Os obstáculos no acesso à alimentação, higiene e direitos são apenas algumas dificuldades que a população em situação de rua enfrenta diariamente e a torna ainda mais vulnerável. Esse grupo, invisibilizado há tantos anos e tão heterogêneo, aumentou durante a pandemia. A afirmação foi feita por especialistas e representantes de movimentos sociais durante audiência pública da Câmara dos Deputados realizada na última segunda-feira, 7 de junho.
De acordo com a representante do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Tatiana Dias, a estimativa entre fevereiro e março do ano passado, momento de eclosão da pandemia, era de 221 mil pessoas em situação de rua. Tudo indica que o número aumentou, como reforça Veridiana Machado, representante do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua (Ciamp-Rua). “Não sabemos quantas pessoas estão em situação de rua, mas com a pandemia, é algo que nos salta os olhos. O número é expressivo, inclusive de crianças nos sinais pedindo dinheiro. Basta ir à rua e ver”, destacou.
Os dados apresentados pelo psicólogo sanitarista Marcelo Pedra confirmam. De acordo com a pesquisa realizada pela Prefeitura do Rio de Janeiro, 31% das pessoas estão na rua há menos de um ano, sendo 64% por perda de trabalho, moradia ou renda. Destes, 42,8% afirmaram que se tivesse um emprego sairia das ruas. Ele apresentou ainda dados de cadastro de serviços do SUS que mostram que houve um aumento de 35% das mulheres em situação de rua.
Como formas de lidar com a situação, o pesquisador destaca a ampliação das ofertas de acolhimento institucional e abrigo na perspectiva de baixa exigência, ampliação da estratégia de trabalho e renda, e a construção de estratégias de habitação e moradia, como o aluguel social.
“É fundamental que tenhamos estratégias de moradia e renda para as populações recentes em situação de rua”, destacou Pedra ao lembrar da iniciativa da Revista Traços, vendida no Distrito Federal por pessoas em situação de vulnerabilidade, que recebem 70% do valor de cada exemplar vendido para custear gastos com moradia e alimentação. A iniciativa está sendo ampliada para o Rio de Janeiro e Niterói.
A falta de dados dos impactos da pandemia nessa população, como o número de infectados e de óbitos foi um aspecto levantado pelos participantes como um empecilho para pensar em políticas públicas de saúde e de proteção social.
Para Kelseny Medeiros, representante da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, a dificuldade de transparência e acesso a dados fez com que o governo e a sociedade civil não estivessem preparados para receber essa população e interpretar como a pandemia os atingiu. Ela realizou uma pesquisa em São Paulo e afirmou que os gargalos são comuns a outros estados: as maiores dificuldades encontradas foram na realização de testes de Covid-19 para identificar os infectados, falta de transparência e de acesso a dados.
“A maioria dos casos não é quantificado, há uma invisibilidade histórica. A pandemia agravou problemáticas anteriores e revelou a insuficiência dos modelos de abrigos até então implementados”, completou o presidente da Comissão de Legislação Participativa da Câmara, deputado Waldenor Pereira.
Para obtenção dos dados, Marcelo Pedra defendeu a inclusão dessa população no próximo censo nacional; a integração dos sistemas da assistência social – CadÚnico e do e-SUS, com dados da atenção primária, incluindo das equipes de Consultório na Rua; e a construção de uma diretriz nacional para que o atendimento seja feito de forma igualitária em grandes cidades e municípios.
Falta de abrigamento
Os pesquisadores e representantes defenderam que é preciso fortalecer as redes que já existem e construir políticas permanentes e não apenas de estado, em um processo em que a elaboração conte com a participação social das redes de apoio e dos que sabem o que é viver na rua.
O acesso ao auxílio emergencial também foi lembrado durante a audiência. O representante da Associação Nacional de Defensores Públicos, Antonio Vitor Barbosa de Almeida afirmou que muitas pessoas em situação de rua não conseguiram se cadastrar para receber a renda pelo processo burocrático, como a obrigatoriedade de inclusão de um telefone celular no cadastro, por exemplo, além de problemas no acesso a alguns serviços que passaram a atender de forma remota durante a pandemia.
Vacinação
A população em situação de rua entrou como grupo prioritário no Programa Nacional de Imunização (PNI) do Ministério da Saúde, mas ainda não foi contemplada em alguns estados e municípios. O pesquisador da Fiocruz Brasília Marcelo Pedra defendeu a ampliação da vacina com a estratégia de busca ativa pelas equipes dos Consultórios na Rua. “Temos que fazer com que essas doses da vacina cheguem à população, em uma parceria com a Rede SUAS e com as instituições da sociedade civil”, disse.
Já Vanilson, representante do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, criticou a burocracia de alguns municípios para a vacinação dessa população. “É inadmissível que diante de uma crise sanitária e financeira, onde mais pessoas estão indo para as ruas, há lugares que dificultem a vacinação, exigindo que a população apresente uma comprovação de que está nas ruas. É preciso pensar em estratégias para facilitar. Nós da população em situação de rua também somos do SUS! Uma população que não tem casa, não tem água, não tem segurança alimentar e nutricional e que não tem dados epidemiológicos, é preciso pelo menos garantir a vacinação”, ressaltou.
Para Kelseny Medeiros, “proteger a população de rua é também proteger a população que está em casa”.
A audiência foi transmitida pelo Youtube. Para assistir, clique aqui ou confira abaixo: