A mesma mão que apalde é a que te derruba

Bons Dias!

Texto-fonte:

Obra Completa de Machado de Assis.

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994.

Publicado originalmente na Gazeta de Not�cias, Rio de Janeiro, de 05/04/1888 a 29/08/1889.

1888

5 de abril

Bons dias!

H�o de reconhecer que sou bem criado. Podia entrar aqui, chap�u � banda, e ir logo dizendo o que me parecesse; depois ia-me embora, para voltar na outra semana. Mas, n�o senhor; chego � porta, e o meu primeiro cuidado � dar-lhe os bons dias. Agora, se o leitor n�o me disser a mesma coisa, em resposta, � porque � um grande malcriado, um grosseir�o de borla e capelo; ficando, todavia, entendido que h� leitor e leitor, e que eu, explicando-me com t�o nobre franqueza, n�o me refiro ao leitor, que est� agora com este papel na m�o, mas ao seu vizinho. Ora bem!

Feito esse cumprimento, que n�o � do estilo, mas � honesto, declaro que n�o apresento programa. Depois de um recente discurso proferido no Beethoven, acho perigoso que uma pessoa diga claramente o que � que vai fazer; o melhor � fazer calado. Nisto pare�o-me com o pr�ncipe (sempre � bom parecer-se a gente com pr�ncipes, em alguma coisa, d� certa dignidade, e faz lembrar um sujeito muito alto e louro, parecid�ssimo com o Imperador, que h� cerca de trinta anos ia a todas as festas da Capela Imperial, pour �tonner de bourgeois; os fi�is levavam a olhar para um e para outro, e a compar�-los, admirados, e ele teso, grave, movendo a cabe�a � maneira de Sua Majestade. S�o gostos) de Bismark. O pr�ncipe de Bismark tem feito tudo sem programa p�blico; a �nica orelha que o ouviu, foi a do finado Imperador, � e talvez s� a direita, com ordem de o n�o repetir � esquerda. O Parlamento e o pa�s viram s� o resto.

Deus fez programa, � verdade ("E Deus disse: Fa�amos o homem � nossa imagem e semelhan�a, para que presida", etc. G�nesis, I, 26); mas � preciso ler esse programa com muita cautela. Rigorosamente, era um modo de persuadir ao homem a alta linhagem de seu nariz. Sem aquele texto, nunca o homem atribuiria ao Criador, nem a sua gaforinha, nem a sua fraude. � certo que a fraude, e, a rigor, a gaforinha s�o obras do Diabo, segundo as melhores interpreta��es; mas n�o � menos certo que essa opini�o � s� dos homens bons; os maus cr�em-se filhos do C�u � tudo por causa do vers�culo da Escritura.

Portanto, bico calado. No mais � o que se est� vendo; c� virei uma vez por semana, com o meu chap�u na m�o, e os bons dias na boca. Se lhes disser desde j�, que n�o tenho papas na l�ngua, n�o me tomem por homem despachado, que vem dizer coisas amargas aos outros. N�o, senhor; n�o tenho papas na l�ngua, e � para vir a t�-las que escrevo. Se as tivesse, engolia-as e estava acabado. Mas aqui est� o que �; eu sou um pobre relojoeiro, que, cansado de ver que os rel�gios deste mundo n�o marcam a mesma hora, descri do of�cio. A �nica explica��o dos rel�gios era serem iguaizinhos, sem discrep�ncia; desde que discrepam, fica-se sem saber nada, porque t�o certo pode ser o meu rel�gio, como o do meu barbeiro.

Um exemplo. O Partido Liberal, segundo li, estava encasacado e pronto para sair, com o rel�gio na m�o, porque a hora pingava. Faltava-lhe s� o chap�u, que seria o chap�u Dantas, ou o chap�u Saraiva (ambos da chapelaria Aristocrata); era s� p�-lo na cabe�a, e sair. Nisto passa o carro do pa�o com outra pessoa, e ele descobre que ou o seu rel�gio est� adiantado, ou o de Sua Alteza � que se atrasara. Quem os por� de acordo?

Foi por essas e outras que descri do oficio; e, na alternativa de ir � fava ou ser escritor, preferi o segundo alvitre; � mais f�cil e vexa menos. Aqui me ter�o, portanto, com certeza at� � chegada do Bendeg�, mas provavelmente at� � escolha do Sr. Gua�, e talvez mais tarde. N�o digo mais nada para os n�o aborrecer, e porque j� me chamaram para o almo�o.

Talvez o que a� fica, saia muito curtinho depois de impresso. Como eu n�o tenho h�bito de peri�dicos, n�o posso calcular entre a letra de m�o e a letra de forma. Se aqui estivesse o meu amigo Fulano (n�o ponho o nome, para que cada um tome para si esta lembran�a delicada), diria logo que ele s� pode calcular com letras de c�mbio � trocadilho que fede como o Diabo. J� falei tr�s vezes no Diabo em t�o poucas linhas; e mais esta, quatro; � demais.

Boas noites.

4 de maio

Bons dias!

...Desculpem, se lhes n�o tiro o chap�u; estou muito constipado. Vejam; mal posso respirar. Passo as noites de boca aberta. Creio at�, que estou abatido e magro. N�o? Estou; olhem como fungo. E n�o � de autoridade, note-se; ex auctoritate qua fungor,n�o, senhor; fungo sem a menor sombra de poder, fungo � toa...

Entretanto, se alguma vez precisei de estar de perfeita sa�de, � agora, por v�rias raz�es. Citarei duas:

A primeira � a abertura das C�maras. Realmente, deve ser solene. O discurso da princesa, o an�ncio da lei de aboli��o, as outras reformas, se as h�, tudo excita curiosidade geral, e naturalmente pede uma sa�de de ferro. O meu plano era simples; metia-me na casaca, e ia para o Senado arranjar um lugar, donde visse a cerim�nia, deputa��es, recep��o, discurso. Infelizmente, n�o posso; o m�dico n�o quer, diz-me que, por esses tempos �midos, � arriscado sair de casa; fico.

A segunda raz�o da sa�de que eu desejava ter agora, prende com a primeira. J� o leitor adivinhou o que �. N�o se pode conversar nada, assim mais encobertamente, que ele n�o perceba logo e n�o descubra. � isso mesmo; � a pol�tica do Cear�. Era outro plano meu; entrava pelo Senado, e ia ter com o senador cearense Castro Carreira, e dizia-lhe mais ou menos isto:

� Saber� V. Exa. que eu n�o entendo patavina dos partidos do Cear�...

� Com efeito...

� Eles s�o dois, mas quatro; ou, mais acertadamente, s�o quatro, mas dois.

� Dois em quatro.

� Quatro em dois.

� Dois, quatro.

� Quatro, dois.

� Quatro.

� Dois.

� Dois.

� Quatro.

� Justamente.

� N�o �?

� Clar�ssimo.

Dadas estas explica��es, pediria eu ao Sr. Dr. Castro Carreira que me desse algumas not�cias mais individuais dos grupos Aquir�s e Ibiapaba... S. Exa., com fastio:

� Not�cias individuais? Homem, eu n�o sei pol�tica individualista; eu s� vejo os princ�pios.

� Bem, os princ�pios. Sabe que o grupo Aquir�s, com um tro�o liberal, tomaram conta da mesa; mas o grupo Ibiapaba acudiu com outro tro�o liberal, e puseram �gua na fervura. Quais s�o os princ�pios?

� Os primeiros de todos devem ser os da boa educa��o, sem os quais n�o h� boa pol�tica. Dai-me boa educa��o, e eu vos darei boa pol�tica, diria o Bar�o Louis. S�o os primeiros de todos os princ�pios.

� Os segundos...

� Os segundos s�o os comuns � ou que o devem ser, a todos os partid�rios, quaisquer que sejam as denomina��es particulares; refiro-me ao bem da prov�ncia. � o terreno em que todos se podem conciliar.

� De acordo; mas o que � que os separa?

� Os princ�pios.

� Que princ�pios?

� N�o h� outros; os princ�pios.

� Mas Aquir�s � um t�tulo, n�o � um princ�pio; Ibiapaba tamb�m � um t�tulo.

� H� entre o c�u e a terra mais acumula��es do que sonha a vossa v� filosofia...

� Pode ser, mas isto ainda n�o me explica a raz�o desta mistura ou troca de grupos, parecendo melhor que se fundissem de uma vez, com os antigos advers�rios. N�o lhe parece?

� O que me parece, � que a princesa vem chegando.

Corr�amos � janela; v�amos que n�o; continu�vamos o di�logo, a entrevista, � maneira americana, para trazer os meus leitores informados das coisas e pessoas. O meu interlocutor, vendo que n�o era a princesa, olhava para mim, esperando. Pouco ou nenhum interesse no olhar; mas � ditado velho, que quem v� cara n�o v� cora��es. Certo fastio crescente. Princ�pio de desconfian�a de que eu sou mandado pelo diabo. Gesto vago de cruzes...

� H� os Rodrigues, os Paulas, os Aquirases, os Ibiapas; h� os...

� Agora creio que � a princesa. Estas trombetas... � ela mesma; adeus, sou da deputa��o... Apare�a aqui pelo Senado... No Senado, n�o h� d�vidas...

Mas eu pegava-lhe na m�o, e n�o vinha embora sem alguns esclarecimentos. Tudo perdido, por causa de uma coriza! Coriza dos diabos, agora ou nunca, chegar�amos a entender aqueles grupos; e perde-se esta ocasi�o �nica, por tua causa, infame catarro, monco p�rfido!... Tuah! Vou meter-me na cama.

Boas noites.

11 de maio

Bons dias!

Vejam os leitores a diferen�a que h� entre um homem de olho aberto, profundo, sagaz, pr�prio para remexer o mais �ntimo das consci�ncias (eu, em suma), e o resto da popula��o.

Toda a gente contempla a prociss�o na rua, as bandas e bandeiras, o alvoro�o, o tumulto, e aplaude ou censura, segundo � abolicionista ou outra coisa; mas ningu�m d� a raz�o desta coisa ou daquela coisa; ningu�m arrancou aos fatos uma significa��o, e, depois, uma opini�o. Creio que fiz um verso.

Eu, pela minha parte, n�o tinha parecer. N�o era por indiferen�a; � que me custava a achar uma opini�o. Algu�m me disse que isto vinha de que certas pessoas tinham duas e tr�s, e que naturalmente esta injusta acumula��o trazia a mis�ria de muitos; pelo que, era preciso fazer uma grande revolu��o econ�mica, etc. Compreendi que era um socialista que me falava, e mandei-o � fava. Foi outro verso, mas vi-me livre de um amolador. Quantas vezes me n�o acontece o contr�rio!

N�o foi o ato das alforrias em massa dos �ltimos dias, essas alforrias incondicionais, que v�m cair como estrelas no meio da discuss�o da lei da aboli��o. N�o foi; porque esses atos s�o de pura vontade, sem a menor explica��o. L� que eu gosto da liberdade, � certo; mas o princ�pio da propriedade n�o � menos leg�timo. Qual deles escolheria? Vivia assim, como uma peteca (salvo seja), entre as duas opini�es, at� que a sagacidade e profundeza de esp�rito com que Deus quis compensar a minha humildade, me indicou a opini�o racional e os seus fundamentos.

N�o � novidade para ningu�m, que os escravos fugidos, em Campos, eram alugados. Em Ouro Preto fez-se a mesma coisa, mas por um modo mais particular. Estavam ali muitos escravos fugidos. Escravos, isto �, indiv�duos que, pela legisla��o em vigor, eram obrigados a servir a uma pessoa; e fugidos, isto �, que se haviam subtra�do ao poder do senhor, contra as disposi��es legais. Esses escravos fugidos n�o tinham ocupa��o; l� veio, por�m, um dia em que acharam sal�rio, e parece que bom sal�rio.

Quem os contratou? Quem � que foi a Ouro Preto contratar com esses escravos fugidos aos fazendeiros A, B, C? Foram os fazendeiros D, E, F. Estes � que sa�ram a contratar com aqueles escravos de outros colegas, e os levaram consigo para as suas ro�as.

N�o quis saber mais nada; desde que os interessados rompiam assim a solidariedade do direito comum, � que a quest�o passava a ser de simples luta pela vida, e eu, em todas as lutas, estou sempre do lado do vencedor. N�o digo que este procedimento seja original, mas � lucrativo. Alguns n�o me compreenderam (porque h� muito burro neste mundo); algu�m chegou a dizer-me que aqueles fazendeiros fizeram aquilo, n�o porque n�o vissem que trabalhavam contra a pr�pria causa, mas para pregar uma pe�a ao Clapp. Imagina-se bem se arregalei os olhos.

� Sim, senhor. Saia que o Clapp tinha o plano feito de ir a Ouro Preto pegar os tais escravos e restitu�-los aos senhores, dando-lhes ainda uma pequena indeniza��o do seu bolsinho, e pagando ele mesmo a sua passagem da estrada de ferro. Foi por isso que...

� Mas ent�o quem � que est� aqui doido?

� � o senhor; o senhor � que perdeu o pouco ju�zo que tinha. Aposto que n�o v� que anda alguma coisa no ar.

� Vejo; creio que � um papagaio.

� N�o, senhor; � uma Rep�blica. Querem ver que tamb�m n�o acredita que esta mudan�a � indispens�vel?

� Homem, eu, a respeito de governo, estou com Arist�teles, no cap�tulo dos chap�us. O melhor chap�u � o que vai bem � cabe�a. Este, por ora, n�o vai mal.

� Vai pessimamente. Est� saindo dos eixos; � preciso que isto seja, sen�o com a Monarquia, ao menos com a Rep�blica, aquilo que dizia o Rio-Post de 21 de junho do ano passado. Voc� sabe alem�o?

� N�o.

� N�o sabe alem�o?

E dizendo-lhe eu outra vez que n�o sabia, ele imitando o m�dico de Moli�re, dispara-me na cara esta algaravia do diabo:

� Es d�rfte leicht zu erweisen sein, dass Brasilien weniger eine konstitutionelle Monarchie als eine absolute Oligarchie ist.

� Mas que quer isto dizer?

� Que � deste �ltimo tronco que deve brotar a flor.

� Que flor?

� As

Boas noites.

19 de maio

Bons dias!

Eu perten�o a uma fam�lia de profetas apr�s coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holand�s. Por isso digo, e juro se necess�rio for, que toda a hist�ria desta Lei de 13 de Maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforri�-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.

Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as not�cias dissessem trinta e tr�s (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simb�lico.

No golpe do meio (coup du milieu,mas eu prefiro falar a minha l�ngua), levantei-me eu com a ta�a de champanha e declarei que acompanhando as id�ias pregadas por Cristo, h� dezoito s�culos, restitu�a a liberdade ao meu escravo Pancr�cio; que entendia a que a na��o inteira devia acompanhar as mesmas id�ias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens n�o podiam roubar sem pecado.

Pancr�cio, que estava � espreita, entrou na sala, como um furac�o, e veio abra�ar-me os p�s. Um dos meus amigos (creio que � ainda meu sobrinho) pegou de outra ta�a, e pediu � ilustre assembl�ia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os len�os comovidos apanharam as l�grimas de admira��o. Ca� na cadeira e n�o vi mais nada. De noite, recebi muitos cart�es. Creio que est�o pintando o meu retrato, e suponho que a �leo.

No dia seguinte, chamei o Pancr�cio e disse-lhe com rara franqueza:

� Tu �s livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, j� conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que...

� Oh! meu senh�! fico.

� ... Um ordenado pequeno, mas que h� de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje est�s mais alto que eu. Deixa ver; olha, �s mais alto quatro dedos...

� Artura n�o qu� diz� nada, n�o, senh�...

� Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-r�is; mas � de gr�o em gr�o que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.

� Justamente. Pois seis mil-r�is. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.

Pancr�cio aceitou tudo; aceitou at� um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me n�o escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, n�o podia anular o direito civil adquirido por um t�tulo que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.

Tudo compreendeu o meu bom Pancr�cio; da� para c�, tenho-lhe despedido alguns pontap�s, um ou outro pux�o de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe n�o chamo filho do Diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que at� alegre.

O meu plano est� feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes de aboli��o legal, j� eu, em casa, na mod�stia da fam�lia, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente que dele teve not�cia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposi��o) � ent�o professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente pol�ticos, n�o s�o os que obedecem � lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: �s livre, antes que o digam os poderes p�blicos, sempre retardat�rios, tr�pegos e incapazes de restaurar a justi�a na terra, para satisfa��o do C�u.

Boas noites.

1 de junho

Bons dias!

Agora fale o senhor, que eu n�o tenho nada mais que lhe dizer. J� o saudei, gra�as � boa cria��o que Deus me deu, porque isto de cria��o, se a natureza n�o ajuda, � escusado trabalho humano. Eu, em menino fui sempre um primor de educa��o. Criou-me uma ama, escrava; e, apesar de escrava e ama, nunca lhe pus a boca no seio para mamar.

� Mas, Policarpo, tu tens direito a ser aleitado, e depois � obriga��o da escrava alugada.

Em v�o chorava, a Florinda corria, desabotoava o corpinho, punha o seio de fora, e eu, por mais fome que tivesse, n�o lhe pegava sem pedir licen�a. Pedia por gesto; parece que era um gesto de olhos...

