se em totalidades, as quais quando analisadas explicitam a consciência real que os indivíduos lhe endereçavam. Ao perceberem a sua própria percepção os indivíduos iniciam a sua emersão da realidade. Este ato de emersão lhes proporciona a percepção do inédito viável que mais tarde lhes permitirá a edição da sua própria ação.

Para istos estas contradições devem ter uma grande riqueza semântica, ou seja, devem maximizar a inclusão de outros temas auxiliares, que ao serem apresentados em paralelo conseguem ampliar a percepção dos educando mantendo vivo o seu interesse e permitindo-lhes a síntese buscada.

Terceira fase

Agora, com o subsídio dos diálogos ocorridos na etapa anterior, devem ser efetivamente iniciados os círculos de investigação temática. Dos mesmos devem participar, repita-se, não só os investigadores, mas também os representantes da comunidade de educandos. Estes educandos devem ser os retificadores e ratificadores da interpretação dos investigadores.

Esse novo momento de descodificação- re-codificação deve melhorar o nível qualitativo das propostas e explicitar precisamente as situações limites a serem trabalhadas.

Quarta fase

Conhecidos os temas que identificam as situações limites a serem trabalhadas deve-se dar início a um processo de redução dos mesmos a partir um estudo sistemático e transdisciplinar. Os temas devem ser tratados na totalidade, jamais separadamente.

O processo de redução de um tema é a busca dos seus núcleos fundamentais que constituirão as unidades de aprendizagem bem como a seqüência entre elas.

Nesse momento, Freire ressalta o direito, mais do que o dever, que os educadores tem de propor temas não sugeridos (temas dobradiças), que se correlacionem com temática oriunda da investigação.

Definida a redução temática prepara-se o material a ser utilizado (fotos, vídeos, textos, dramatizações,referências bibliográficas, etc). E procede-se a sua codificação com a respectiva escolha do canal de comunicação a ser utilizado.

"Preparado todo este material, a que se juntariam pré-livros sobre toda esta temática, estará a equipe de educadores apta a devolvê-lo ao povo, sistematizada e ampliada. Temática que, sendo dele, volta agora a ele, como problemas a serem decifrados, jamais como conteúdos a serem depositados." (Freire, 1987:118).

Uma alternativa metodológica

Freire recomenda, para o caso de não existirem os recursos necessários para fazer a investigação temática prévia, que os educadores busquem ter um mínimo de conhecimento da realidade dos educandos. Desse conhecimento podem, então, escolher alguns temas básicos que funcionarão como "codificadores de investigação". O plano educativo seria iniciado com esses temas introdutórios ao mesmo tempo em que iniciariam a investigação temática para o desdobramento futuro do programa.

Conclusão sobre o trabalho de Paulo Freire

A concepção de educação de Paulo Freire sem dúvida percebe o homem como um ser autônomo. Esta autonomia está presente na definição de vocação ontológica de 'ser mais' que está associada com a capacidade de transformar o mundo. É exatamente aí que o homem se diferencia do animal.

Por viver num presente esmagador e por não perceber-se como um ser unitário distinto do mundo, o animal não tem história.

"Seu contorno não lhe é problemático, mas estimulante. Sua vida não é um correr riscos, uma vez que não os sabe correndo. Estes, porque não são desafios perceptíveis, mas puramente notados pelos sinis que os apontam, não exigem respostas que impliquem respostas decisórias. O animal, por isto mesmo não pode comprometer-se. Sua condição de a-histórico não lhe permite assumir a vida, e, porque não a assume não pode construí-la. E, se não constrói, não pode transformar o seu contorno."(Freire, 1987:89)

"Os homens, pelo contrário, porque são consciências de si e, assim, consciência do mundo, porque são um corpo consciente, vivem uma relação dialética entre os condicionamentos e sua liberdade... Ao se separarem do mundo, que objetivam, ao separarem sua atividade de si mesmos, ao terem o ponto de decisão de sua atividade em si, em suas relações com o mundo e com os outros, os homens ultrapassam as situações-limites, que não devem ser tomadas como se fossem barreiras insuperáveis, mais além das quais nada existisse."(Freire, 1987:90)

Por outro lado a consciência de si, exige a presença do outro pois...

