Em que consiste a arguição de descumprimento de preceito fundamental e qual a sua finalidade?

Todos temos o direito de nos rebelar contra qualquer espécie de coerção e abuso de poder, em qualquer instância em que se manifestem: nossa arma chama-se Constituição. Ela é a resposta à exigência também de Montesquieu, há mais de dois séculos: ‘Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder. (Paulo Bonavides).

A Constituição Federal fundamenta e dá validade a todas as outras do ordenamento jurídico brasileiro, o que vincula o legislador ao seu cumprimento quando da elaboração de novas normas e também o administrador, este adstrito ao que a norma permite, devendo igualmente cumprir a Constituição e zelar para que seus comandos normativos implícitos e explícitos sejam observados na prática dos seus atos de administração.

A própria constituição traz em seu bojo todo um arcabouço de normas protetivas a seu texto, desde às cláusulas pétreas ao próprio controle de constitucionalidade. Ela também se preocupa com dar efetividade ao conteúdo nela disciplinado de forma que seja patrimônio jurídico e social do povo.

A Argüição por Descumprimento de preceito fundamental – ADPF costuma ser confundida com a inconstitucionalidade por omissão. A inconstitucionalidade por omissão é a contradição entre o que a constituição exige positivamente e a omissão do Poder Público imprime negativamente ao destinatário/beneficiário da norma constitucional, o que não se confunde com o descumprimento porque este é amplo em relação àquele e no cerne da expressão descumprir está contido a contrariedade ao espírito da Constituição ao "dever ser" que nela está contido.

A finalidade da Argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos moldes do art. 102, § 1º da Constituição, é impedir que atos atentatórios à Carta Magna cometidos pela atividade estatal tenham impacto no povo. Trata-se pois de uma norma que visa proteger os preceitos fundamentais em especial.

Alguns autores a exemplo de RAMOS (1994:114) critica a ADPF justamente pela sua característica "abstrata", por ser frágil e ainda mais delicado se for analisada a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF). Ainda que o STF tenha dado pouco alcance ao instituto, eis que o vê apenas em situações excepcionais, somos da opinião de que é de especial valia no controle da administração, principalmente quando não se pode atacar o mérito das decisões administrativas em razão da discricionariedade do Poder Público.

A argüição de descumprimento de preceito fundamental só é cabida quando não exista outro instrumento jurídico hábil para sanar a lesão, isto advém de expressa proibição legal e trata-se de expressão do princípio da subsidiariedade. Muito embora, seja nosso entendimento que em razão da fluidez de conceito da mesma deveria ser aplicado o princípio da fungibilidade, deixando claro que este não é entendimento dominante sobre o assunto. MENDES (2000) deixa patente entendimento que dá mais efetividade a ADPF, vejamos:

a simples existência de ações ou de outros recursos processuais – vias processuais ordinárias – não poderá servir de óbice à formulação da argüição de descumprimento. Ao contrário, tal como explicado, a multiplicação de processos e decisões sobre um dado tema constitucional reclama, a mais das vezes, a utilização de um instrumento de feição concentrada, que permita a solução definitiva e abrangente da controvérsia.

Já MORAES (1999:91/92) aduz que a ADPF não substitui as demais previsões constitucionais que tenham semelhante finalidade, tais como habeas corpus, habeas data; mandado de segurança individual e coletivo; mandado de injunção; ação popular; ações diretas de inconstitucionalidade genérica; interventiva e por omissão e ação declaratória de constitucionalidade. Entendimento que nos filiamos, mas ainda defendendo a possibilidade de fungibilidade se não houver erro grosseiro, dúvida fundada sobre a ação mais adequada e tempestividade (no caso irrelevante).

Atacando o ponto principal do questionamento cumpre-nos definir o que seja preceito fundamental e, para tanto trazemos o conceito de RAMOS (1994:91) que vê o vocábulo jurídico como conceito jurídico indeterminado, a lei conferiu uma maleabilidade maior à jurisprudência, que poderá acomodar com mais facilidade mudanças no mundo dos fatos, bem como a interpretação evolutiva da Constituição, esse posicionamento não contribui para elucidar o que venha a ser realmente preceito fundamental, mas serve para demonstrar como a doutrina vacila na conceituação. De fato é difícil conceituar e principalmente o é porque se corre o risco de restringir o alcance ou de extrapolá-lo, ambas as duas possibilidades insatisfatórias.