Aos cinco anos (era em 1831), como j� sabia ler, davam-nos no col�gio A P�tria, pouco antes fundada pelo Sr. Carlos Bernardino de Moura, com as mesmas doutrinas pol�ticas que ainda hoje sustenta. A minha alma, que nunca se deu com pol�tica, dormia que era um gosto; mas os olhos n�o, esses iam por ali fora, risonhos, aprobat�rios.

Agora mesmo, lendo naquela folha que o governo � que deu o dinheiro com que os jornais fizeram as festas abolicionistas, pensam que, se tivesse de explicar-me, f�-lo-ia como a comiss�o da imprensa? N�o; seria grosseiro. Nunca se deve desmentir ningu�m. Eu diria que sim, que era verdade, que o governo tinha pago tudo, as festas e uns alugu�is atrasados da casa do Sousa Ferreira; que para isso mesmo � que fora contratado o �ltimo empr�stimo em Londres; que o Serzedelo, � custa do mesmo dinheiro, tinha reformado o pau moral; que as botinas novas do Pederneiras n�o tinham outra origem; e que o nosso amigo e chefe Jos� Telha precisando de uma casaca para ir ao Coquelin, � que se meteu naquelas manifesta��es. O redator ouvia tudo satisfeito; e no dia seguinte come�ava assim o editorial: "Conforme hav�amos previsto" (o resto como em 1844).

Podia citar casos honros�ssimos, como prova de boa cria��o. Um deles nunca me h� de esquecer, e � fresquinho.

Estando h� dias a almo�ar com alguns amigos, percebi que alguma coisa os amargurava. N�o gosto de caras tristes, como n�o gosto delas alegres; � um meio-termo entre o Caju e o Recreio Dram�tico � o que vai comigo. Sen�o quando, com um modo delicado, perguntei o que � que tinham. Calaram-se; eu, como manda a boa cria��o, calei-me tamb�m e falei de outra coisa. Foi o mesmo que se os convidasse a p�r tudo em pratos limpos. Tratando-se de um almo�o, era condi��o primordial.

Um dos convivas confessou que no meio das festas abolicionistas n�o aparecia o seu nome, outro que era o dele que n�o aparecia, outro que era o dele, e todos que os deles. Aqui � que eu quisera ser um homem malcriado. O menos que diria a todos, � que eles tanto trabalharam para a aboli��o dos escravos, como para a destrui��o de N�nive, ou para a morte de S�crates... Eu, com uma sabedoria s� compar�vel � deste fil�sofo, respondi que a Hist�ria era um livro aberto, e a justi�a a perp�tua vigilante. Um dos convivas, dado a frases, gostou da �ltima, pediu outra e um c�lice de Alicante. Respondi, servindo o vinho, que as repara��es p�stumas eram mais certas que a vida, e mais indestrut�veis que a morte. Da primeira vez fui vulgar, da segunda creio que obscuro; de ambas sublime e bem criado.

Em linguagem ch�, todos eles queriam ir � Gl�ria sem pagar o bonde; creio que fiz um trocadilho. De mim, confesso que l� iria, se pudesse, com a mesma economia; mas, n�o havendo outro meio, pago o tost�ozinho, e paro � porta do Club Beethoven, que anda agora em tais alturas, que j� foi citado pela boca de eminente cidad�o... H�o de concordar que este per�odo vai um pouco embrulhado, mas n�o devo desembrulh�-lo; seria constipar a minha id�ia.

Podia citar outros muitos casos de boa cria��o, realmente exemplares. Nunca dei piparotes nas pessoas que n�o conhe�o, n�o limpo a m�o � parede, n�o vou bugiar, que � of�cio feio, e ando sempre com tal cautela, que n�o piso os calos aos vizinhos. Tiro o chap�u, como fiz agora ao leitor; e dei-lhe os bons dias do costume. Creio que n�o se pode exigir mais. Agora, o leitor que diga alguma coisa, se est� para isso, ou n�o diga nada, e boas noites.

16 de junho

Bons dias!

Recebi um requerimento, que me apresso em publicar com o despacho que lhe dei:

Aos p�s de V Exa. vai o abaixo assinado pedir a coisa mais justa do mundo.

Rogo me preste aten��o por alguns instantes; n�o quero tomar o precioso tempo de V Exa..

N�o ignora V. Exa. que, desde que nasci, nunca me furtei ao trabalho. Nem quero saber quem me chama, se � pessoa id�nea ou n�o; uma vez chamado, corro ao servi�o. Tamb�m n�o indago do servi�o; pode ser pol�tico, liter�rio, filos�fico, industrial, comercial, rural, seja o que for, uma vez que � servi�o, l� estou. Trato com ministros e amanuenses, com bispos e sacrist�es sem a menor desigualdade. Cheguei at� (e digo isto para mostrar atestados de tal ou qual valor que tenho), cheguei a fazer aposentar alguns colegas, que, antes de mim, distribu�am o trabalho entre si, distinguindo-se um, outro sobressaindo, outro pondo em relevo alguma qualidade particular. N�o digo que houvesse injusti�a na aposentadoria: estavam cansados, esta � a verdade. E para a gente de minha classe a fadiga estrompa e at� mata.

Ficando eu com o servi�o de todos, naturalmente tinha muito a que acudir, e repito a V. EXa. que nunca faltei ao dever. N�o tenho presun��o de bonito, mas sou �til, ajusto-me �s circunst�ncias e sei explicar as id�ias.

N�o � trabalho, mas o excesso de trabalho que me tem cansado um pouco, e receio muito que me aconte�a o que se deu com os outros. Isto de se fiar uma pessoa no carinho alheio, na generalidade dos afetos, � erro grave. Quando menos espera, l� se vai tudo; chega alguma pessoa nova e (deixe V. Exa. l� falar o Jo�o) ambas as m�os da experi�ncia n�o valem um dedinho s� da juventude.

Mas vamos ao pedido. O que eu impetro da bondade de V. Exa. (se est� na sua al�ada) � uma licen�a por dois meses, ainda que seja sem ordenado; mas com ordenado seria melhor, porque h� despesas a que acudir, a fim de ir �s �guas de Caxambu. Seria melhor, mas n�o fa�o quest�o disso; o que me importa � a licen�a, s� por dois meses; no fim deles ver� que volto robusto e disposto para tudo e mais alguma coisa.

Pe�o pouco, apenas um pouco de descanso. Deus, feito o mundo, descansou no s�timo dia. Pode ser que n�o fosse por fadiga, mas para ver n�o era melhor converter a sua obra ao caos; em todo o caso a Escritura fala de descanso, e � o que me serve. Se o Supremo Criador n�o pode trabalhar, sem repousar um dia depois de seis, quanto mais este criado de V. Exa.?

N�o faltar� quem conclua (mas n�o ser� o grande esp�rito de V. Exa.) que, se eu algum direito tenho a uma licen�a, maiores e infinitos t�m outros colegas, cujo trabalho � constante, ininterrupto e secular. H� aqui um sofisma que se destr�i facilmente. Nem eu sou da classe da maior parte de tais companheiros, verdadeira plebe, para quem uma lei de Treze de Maio seria a morte da lavoura (do pensamento); nem os da minha categoria t�m a minha idade, e, de mais a mais, revezam-se a mi�do, ao passo que eu suo e tressuo sem respirar.

Contando receber merc�, subscrevo-me, com elevada considera��o, de V. Exa. admirador e obrigado verbo Salientar.�

O despacho foi este:

Conquanto o suplicante n�o junte documentos do que alega, �, todavia, de notoriedade p�blica o seu zelo e prontid�o em bem-servir a todos. A licen�a, por�m, s� lhe pode ser concedida por um m�s, embora com ordenado, porque, trabalhando as C�maras Legislativas, mais que nunca � necess�ria a presen�a do suplicante, cujo car�ter e atividade, leg�tima proced�ncia e brilhante futuro folgo em reconhecer e fazer p�blicos. Se tem trabalhado muito, � preciso dizer, por outro lado, que o trabalho � a lei da vida e que sem ele o suplicante n�o teria hoje a posi��o culminante que alcan�ou e na qual espero que se conservar� honrosamente por longos anos, como todos havemos mister. Lavre-se portaria, dispensados os emolumentos.

Boas noites.

26 de junho

Bons dias!

Eu, se tivesse cr�dito na pra�a, pedia emprestados a casamento uns vinte contos de r�is, e ia comprar libertos. Comprar libertos n�o � express�o clara; por isso continuo.

Conhece o leitor um livro do c�lebre G�gol, romancista russo, intitulado Almas Mortas? Suponhamos que n�o conhece, que � para eu poder expor a semente da minha id�ia. L� vai em duas palavras.

Chamam-se almas os camp�nios que lavram as terras de um propriet�rio, e pelos quais, conforme o n�mero, paga este uma taxa ao Estado. No intervalo do lan�amento do imposto, morrem alguns camp�nios e nascem outros. Quando h� d�ficit, como o propriet�rio tem de pagar o n�mero registrado, primeiro que se fa�a outro recenseamento, chamam-se almas mortas os camp�nios que faltam.

Tchitchikof, um espertalh�o da minha marca, ou talvez maior, lembra-se de comprar as almas mortas de v�rios propriet�rios. Bom neg�cio para os propriet�rios, que vendiam defuntos ou simples nomes, por dez-r�is de mel coado. Tchitchikof, logo que arranjou umas mil almas mortas, registrou-as como vivas; pegou dos t�tulos do registro, e foi ter a um Monte de Socorro, que, � vista dos pap�is legais, adiantou ao suposto propriet�rio uns 200.000 rublos; Tchitchikof meteu-os na mala e fugiu para onde a pol�cia russa o n�o pudesse alcan�ar.

Creio que entenderam; vejam agora o meu plano, que � t�o fino como esse, e muito mais honesto. Sabem que a honestidade � como a chita; h� de todo o pre�o, desde meia pataca.

Suponha o leitor que possu�a duzentos escravos no dia 12 de maio, e que os perdeu com a Lei de 13 de Maio. Chegava eu ao seu estabelecimento, e perguntava-lhe:

� Os seus libertos ficaram todos?

� Metade s�; ficaram cem. Os outros cem dispersaram-se; consta-me que andam por Santo Ant�nio de P�dua.

� Quer o senhor vender-mos?

Espanto do leitor; eu, explicando:

� Vender-mos todos, tanto os que ficaram, como os que fugiram.

O leitor assombrado:

� Mas, senhor, que interesse pode ter o senhor...

� N�o lhe importe isso. Vende-mos?

� Libertos n�o se vendem.

� � verdade, mas a escritura de venda ter� a data de 29 de abril; nesse caso, n�o foi o senhor que perdeu os escravos, fui eu. Os pre�o marcados na escritura ser�o os da tabela da lei de 1885; mas eu realmente n�o dou mais de dez mil-r�is por cada um.

Calcula o leitor:

� Duzentas cabe�as a dez mil-r�is s�o dois contos. Dois contos por sujeitos que n�o valem nada, porque j� est�o livres, � um bom neg�cio.

Depois refletindo:

� Mas, perd�o, o senhor leva-os consigo?

� N�o, senhor: ficam trabalhando para o senhor; eu s� levo escritura.

� Que sal�rio pede por eles?

� Nenhum, pela minha parte, ficam trabalhando de gra�a. O senhor pagar-lhes-� o que j� paga.

Naturalmente, o leitor, � for�a de n�o entender, aceitava o neg�cio. Eu ia a outro, depois a outro, depois a outro, at� arranjar quinhentos libertos, que � at� onde podiam ir os cinco contos emprestados; recolhia-me � casa, e ficava esperando.

Esperando o qu�? Esperando a indeniza��o, com todos os diabos! Quinhentos libertos, a trezentos mil-r�is, termo m�dio, eram cento e cinq�enta contos; lucro certo: cento e quarenta e cinco.

Porquanto, isto de indeniza��o, dizem uns que pode ser que sim, outros que pode ser que n�o: � por isso que eu pedia o dinheiro casamento. Dado que sim, paga e casava (com a leitora, por exemplo); dado que n�o, ficava solteiro e n�o perdia nada, porque o dinheiro era de outro. Confessem que era um bom neg�cio.

Eu at� desconfio que h� j� quem fa�a isto mesmo, com a diferen�a de ficar com os libertos. Sabem que no tempo da escravid�o, os escravos eram anunciados com muitos qualificativos honrosos, perfeito cozinheiros, �timos copeiros, etc. Era, com outra fazenda, o mesmo que fazem os vendedores, em geral: superiores morins, lindas chitas, soberbos cretones. Se os cretones, as chitas e os escravos se anunciassem, n�o poderiam fazer essa justi�a a si mesmos.

Ora, li ontem um an�ncio em que se oferece a aluguel, n�o me lembra em que rua, � creio que na do Senhor dos Passos, � uma insigne engomadeira. Se � falta de mod�stia, eis a� um dos tristes frutos da liberdade; mas se � algum sujeito que j� se me antecipou...

Larga Tchitchikof de meia tigela! Ou ent�o vamos fazer o neg�cio a meias.

Boas noites.

19 de junho

Bons dias!

N�o gosto de ver censuras injustas. H� dias, um eminente senador disse que a C�mara dos Deputados era a C�mara de dois domingos, e disse a verdade, porque ali um s�bado e um domingo s�o a mesma coisa. N�o a censurou por isso, entretanto, mas por adiar para o s�bado os requerimentos, isto �, mandar-lhes o la�o de seda com que eles se enforquem logo.

Sejamos justos. A C�mara, n�o fazendo sess�o aos s�bados, obedece a um alto fim pol�tico: � imitar a C�mara dos Comuns ingleses, que nesse dia tamb�m repousa. Deste modo, aproxima-nos da Inglaterra, ber�o das liberdades parlamentares, como dizia um mestre que tive e que me ensinou as poucas id�ias com que vou acudindo as mis�rias da vida. Dele � que herdei a espada rutilante da justi�a, � o timeos Danaos, � o devolvo-lhe intacta a inj�ria, e outros vint�ns mais ou menos magros.

Dir-me-�o que os comuns ingleses descansam no s�bado, porque ficam estafados das sess�es de oito, nove e dez horas, que � o tempo que elas duram nos demais dias.

� verdade; mas cumpre observar que os comuns come�am a trabalhar de tarde e v�o pela noite dentro, depois de terem gasto a primeira parte do dia nos seus pr�prios neg�cios. Deste modo est�o livres e prontos para ir at� a madrugada, se preciso for. Trabalham com a fresca, despreocupados, tranq�ilos. N�o acontece o mesmo conosco. As nossas sess�es parlamentares come�am ao meio-dia, hora de calor, sem dar tempo a fazer alguma coisa particular; e depois o clima � diferente. Nem j� agora � poss�vel tornar aos s�bados. O Sr. Bar�o de Cotegipe disse que desde 1826 dormem projetos de lei nas pastas das comiss�es do Senado; com os requerimentos da C�mara deve acontecer a mesma coisa, mas suponhamos que s� come�am em 1876...

Censuras n�o faltam. J� ouvi censurar um dos nossos costumes parlamentares, que justamente mais me comovem; refiro-me ao de levantar a sess�o, quando morre algum dos membros da casa. A not�cia � dada por um deputado ou senador, que faz um discurso, pondo em relevo as qualidades do finado. �s vezes o defunto n�o prestou ao Estado o menor servi�o; n�o importa, essa � justamente a beleza do sistema democr�tico e de igualdade que deve reger, mais que todos os corpos legislativos. Para o Parlamento, como para a morte, como para a Constitui��o, todos s�o legisladores, todos merecem igual cortesia e piedade.

Os censuradores alegam que este uso n�o existe em parte nenhuma, fora daqui. O argumento Aquiles (como me diria o citado mestre) � que, tendo sido as C�maras inventadas para tratar dos neg�cios p�blicos, a morte de um de seus membros deve pesar menos, muito menos, que o dever social. Da� o discurso em que o presidente deve noticiar a morte, com palavras de saudade, e passar � ordem do dia.

Os preconizadores de h�bitos peregrinos chegam a citar o que agora mesmo se deu no Parlamento de Inglaterra, quando chegou a not�cia da morte do genro da rainha, que n�o era membro da C�mara dos Lords, mas podia s�-lo, se n�o fosse Imperador da Alemanha. A not�cia foi comunicada a ambas as C�maras por um ministro; respondeu-lhe o leader da oposi��o, e continuaram os trabalhos, durando os da C�mara at� �s duas da madrugada.

Mas quem n�o v� que nem o exemplo nem o argumento servem ao nosso caso?

Quanto ao exemplo, basta considerar que, posto que o Imperador fosse um digno e grande homem, n�o era membro ele de nenhuma das casas. Fizeram-se mensagens � Rainha e � Imperatriz.

Al�m disso, pode ser que, realmente, nesse dia houvesse neg�cios urgentes. Digo isto, porque o discurso do ministro na C�mara dos Lords, respeitoso e grave, ocupa apenas doze linhas no Times, e o da oposi��o onze. Na dos Comuns, o do ministro tem nove linhas, o da oposi��o oito. Cabe ainda notar que ningu�m mais falou. Finalmente, dali em diante proferiram-se na C�mara dos Comuns, sobre diversos projetos, mais de cinq�enta discursos.

