Por quê devo ser honesto e devo assumir meu erros

O médico José Fragata defende que quando há danos em consequência de erros clínicos, os doentes ou os seus familiares devem ter direito automático a uma indemnização

O cirurgião cardiotorácico José Fragata lançou ontem o seu segundo livro sobre erros em saúde. Na sua primeira obra sobre o tema, há sete anos, lembra que os colegas o olhavam "como se tivesse sarampo", porque era um assunto do qual não se devia falar. Agora, em Segurança dos Doentes - Uma abordagem prática, lançado ontem, o director do serviço de Cardiologia do Hospital de Santa Marta, em Lisboa, nota que algo mudou.

Já errou como médico?Os cirurgiões têm um pequeno cemitério aonde vão rezar de vez em quando, dizia o cirurgião René Leriche. Somos pessoas. Os casos que nos correm mal deixam-nos marcas, todos nós transportamos um passivo, embora hoje em dia a mortalidade na área da cirurgia cardíaca seja baixa, cerca de 3% a 4%. Tem que haver um responsável, mas um doente entra aqui e é tocado por 50 ou 60 pessoas antes de ter alta, pessoas que também têm as suas vidas, os seus erros, os seus problemas, que estão bem ou mal preparados, há um conjunto enorme de determinantes.

Insiste muito na diferença entre erro honesto e erro negligente...Essa é a diferença da vida. O que se quer dizer é que se alguém segue as regras, faz tudo bem, toma todas as precauções e mesmo assim erra, o erro foi honesto - 95% são erros honestos, 4 a 5% são negligentes. É uma taxa transversal, são as ovelhas ranhosas da sociedade. A espécie humana é a mesma. Mas não se deve dizer que quem faz um erro honesto é culpado, pode ser responsável, mas não tem que ser negligente. Em vez de se caminhar para a culpabilização de erros honestos, devíamos caminhar seriamente para punir seriamente os erros negligentes, sem corporativismos.

Já teve que testemunhar contra algum colega judicialmente? Na classe médica é recorrente dizer-se que se protegem uns aos outros.Já tive que testemunhar como perito, às vezes tive que dizer que um comportamento profissional não foi correcto, indirectamente testemunhei contra um colega. Há sempre algum corporativismo. Mas tem vindo a melhorar. Quando escrevi o meu primeiro livro, Erro de Medicina, parecia que tinha sarampo, os meus colegas achavam que eu não devia falar nisto. Está melhor, passou a falar-se. Mas os media têm um papel. Deve haver decoro antes de chamar negligente a alguém, de tentar perceber o que se passou, e não fazer julgamento em praça pública.

O primeiro estudo português sobre erros em saúde conclui que só em 0,8% dos casos doentes ou familiares foram informados do incidente. No seu livro fala do dever da revelação. O que lhe parecem estes números? Parece-me normal, o que não quer dizer que seja desejável. Temos que perceber que estas coisas resultam da cultura das pessoas, a nossa cultura, a ocidental, não é de revelação.

É de ocultação.É de ocultação. Mas há razões para isso. Uma delas é o modo como o sistema judicial português lida com acidentes em saúde - o dirimir de problemas de responsabilidade civil faz-se com base em culpa. Podia-se indemnizar com base em risco. Um exemplo: quando eu comecei a conduzir, há muitos anos, quando se batia saíamos logo do carro de mangas arregaçadas para a pancada, para discutir quem vinha da direita ou da esquerda, hoje em dia preenche-se uma declaração amigável, indemnizamos com base em risco e não com base em culpa.

Defende que devia acontecer o mesmo nos erros em saúde?Se eu tiver um acidente com um doente em medicina e reclamar ao meu seguro profissional, tem que haver apuramento de culpa e há ainda uma diferença, que muitas pessoas não saberão: num hospital privado a responsabilidade é chamada contratual, se surgem complicações e o doente se queixa sou eu que tenho que provar que fiz tudo bem, à partida sou suspeito; no sistema público a responsabilidade é extracontratual, à partida é o doente que tem que provar que fiz mal. De uma perspectiva jurídica, o mesmo doente no sistema público e privado tem tratamentos completamente diferentes. O profissional está mais exposto no privado do que no público.

E na perspectiva do doente?Aí, o doente está mais protegido no privado do que no público.

Haveria mais profissionais de saúde a assumir a sua responsabilidade se o sistema judicial fosse diferente?

Vai a um hospital, perguntam-lhe se é alérgica a alguma coisa, diz que não, tem uma angina, dão-lhe penicilina, se tiver uma reacção alérgica e morrer quem teve a culpa? Ninguém, não é possível saber. Nos países nórdicos a família é automaticamente indemnizada com a assunção de que a medicina é uma actividade de risco, perigosa, independentemente de ser apurada a negligência do médico. Esta é uma regra que é muito importante que a sociedade portuguesa e outras interiorizem: o doente entra num hospital e pode sofrer danos que não são necessariamente culpa de ninguém, tem a ver com a complexidade do sistema. Nós só queremos saber quem foi a pessoa para a pendurarmos.

Há muitos anos que era suposto o Ministério da Saúde ter no terreno um sistema nacional de notificação de eventos adversos. Em Santa Marta implantou-o há três anos. Que balanço faz?

A declaração de eventos é uma arma de dois gumes. Porque é que devemos declarar eventos? Para que o grupo saiba que podem acontecer erros e redesenhar processos de trabalho para haver menos possibilidade de danos. Se cada vez que declarar for punido, para a próxima cala-se. É a perspectiva oposta à da culpa. Aqui qualquer profissional comunica um erro, há um núcleo que o analisa, se se acha que o erro é recorrente, redesenha-se modo como trabalha.

Pode dar-me um exemplo de algo que mudou por causa do sistema?

Havia um certo tipo de seringas que funcionavam mal em bombas infusoras, que levavam a enganos de fármacos; mudámos o modelo da seringas. Quem inventou este sistema foi a aviação civil: quando dois aviões se cruzam no ar a duas milhas de distância, estão longe de chocar um com o outro, mas isto é reportado como colisão iminente. Deus me livre se estivéssemos à espera de que os doentes morressem para aprender com os erros.

Por que as pessoas deveriam assumir seus erros?

Quem nunca errou também nunca descobriu algo. Para um líder, assumir o erro em frente a seu liderados é como dar um “tiro” em sua própria reputação. Errar é humano e assumir o erro perante os outros é uma atitude dos sábios, que têm plena consciência de que quem para de aprender para de crescer.

Como assumir os próprios erros?

Por isso, separei aqui um pequeno passo-a-passo para lidar com minha própria dificuldade de pedir desculpas..
Abaixe a guarda. ... .
Ouça. ... .
Peça desculpas. ... .
Não tente se sair bem. ... .
Assuma responsabilidade, não se vitimize. ... .
Ofereça-se para reparar os danos. ... .
Não tente escapar do erro se explicando. ... .
Peça ajuda..

Como se chama uma pessoa que assume seus erros?

Algo que pode ser visto é que os narcisistas são pessoas obcecadas em publicar quase de forma constante suas realizações, seus objetivos alcançados, suas aparentes virtudes, suas altas habilidades. No entanto, esse tipo de personalidade caracterizada por uma alta visão de si mesmo nunca admite falhas próprias.

Quando assumimos nossos erros?

Quando assumimos nossos erros aprendemos lições que não aprenderíamos se continuássemos a fingir que nada fizemos de errado. E ter coragem de assumir, é o primeiro passo para que consigamos melhorar as nossas dificuldades, sejam elas morais, ou de qualquer outra natureza.