TAVARES (1998:52) aduz que há de se considerar fundamental o preceito quando o mesmo apresentar-se como imprescindível, basilar ou inafastável, o que reflete o que devemos entender como fundamental, mas já nos induz a uma boa dose de subjetividade na apreciação do conceito. Uma coisa que não resta dúvida é que o preceito fundamental ultrapassa os princípios fundamentais porque não é apenas naqueles que a inobservância através de ato estatal se dá.

RAMOS (1994:124) traz um rol do que venha a ser preceito fundamental de modo que estão englobados os fundamentos da república (art. 1º CF), os princípios das relações internacionais e as cláusulas pétreas, e muitos outros doutrinadores seguem esta classificação. MORAES (2000:213) aduz que preceitos fundamentais englobam os direitos e garantias fundamentais da Constituição, bem como os fundamentos e objetivos fundamentais da República, de forma a consagrar maior efetividade às previsões constitucionais. Como podemos ver, fica em aberto a classificação, porque nem mesmo os mais abalizados doutrinadores conseguem definir com precisão o que vem a ser preceito fundamental, o que será tarefa dos operadores do direito.

A lei 9.882/99 que regulamenta o assunto também não trouxe em seu bojo a conceituação, SARLET (apud DAL COL) leciona:

Especialmente no que diz respeito à argüição de descumprimento de preceito fundamental, verifica-se, de plano, que a recente regulamentação pelo legislador ordinário pouco contribuiu para a clarificação dos contornos do instituto, inclusive quanto a seu objeto e finalidade, a respeito dos quais nunca houve consenso e, a depender do que se vislumbra em termos de produção doutrinária, dificilmente se logrará obter certa uniformidade, ao menos não antes de que se venha a sedimentar alguma orientação por parte do Supremo Tribunal Federal.

De sorte que há um espaço doutrinário e jurisprudencial de vulto para criação e fundamentação, a não especificação do ato lesivo pode-se afirmar que até mesmos os atos omissivos poderão ser objeto de ADPF, conforme BERNARDES (2000) aduz. Entretanto, o termo "decorrente" deixa claro que os preceitos estão implícitos e explícitos no texto constitucional, não devendo o Supremo Tribunal Federal firmar entendimento de que preceito fundamental é apenas o que está expressamente contido na Carta Magna.

Diante da controvérsia sobre o conceito de preceito fundamental, a afirmação de SARMENTO (2001:91) traz a vertente positiva da omissão do legislador constitucional e ordinário sobre o assunto, in verbis:

o legislador agiu bem ao não arrolar taxativamente quais, dentre os dispositivos constitucionais, devem ser considerados como preceitos fundamentais. Ao valer-se de um conceito jurídico indeterminado, a lei conferiu uma maleabilidade maior à jurisprudência, que poderá acomodar com mais facilidade mudanças no mundo dos fatos, bem como a interpretação evolutiva da Constituição. Caberá, ao Supremo Tribunal Federal, definir tal conceito, sempre baseando-se na consideração do dado axiológico subjacente ao ordenamento constitucional.

ROTHENBURG (apud DAL COL) formulou entendimento ao qual nos filiamos, vejamos:

Fez bem o constituinte em não estabelecer desde logo quais os preceitos que, por serem fundamentais, poderiam ser tutelados pela argüição de descumprimento de preceito fundamental? E o legislador, deveria tê-lo seguido? Sim, agiram ambos com acerto: somente a situação concreta, no momento dado, permitiria uma adequada configuração do descumprimento a preceito fundamental da Constituição. Qualquer tentativa de prefiguração seria sempre parcial ou excessiva; e a restrição seria agravada pela interpretação restritiva que um rol taxativo recomenda.