Quanto ao argumento, n�o h� nada mais falho. � certo que as C�maras foram criadas para curar principalmente dos neg�cios p�blicos; mas onde � que constitui��es escritas revogaram leis do cora��o humano? Podem transtorn�-las, � certo, como na dura Inglaterra, na Fran�a inquieta, na It�lia ambiciosa; mas, tais s�o as nossas condi��es. Demais, a venera��o dos mortos cimenta a amizade dos vivos.

Ponhamo-nos de acordo. Se a C�mara n�o faz sess�o aos s�bados, para acompanhar a dos Comuns, aqui-del-rei. Se n�o acompanha a dos Comuns, e se vai embora, sempre que morre algum membro, ter� igual censura. Ponhamo-nos de acordo.

Boas noites.

19 de julho

Bons dias!

Quem me n�o fez bei de Tunes cometeu um desses erros imperdo�veis, que bradam aos c�us.

Suponhamos por um instante que eu era bei de Tunes. Antes de mais nada, tinha prazer de viver em Tunes, que � um dos mais desenfreados desejos. Depois, n�o entendia nada do que me dissessem, nem os outros me entendiam, e para estabelecer rela��es cordiais, n�o h� melhor caminho. O Sr. Von Stein fez-se amigo dos �ndios do Xingu, recitando versos de Goethe.

N�o perderia o gosto c� do Rio, porque levaria naturalmente assinaturas de jornais; leria tudo, a quest�o da revista c�vel n.� 10.893, o imortal processo da B�blia, os debates do Parlamento, os manifestos pol�ticos, etc. Quando alguma coisa me parecesse dita ou escrita em dialeto barbaresco, teria o meu col�gio de int�rpretes, que me explicaria tudo.

N�o indo mais longe, acabo de ler no discurso do Sr. Senador Le�o Veloso uma frase, que, se eu estivesse em Tunes, n�o lhe perderia o sentido. S. Exa. declarou que a vitaliciedade do cargo n�o o segregou daqueles que o elegeram. Ora, os que o elegeram v�o morrendo e h�o de ir morrer todos, como j� devem ter morrido os que elegeram o Sr. Visconde do Serro Frio. Como � que n�o h� segrega��o? H� e � uma das vantagens da institui��o. Se em 1871 os Srs. Silveira Martins e Bar�o de Mau� fossem vital�cios, n�o haveria o recurso aos eleitores, que p�s o Sr. Mau� fora da C�mara. Quando o primeiro desafiasse o segundo a irem pleitear ante os eleitores liberais o procedimento de ambos, responderia o Sr. Mau�:

� Mas, meu caro colega, os meus eleitores est�o mortos. H� dois dias vivia o Bandeira, de Pelotas; pois morreu, aqui est� o telegrama, que recebi agora mesmo da fam�lia. Sabe que somos velhos conhecidos...

Entretanto, aquela frase, que em portugu�s d� este resultado, talvez possa ser explicada pelo ar�bico; mas eu n�o sou bei de Tunes.

Outras muitas coisas me explicar� o col�gio de int�rpretes. N�o as digo todas; mas aqui vai mais uma.

Os espiritistas brasileiros acabam de dar um golpe de mestre. Apareceu por aqui um m�dium, Dr. Slade � o seu nome, com a fama de ser prodigioso. A Federa��o Esp�rita Brasileira nomeou uma comiss�o para estudar os fen�menos de escritura direta sobre ard�sias e outros efeitos f�sicos produzidos com o m�dium. Pois, senhores, n�o achou que o homem valesse a fama; declarou que os trabalhos ficaram muito abaixo do que esse mesmo m�dium conseguiu na Inglaterra, Fran�a, Alemanha, Estados Unidos e Austr�lia. � verdade que a pr�pria Federa��o explica a diferen�a. �Todos os que estudam os fen�menos esp�ritas (diz ela) conhecem que as mediunidades est�o sujeitas a esses eclipses.� E noutro lugar: �Sabem todos que os invis�veis n�o est�o servilmente � nossa disposi��o.�

Ora tudo isto, que parece algaravia, sendo lido por um esp�rita, � como a l�ngua de Voltaire, pura, l�mpida, n�tida, e f�cil. �Os invis�veis n�o est�o servilmente � nossa disposi��o!� N�o falo do enriquecimento da l�ngua com a palavra mediunidade, que � nova, sem ser esbelta.

Fosse eu bei de Tunes, e o meu col�gio me explicaria tudo isso e mais isto: �Somente lamentamos que nesses eclipses da sua faculdade, o medium, sem d�vida por sugest�es malignas, busque simular os fen�menos que obt�m nas condi��es normais...�

Ao que parece, o medium n�o s� foi (com perd�o da palavra) apenas minimum, mas at� procurou emba�ar a Federa��o. N�o andou bem; e a Federa��o cumpriu o seu dever desvendando as sugest�es malignas. Nem pare�a que isto mesmo foi sugest�o de despeito; a Federa��o conclui francamente aquele per�odo: �...fato aqui plenamente verificado.�

Valha-me Nossa Senhora! Que por��o de coisas obscuras, que eu nunca hei de entender! E da�, quem sabe? Schopenhauer chegou a crer nas mesas que giram; h� quem acredite no casamento da constitui��o americana com o sistema parlamentar. N�o � muito acreditar nos motivos do eclipse do Dr. Slade, mesmo sem entend�-los... Ah! por que n�o me fazem bei de Tunes!

Boas noites.

29 de julho

Bons dias!

Antes de mais nada deixem-me dar um abra�o no Lu�s Murat, que acaba de n�o ser eleito deputado pelo 12� distrito do Rio de Janeiro. Eu j� tinha escovado a casaca e o estilo para o enterro do poeta e o competente necrol�gio; ningu�m est� livre de uma vit�ria eleitoral. Escovei-os e esperei as not�cias.

Vieram elas, e n�o lhe digo nada: dei um salto de prazer. Cheguei � janela; vi que as rosas, � umas grandes rosas encarnadas que Deus me deu, � vi que estavam alegres e at� dan�avam; a m�sica era um bater de asas de p�ssaros brancos e azuis, que apareceram ali vindos n�o sei donde, nem como.

Sei que eram grandes, que batiam as asas, que as rosas bailavam e que as demais plantas pareciam exalar os melhores cheiros. Umas vozes surdas diziam rindo: Murat, derrotado. Murat, derrotado.

E que bonita derrota, Deus de miseric�rdia! Podia perder a elei��o por vinte ou trinta votos; seria ent�o um meio desastre, porque abria novas e fundadas esperan�as. Mas, n�o, senhor, a derrota foi completa; nem cinq�enta votos. Por outros termos, � um homem liberto; teve a sua Lei de 13 de Maio: �Art. 1�. Lu�s Murat continuar� a compor versos. Art. 2�. Ficam revogadas as disposi��es em contr�rio�.

N�o � que seja mau ter um lugar na C�mara. Tomara eu l� estar. N�o posso; n�o entram ali relojoeiros. Poetas entram, com a condi��o de deixar a poesia. Votar ou poetar. Vota-se em prosa, qualquer que seja, prosa simples, ruim prosa, boa prosa, bela prosa, magn�fica prosa, e at� sem prosa nenhuma, como o Sr. Dias Carneiro, para citar um nome. Os versos, quem os fez, distribui-os pelos parentes e amigos e faz uma cruz �s musas. Alencar (e era dos audazes) tinha um drama no prelo, quando foi nomeado ministro. Come�ou mandando suspender a publica��o; depois f�-lo publicar sem nome de autor. E note-se que o drama era em prosa...

Suponhamos que Lu�s Murat sa�a eleito, e que seu rival, o Augusto Teixeira, � que ficava com os quarenta votos. Com certeza, os versos de Murat n�o passavam a ser feitos pelo Teixeira; e era talvez, uma vantagem. Em todo caso, fic�vamos sem eles. Onde est�o os do Dr. Afonso Celso? Jos� Bonif�cio, se os fazia, enterrava-os na ch�cara... Podia citar outros, mas n�o quero que a C�mara brigue comigo.

V� l� abra�o, e adeus. Agora � arrazoar de dia no escrit�rio de advogado, e versejar de noite. N�o fazem mal as musas aos doutores, disse um poeta; podem faz�-lo aos deputados.

Antes de mais nada, disse eu a princ�pio; mas francamente n�o vi se tinha mais alguma coisa que dizer. Prefiro calar-me, n�o sem comunicar aos leitores uma not�cia de algum interesse.

Os leitores pensam com raz�o que s�o apenas filhos de Deus, pessoas, indiv�duos, meus irm�os (nas pr�dicas), almas (nas estat�sticas), membros (nas sociedades), pra�as (no ex�rcito), e nada mais. Pois s�o ainda uma certa coisa, � uma coisa nova, metaf�rica, original.

Ontem, indo eu no meu bonde das tantas horas da tarde para (n�o digo o lugar), ao entrarmos no Largo da Carioca, costeamos outro bonde, que ia enfiar pela Rua de Gon�alves Dias. O condutor do meu bonde falou ao do outro para dizer que na viagem que fizera da esta��o do Largo do Machado at� a cidade, trouxe um s� passageiro. Mas n�o contou assim, como a� fica; contou por estas palavras: �Que te dizia eu? Fiz uma viagem � toa; apenas pude apanhar um carapicu...�

A� est� o que � o leitor: um carapicu este seu criado; carapicus os nossos amigos e inimigos. Aposto que n�o sabia desta? Carapicu... Como met�fora, � bonita; e podia ser pior.

Boas noites.

16 de setembro

Bons dias!

Venho de um espet�culo longo, em parte interessante, em parte aborrecido, organizado em benef�cio do incidente Manso.

Come�ou por uma com�dia de Musset: Il faut qu�une port soit ouverte ou ferm�e. N�o confundam com o drama de grande espet�culo Fechamento das Portas, representado h� dias no Liceu com alguma aceita��o. N�o: a pe�a de Musset � um atozinho gracioso e l�mpido. Trata-se de um conde, que vai visitar uma marquesa, e n�o acaba de sair nem de ficar, at� que a dama conclui por lhe dar a m�o de esposa. Clara alus�o ao incidente Manso.

No dia seguinte, tivemos um drama extenso e complicado, cujos atos contei enquanto me restaram dedos; mas primeiro acabaram-se-me os dedos que os atos. Cuido que n�o passariam de vinte, talvez dezenove. Boa composi��o, lances novos, cenas de efeito, di�logos bem travados. Um dos pap�is, escrito em portugu�s e latim, produziu enorme sensa��o pelo inesperado. Dizem que a inova��o vai ser empregada c� fora, por alguns autores dram�ticos, cansados de escrever em uma s� l�ngua, e, �s vezes, em meia l�ngua. Os mon�logos, os di�logos, que eram viv�ssimos, e os coros foram, se assim se pode dizer de obra humana, irrepreens�veis.

Essa pe�a, come�ada no segundo dia, durou at� o terceiro, porque o espet�culo, para em tudo ser interessante, imitou esse uso das representa��es japonesas, que n�o se contentam com quatro ou cinco horas. N�o bastando o drama, deram-nos ainda uma com�dia de Shakespeare, As you like it, � ou, como dir�amos em portugu�s, Como aprouver a Vossa Excel�ncia. Posto que inteiramente desconhecida do p�blico, pareceu agradar bastante. Dois outros espectadores aplaudiram por engano umas cenas, em vez de outras; mas a culpa foi dos amadores, que n�o pronunciaram bem o ingl�s.

Como acontece sempre, algumas pessoas, para se mostrarem sabidas dos teatros estrangeiros, disseram que era prefer�vel dar outra com�dia do grande ingl�s: Muito Barulho Para Nada. Mas esta opini�o n�o encontrou adeptos.

Pela minha parte, achei o defeito da extens�o. Espet�culos daqueles n�o devem ir al�m de duas ou tr�s horas. Verdade � que, sendo numerosos os amadores, todos quereriam algum papel, e para isso n�o bastava esse ato de Musset. Bem; mas para isso mesmo tenho eu o rem�dio, se me consultassem.

O rem�dio era o fon�grafo, com os aperfei�oamentos �ltimos que lhe deu o famoso Edison. Fez-se agora a experi�ncia em Londres, onde por meio do aparelho se ouviram palavras, cantigas e risadas do pr�prio Edison, como se ele ali estivesse ao p�. Um dos jornais daquela cidade escreve que o fon�grafo, tal qual est� agora aperfei�oado, � instrumento de dura��o quase ilimitada. Pode conservar tudo. Justamente o nosso caso.

Acabada a representa��o, em pouco tempo, segundo convinha � urg�ncia e gravidade do assunto e do momento, se ainda houvesse amadores que quisessem um papel qualquer, grande ou pequeno, o diretor faria distribuir fon�grafos, onde cada um daquele depositaria as suas id�ias; podiam ajustar-se tr�s ou quatro para os di�logos.

A reprodu��o de todas as palavras ali recolhidas podia ser feita, n�o � vontade do autor, mas vinte e cinco anos depois. Ficavam s� as belezas do discurso; desapareciam os inconvenientes.

E, reparando bem, est� aqui o rem�dio a um dos males que afligem o reg�men parlamentar: o abuso da palavra. N�o � f�cil, mas � poss�vel. Basta fazer uma escolha de oradores, um grupo para cada neg�cio, por ordem; os restantes confiariam ao fon�grafo os discursos que a gera��o futura escutaria.

No ano de 1913, por exemplo, abriam-se os fon�grafos, com as formalidades necess�rias, e os nossos filhos ouviriam a pr�pria voz de algum orador atual discutir o or�amento da receita geral do Imp�rio: ...�E, perguntei ao nobre ministro, sabe que faleceu o tabeli�o de Ubatuba? Esse homem padecia de uma afec��o card�aca, mas ia vivendo; tinha mulher e quatro filhos, � o mais velho dos quais n�o passava de sete anos. Note S. Exa. que o tabeli�o nem era filho da prov�ncia; nasceu em Cimbres, e de uma fam�lia respeit�vel; um dos irm�os foi capit�o do 7� regimento de cavalaria, e esteve em Itoror�; a sua f� de of�cio � das mais honrosas que conhe�o; l�-las-� daqui a pouco; mas, como dizia, o tabeli�o de Ubatuba ia vivendo, com a sua afec��o card�aca e dois dedos de menos, circunst�ncia esta que lhe tornava ainda mais penoso escrever, mas � qual se acomodava pela necessidade. A perda de dois dedos originou-se de um fato dom�stico, com o qual nada tem esta C�mara, posto que, ainda a� se possa ver um exemplo, n�o direi raro, mas precioso, das virtudes daquele homem. Chovia, uma das cunhadas do tabeli�o... Mas eu pretiro chegar ao caso principal, a entrada do alferes Tobias. Senhores, este alferes...�

E deste modo, discursos que hoje n�o se l�em, chegariam � posteridade com a frescura da pr�pria cor do orador. Os jornais do tempo os reproduziriam, os sociologistas viriam l�-los e analis�-los, e assim os ling�istas, os cronistas, e outros estudiosos, com vantagem para todos, come�ando talvez por n�s, � ingratos!

Boas noites.

28 de outubro

Bons dias!

Viva a galinha com a sua pevide. Vamos n�s vivendo com a nossa pol�cia. N�o ser� superior, mas tamb�m n�o � inferior � pol�cia de Londres, que ainda n�o p�de descobrir o assassino e estripador de mulheres. E dizem que � a primeira do universo. O assassino, para maior ludibrio da autoridade, mandou-lhe cart�es pelo correio.

Eu, desde algum tempo, ando com vontade de propor que aposentemos a Inglaterra... Digo, aposent�-la nos nossos discursos e cita��es. Neste particular, tivemos a princ�pio a mania francesa e revolucion�ria; folheiem os Anais da Constituinte, e ver�o. Mais tarde ficou a Fran�a constitucional e a Inglaterra: os nomes de Pitt, Russel, Canning, Bolingbrook, mais ou menos intactos, ca�ram da tribuna parlamentar. E frases e m�ximas! At� 1879, ouvi proclamar cento e dezenove vezes este aforismo ingl�s: �A C�mara dos Comuns pode tudo, menos fazer de um homem uma mulher, ou vice-versa�.

�Justamente o que a nossa C�mara faz, quando quer�, dizia eu comigo.

Pois bem, aposentemos agora a Inglaterra; adotemos a It�lia. Basta advertir que, h� pouco tempo, l� estiveram (ou ainda est�o) vinte e tantos deputados metidos em enxovia, s� por serem irlandeses. Nenhum dos nossos deputados � irland�s; mas se algum vier a s�-lo, juro que ser� mais bem tratado. E, comparando tanta pol�cia para pegar deputados com t�o pouca para descobrir um estripador de mulheres, folgaz�o e cient�fico, a conclus�o n�o pode ser sen�o a do come�o: � Viva a galinha com a sua pevide...

Aqui interrompe-me o leitor: � J� vejo que � nativista! E eu respondo que n�o sei bem o que sou. O mesmo me disseram anteontem, falando-se do projeto do meu ilustre amigo senador Taunay. Como eu dissesse que n�o aceitava o projeto, integralmente, algu�m tentou persuadir-me que eu era nativista. Ao que respondi:

� N�o sei bem o que sou. Se nativista � algum bicho feio, paci�ncia; mas, se quer dizer exclusivista, n�o � comigo.