"... ninguém se conscientiza separadamente dos demais. A consciência se constitui como consciência do mundo. Se cada consciência tivesse o o seu mundo, as consciências se desencontrariam em mundos diferentes e separados - seriam mônadas incomunicáveis... Seu lugar de encontro necessário é o mundo, que se não for originariamente comum, não permitirá mais a comunicação"

"Se o mundo é o mundo das consciências inter-subjetivadas, sua elaboração forçosamente há de ser colaboração. O mundo mediatiza a originária inter-subjetivação das consciências: o auto-reconhecimento plenifica-se no reconhecimento do outro." (Fiori in Freire, 1987:17)

Conclusão geral sobre os autores estudados

Apesar das perspectivas distintas, pelas quais os autores estudados abordam o fenômeno educacional, percebeu-se confluências importantes entre os mesmos. Estas confluências contribuem em muito para a construção de uma percepção mais elaborada e consistente do processo educativo. Salienta-se que o conceito de autonomia também é percebido por esses autores sob prismas distintos mas complementares.

As três abordagens citadas tem uma visão similar sobre a relação sujeito-objeto. Entendem todos os autores que esta relação é uma relação dialética. A objetividade entende o sistema cognitivo humano como um receptáculo vazio à espera do mundo, já a subjetividade anula qualquer efeito do meio ambiente na funcionalidade desse sistema. Nem objetividade (o mundo existe em si e o homem o vê como ele é), nem subjetividade (o mundo não é percebido a não ser através da subjetividade). Interpenetração e participação, sujeito e objeto são inseparavelmente emaranhados.

Na teoria da equilibração de Piaget, esse enfrentamento constante entre o objeto e o sujeito está expresso já nos seus conceitos mais básicos, os conceitos de assimilação e acomodação. Para Piaget, o pensamento se organiza para se adaptar aos objetos e as coisas do mundo, mas é nesse mesmo processo de organização que ele transcende o mundo e age no sentido de reestruturá-lo.

Maturana e Varela são enfáticos quanto a necessidade de ultrapassar a dicotomia objeto-sujeito. Eles consideram esta dicotomia uma armadilha que deve ser desarmada. E desarmá-la consiste em entender que os seres humanos, como observadores que são, tem a possibilidade, a partir da perspectiva que adotarem, de abordar um ou outro aspecto desta relação, podem apenas considerar o domínio da operação dos componentes de um sistema, ignorando o meio ambiente (solipsismo). Ou, podem descrever a história de interações de uma unidade com o seu meio ambiente, observando apenas as relações observadas entre o ambiente e o comportamento da unidade, nesse caso é a sua dinâmica interna que não interessa.

É no conceito de fechamento operacional que estes autores explicitam o seu entendimento sobre a questão. Consideram eles, que o sistema perceptivo humano é operacionalmente fechado ou estruturalmente determinado, mas esse fechamento não implica em impermeabilidade ao ambiente, ele significa apenas, que as respostas que um organismo dá aos estímulos do ambiente, são dependentes da sua fenomenologia interna, ou da sua estrutura. Isto porque, os estados de atividade neural interna ou externamente gerados são indistinguíveis para o sistema. O sistema nervoso não funciona elaborando uma representação operacional do ambiente, a partir do conteúdo informativo que recolhe. Ele é definido por seus diversos modos de coerência interna. Piaget chama estes modos de coerência de invariantes funcionais (adaptação e organização)

A ultrapassagem da dicotomia sujeito-objeto está subentendida, em Freire, no conceito de consciência crítica. Freire afirma que se houvesse a predominância do objeto, ou se o mundo fosse percebido pelos homens tal como ele é, não havendo na cognição nada mais do que aquilo que fosse ofertado pelo mundo, as consciências humanas seriam oprimidas pelo mundo e a ele teriam que conformar-se. No entanto a consciência humana é capaz de transformar o mundo, por isso, há mais no homem do que apenas o que lhe fornece a realidade imediata.