Dessa forma, podemos concluir que não há conceito fechado de preceito fundamental, o que dá margem de discricionariedade para o magistrado na sua apreciação, o que não é, necessariamente, maléfico para o cidadão. Os conceitos jurídicos indeterminados abrem um leque de efetividade muito bom, especialmente quando encontra-se o povo desamparado por determinações especiais e temos a convicção que foi a intenção real do legislador ordinário conferir essa amplitude de conceito, acolhidos pois toda a construção doutrinária e jurisprudencial sobre o assunto, ampliando o arcabouço normativo de preceitos fundamentais contidos na constituição. Cabe então ao Supremo Tribunal Federal manifestar-se sobre cada caso concreto.

O que realmente é essencial é que a interpretação seja a que mantenha e dê força à essência da Constituição. Esta só pode ser a mais ampla, que absorva como preceito fundamental todas as normas constitucionais e todo o conteúdo principiológico da Carta Magna.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERNARDES, Juliano Taveira. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Revista Jurídica Virtual, Brasília, n. 08, jan. 2000. Disponível em <//www.planalto.gov.br/CCIVIL/revista/Rev_08/arg_descump_Juliano.htm>. Acesso em: 24 ago. 2004.

DAL COL. Helder Martinezl. O significado da expressão "preceito fundamental" no âmbito da argüição de preceito fundamental prevista no art. 102, § 1º, da C.F. Repertório IOB de Jurisprudência 12/2001, (1/16094) 2ª quinzena de junho/2001.

FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves, FERNANDES, Rodrigo Pieroni. A argüição de descumprimento de preceito fundamental e a manipulação dos efeitos de sua decisão. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 54, fev. 2002. Disponível em: <//jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=2596>. Acesso em: 24 ago. 2004.

MENDES, Gilmar Ferreira. Argüição de descumprimento de preceito fundamental: demonstração da inexistência de outro meio eficaz, Revista Jurídica Virtual do Palácio do Planalto, junho de 2000. Acesso em: 24 ago. 2004.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 5ª ed., São Paulo: Atlas, 1999.

_________. Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais. São Paulo: Atlas, 2000.

RAMOS, Elival da Silva. A inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1994.

ROTHENBURG, Walter Claudius. Argüição de descumprimento de preceito fundamental. In Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da Lei n.º 9.882/99. André Ramos Tavares e Walter Cláudius Rothenburg, organizadores. São Paulo: Atlas, 2001.

SARLET, Ingo Wolfgang. Argüição de descumprimento de preceito fundamental:alguns aspectos controversos. In Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da Lei nº 9.882/99. André Ramos Tavares e Walter Cláudius Rothenburg, organizadores. São Paulo: Atlas, 2001.

SARMENTO, Daniel. Apontamentos sobre a argüição de descumprimento de preceito fundamental. In Argüição de descumprimento de preceito fundamental: análises à luz da Lei n.º 9.882/99. André Ramos Tavares e Walter Cláudius Rothenburg, organizadores. São Paulo: Atlas, 2001.

TAVARES, André Ramos. Tribunal e Jurisdição Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998.

O que significa dizer que a ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental tem natureza subsidiária?

Trata-se de uma ação que também visa o controle de constitucionalidade das normas, como a ADI, mas com parâmetro de controle muito mais restrito do que ela, eis que não são todas as normas constitucionais que servem de paradigma, mas somente, as que veicularem preceitos fundamentais.

Quando será cabível a arguição de descumprimento de preceito fundamental?

Objeto – hipóteses de cabimento Na hipótese da arguição de descumprimento de preceito fundamental ser por equivalência ou equiparação será quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição.

Quais os efeitos da arguição de descumprimento de preceito fundamental?

Quais são os efeitos da decisão na ADPF? Segundo a Lei da ADPF aduz que a decisão terá eficácia erga omnes, ou seja, contra todos, e efeito vinculante relativamente aos órgãos do Poder Público. A lei também prevê que sua decisão será ex tunc, ou melhor dizendo, possui caráter retroativo.

Quem pode propor arguição de descumprimento de preceito fundamental?

A lei que dispõe sobre a ADPF, a Lei 9.882/99, traz que os legitimados para propor a arguição de descumprimento de preceito fundamental são aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade (ADI), e que estão presentes na Constituição Federal Brasileira.

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