N�o se pode negar que o Sr. Senador Taunay tem o seu lugar marcado no movimento imigracionista, e lugar iminente; trabalha, fala, escreve, dedica-se de cora��o, fundou uma sociedade, e luta por algumas grandes reformas.

Entretanto, a gente pode admir�-lo e estim�-lo, sem achar que este �ltimo projeto seja inteiramente bom. Uma coisa boa que l� est�, � a grande naturaliza��o. N�o sei se ando certo, atribuindo �quela palavra o direito do naturalizado a todos os cargos p�blicos. Pois, senhor, acho acertado. Com efeito, se o homem � brasileiro e apto, por que n�o ser� para tudo aquilo que podem ser outros brasileiros aptos? Quem n�o concordar� comigo (para s� falar de mortos), que � muito melhor ter como regente, por ser ministro do Imp�rio, um Guizot ou um Palmerston, do que um ex-ministro (Deus lhe fale na alma!) que n�o tinha este olho?

Mas o projeto traz outras coisas que bolem comigo, e at� uma que bole com o pr�prio autor. Este faz propaganda contra os chins; mas, n�o havendo meio legal de impedir que eles entrem no Imp�rio, aqui temos n�s os chins, em vez de instrumentos de trabalho, constitu�dos em milhares de cidad�os brasileiros, no fim de dois anos, ou at� de um. Exclu�-los da lei � imposs�vel. A� fica uma conseq��ncia desagrad�vel para o meu ilustre amigo.

Outra conseq��ncia. O digno Senador Taunay deseja a imigra��o em larga escala. Perfeitamente. Mas, se o imigrante souber que, ao cabo de dois anos, e em certos casos ao fim de um, fica brasileiro � for�a, h� de refletir um pouco e pode n�o vir. No momento de deixar a p�tria, ningu�m pensa em troc�-la por outra; todos saem para arranjar a vida.

Em suma, � e � o principal defeito que lhe acho, � este projeto afirma de um modo estupendo a onipot�ncia do Estado. Escancarar as portas, sorrindo, para que o estranho entre, � bom e necess�rio; mas mand�-lo pegar por dois sujeitos, met�-lo a for�a dentro de casa, para almo�ar, n�o podendo ele recusar a fineza, sen�o jurando que tem outro almo�o � sua espera, n�o � coisa que se pare�a com liberdade individual.

Bem sei que ele tem aqui um modo de continuar estrangeiro: � correr, no fim do prazo, ao seu consulado ou � C�mara Municipal, declarar que n�o quer ser brasileiro, e receber um atestado disso. Mas, para que complicar a vida de milhares de pessoas que trabalham, com semelhante formalidade? Al�m do aborrecimento, h� vexame: � vexame para eles e para n�s, se o n�mero dos recusantes for excessivo. Haver� tamb�m um certo n�mero de brasileiros por descuido, por se terem esquecido de ir a tempo cumprir a obriga��o legal. Esses n�o ter�o grande amor � terra que os n�o viu nascer. L� diz S�o Paulo, que n�o � circuncis�o a que se faz exteriormente na carne, mas a que se faz no cora��o.

O Sr. Taunay j� declarou em brilhante discurso, que o projeto � absolutamente original. Ainda que o n�o fosse, e que o princ�pio existisse em outra legisla��o, era a mesma coisa. O Estado n�o nasceu no Brasil; nem � aqui que ele adquiriu o gosto de regular a vida toda. A velha rep�blica de Esparta, como o ilustre senador sabe, legislou at� sobre o penteado das mulheres; e dizem que em Rodes era vedado por lei trazer a barba feita. Se vamos agora dizer a italianos e alem�es, que, no fim de um ou dois anos, n�o s�o mais alem�es nem italianos, ou s� poder�o s�-lo com declara��o escrita e passaporte no bolso, parece-me isto muito pior que a legisla��o de Rodes.

Desagravar a naturaliza��o, facilit�-la e honr�-la, e, mais que tudo, tornar atraente o pa�s por meio de boa legisla��o, reformas largas liberdades efetivas, eis a� como eu come�aria o meu discurso no Senado, se os eleitores do Imp�rio acabassem de crer que os meus quarenta anos j� l� v�o, e me inclu�ssem em todas as listas tr�plices. Era assim que eu come�aria o discurso. Como acabaria, n�o sei; talvez nos bra�os do meu ilustre amigo.

Boas noites.

10 de novembro

Bons dias!

H� anos, por ocasi�o do movimento Ester de Carvalho, aquela boa atriz que aqui morreu, lembra-me haver lido nos jornais um pequenino artigo an�nimo. Nem se lhe podia chamar artigo; era uma pergunta nua e seca. O numeroso partido da atriz estava em a��o; havia palmas, flores, versos, longas e brilhantes manifesta��es p�blicas. E ent�o dizia a pergunta an�nima: �Por que n�o aproveitaremos este movimento Ester de Carvalho para ver se alcan�amos o fechamento das portas?�

A pergunta tinha um ar esquisito, � primeira vista: mas, era a mais natural do mundo. Entretanto n�o se fez nada por dois motivos, um f�cil de entender, que era a absor��o do pensamento em um s� assunto. A alma n�o se divide. A quest�o do fechamento das portas era exclusiva, pedia as energias todas, inteiras, constantes, lutando dia por dia.

A segunda raz�o � que h� anos e h� s�culos de revolu��es e transforma��es. Para o caso de que se trata n�o era preciso o s�culo, mas o ano era indispens�vel. Entre a vinda de Jesus e a morte de C�sar h� pouco mais de quarenta anos: e a Revolu��o Francesa chegou � Bastilha depois de feita nos livros e iniciada nas prov�ncias, desde os albores do s�culo XVIII.

Aqui o caso era de um ano, mesmo que viu a extin��o da escravid�o. Todas as liberdades s�o irm�s; parece que, quando uma d� rebate, as outras acodem logo.

A� temos explicado o movimento atual, que, em boa hora, vai sendo praticado em paz e harmonia. Note-se bem que o movimento outrora tinha um car�ter meio duvidoso; pedia-se o fechamento das portas aos domingos. O domingo, s� por si, sem mais nada, � um dia protestante; e o movimento, limitando o descanso a esse dia, como que parecia inclinar � Igreja inglesa. Da� a frieza do clero cat�lico. Agora, por�m, a plataforma (se me � l�cito dizer uma palavra que pouca gente entende) abrange os domingos e dias santos. Deste modo n�o se pede s� o dia do Senhor, mas esse e os mais que o rito cat�lico estabelece em honra dos grandes m�rtires ou her�is da f�, e dos fastos da Igreja desde os primitivos tempos.

Seguramente, h� maior n�mero de dias vagos, mas o trabalho dos outros compensar� os perdidos; por esse lado, n�o vejo perigo. Pode dar-se tamb�m que a defini��o das f�rias se estenda um pouco mais, pelo tempo adiante. Por exemplo, o dia 2 de novembro � feriado ou n�o? Vimos este ano duas opini�es opostas, a do Senado e a da C�mara. O Senado declarou que era, e n�o deu ordem do dia; a C�mara entendeu que n�o era, e deu ordem do dia. Foi o mesmo que se n�o desse, � verdade, porque l� n�o apareceu ningu�m; mas a opini�o ficou assentada. O Senado comemora os defuntos, a C�mara n�o. Talvez a C�mara n�o deseje lembrar o pr�ximo fim dos seus dias. O Senado, embalsamado pela vitaliciedade, pode entrar sem susto nos cemit�rios. N�o � a lei que o h� de matar.

Pois bem, ainda nesses casos o acordo � poss�vel entre caixeiros e patr�es; fechem-se as portas ao meio-dia. Os patr�es e os rapazes ir�o de tarde aos cemit�rios.

Noto, e por honra de todos, que n�o tem havido dist�rbios nem viol�ncias. H� dias, � certo, um grupo protestou contra uma casa do Largo de S�o Francisco de Paula, que estava aberta; mas quem mandou fechar as portas da casa n�o foi o grupo, foi o subdelegado. Tem havido muita prud�ncia e raz�o. O pr�prio ato do subdelegado, olhando-se bem para ele foi bem feito. J� l� dissera Musset estas palavras: Il faut qu'une porte soit ouverte ou ferm�e. N�o podendo estar abertas as da loja de grinaldas, foi muito melhor fech�-las. �� assim que eu gosto dos m�dicos especulativos� dizia um personagem de Ant�nio Jos�.

N�o sei se tenho mais alguma coisa que dizer. Creio que n�o. A quest�o chinesa est� absolutamente esgotada; t�o esgotada que, tendo eu anunciado por circular manuscrita, que daria um pr�mio de conto de r�is a quem me apresentasse um argumento novo, quer a favor, quer contra os chins, recebi carta de um s� concorrente, dizendo-me que ainda havia um argumento cient�fico, e era este: "A cria��o animal decresce por este modo: � o homem, o chim, o chimpanz�..." Como v�em, � apenas um calembour; e se n�o houvesse calembour no Evangelho e em Cam�es, era certo que eu quebrava a cara do autor; limitei-me a guardar o dinheiro no bolso.

Boas noites.

18 de novembro

Bons dias!

Agora acabou-se! J� se n�o pode contar um caso, meio tr�gico em casa de fam�lia, que n�o digam logo vinte vozes:

� J� sei, outra Mme. Torpille!

� Perd�o, minha senhora, eu vi o que lhe estou contando. O homem n�o tinha p�s nem cabe�a...

� Mas tinha uma cruz latina no peito.

� Isso n�o sei, pode ser. A senhora sabe se trago tamb�m alguma cruz latina ao peito? Pois saiba que sim... Olhe, a cruz latina tamb�m figurou agora na revolu��o de rapazes em Pernambuco; a diferen�a � que n�o era no peito que eles a levavam, mas �s costas. Por falar em latim, sabem que C�cero...

Aqui n�o houve mais ret�-las; todas voaram, umas para as janelas, outras para os pianos, outras para dentro; fiquei s�, peguei no chap�u e vim ter com os meus leitores, que s�o sempre os que pagam as favas.

E, prosseguindo, digo que o velho C�cero escreveu uma coisa t�o certa, que at� eu, que n�o sei latim, s� por v�-la traduzida em sueco, entendi logo o que vinha a ser, e � isto: Grata populo est tabella... Em portugu�s: "O voto secreto agrada ao povo, porque lhe d� for�a para dissimular o pensamento e olhar com firmeza para os outros".

Ora bem, este voto secreto, que me � t�o grato, quer o nosso ilustre Senador C�ndido de Oliveira arranc�-lo ao eleitor, no projeto eleitoral que apresentou ao Senado. Note-se que foi justamente por ser secreto o voto, que eu, embora conservador, votei em S. Exa. para a lista tr�plice. N�o gostei da chapa do meu partido, e disse comigo: � �N�o, senhor; voto no C�ndido, no Afonso e no Alvim�. Quando mais tarde o Cruz Machado (Visconde do Serro Frio) me falou na elei��o, declarei-lhe que ainda uma vez levara �s urnas a lista da nossa gente. Era mentira; mas para isso mesmo � que vale o voto secreto.

S. Exa. quer o voto p�blico. H� de ser escrito o nome do candidato em um livro com a assinatura do eleitor (art. 3� � 1�). Concordo que este modo d� certa hombridade e franqueza, virtudes indispens�veis. � fora de d�vida que, com o voto p�blico, o caixeiro vota no patr�o, o inquilino no dono da casa (salvo se o advers�rio lhe oferecer outra mais barata, o que � ainda uma virtude, a economia), o fiel dos feitos vota no escriv�o, os empregados banc�rios votam no gerente, e assim por diante. Tamb�m se pode votar nos advers�rios. Mas, enfim, nem todos s�o aptos para a virtude. H� muita gente capaz de falar em particular de um sujeito, e ir jantar publicamente com ele. S�o temperamentos.

Se as nossas elei��es fossem sempre impuras, v� que viesse aquela disposi��o no projeto; mas � raro que a ordem e a liberdade se n�o d�em as m�os diante das urnas. Uma elei��o entre n�s pode ser aborrecida, gra�as ao sistema de chamadas nominais, que obriga a gente a n�o arredar p� da se��o em que vota; mas s�o em geral boas. E depois, se o voto secreto j� fez algum bem neste nosso pequeno mundo, por que aboli-lo?

Bem sei tudo o que se pode de bem e de mal acerca do voto secreto. Em teoria, realmente, o p�blico � melhor. A quest�o � que n�o permite o trabalhinho oculto, e, mais que tudo, obsta a que a gente vote contra um candidato, e v� jantar com ele � tarde, por ocasi�o da filarm�nica e dos discursos.

Voto p�blico e muito p�blico � foi o que aquela linda Duquesa de Cavendish alcan�ou, estando a cabalar por um parente; parou dentro do carro � porta de um a�ougueiro e pediu-lhe o voto. O a�ougueiro, que era do partido oposto, disse-lhe brincando:

� Votarei, se Vossa Senhoria me der um beijo.

E a duquesa, como toda gente sabe, estendeu-lhe os l�bios, e ele depositou ali um beijinho, que j� agora � melhor julgar que experimentar. Neste sentido, todos somos a�ougueiros. Tais votos s�o mais que p�blicos. Complete S. Exa. o seu projeto, estabelecendo que as candidaturas s� poder�o ser trabalhadas por mulheres, amigas do candidato, devendo come�ar pelas mais bonitas, e est� abolido o voto secreto. O mais que pode acontecer, � a gente faltar a nove ou dez pessoas, se a vaga for s� uma; mas creia S. Exa. que n�o h� beijo perdido.

Tinha outra coisa que dizer acerca do projeto ou antes, que perguntar a S. Exa., mas o tempo urge.

H� uma disposi��o, por�m, que n�o posso deixar de agradecer desde j�; � a aboli��o do 2� escrut�nio, saindo deputado com os votos que tiver; maioria relativa, em suma. Tem um distrito 1.900 eleitores inscritos; comparecem apenas 104; eu obtenho 20 votos, o meu advers�rio 19, e os restantes espalham-se por diferentes nomes. Entro na C�mara nos bra�os de vinte pessoas. H� fam�lias mais numerosas, mas muito menos �teis.

Boas noites.

27 de dezembro

Bons dias!

Cuidava eu que era o mais precavido dos meus contempor�neos. A raz�o � que saio sempre de casa com o Credo na boca, e disposi��o feita de n�o contrariar as opini�es dos outros. Quem talvez me vencia nisto era o Visconde de Abaet�, de quem se conta que, nos �ltimos anos, quando algu�m lhe dizia que o achava abatido:

� Estou, tenho passado mal, respondia ele.

Mas se, vinte passos adiante, encontrava outra pessoa que se alegrava com v�-lo t�o rijo e robusto, concordava tamb�m:

� Oh! agora passo perfeitamente.

N�o se opunha �s opini�es dos outros; e ganhava com isto duas vantagens. A primeira era satisfazer a todos, a segunda era n�o perder tempo.

Pois, senhores, nem o ilustre brasileiro, nem este criado do leitor, �ramos os mais precavidos dos homens. H� dias, a gente que sa�a de uma confer�ncia republicana, foi atacada por alguns indiv�duos; naturalmente houve tumulto, pancadas, pedradas, ferimentos, recorrendo os atacados aos apitos, para chamar a pol�cia, que acudiu prestes. Pouco antes, dois soldados brigaram com o cocheiro ou condutor de um bonde, atracaram-se com ele, os passageiros intervieram, e, n�o conseguindo nada, recorreram aos apitos, e a pol�cia acudiu.

Estes apitos retinem-me ainda agora no c�rebro. Por Ulisses! pelo artificioso e prudente Ulisses � Nunca imaginei que toda a gente andasse aparelhada desse instrumento, na verdade �til. Os casos acima apontados s�o diferentes, as circunst�ncias diferentes, e diferentes os sentimentos das pessoas; n�o h� uma s� analogia entre os dois tumultos, exceto esta: que cada cidad�o trazia um apito no bolso. � o que eu n�o sabia. Afigura-se-me ver um pacato dono da casa, prestes a sair, gritar para a mulher:

� Flor�ncia, esqueci-me da carteira, d� c�, est� em cima da secret�ria.

Ou ent�o:

� Flor�ncia, v� se h� charutos na caixa, e atira-me alguns.

Ou ainda:

� D�-me um len�o, Flor�ncia!

Mas nunca imaginei esta frase:

� Flor�ncia, depressa, d� c� o apito!

N�o h� neg�-lo, o apito � de uso geral e comum. Uso louv�vel, porque a pol�cia n�o h� de adivinhar os tumultos, e este modo de a chamar � excelente, em vez das pernas, que podem levar o dono n�o ao corpo da guarda, mas a um escuro e modesto corredor. Vou comprar um apito.

Creiam que � por medo dele, que n�o escrevo aqui duas linhas em defesa de um defunto dos �ltimos dias, o carrasco de Minas Gerais, pobre-diabo, que ningu�m defendeu, e que uma carta de Ouro Preto disse haver exercido o seu desprez�vel of�cio desde 1835 at� 1858.

Fiquei embatucado com o desprez�vel of�cio do homem. Por que carga d��gua h� de ser desprez�vel um of�cio criado por lei? Foi a lei que decretou a pena de morte; e, desde Caim at� hoje, para matar algu�m � preciso algu�m que mate. A bela sociedade estabeleceu a pena de morte para o assassino, em vez de uma razo�vel compensa��o pecuni�ria aos parentes do morto, como queria Maom�. Para executar a pena n�o se h� de ir buscar o escriv�o, cujos dedos s� se devem tingir no sangue do tinteiro. Usamos empregar outro criminoso.