"A consciência é essa misteriosa e contraditória capacidade que tem o homem de distanciar-se das coisas para fazê-las presentes, imediatamente presentes...Absorvido pelo meio natural, responde a estímulos; e o êxito de suas respostas mede-se por sua maior ou menor adaptação: naturaliza-se. Despegado de seu meio vital, por virtude da consciência, enfrenta as coisas objetivando-as, é enfrentando-se com elas, que deixam de ser simples estímulos, para se tornarem desafios. O meio ambiente não o fecha, limita-o - o que supõe a consciência do além-limite. Por isto, porque se projeta intencionalmente a consciência, além do limite que tenta encerrá-la, pode a consciência desprender-se dele, liberar-se e objetivar, transubstanciando o meio físico em mundo humano.... O mundo é espetáculo, mas sobretudo convocação. E como a consciência se constitui necessariamente como consciência do mundo, ela é, pois, simultânea e implicadamente, apresentação e elaboração do mundo."(Fiori in Freire 1987:14)

Da mesma forma que reconhecem uma relação dialética entre o sujeito e o objeto os autores analisados percebem que essa relação se constrói a partir de um processo de meta-reflexão. Nesse processo a reflexão distancia-se mais e mais do objeto até voltar-se sobre si mesma, dando-se então o nascimento da consciência. E é, justamente, nessa capacidade de transcender o ambiente, que se diferencia o processo cognitivo humano do dos outros animais.

Por transcender o mundo, pode o homem ser autônomo, pois pode transformá-lo. Nunca totalmente, contudo, pois sempre será um ser no mundo. A transcendência, em Piaget, está implícita no pensamento operatório formal que é concomitante com o surgimento da capacidade de ser autônomo. Em Freire, a autonomia é justamente a liberação da consciência oprimida, ou a sua transcendência.

Maturana e Varela entendem a vida como um fenômeno autônomo, pois a vida se auto-produz (autopoiesis). Donde, o fenômeno cognitivo como todo o fenômeno biológico é também auto-produzido. Assim como a manutenção da autopoiesis é fundamental para a manutenção da vida, o fenômeno cognitivo humano só se realiza se puder manter sua autopoiesis, ou seja enquanto tiver a liberdade de se auto-produzir.

A opressão mata o processo cognitivo. Concordam novamente os autores. Maturana e Varela, como se acabou de mostrar. Paulo Freire, procura deixar isto claro a cada passo, para ele, sem consciência crítica, ou livre, não há aprendizado. Piaget enfatiza inúmeras vezes que só o respeito mútuo é gerador das relações cooperativas concomitantes ao florescer do pensamento operatório formal.

Se é só no enfrentamento dialético entre o sujeito e o mundo que o conhecimento se produz, então ele implica em crise, ansiedade. Esse é outro ponto em que a concordância entre todos os autores é percebida. Em Piaget, o processo de superação do desequilíbrio, a equilibração majorante, é a invariante básica do processo cognitivo. Freire,chama a sua concepção para o processo educacional de libertadora e problematizadora ao mesmo tempo. É claro, então, para Freire, que a libertação das consciências, ou o conhecer, exige uma confrontação efetiva dos verdadeiros problemas. Ou seja para Freire aprender é arriscar-se, é inventar, é transformar.

Mas, ressaltam todos os autores, é só na cooperação que a superação da crise se efetiva. O homem isolado não chegaria jamais a conhecer. O fenômeno do amor, para Maturana e Varela, é que permite a transcendência transformadora, pois é só vendo-se no outro que ama, que tem coragem de promover a mudança ética. Paulo Freire fala em comunhão, fala que é preciso acreditar e amar os homens. Piaget considera que nas relações cooperativas, o respeito mútuo é uma exigência. O respeito mútuo implica na superação dos próprios pontos de vista, implica em compartilhar com o outro uma escala de valores, em definir conjuntamente as metas.

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As correntes teóricas apresentadas são: os estudos de fluxo da informação científica, os estudos em representação e recuperação da informação, os estudos de usuários da informação, a gestão da informação e do conhecimento, a economia política da informação e os estudos métricos da informação.

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Teóricos | Interacionismo Entre os principais teóricos desta vertente educacional estão os psicólogos Lev Seminovitch Vygotsky e Jean Piaget.

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