Disse ent�o a bela sociedade ao carrasco de Minas, com aquela bonomia, que s� possuem os entes coletivos: � �Voc� fez j� um bom ensaio matando sua mulher; agora assente a m�o em outras execu��es e acabar� fazendo obra perfeita. N�o se importe com mesa e cama; dou-lhe tudo isso, e roupa lavada: � um funcion�rio do Estado�.

Deus meu, n�o digo que o of�cio seja dos mais honrosos; � muito inferior ao do meu engraxador de botas, que por nenhum caso chega a matar as pr�prias pulgas; mas se o carrasco sai a matar um homem, � porque o mandam. Se a compara��o se n�o prestasse a interpreta��es sublimes, que est�o longe da minha alma, eu diria que ele (carrasco) � a �ltima palavra do c�digo. N�o seguem isto, ao menos, ao patife Janu�rio, � ou Fortunato, como outros dizem.

Em todo caso, n�o apitem, porque eu ainda n�o comprei apito, e posso responder que tudo isto � brincadeira, para passar os tempos duros do ver�o.

Boas noites.

1889

13 de janeiro

Bons dias!

Eu, se fosse gatuno, recolhia-me � casa, abria m�o de v�cio t�o hediondo, e ia estudar o hipnotismo. Uma vez amestrado, sa�a � rua com um of�cio honesto, e passava o resto dos meus dias comendo tranq�ilamente sem remorsos nem cadeia.

Foi o que fiz agora sem ser gatuno; gastei onze dias metido no estudo desta ci�ncia nova. Tivesse a menor inclina��o para ratoneiro, e nunca mais iria �s algibeiras dos outros, aos quintais, �s vitrines, nem ao famoso conto do vig�rio. Faria estudos pr�ticos da ci�ncia.

Dava, por exemplo, com um homem gordo, su��as longas, barba e queixo rapados, olhos vivos, e lesto, dizia comigo: � Este � o Visconde de Figueiredo. Metia-o por sugest�o no primeiro corredor, ele mesmo fechava a porta, por sugest�o, e eu dizia-lhe, como Gassner, que empregava o latim nas suas aplica��es hipn�ticas:

� Veniat agitatio brachiorum.

O visconde agitava os bra�os. Eu em seguida bradava-lhe:

� D�-me V. Exa. as notas que tiver a� no bolso, o rel�gio, os bot�es de ouro e qualquer outra prenda de estima��o.

S. Exa. desfazia-se de tudo paulatinamente: eu ia recebendo devagar; guardando tudo, dizia-lhe com persuas�o e for�a:

� Agora mando que se esque�a de tudo, que passe alguns minutos sem saber onde est�, que confunda esta rua com outra; e s� daqui a uma hora v� almo�ar no restaurant do costume, � cabeceira da mesma mesa, com seus habituais amigos.

Depois, � maneira do mesmo velho Gassner, fechava a experi�ncia em latim:

� Redeat ad se!

S. Exa. tornava a si; mas j� eu ia na rua, tranq�ilo, enquanto ele tinha de gastar algum tempo, explicando-se, sem consegui-lo.

Seriam os meus primeiros estudos pr�ticos; mas imagine-se o que poderia sair de tais estr�ias. Casas de penhores, ourives, joalherias. Subia ainda; ia aos tribunais ganhar causas, ia �s C�maras Legislativas obter votos, ia ao governo, ia a toda parte. De cada neg�cio (e nisto poria o maior apuro cient�fico), compunha uma longa e minuciosa mem�ria, expondo as observa��es feitas em cada paciente, a maior ou menor docilidade, o tempo, os fen�menos de toda a esp�cie; e por minha morte deixaria esses escritos ao Estado.

Por exemplo, este caso das meninas envenenadas de Niter�i � ...Estudaria aquilo com amor; primeiro o menino que aviou a receita. Indagaria bem dele se era menino ou botic�rio. Ao saber que era s� menino, mas que com cinco anos e a gra�a de Deus, esperava chegar a botic�rio, e, talvez, a m�dico da ro�a, � mostrar-lhe-ia que a fortuna protege sempre os nobres esfor�os do homem; e assim tamb�m que, para salvar mil criaturas, � preciso ter matado cinq�enta, pelo menos. Em seguida, tendo lido que o vidro do rem�dio fora mandado esconder por um facultativo, ach�-lo-ia, antes da pol�cia, por meio hipn�tico; e este era o meu neg�cio. Exposto o vidro, na Rua do Ouvidor, a dois tost�es por pessoa... � verdade que tudo poderia j� estar esquecido, ou por causa do assassinato do Catete, ou at� por nada.

Tudo feito, chegaria a morrer um dia, e muito provavelmente S�o Pedro, chaveiro do C�u, n�o me abriria as portas por mais que lhe dissesse que os meus atos eram puras experi�ncias cient�ficas. Contar-lhe-ia as minhas virtudes; ele abanaria a cabe�a. Pois a� mesmo aplicaria o novo processo.

� Veniat agitatio brachiorum!

S�o Pedro, mestre dos mestres na l�ngua eclesi�stica, obedeceria prontamente � minha intima��o hipn�tica, e agitaria os bra�os. Mas como, ent�o, n�o via nada, eu passaria para o lado de dentro; e logo que lhe bradasse de dentro: � Redeat ad se, ele acordaria e me perdoaria em nome do Senhor, desde que transpusera o limiar do C�u.

Esta � a diferen�a dos dois mist�rios p�stumos: quem entra no Inferno perde as esperan�as, quem entra no C�u conserva-as integralmente. Servate ogni speranza, o voi ch'entrate!

Boas noites.

21 de janeiro

Bons dias!

Vi, n�o me lembra onde...

� meu costume, quando n�o tenho que fazer em casa, ir por esse mundo de Cristo, se assim se pode chamar � cidade de S�o Sebasti�o, matar o tempo. N�o conhe�o melhor of�cio, mormente se a gente se mete por bairros exc�ntricos; um homem, uma tabuleta, qualquer coisa basta a entreter o esp�rito, e a gente volta para casa "lesta e aguda", como se dizia em n�o sei que com�dia antiga.

Naturalmente, cansadas as pernas, meto-me no primeiro bonde, que pode trazer-me � casa ou � Rua do Ouvidor, que � onde todos moramos. Se o bonde� dos que t�m de ir por vias estreitas e atravancadas, torna-se um verdadeiro obs�quio do C�u. De quando em quando, p�ra diante de uma carro�a que despeja ou recolhe fardos. O cocheiro trava o carro, ata as r�deas, desce e acende um cigarro; o condutor desce tamb�m e vai dar uma vista de olhos ao obst�culo. Eu, e todos os vener�veis camelos da Ar�bia, vulgo passageiros, se estamos dizendo alguma coisa, calamo-nos para ruminar e esperar.

Ningu�m sabe o que sou quando rumino. Posso dizer, sem medo de errar, que rumino muito melhor do que falo. A palestra � uma esp�cie de peneira, por onde a id�ia sai com dificuldade, creio que mais fina, mas muito menos sincera. Ruminando, a id�ia fica �ntegra e livre. Sou mais profundo ruminando; e mais elevado tamb�m.

Ainda anteontem, aproveitando uma meia hora de bondeparado, lembrou-me n�o sei como o inc�ndio do club dos Tenentes do Diabo. Ruminei os epis�dios todos, entre eles os atos de generosidade da parte das sociedades cong�neres; e fiquei triste de n�o estar naquela primeira juventude, em que a alma se mostra capaz de sacrif�cios e de bravura. Todas essas dedica��es d�o prova de uma solidariedade rara, grata ao cora��o.

Dois epis�dios, por�m, me deram a medida do que valho, quando rumino. Toda a gente os leu separadamente; o leitor e eu fomos os �nicos que os comparamos.

Refiro-me, primeiramente, � a��o daqueles s�cios de outro club, que correram � casa que ardia, e, acudindo-lhes � lembran�a os estandartes, bradaram que era preciso salv�-los. "Salvemos os estandartes!" e t�-lo-iam feito, a troco da vida de alguns, se n�o fossem impedidos a tempo. Era loucura, mas loucura sublime. Os estandartes s�o para eles o s�mbolo da associa��o, representam a honra comum, as gl�rias comuns, o esp�rito que os liga e perpetua.

Esse foi o primeiro epis�dio. Ao p� dele temos o do empregado que dormia, na sala. Acordou este, cercado de fumo, que o ia sufocando e matando. Ergueu-se, compreendeu tudo, estava perdido, era preciso fugir. Pegou em si e no livro da escritura��o e correu pela escada abaixo.

Comparai esses dois atos, a salva��o dos estandartes e a salva��o do livro, e tereis uma imagem completa do homem. V�s mesmos que me ledes sois outros tantos exemplos de conclus�o. Uns dir�o que o empregado, salvando o livro, salvou o s�lido; o resto � obra de sirgueiro. Outros replicar�o que a contabilidade pode ser reconstitu�da, mas que o estandarte, s�mbolo da associa��o, � tamb�m a sua alma; velho e chamuscado, valeria muito mais que o que possa sair agora, novo, de uma loja. Compar�-lo-�o � bandeira de uma na��o, que os soldados perdem no combate, ou trazem esfarrapada e gloriosa.

E todos v�s tereis raz�o; sois as duas metades do homem, formais o homem todo... Entretanto, isso que a� fica dito est� longe da sublimidade com que o ruminei. Oh! se todos fic�ssemos calados! Que imensidade de belas e grandes id�ias! Que saraus excelentes! Que sess�es de C�mara! Que magn�ficas viagens de bonde!

Mas por onde � que eu tinha principiado? Ah! uma coisa que vi, sem saber onde...

N�o me lembra se foi andando de bonde; creio que n�o. Fosse onde fosse, no centro da cidade ou fora dela. Vi, � porta de algumas casas, esqueletos de gente, postos em atitudes joviais. Sabem que o meu �nico defeito � ser piegas; venero os esqueletos, j� porque o s�o, j� porque o n�o sou. N�o sei se me explico. Tiro o chap�u �s caveiras; gosto da respeitosa liberdade com que Hamlet fala � do bobo Yorick. Esqueletos de mostrador, fazendo gaifonas, sejam eles de verdade ou n�o, � coisa que me aflige. H� tanta coisa gaiata por esse mundo, que n�o vale a pena ir ao outro arrancar de l� os que dormem. N�o desconhe�o que esta minha pieguice ia melhor em verso, com toada de recitativo ao piano: Mas � que eu n�o fa�o versos; isto n�o � verso:

Venha o esqueleto, mais tristonho e grave,

Bem como a ave, que fugiu do al�m...

Sim, ponhamos o esqueleto nos mostradores, mas s�rio, t�o s�rio como se fosse o pr�prio esqueleto do nosso av�, por exemplo... Obrig�-lo a uma polca, habanera, lundu ou cracoviana... Cracoviana? Sim, leitora amiga, � uma dan�a muito antiga, que o nosso amigo Jo�o, c� de casa, executa maravilhosamente, no intervalo dos seus trabalhos. Quando acaba, diz-nos sempre, parodiando um trecho de Shakespeare: "H� entre a vossa e a minha idade, muitas mais coisas do que sonha a vossa v� filosofia."

Boas noites.

13 de fevereiro

Bons dias!

O diabo que entenda os pol�ticos! Toda a gente aqui me diz, que o meio de obter C�maras razo�veis � acabar com as elei��es por distritos, na quais, � for�a de meia d�zia de votos, um paspalh�o ou perverso fica deputado. Dizem agora telegramas franceses, que o governo e a maioria da C�mara dos Deputados, para evitar o mesmo mal, v�o adotar justamente a elei��o por distritos. Entenderam? Eu estou na mesma.

Felizmente, dei com uma dessas criaturas que o C�u costumava enviar para esclarecer os homens, a qual me disse que Pascal era um sonhador. N�o gosto de calembour, mas n�o pude evitar este: "H� de me perdoar, o Pascoal � confeiteiro." A pessoa n�o fez caso; continuou dizendo que Pascal era um sonhador, porque o que ele achava extravagante, � que � natural: verdade aqui, erro al�m. Sabia eu por que � que l� adotaram o que para n�s � ruim? Era para escapar ao cesarismo. Sabia eu o que era cesarismo?

� N�o, senhor.

� Cesarismo vem de C�sar.

� Far�ni? perguntei eu, e confesso que sem o menor desejo de trocadilho.

� N�o.

� Zama? Conhe�o um C�sar Zama.

� Cala-se, homem, ou ponha-se fora. N�o estou para aturar c�rebros fracos, nem pessoas malcriadas, porque, se � grande impolidez interromper a gente para dizer uma verdade, quanto mais uma asneira. C�sar Zama! C�sar Far�ni!

� J� sei: C�sar Cantu...

� V� para o diabo, que o ature. Quando quiser saber as coisas ou�a calado, entendeu? Ora essa! Cantu, Far�ni, Zama... J� viu o cometa?

� H� algum cometa?

� H�, sim, senhor, v� ver o cometa; aparece �s 3 horas da manh�, e de onde se v� melhor � do morro do Neco, � esquerda. Tem um grande rabo luminoso. V�, meu amigo; quem n�o entende das coisas, n�o se mete nelas. V� ver o cometa.

Fiquei meio jururu, porque o principal motivo que me levara a procurar a dita pessoa, n�o era aquele, mas outro. Era saber se existia a Sociedade Protetora dos Animais.

Afinal, prestes a ir ver o cometa, tornei atr�s e fiz a pergunta. Respondeu-me que sim, que a Sociedade Protetora dos Animais existia, mas que tinha eu com isso? Expliquei-lhe que era para mim uma das sociedades mais simp�ticas. Logo que ela se organizou, fiquei contente, dizendo comigo que, se Inglaterra e outros pa�ses possu�am sovidades tais por que n�o a ter�amos n�s? Prova de sentimentos finos, justos, elevados; o homem estende a caridade aos brutos...

Parece que ia falando bem, porque a pessoa n�o gostou, e interrompeu-me, bradando que tinha pressa; mas eu ainda emiti v�rias frases asseadas, e citei alguns trechos liter�rios, para mostrar que tamb�m sabia cavalgar livros. Afinal, confiei-lhe o motivo da pergunta; era para saber se, havendo na C�mara Municipal nada menos de tr�s projetos ou planos para a extin��o dos c�es, a Sociedade Protetora tinha opinado sobre algum deles, ou sobre todos.

A pessoa n�o sabia, nem quis meter a sua alma no Inferno asseverando fatos que ignorava. Saberia eu o que se passava em Quebec? Respondi que n�o. Pois era a mesma coisa. A sociedade e Quebec eram id�nticas para os fins da minha curiosidade. Podia ser que os tr�s projetos j� a sociedade houvesse examinado quatro ou mesmo nenhum; mas, como sab�-lo?

Conversamos ainda um pouco. Fiz-lhe notar que os burros, principalmente os das carro�as e bondes, declaram a quem os quer ouvir, que ningu�m os protege, a n�o ser o pau (nas carro�as) e as r�deas (nos bondes). Respondeu-me que o burro n�o era propriamente um animal, mas a imagem quadr�pede do homem. A prova � que, se encontramos a amizade no c�o, o orgulho no cavalo, etc., s� no burro achamos filosofia. N�o pude conter-me e soltei uma risada. Antes soltasse um espirro! A pessoa veio para mim, com os punhos fechados, e quase me mata. Quando voltei a mim, perguntei humildemente:

� Bem; se a Sociedade Protetora dos Animais n�o protege o c�o nem o burro, o que � que protege?

� Ent�o n�o h� outros animais? A girafa n�o � animal? A girafa, o elefante, o hipop�tamo, o camelo, o crocodilo, a �guia. O pr�prio cavalo de Tr�ia, apesar de ser feito de madeira, como levava gente na barriga, podemos consider�-lo bicho. A Sociedade n�o h� de fazer tudo ao mesmo tempo. Por ora o hipop�tamo, depois vir� o c�o.

� Mas � que o...

� Homem, v� ver o cometa; morro do Neco, � esquerda.

� �s tr�s horas?

� Da madrugada; boas noites.

16 de fevereiro

Bons dias!

Deus seja louvado! Choveu... Mas n�o � pela chuva em si mesma que o leitor me v� aqui cantando e bailando; � por outra coisa. A chuva podia ter melhorado o estado sanit�rio da cidade, sem que me fizesse nenhum particular obs�quio. Fez-me um; � o que eu agrade�o � Provid�ncia Divina.

J� se pode entrar num bonde, numa loja ou numa casa, bradar contra o calor e suspirar pela chuva, sem ouvir este badalo:

� A folhinha de Ayer d� chuva para 20 de fevereiro.

Pelo lado moral, era isto um resto um resto das torturas judici�rias de outro tempo. Pelo lado est�tico, era a mais amofinadora de todas as cegaregas deste mundo:

� Oh! n�o pude dormir esta noite! Onde ir� isto parar? Nem sinais de chuva, um c�u azul, limpo, feroz, eternamente feroz.

� A folhinha de Ayer s� d� chuva l� para 20 de fevereiro, acudia logo algu�m.

�s vezes, apesar de minha pacatez proverbial, tinha �mpetos de bradar, como nos romances de outro tempo: "Mentes pela gorja, vil�o!"

E � o que mereciam todos os alvissareiros de Ayer; era agarr�-los pelo pesco�o, derrub�-los, joelho no peito e sufoc�-los, at� botarem c� para fora � l�ngua e a alma. Peda�os de asnos!

Nem ao menos tiveram o m�rito de acertar. Afligiam sem gra�a nem verdade.

Habent sua fata libelli! As folhinhas de Ayer, como an�ncios meteorol�gicos, est�o a expirar. S� este golpe recente � de levar couro e cabelo. Agora podem prever as maiores tempestades do mundo que n�o deixarei de sair a p� com sapatos rasos e meias de seda, se tanto for preciso para mostrar o meu desprezo.

Ayer � um dos velhos da minha inf�ncia. Oh! bons tempos da salsaparrilha de Ayer e de Sands, dois nomes imortais, que eu cuidei ver mortos no fim de uma d�cada.

N�o seriam amigos, provavelmente, pois que cada um deles apregoava os seus frascos, com exclus�o dos frascos do outro. A mat�ria-prima � que era a mesma.

Sim, meus amigos, eu n�o sou t�o jovem como o apregoam alguns. Eu assisti a todo o ciclo do Xarope do Bosque. Conheci-o no tempo em que come�ou a curar; era um bonito xarope significado nos an�ncios por meio de uma �rvore e uma deusa � ou outra coisa, n�o sei bem como era.

Curava tudo: � propor��o que os curados iam espalhando que as folhinhas de Ayer s� davam chuvas... Perd�o, enganei-me; iam espalhando que estavam curados, a fama do xarope ia crescendo e as suas obras eram o objeto das palestras nos �nibus. A fama cresceu, a celebridade acendeu todas as suas lumin�rias. Jurava-se pelo Xarope do Bosque como um crist�o jura por Nosso Senhor. Contavam-se maravilhas; pessoas mortas voltavam � vida, com uma garrafa debaixo do bra�o, vazia.

Chegou ao apogeu. Como todos os imp�rios e rep�blicas deste mundo principiou a decair; era menos buscado, menos nomeado. O rei dos xaropes desceu ao ponto de ser o lacaio dos xaropes e lacaio mal pago; as belas curas, suas nobres aliadas, quando o viram no t�o baixo estado, foram levar os seus encantos a outros pr�ncipes. Ele ainda resistiu; reproduzia nos jornais a �rvore e a mo�a, e repetia todos os seus m�ritos, aqui e fora daqui; mas a queda ia continuando. Pessoas que lhe deviam a vida, n�o sei por que singular ingratid�o, preferiam agora o ars�nico, os calomelanos e outras drogas de pr�stimo limitado. O xarope foi caindo, caindo, caindo at� morrer.

N�o falo nisto sem l�grimas. Se por esse tempo, aproveitando a morte do Xarope do Bosque, tivesse inventado um xarope de Cidade, estava agora com a bolsa repleta. Teria pal�cio em Petr�polis, coches, alaz�es, um teatro, e o resto. A ant�tese dos nomes era a primeira recomenda��o. Se o do Bosque j� n�o cura, diriam os fregueses, busquemos o da Cidade. E curaria, podem crer, tanto como o outro, ou um pouco menos. H� sempre fregueses... Ora, eu, que n�o alimentei jamais grandes ambi��es, nem de que juntasse uns tr�s mil contos, dava o xarope aos sobrinhos. Pode ser que j� agora estivesse com outro (Deus lhe fale n�alma). Paci�ncia; Babil�nia caiu; caiu Roma. Caiu N�nive, caiu Cartago. Ningu�m mais repete esta abomin�vel scie:

� A folhinha de Ayer s� d� chuva l� para 20 de fevereiro.

Boas noites.

27 de fevereiro

Bons dias!

Ei-lo que chega... Carnaval � porta!... Diabo! a� v�o palavras que d�o id�ia de um come�o de recitativo ao piano; mas outras posteriores mostram claramente que estou falando em prosa; e se prosa quer dizer falta de dinheiro (em cartagin�s, est� claro) ent�o � que falei como um C�cero.

Carnaval � porta. J� lhe ou�o os guizos e tambores. A� v�m os carros das id�ias... Felizes id�ias, que durante tr�s dias andais de carro! No resto do ano ides a p�, ao sol e � chuva, ou ficais no tinteiro, que � ainda o melhor dos abrigos. Mas l� chegam os tr�s dias, quero dizer os dois, porque o de meio n�o conta; l� v�m, e agora � a vez de alugar a berlinda, sair e passear.

Nem isso, ai de mim, amigas, nem esse gozo particular, �nico cronol�gico, marcado, combinado e acertado, me � dado saborear este ano. N�o falo por causa da febre amarela; essa vai baixando. As outras febres s�o apenas companheiras... N�o; n�o � essa a causa.

Talvez n�o saibam que eu tinha uma id�ia e um plano. A id�ia era uma cabe�a de Boulanger, metade coroada de louros, metade forrada de lama. O plano era met�-la em um carro, e andar. E vede bem, v�s que sois id�ias, vede se o plano desta id�ia era mau. Os que esperam do general alguma coisa, deviam aplaudir; os que n�o esperam nada, deviam patear; mas o prov�vel � que aplaudissem todos, unicamente por este fato: porque era uma id�ia.

Mas a falta de dinheiro (prosa, em l�ngua p�nica) n�o me permite p�r esta id�ia na rua. Sem dinheiro, sem �nimo de o pedir a algu�m, e, com certeza, sem �nimo de o pagar, estou reduzido ao papel de espectador. Vou para a turbamulta das ruas e das janelas; perco-me no mar dos inc�gnitos.

J� algu�m me aconselhou que fosse vestido de tabeli�o. Redarg�i que tabeli�o n�o traz id�ia; e depois, n�o h� diferen�a sens�vel entre o tabeli�o e o resto do universo. Disseram-me que, tanto h� diferen�a, que chega a hav�-la entre um tabeli�o e outro tabeli�o.

� N�o leu o caso do tabeli�o que foi agora assassinado, n�o sei em que vila do interior? Foi assassinado diante de cinq�enta pessoas, de dia e na rua, sem perturba��o da ordem p�blica. Veja se h� de nunca acontecer coisa igual ao Cantanheda...

� Mas que � que fez o tabeli�o assassinado?

� � o que a not�cia n�o diz, nem importa saber. Fez ou n�o fez aquela escritura. Casou com a sobrinha de um dissidente pol�tico. Chamou nariz de C�sar � falta de nariz de alguma influ�ncia local. � a diferen�a dos tabeli�es da ro�a e da cidade. Voc� passa pela Rua do Ros�rio, e contempla a gravidade de todos os not�rios daqui. Cada um � sua mesa, alguns de �culos, as pessoas entrando, as cadeiras rolando, as escrituras come�ando... N�o falam de pol�tica; n�o sabem nunca da queda dos Minist�rios, sen�o � tarde, nos bondes; e ouvem os partid�rios como os outorgantes, sem paix�o, nem por um, nem por outro. N�o � assim na ro�a. Vista-se voc� de tabeli�o da ro�a, com um tiro de garrucha varando-lhe as costelas.

� Mas como hei de significar o tiro?

� Isto agora � que � id�ia; procure uma id�ia. H� de haver uma id�ia qualquer que significa um tiro. Leve � orelha uma pena, na m�o uma escritura, para mostrar que � tabeli�o; mas como � tabeli�o pol�tico, tem de exprimir a sua opini�o pol�tica. � outra id�ia. Procure duas id�ias, a da opini�o e a do tiro.

Fiquei alvoro�ado; o plano era melhor que o outro, mas esbarrava sempre na falta de dinheiro para a berlinda, e agora no tempo, para arranjar as id�ias. Estava nisto, quando o meu interlocutor me disse que ainda havia id�ia melhor.

� Melhor?

� Vai ver: comemorar a tomada da Bastilha, antes de 14 de julho.

� Trivial.

� Vai ver se � trivial. N�o se trata de reproduzir a Bastilha, o povo parisiense e o resto, n�o senhor. Trata-se de copiar S�o Fid�lis...

� Copiar S�o Fid�lis?

� O povo de S�o Fid�lis tomou agora a cadeia, destruiu-a, sem ficar porta, nem janela, nem preso, e declarou que n�o recebe o subdelegado que para l� mandaram. Compreende bem, que esta reprodu��o de 1789, em ponto pequeno, c� pelo bairro � uma boa id�ia.

� Sim, senhor, � id�ia... Mas ent�o tenho de escolher entre a morte p�blica do tabeli�o e a tomada da cadeia! Se eu empregasse as duas?

� Eram duas id�ias.

� Com umas brochadas de anarquia social, mental, moral, n�o sei mais qual?

� Isso ent�o � que era um cacho de id�ias... Falta-lhe s� a berlinda.

� Falta-me prosa, que � como os soldados de An�bal chamavam ao dinheiro. Uba sac� prosa nanapacatu. Em portugu�s: "Falta dinheiro aos her�is de Cartago para acabar com os romanos." Ao que respondia An�bal: Tunga lol�. Em portugu�s: Boas noites.

7 de mar�o

Bons dias!

Pego na pena com bastante medo. Estarei falando franc�s ou portugu�s? O Sr. Dr. Castro Lopes, ilustre latinista brasileiro, come�ou uma s�rie de neologismos, que lhe parecem indispens�veis para acabar com palavras e frases francesas. Ora, eu n�o tenho outro desejo sen�o falar e escrever corretamente a minha l�ngua; e se descubro que muita coisa que dizia at� aqui, n�o tem foros de cidade, mando este of�cio � fava, e passo a falar por gestos.

N�o estou brincando. Nunca comi croquettes, por mais que me digam que s�o boas, s� por causa do nome franc�s. Tenho comido e comerei filet de boeuf, � certo, mas com restri��o mental de estar comendo lombo de vaca. Nem tudo, por�m, se presta a restri��es; n�o poderia fazer o mesmo com as bouch�es de dames, por exemplo, porque bocados de senhoras d� id�ia de antropofagia, pelo equ�voco da palavra. Tenho um chambre de seda, que ainda n�o vesti, nem vestirei por mais que o uso haja reduzido a essa simples forma popular a robe de chambre dos franceses.

Entretanto h� nomes que, vindo embora do franc�s, n�o tenho d�vida em empregar, pela raz�o de que o franc�s apenas serviu de ve�culo; s�o nomes de outras l�nguas. E todo o mal n�o � a origem estrangeira, mas francesa. O pr�prio Dr. Castro Lopes se padecer de spleen, n�o h� de ir pedir o nome disto ao general Luculo; tem de sofr�-lo em ingl�s. Mas � ingl�s. � assim que ele aprova xale, por vir do persa; conquanto, digo eu, a alguns parece que o recebemos de Espanha. Pode ser que esta mesma o recebesse de Fran�a, que, confessadamente, o recebeu de Inglaterra, para onde foi das partes do Oriente. Schawl, dizem os bret�es; a Fran�a n�o ter� feito mais que tec�-lo, ado��-lo e export�-lo. Deslindem o caso, e vamos aos neologismos.

Cache-nez, � coisa que nunca mais andar� comigo. N�o � por me gabar; mas confesso que h� tempos a esta parte entrei a desconfiar que este peda�o de l� n�o me ficava bem. Um dia procurei ver se n�o acharia outra coisa, e andei de loja em loja. Um dos lojistas disse-me, no estilo pr�prio do of�cio:

� Igual, igual n�o temos; mas no mesmo sentido, posso servi-lo.

E, dizendo-lhe eu que sim, o homem foi dentro, e voltou com um livro portugu�s, antigo, e ali mesmo me leu isto, sobre as mulheres persianas: �O rosto, n�o descobrem nunca fora de casa, trazendo-o coberto com um cendal ou guarda-cara...�

� Este guarda-cara � que lhe serve, disse ele. Cache-nez ou guarda-cara � a mesma coisa; a diferen�a � que um � de seda, e o outro de l�. � livro de jesu�ta, e tem dois s�culos de composi��o (1663). N�o � obra de francelho ou tarelo, como dizia o Filinto El�sio.

Sorriu-me a troca, e estive a realiz�-la, quando me apareceu o foc�ler romano, proposto pelo Sr. Dr. Castro Lopes; e bastou ser romano, para abrir m�o do outro que era apenas nacional.

O mesmo se deu com precon�cio,outro neologismo. O Sr. Dr. Castro Lopes comp�s este, �porque a todos os homens de letras que falam a l�ngua portuguesa, foi sempre manifesta a dificuldade de achar um termo equivalente � palavra francesa reclame�.

Confesso que n�o me achei nunca em tal dificuldade, e mais sou relojoeiro. Quando exercia o of�cio (que deixei por causa da vista fraca), compunha an�ncios grandes e pomposos. N�o faltava quem me acusasse de fazer reclame para vender os rel�gios. Ao que eu respondia sempre:

� Fa�a-me o favor de falar portugu�s. Reclamo � o que eu emprego, e emprego muito bem; porque � assim que se chama o instrumento com que o ca�ador busca atrair as aves; �s vezes, � uma ave ensinada para trazer as outras ao la�o. Se n�o quer reclamo, use chamariz, que � a mesma coisa. E olhe que isto n�o est� em livros velhos de jesu�tas, anda j� nos dicion�rios.

Contentava-me com aquilo; mas, desde que vi o recente precon�cio,abri m�o de outro termo, que era o nosso, por este alatinado.

Nem sempre, entretanto, fui severo com artes francesas. Pince-nez � coisa que usei por largos anos, sem desdouro. Um dia, por�m, queixando-me do enfraquecimento da vista, algu�m me disse que talvez o mal viesse da f�brica. Mandei logo (h� uns seis meses) saber se havia em Portugal alguma luneta-p�nsil das que inventara Camilo Castelo Branco, h� n�o sei quantos anos. Responderam-me que n�o. Camilo fez uma dessas lunetas, mas a concorr�ncia francesa n�o consentiu que a ind�stria nacional pegasse.

Fiquei com o meu pince-nez,que, a falar verdade, n�o me fazia mal, salvo o suposto de me ir comendo a vista, e um ou outro apert�o que me dava no nariz. Era franc�s, mas, n�o cuidando a ind�stria nacional de o substituir, n�o havia eu de andar �s apalpadelas. Vai sen�o quando, vejo anunciados os nas�culos do nosso distinto autor. L� fui comprar um, j� o cavalguei no nariz, e n�o me fica mal. Daqui a pouco, ver-me-�o andar pela rua, teso como um petit-maitre... Perd�o, petimetre, que � j� da nossa l�ngua e do nosso povo.

Boas noites.

19 de mar�o

Bons dias!

Faleceu em Portugal o Sr. J�come de Bruges Ornelas �vila Paim da C�mara Ponce de Le�o Homem da Costa Noronha Borges de Sousa e Saavedra, 2� Conde da Praia da Vit�ria, 2� Visconde de Bruges.

Quarta-feira, na igreja do Carmo, diz-se uma missa por alma do ilustre finado, e quem a manda dizer � um seu amigo � nada mais que amigo grat�ssimo � mem�ria do finado. Nenhum nome, nada, um amigo; � o que leio nos an�ncios.

Quem quer sejas tu, homem raro, deixa-me apertar-te as m�os de longe. E n�o te fa�o um discurso, para n�o te molestar; mas � o que tu merecias, e mereces. Singular an�nimo, tu perdes um amigo daquele tamanho, e n�o lhe aproveitas a mem�ria para cavalg�-lo. N�o fazes daqueles t�tulos e nomes a tua pr�pria condecora��o. N�o chocalhas o finado � tua porta, como um reclamo, para atrair e dizer depois � gente reunida: � Eu, Fulano de Tal, mando dizer uma missa por alma de n eu grande amigo J�come de Bruges Ornelas �vila Paim da C�mara Ponce de Le�o Homem da Costa Noronha Borges de Sousa e Saavedra, 2� Conde da Praia da Vit�ria, 2� Visconde de Bruges.

Mas em que beco vives tu, var�o modesto? Onde te metes? Com quem falas? Qual � o teu meio? Com muito menos grandeza, n�o escapava nem escapa um morto daqueles �s celebra��es p�stumas. Ah! (dizia-me um fino rep�rter, quando faleceu o Bar�o de Cotegipe) se eu fosse a tomar nota dos mais �ntimos amigos do bar�o, concluiria que ele nunca os teve de outra qualidade. E � assim, nobre an�nimo; um morto ilustre � um naco de gl�ria que n�o se perde; � al�m disso uma ocasi�o, e �s vezes �nica, de superar os contempor�neos.

Podia ir quarta-feira � missa, com o fim �nico de perguntar quem a manda dizer; o sacrist�o mostrava-te de longe, e eu via-te, conhecia-te; mas n�o vou, n�o quero. Prefiro crer que � tudo uma ilus�o, uma fantasmagoria, que n�o existes, que �s uma hip�tese. Dado que n�o, ainda assim n�o quero conhecer-te; a vista da pessoa seria a maior das amarguras. Deixa-me a idealidade; posso imaginar-te a meu gosto, um asceta, um ing�nuo, um desenganado, um fil�sofo.

N�o sei se tens pecados. Se os tens, por mortais que sejam, cr� que esta s� a��o te ser� contada no C�u, por todos eles, e ainda ficas com um saldo. L� estarei antes de ti, provavelmente, e direi tudo a S�o Pedro, e ele te abrir� largas as portas da gl�ria eterna. Caso n�o esteja, fala-lhe desta maneira:

� Pequei, meu amado Santo, e pequei muito, reincidi no pecado, como todas as criaturas que l� est�o embaixo, porque as tenta��es s�o grandes e freq�entes, e a vida parece mais curta para o bem que para o mal. Aqui estou arrependido...

� Foste absolvido?

� N�o, n�o cheguei a confessar-me, por ter morrido de um acesso pernicioso fulminante,que o Bar�o do Lavradio diz n�o saber o que �.

� Bem, praticaste algum grande ato de virtude?

� N�o me lembra...

� V� bem, o momento � decisivo. A mod�stia � bela, mas n�o deve ir ao ponto de ocultar a verdade, quando se trata de salvar a alma. Est�s entre duas eternidades. Deste algumas esmolas?

� Saber� Vossa Santidade que sim.

� Que mais?

� Mais nada.

� Foste grato aos amigos?

� Fui, a um principalmente, meu amigo e grande amigo. Mandei-lhe dizer uma missa, no Rio de Janeiro, onde ent�o me achava, quando ele morreu no Funchal.

� Chamava-se na terra...

� J�come de Bruges Ornelas �vila Paim da C�mara Ponce de Le�o Homem da Costa Noronha Borges de Sousa e Saavedra, 2� Conde da Praia da Vit�ria, 2� Visconde de Bruges.

Aqui o pr�ncipe dos ap�stolos sorrir� para si, e dir� provavelmente:

� J� sei; convidaste os outros com teu nome por inteiro.

� N�o, n�o fiz isso.

S�o Pedro incr�dulo:

� Como...?... N�o...?... S� as iniciais...

� Nem as iniciais; disse s� que era um amigo grato ao finado.

� Entra, entra... Como te chamas tu?

� Deixe-me Vossa Santidade guardar ainda uma vez o inc�gnito.

Boas noites.

22 de mar�o

Bons dias!

Antes do �ltimo neologismo do Sr. Castro Lopes tinha eu suspeita, nunca revelada, de que o fim secreto do nosso eminente latinista, era p�r-lhe a falar volapuk. N�o vai nisto o menor desrespeito � mem�ria de C�cero nem de Hor�cio, menos ainda ao seu competente int�rprete neste pa�s. A suspeita vinha da obstina��o com que o digno professor ia bater � porta latina, antes de saber se t�nhamos em nossa pr�pria casa a colher ou o garfo necess�rio �s refei��es. Essa teima podia explicar-se de dois modos: � ou desd�m (n�o merecido) da l�ngua portuguesa, ou ent�o o fim secreto a que me referi, e que muito bem se pode defender.

Com efeito, no dia em que eu, pondo os meus nos�culos, comprar um foc�ler e um lucivelo, para fazer precon�cio na Conci�o, se n�o falar volapuk, � que estou falando cartagin�s. E contudo � puro latim. Era assim at� aqui; confesso, por�m, que o �ltimo neologismo � digo mal, � por ocasi�o do �ltimo galicismo, perdi a suspeita do fim secreto. Dessa vez o autor veio � nossa prata de casa; n�o lhe tenho pedido outra coisa.

N�o h� neologismo propriamente, j� porque a palavra desempeno existia na l�ngua, bastando apenas aplic�-la, j� porque no sentido de �-plomb l� a p�s no seu dicion�rio o nosso velho patr�cio Morais. Contudo, foi bom servi�o lembr�-la. �s vezes, uma senhora, n�o sai bem vestida de casa por esquecimento de certa manta de rendas, que estava para um canto. Acha-se a manta, p�e-se, a pessoa nada pediu emprestado e sai catita.

Contudo, surge uma d�vida. H�o de ter notado que eu sou o homem mais cheio de d�vidas que h� no mundo. A minha d�vida � se, tendo j� em casa o desempeno, para substituir o �-plomb, n�o ser� dif�cil arrancar este galicismo do uso, � quando menos do Parlamento, � onde ele � empregado em frases como estas: � "Mas o �-plomb do nobre ministro..." � �N�o � com esse �-plomb insolente de S. Exa., � com princ�pios que se governam as na��es...�

Para acudir ao mal, � dificuldade de extrair pela raiz esse dente franc�s, n�o poderiam usar a mesma palavra, com a forma portuguesa? Se �-plomb indica a posi��o tesa e desempenada da pessoa, dizendo n�s aprumo, n�o teremos dado a nossa fisionomia ao galicismo, para incorpor�-lo no idioma, j� n�o digo para sempre, mas temporariamente? Deste modo facilitava-se mais a cura, embora fosse mais longa. Desmamava-se o galicismo.

Note-se que n�o estou inventando nada. Rebelo da Silva, homem de boas letras, escreveu esse voc�bulo aprumo, e dizem que tamb�m anda em dicion�rios. L� diz o Rebelo: "Respondendo... com o aprumo do homem seguro de ter cumprido etc. etc." V� l�, desmamemos o galicismo, e demos-lhe depois um bom bife de desempeno.� verdade que podemos vir a ficar com as duas palavras, para a mesma id�ia, coisa s� compar�vel a ter duas cal�as, quando uma s� veste perfeitamente um homem.

Mas confiemos no futuro; a Gazeta, que tem inten��es de chegar ao segundo centen�rio da Revolu��o Francesa, aceitar� o esfor�o generoso de algu�m que bote o intruso para fora a pontap�s. Desconfio que ele j� anda em livros de outros autores; mas n�o afirmo nada, a n�o ser que, h� muitos anos, quando me encontrava com um saudoso amigo e bom fil�sofo, dizia-me sempre:

� Ent�o, donde vem com esse aprumo?

Tempos! Tempos! O s�culo expira; come�o a ouvir a alvorada do outro.

Ecco ridente in cielo

Gi� spunta la bella aurora...

Boas noites.

30 de mar�o

Bons dias!

Quantas quest�es graves se debatem neste momento! S� a das farinhas de Pernambuco e da moeda bastam para escrever duas boas s�ries de artigos. Mas h� tamb�m a das galinhas de Santos, � aparentemente m�nima, mas realmente ponderosa, desde que a consideremos do lado dos princ�pios. As galinhas cresceram de pre�o com a epidemia, chegando a cinco e creio que sete mil-r�is. Sem isso n�o h� dieta.

De relance, faz lembrar o caso daquele sujeito contado pelo nosso Jo�o (veja Almanaque do Velhinho, ano 5�, 1843) que, dando com um casebre a arder, e uma velha sentada e chorando, perguntou a esta:

� Boa velha, esta casinha � sua?

� Senhor, sim, � o triste buraco em que morava; n�o tenho mais nada, perdi tudo.

� Bem; deixa-me acender ali o meu cigarro?

E o homem acendeu o cigarro na calamidade particular. Mas os dois casos s�o diferentes; no de Santos rege a lei econ�mica, e contra esta n�o h� quebrar a cabe�a. Diremos, por fac�cia, que � acender dois ou tr�s charutos na calamidade p�blica; mas em alguma parte se h�o de acender os charutos. Ningu�m obsta a que se vendam as galinhas por pre�o baixo, ou at� por nada, mas ent�o � caridade, bonomia, desapego, miseric�rdia, � coisas alheias aos princ�pios e �s leis que s�o implac�veis.

N�o examinei bem o neg�cio das farinhas pernambucanas, mas n�o tenho medo que os princ�pios sejam sacrificados.

Quanto aos das libras esterlinas, n�o tendo nenhuma no bolso, n�o me julgo com direito de opinar. Contudo, meteu-se em cabe�a que n�o nos ficava mal possuir uma moeda nossa, em vez de dar curso obrigat�rio � libra esterlina. Um velho amigo, sabedor destas mat�rias, acha este modo de ver absurdo; eu, apesar de tudo, teimo na id�ia, por mais que me mostrem que daqui a pouco ou muito l� se pode ir embora o ouro, nacional ou n�o.

Mas, principalmente, o que vejo nisto � um pouco de est�tica. Tem a Inglaterra a sua libra, a Fran�a o seu franco, os Estados Unidos o seu d�lar, por que n�o ter�amos n�s nossa moeda batizada? Em vez de design�-la por um n�mero, e por um n�mero ideal � vinte mil-r�is � Por que lhe n�o poremos um nome � cruzeiro � por exemplo? Cruzeiro n�o � pior que outros, e tem a vantagem de ser nome e de ser nosso. Imagino at� o desenho da moeda; e de um lado a ef�gie imperial, do outro a constela��o... Um cruzeiro, cinco cruzeiros, vinte cruzeiros. Os nossos maiores tinham os dobr�es, os patac�es, os cruzados, etc., tudo isto era moeda tang�vel; mas vinte mil-r�is... Que s�o vinte mil-r�is? Enfim, isto j� me vai cheirando a neologismo. Outro of�cio.

Prefiro expandir a minha dor, a minha compaix�o... Oh! mas compaix�o grande, profunda, dessas que nos tornam melhores, que nos levantam deste mundo baixo e cruel, que nos fazem compartir das dores alheias. J'ai mal dans ta poitrine, escreveu um dia a boa Sevign� � filha adoentada, e fez muito bem, porque me ensinou assim um modo fino e pio de falar ao mais lastim�vel escriv�o dos nossos tempos, ao escriv�o Mesquita. Mesquita j'ai mal dans ta poitrine.

N�o te conhe�o, Mesquita; n�o sei se �s magro, ou gordo, alto ou baixo; mas para lastimar um desgra�ado n�o � preciso conhecer as suas propor��es f�sicas. Sei que �s escriv�o; sei que leste o processo B�blia, composto de mil e tantas folhas, em voz alta, perante o tribunal de jurados, durante horas e horas. Foi o que me disseram os jornais; leste e sobreviveste. Tamb�m eu sobrevivi a uma leitura, mas esta era feita por outro, numa sociedade liter�ria, h� muitos anos; um dos oradores, em vez de versos, como se esperava, sacou do bolso um relat�rio, e agora o ouvir�s. Tenho ainda diante dos olhos as caras com que and�vamos todos nas outras salas, espiando pelas portas, a ver se o homem ainda lia; e ele lia. O papel crescia-lhe nas m�os. N�o era relat�rio, era solit�ria; quando apareceu a cabe�a, houve um Te Deum landamus nas nossas pobres almas.

O mesmo foi contigo, Mesquita; cr� que ningu�m te ouviu. Os poucos que come�aram a ouvir-te, ao cabo de uma hora mandaram-te ao diabo, e pensaram nos seus neg�cios. Mil e tantas folhas! Duvido que o processo Parnell seja t�o grosso como o do testamento da B�blia. A pr�pria B�blia (ambos os testamentos) n�o � t�o grande, embora seja grande. N�o haver� meio de reduzir essa velha praxe a uma coisa �til e c�moda? Aviso aos legisladores.

Boas noites.

20 de abril

Bons dias!

A principal vantagem dos estudos de l�ngua, � que com eles n�o perdemos a pele, nem a paci�ncia, nem, finalmente, as ilus�es, como acontece aos que se empenham na pol�tica, essa fatal Dalila (deixem-me ser banal), a cujos p�s Sans�o perdeu o cabelo, e Andr� Roswein a vida.

� Andr�, tu ainda h�s de fazer com que eu acabe os dias num convento, diz Carnioli ao infeliz Roswein.

Nunca repetirei isto ao ilustre latinista, que ultimamente emprega os seus lazeres em expelir barbarismos e compor novas locu��es. L�ngua, tanto n�o � Dalila, que � o contr�rio; n�o sei se me explico. Podemos errar; mas, ainda errando, a gente aprende.

Agora mesmo, ao sair da cama, enfiei um chambre. Cuidei estar composto, sem esc�ndalo. N�o ignorava (tanto que j� o disse aqui mesmo) que aquele vestido, antes de passar a fronteira, era robe de chambre; ficou s� chambre. Mas como vinha de tr�s, os velhos que conheci n�o usavam outra coisa, e o pr�prio Nicolau Tolentino, posto que mestre-escola, j� o enfiou nos seus versos, pensei que n�o era caso de o desbatizar. Nunca mandei embora uma cale�a s� por vir de cal�che; o mais que fa�o, � n�o dar gorjeta ao automedonte, vulgo cocheiro.

Imaginem agora o meu assombro, ao ler o artigo em que o nosso ilustre professor mostra, a todas as luzes, que chambre � voc�bulo conden�vel, por ser franc�s. Antes de acabar o artigo, atirei para longe a fatal estrangeirice, e meti-me num palet� velho, sem advertir que era da mesma f�brica. A ignor�ncia � a m�e de todos os v�cios.

Continuei a ler, e vi que o autor permite o uso da coisa, mas com outro nome, o nome � rocl�, "segundo diziam (acrescenta) os nossos maiores".

Com efeito, se os nossos maiores chamavam de rocl� ao chambre, melhor � empregar o termo de casa, em vez de ir pedi-lo aos vizinhos. O contr�rio � desmazelo. Chamei ent�o o meu criado � que � velho e minhoto � e disse-lhe que daqui em diante, quando lhe pedisse o rocl�, devia trazer-me o chambre. O criado p�s as m�os �s ilhargas, e entrou a rir como um perdido. Perguntei-lhe por que se ria, e repeti-lhe a minha ordem.

� Mas o patr�o h� de me perdoar se lhe digo que n�o entendo. Ent�o o chambre agora � rocl�?

� Sim, que tem?

� � que l� na terra rocl� � outra coisa; � um capote curto, estreito e de mangas. Parece-me tanto com chambre, como eu me pare�o com o patr�o, e mais n�o sou feio...

� N�o; � imposs�vel.

� Mas se lhe digo que � assim mesmo; � um capote. Eu at� servi a um homem, l� em Lisboa (Deus lhe fale n�alma!) que usava as duas coisas, � o chambre em casa, de manh�; e, � noite, quando sa�a a namorar, ia com o seu rocl� �s costas, manguinhas enfiadas.

� In�cio, bradei levantando-me, juras-me, pelas cinzas de teu pai, que isso � verdade?

� Juro, sim, senhor. O patr�o at� ofende com isso ao seu velho criado. Pois ent�o � preciso que jure? Ouviu nunca de mim alguma mentira... Tudo por causa de um rocl� e de um chambre... � coisa certa que a ignor�ncia da l�ngua e o amor da novidade d�o certo sabor a voc�bulos inventados ou descabidos. Mas como faz�-los, sem citar o depoimento do meu velho minhoto, que n�o tem autoridade? Estava nisso, quando dei um grito, assim:

� Ah!

Dei o grito. Tinha achado o segredo da substitui��o do nome. Com efeito, rocl� vem do franc�s roquelaure, designa��o de um capote. Portugal recebeu de Fran�a o capote e o nome, e ficou com ambos, mas foi modificando o nome. Tal qual aconteceu com robe de chambre. A mudan�a proposta agora no artigo a que me refiro, ficaria sem sentido, se n�o fosse inten��o do autor, suponho eu, curar a dentada do c�o com o p�lo do mesmo c�o. Similia similibus curantur.

Boas noites.

7 de junho

Bons dias!

N�o gosto que me chamem profeta de fatos consumados; pelo que, apresso-me em publicar o que vai suceder, enquanto o Conselho de Estado se acha reunido no pa�o da cidade.

Verdade seja, que o meu m�rito � escasso e duvidoso; devo o principal dos progn�sticos ao esp�rito de Nostradamus, enviado pelo meu amigo Jos� Bas�lio Moreira Lapa, cambista, propriet�rio, pai de um dos melhores filhos deste mundo, v�tima do Monte Pio e de um reumatismo peri�dico.

Lapa est� naquele per�odo do espiritismo em que o homem, j� inclinado ao obscuro, disp�e de raz�o ainda clara e penetrante, e pode entreter conversa��es com os esp�ritos. H�, entretanto, uma lacuna nessa primeira fase: � que os esp�ritos acodem menos prontamente, e a prova � que desejando eu consultar Vasconcelos, Vergueiro ou o Padre Feij�, como pessoas de casa, n�o foi poss�vel ao meu amigo Lapa faz�-las chegar � fala; s� consegui Nostradamus. N�o � pouco; h� mestres que n�o o alcan�ariam nunca.

A segunda fase do espiritismo � muito melhor. Depois de quatro ou cinco anos (prazo da primeira), come�a a pura dem�ncia. N�o � vagarosa nem s�bita, um meio-termo, com este caracter�stico: o esp�rita, � medida que a dem�ncia vai crescendo, atira-se-lhe mais r�pido. O �ltimo salto nas trevas dura minuto e meio a dois minutos. H� casos excepcionais de cinco e dez minutos, mas s� em climas frios e muito frios, ou ent�o nas esta��es invernosas. Nos climas quentes e durante o ver�o, o mais que se ter� visto, � cair em tr�s minutos.

N�o se entenda, por�m, que esta queda � apreci�vel por qualquer pessoa; s� o pode ser por alienistas e de grande observa��o. Com efeito, para o vulgo n�o h� diferen�a; desde o princ�pio da aliena��o mental (isto �, come�ado o segundo prazo do espiritismo, que � depois de quatro ou cinco anos, como ficou dito), o esp�rita est� perdido a olhos vistos; os atos e palavras indicam o desequil�brio mental; n�o h� ilus�o a tal respeito. Conversa-se com eles; raros compreendem logo em princ�pio o sol e a lua; mostram-se todos afetuosos leais e atentos. Mas o transtorno cerebral � claro. Toda a gente v� que fala a doentes.

Entretanto, (mist�rio dos mist�rios!) � justamente assim e principalmente depois do �ltimo salto nas trevas, que os esp�ritos vagabundos ou penantes acodem ao menor aceno, n�o menos que os de pessoas c�lebres, batizadas ou n�o.

Tem-se calculado que, dos esp�ritos evocados durante um ano, 28 por cento o foram por esp�ritas ainda meio s�os (primeira fase); 72 por cento pertencem aos mentecaptos. Alguns estat�sticos chegam a conceder aos �ltimos 79 por cento; mas parece excessivo.

N�o importa ao nosso caso a porcentagem exata; basta saber que, para a melhor evoca��o e mais f�cil troca de id�ias, � prefer�vel o man�aco ao s�o, e o doido varrido ao man�aco. Nem pare�a isto maravilha; maravilha ser�, mas de leg�tima estirpe. Montaigne, muito apreciado por um dos nossos primeiros senadores e por este seu criado, dizia com aquela agudeza que Deus lhe deu: C'est un grand ouvrier de miracles que l'esprit humain! Os milagres do espiritismo s�o tais; a rigor, � o esp�rito humano que faz o seu of�cio.

Eu chegaria a propor, se tivesse autoridade cient�fica, um meio de desenvolver esta planta essencialmente espiritual. Estabeleceria por lei os casamentos esp�ritas, isto �, em que ambos os c�njuges fossem examinados e reconhecidos como inteiramente entrados na segunda fase. Os filhos desses casais trariam do ber�o o dom especial, em virtude da transmiss�o. Quando algum, escapando pela malhas dessa lei natural (todos as t�m) chegasse a simples mediocridade, paci�ncia; os restantes, confinando na idiotia e no cretinismo (com perd�o de quem me ouve), preparariam as bases de um excelente s�culo futuro.

Venhamos ao nosso Lapa. Evocado Nostradamus, vi claramente o que ele referiu ao evocador. Em primeiro lugar, a maioria do Conselho de Estado � contr�ria � dissolu��o da C�mara dos Deputados, que alguns dizem incorretamente (explicou ele) "dissolu��o das C�maras". Sair� o gabinete de 10 de mar�o. � convidado o Sr. Correia, depois o Sr. Visconde do Cruzeiro, depois novamente o Sr. Correia, e o Sr. Visconde de Vieira da Silva. Este, apesar de enfermo, tentar� organizar um gabinete que concilie as duas partes do Partido Conservador; n�o o conseguir�; ser� chamado o Sr. Saraiva, que n�o aceita; sobe o Sr. Visconde de Ouro Preto e est�o os liberais de cima.

Boas noites.

13 de agosto

Bons dias!

Dizia-me ontem um homem gordo... para que ocult�-lo?... Lulu S�nior:

� Voc� n�o pode deixar de ser candidato � C�mara tempor�ria. Um homem dos seus merecimentos n�o deve ficar � toa, passeando o triste fraque da mod�stia pelas vielas da obscuridade. Eu, se fosse magro, como voc�, � o que fazia; mas as minhas formas atl�ticas pedem evidentemente o Senado; l� irei acabar estes meus dias alegres. Passei o cabo dos quarenta; vou a Melinde buscar piloto que me guie pelo oceano �ndico, at� chegar � terra desejada...

J� se viam chegados junto � terra,

Que desejada j� de tantos fora.

� Bem, respondi eu, mas � preciso um programa; � preciso dizer alguma coisa aos eleitores; pelo menos de onde venho e para onde vou. Ora, eu n�o tenho id�ias, nem pol�ticas nem outras.

� Est� zombando!

� N�o, senhor; juro por esta luz que me alumia. Na distribui��o geral das id�ias... Talvez voc� n�o saiba como � que se distribuem as id�ias, antes da gente vir a este mundo. Deus mete alguns milh�es delas num grande vaso de jaspe, correspondente �s levas de almas que t�m de descer. Chegam as almas; ele atira as id�ias aos punhados; as mais ativas apanham maior n�mero, as moleironas ficam com um pouco mais de uma d�zia, que se gasta logo, em pouco tempo; foi o que me sucedeu.

� Mas trata-se justamente de suprimi-las; n�o as ter � meio caminho andado. Tem lido as circulares eleitorais?

� Uma ou outra.

� A� est� porque voc� anda baldo ao naipe; n�o l� nada, ou quase nada; os jornais passam-lhe pelas m�os � toa, e quer ter id�ias. H� opini�es que eu ou�o �s vezes, e fico meio desconfiado; corro �s folhas da semana anterior, e l� dou com elas inteirinhas. Pois as circulares, se nem todas s�o originais, s�o geralmente escritas com facilidade, algumas com vigor, com brilho e... Umas falam de ficar parado, outras de andar um bom peda�o, outras de correr, outras de andar para tr�s...

� Justamente. Que hei de escolher entre tantos alvitres?

� Um s�.

� Mas qual?

� De tantos homens que falaram aos eleitores, um s� teve para mim a intui��o pol�tica; "Conhecido dos meus amigos (escreveu o Sr. Dr. Nobre, presidente da C�mara Municipal), julgo-me dispensado de definir a minha individualidade pol�tica." Tem voc� amigos?

� Alguns.

� Tem muitos. Bota para fora essa morrinha da mod�stia. Voc� n�o ter� id�ias, mas amigos n�o lhe faltam. Eu tenho ouvido coisas a seu respeito, que at� me admira, � verdade. J� vi baterem-se dois sujeitos por sua causa. Vinham num bonde ao p� de mim. Um disse que o encontrara nesse dia de fraque cor de rap�, o outro que tamb�m o vira, mas que o fraque tirava mais a cor de vinho. O primeiro teimou, o segundo n�o cedeu, at� que um deles chamou ao outro peda�o d'asno; o outro retorque-lhe, n�o lhe digo nada, engalfinharam-se e esmurraram-se � grande. Eu nunca me benzi com um sacrif�cio destes. Vamos, amigos n�o lhe faltam.

� Pois sim; e depois?

� Depois � o que escreveu o candidato. Conhecido dos seus amigos, que necessidade tem voc� de definir-se? � o mesmo que dar um ch� ou um baile, e distribuir � entrada o seu retrato em fotografia. N�o se explique; apare�a. Diga que deseja ser deputado, e que conta com os seus amigos.

� S� isso?

� � palerma, eles conhecem-te, mas � preciso visit�-los. A maior parte dos amigos n�o votam sem visita. A quest�o � esta? O eleitor tem tr�s fases; est� na segunda, em que a c�dula � considerada um chap�u que ele n�o tira sem o outro tirar primeiro o seu chap�u de verdade. Se houver intimidade, ainda podes dizer brincando: "� Cunha, tira o chap�u." Mas o teu h� de estar na m�o.

� Bem, se � s� isso, estou eleito.

� Isso, e amigos.

� E amigos, justo.

� N�o te definas, eles conhecem-te; procura-os. Quando o filhinho de algum vier �, sala, pega nele, assenta-o na perna; se o menino meter o dedo no nariz, acha-lhe gra�a. E pergunta ao pai como vai a senhora; afirma que tens estado para l� ir, mas as bronquites s�o tantas em casa... Elogia-lhe as bambinelas. N�o ofere�as charuto, que pode parecer corrup��o; mas aceita-lhe o que ele te der. Se for quebra-queixo, pergunta-lhe interessado onde � que os compra.

� J� se v�, em cada casa a mesma cantilena. Uma s� m�sica, embora com palavras diversas. O eleitor pode ser um ruim poeta...

� Justamente; leva-lhe decorado o �ltimo soneto, um primor.

� Compreendi tudo. Defini��o � que nada, visto que s�o meus amigos. Compreendi tudo. Posso oferecer a minha gratid�o?

� Podes; toda a quest�o � ir ao encontro do sentimento do eleitor, isto �, que ele te faz um favor votando; n�o escolhe um representante dos seus interesses. Anda, vai-te embora e volta-me deputado.

Boas noites.

22 de agosto

Bons dias!

Quem nunca invejou, n�o sabe o que � padecer. Eu sou uma l�stima. N�o posso ver uma roupinha melhor em outra pessoa, que n�o sinta o dente da inveja morder-me as entranhas. � uma como��o t�o ruim, t�o triste, t�o profunda, que d� vontade de matar. N�o h� rem�dio para esta doen�a. Eu procuro distrair-me nas ocasi�es; como n�o posso falar, entro a contar os pingos de chuva, se chove, ou os basbaques que andam pela rua, se faz sol; mas n�o passo de algumas dezenas. O pensamento n�o me deixa ir avante. A roupinha melhor faz-me foscas, a cara do dono faz-me caretas...

Foi o que me aconteceu, depois da �ltima vez que estive aqui. H� dias, pegando numa folha da manh�, li uma lista de candidaturas para deputados por Minas, com seus comentos e progn�sticos. Chego a um dos distritos, n�o me lembra qual, nem o nome da pessoa, e que hei de ler? Que o candidato era apresentado pelos tr�s partidos, liberal, conservador e republicano.

A primeira coisa que senti, foi uma vertigem. Depois, vi amarelo. Depois, n�o vi mais nada. As entranhas do�am-me, como se um fac�o as rasgasse, a boca tinha um sabor de fel, e nunca mais pude encarar as linhas da not�cia. Rasguei afinal a folha, e perdi os dois vint�ns; mas eu estava pronto a perder dois milh�es, contando que aquilo fosse comigo.

Upa! que caso �nico. Todos os partidos armados uns contra os outros no resto do Imp�rio, naquele ponto uniam-se e depositavam sobre a cabe�a de um homem os seus princ�pios. N�o faltar� quem ache tremenda a responsabilidade do eleito, � porque a elei��o, em tais circunst�ncias, � certa; c� para mim � exatamente o contr�rio. D�em-me dessas responsabilidades, e ver�o se me saio delas sem demora, logo na discuss�o do voto de gra�as.

� Trazido a esta C�mara (diria eu) nos paveses de gregos e troianos, e n�o s� dos gregos que amam o col�rico Aquiles, filho de Peleu, como dos que est�o com Agamenon, chefe dos chefes, posso exultar mais que nenhum outro, porque nenhum outro �, como eu, a unidade nacional. V�s representais os v�rios membros do corpo; eu sou o corpo inteiro, completo. Disforme, n�o; n�o monstro de Hor�cio, por qu�? Vou diz�-lo.

E diria ent�o que ser conservador era ser essencialmente liberal, e que no uso da liberdade, no seu desenvolvimento, nas suas mais amplas reformas, estava a melhor conserva��o. Vede uma floresta! (exclamaria, levantando os bra�os). Que potente liberdade! e que ordem segura! A natureza, liberal e pr�diga na produ��o, � conservadora por excel�ncia na harmonia em que aquela vertigem de troncos, folhas e cip�s, em que aquela passarada estr�dula, se unem para formar a floresta. Que exemplo �s sociedades! Que li��o aos partidos!

O mais dif�cil parece que era a uni�o dos princ�pios mon�rquicos e dos princ�pios republicanos; puro engano. Eu diria: 1�, que jamais consentiria que nenhuma das duas formas de governo se sacrificasse por mim; eu � que era por ambas; 2�, que considerava t�o necess�ria uma como outra, n�o dependendo tudo sen�o dos termos; assim pod�amos ter na monarquia a rep�blica coroada, enquanto que a rep�blica podia ser a liberdade no trono, etc., etc.

Nem todos concordariam comigo; creio at� que ningu�m, ou concordariam todos, mas cada um com uma parte. Sim, o acordo pleno das opini�es s� uma vez se deu abaixo do sol, h� muitos anos, e foi na assembl�ia provincial do Rio de Janeiro. Orava um deputado, cujo nome absolutamente me esqueceu, como o de dois, um liberal, outro conservador, que virgulavam o discurso com apartes, � os mesmos apartes. A quest�o era simples.

O orador, que era novo, expunha as suas id�ias pol�ticas. Dizia que opinava por isso ou por aquilo. Um dos apartistas acudia: � liberal. Redarg�ia o outro: � conservador. Tinha o orador mais este e aquele prop�sito. � conservador, dizia o segundo; � liberal, teimava o primeiro. Em tais condi��es, prosseguia o novato, � meu intuito seguir este caminho. Redarg�ia o liberal: � liberal; e o conservador: � conservador. Durou este divertimento tr�s quartos de colunas do Jornal do Com�rcio. Eu guardei um exemplar da folha para acudir �s minhas melancolias, mas perdi-o numa das mudan�as de casa.

Oh! n�o mudeis de casa! Mudai de roupa, mudai de fortuna, de amigos, de opini�o, de criados, mudai de tudo, mas n�o mudeis de casa!

Boas noites.

29 de agosto

Bons dias!

H�o de fazer-me esta justi�a, ainda os meus mais ferrenhos inimigos: � que n�o sou curandeiro, eu n�o tenho parente curandeiro, n�o conhe�o curandeiro, e nunca vi cara, fotografia ou rel�quia, sequer, de curandeiro. Quando adoe�o n�o � de espinhela ca�da, � coisa que podia aconselhar-me a curandeira; � sempre de mol�stias latinas ou gregas. Estou na regra; pago impostos, sou jurado, n�o me podem arg�ir a menor quebra de dever p�blico.

Sou obrigado a dizer tudo isso, como uma profiss�o de f�, porque acabo de ler o relat�rio m�dico acerca das drogas achadas em casa do curandeiro Tobias. Saiu hoje; � um bom documento. Falo tamb�m porque outras muitas coisas me estimulam a falar, como dizia o curandeiro-mor, Mal das Vinhas, chamado, que j� l� est� no outro mundo. Falo ainda, porque nunca vi tanto curandeiro apanhado, � o que prova que a ind�stria � lucrativa.

Pelo relat�rio se v� que Tobias � um tanto Monsieur Jourdain, que falava em prosa sem o saber; Tobias curava em l�nguas cl�ssicas. Aplicava, por exemplo, solanum argentum, certa erva, que n�o vem com outro nome; possu�a umas cinq�enta gramas de aristolochia appendiculata, que dava aos clientes; � a raiz de mil-homens. Tinha, por�m, umas bugigangas curiosas, espor�es de galo, p�s de galinha secos, medalhas, p�lvora e at� um chicote feito de rabo de raia, que eu li rabo de saia, coisa que me espantou, porque estava, estou e morrerei na cren�a de que rabo de saia � simples met�fora. Vi depois o que era rabo de raia. Chicote para qu�?

Tudo isto, e ainda mais, foi apanhado ao Tobias, no que fizeram muito bem, e oxal� se apanhem as bugigangas e drogas aos demais curandeiros, e se punam estes, como manda a lei.

A minha quest�o � outra, e tem duas faces.

A primeira face � toda de venera��o; punamos o curandeiro, mas n�o esque�amos que a curandeira foi a c�lula da medicina. Os primeiros doentes que houve no mundo, ou morreram ou ficaram bons. Interveio depois o curandeiro, com algumas observa��es rudiment�rias, aplicou ervas, que � o que havia � m�o, e ajudou a sarar ou a morrer o doente. Da� vieram andando, at� que apareceu o m�dico. Darwin explica por modo an�logo a presen�a do homem na terra. Eu tenho um sobrinho, estudante de medicina, a quem digo sempre que o curandeiro � pai de Hip�crates, e, sendo o meu sobrinho filho de Hip�crates, o curandeiro � av� do meu sobrinho; e descubro agora que vem a ser meu tio, � fato que eu neguei a princ�pio. Tamb�m n�o borro o que l� est�. Vamos � segunda face.

A segunda � que o espiritismo n�o � menos curanderia que a outra, e � mais grave, porque se o curandeiro deixa os seus clientes estropiados e disp�pticos, o esp�rita deixa-os simplesmente doidos. O espiritismo � uma f�brica de idiotas e alienados, que n�o pode subsistir. N�o h� muitos dias deram not�cia as nossas folhas de um brasileiro que, fora daqui, em Lisboa, foi recolhido em Rilhafoles, levado pela m�o do espiritismo.

Mas n�o � preciso que d�em entrada solene nos hosp�cios. O simples fato de engolir aqueles rabos de raia, p�s de galinha, raiz de mil-homens e outras drogas vira o ju�zo, embora a pessoa continue a andar na rua, a cumprimentar os conhecidos, a pagar as contas, e at� a n�o pag�-las, que � meio de parecer ajuizado. Substancialmente � homem perdido. Quando eles me v�m contar uns ditos de Samuel e de Jesus Cristo, sublinhados de filosofia de armarinho, para dar na perfei��o sucessiva das almas, segundo estas mesmas relatam a quem as quer ouvir, palavra que me d� vontade de chamar a pol�cia e um carro.

Os esp�ritas que me lerem h�o de rir-se de mim, porque � balda certa de todo man�aco lastimar a ignor�ncia dos outros. Eu, legislador, mandava fechar todas as igrejas dessa religi�o, pegava dos religion�rios e fazia-os purgar espiritualmente de todas as suas doutrinas; depois, dava-lhes uma aposentadoria razo�vel.

Boas noites.

FIM

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